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Urbano Zilles TEXTO 1. INTRODUCAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO Revisao H. Dalbosco Impressdo ¢ acabamento PAULUS. 1? edicdo, 1991 9* reimpressao, 2012 © PAULUS - 199 Rua Francisco Cruz, 229 04117-081 Sao Paulo (Brasil) Fax (011) 5579-3627 Tel. (011) 5087-3700 s.com.br ISBN 978-85-249-0928-0 Hl INTRODUCGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO A religido é estudada pela histéria, pela psicologia, pela fe- nomenologia, pela psicandlise e pela sociologia. Todas essas cién- cias estudam metodicamente a consciéncia religiosa concreta e suas miltiplas objetivagies na histéria. A filosofia da religiao tenta esclarecer a possibilidade e a esséncia formal da religiao na exis- téncia humana. Em outras palavras, estuda a consciéncia do ho- mem e de sua autocompreensao a partir do absoluto enquanto atingivel pela inteligéncia. A filosofia da religido é uma reflexéo realizada com a tnica ajuda da razdo, sendo seu objeto a religiao e as condigées em que esta é possivel. Da mesma maneira que 0 ato filoséfico nado fundamenta a existéncia humana, mas tenta esclarecé-la, assim também a filo- sofia da religiao nao fundamenta, nem inventa a religido, mas tenta esclarecé-la, servindo-se das exigéncias propriamente filo- s6ficas. A filosofia da religiao tematiza a abertura do homem para 0 mistério que o envolve de maneira positiva, aceitando-o, ou de maneira negativa, rejeitando-o. Tematiza, pois, a relagao do ho- mem com 0 santo ou numinoso no horizonte da autocompreensio humana. + O objeto da filosofia da religido é a religiéo. Mas pode a religia ser objeto da filosofia? O que se entende por religido? O que se entende por filosofia? 1.1. O que é religiao? A primeira vista, pode-se pensar que todos saibam 0 que se significa com a palavra religiao e religioso. Talvez tal pressuposi- (40 esteja certa enquanto se refere as manifestagdes mais osten- ‘as, Mas quando se trata de precisar a esséncia da religiao logo 6 INTRODUCAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO surgem dificuldades sem fim. Quem poderé fixar os limites entre o verdadeiramente religioso e o puramente cultural, folclérico ou social? O que, por exemplo, entre nés, é da esséncia religiosa numa festa de primeira comunhdo, de um casamento na igreja etc, ¢ 0 que no? Se se trata de manifestagdes, como descobriremos 0 que manifestam? Se compararmos 0 fendmeno religioso com 0 fendmeno social ou similar, podemos dizer que designamos a estrutura especial do homem definida por sistema de relagdes com os outros homens. Poder-se-ia descrever 0 fenémeno religioso como um mundo de estrutura estritamente relacional? Mas com que ou com quem o homem se relaciona na religiao? No fundo de toda a situagao verdadeiramente religiosa encontra-se a referéncia aos funda- mentos tiltimos do homem: quanto A origem, quanto ao fim e quanto a profundidade. O problema religioso toca o homem em sua raiz ontolégica. Nao se trata de fendmeno superficial, mas implica a pessoa como um todo. Pode caracterizar-se 0 religioso como zona do sentido da pessoa. Em outras palavras, a religido tem a ver com o sentido wltimo da pessoa, da historia e do mundo. Para orientar nossa reflexdo filoséfica precisamos, desde ja, determinar melhor 0 objeto visado. Desde a Antiguidade, por re- ligifo entende-se a relagdo do homem com Deus ou com o divino. Mas logo a consciéncia critica indaga: O que é 0 homem? O que é Deus? O que vincula a ambos? O que é religiao? Quando se fala da relagdo do homem com Deus designa-se, an- tes de tudo, uma maneira prépria de ser do homem. Em relagao a Deus, o homem, na religidio, toma a atitude de quem se sente desa- fiado, de quem experimenta um apelo, A religiao realiza-se na exis- téncia humana. O apelo de Deus como a resposta do homem verifi- cam-se na existéncia. O homem sabe-se relacionado e determinado por algo que é maior do que ele mesmo. Assim sua existéncia reli- giosa se constitui a partir do divino. Por isso, na filosofia da religiao, nao se fala sé do homem, mas também daquilo que é diferente dele, que o transcende. A partir do divino, a existéncia humana se especi- fica como religiosa. Temos, porém, conceito filos6fico de Deus? Como o homem se comporta diante do mistério de Deus? No discurso religioso ocorrem conceitos que se opdem A filoso- fia como, por exemplo, revelagdo e redencéo. Esses expressam uma realidade oriunda da transcendéncia, enquanto religido expressa INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 1 uma série de atos espirituais e criagdes culturais do homem. A revelagiio fala do divino, de algo que penetra na vida; a religido refere-se a uma realidade de vida e a uma realidade cultural. Surge entao a pergunta: poderd a filosofia tematizar a revelagao? Que seré da religiao sem a revelacao? No cristianismo, por exemplo, a revelagdo é a penetragao do incondicionado no mundo condicionado. Portanto, a filosofia da reli- gido se confronta com a doutrina da revelagaio. Quem determinaré 6s limites entre filosofia e teologia? Como seré a eventual contradicao? Haveré algo em comum entre a doutrina da revelagao ¢ a filosofia? Haverd o caminho da sintese? Parece que a tarefa da filosofia da re- ligido 6 achar este ponto comum para uma solucdo de sintese inter- na. Seré isso possivel, ao menos em relagao com o cristianismo? Por outro lado, nao basta relacionar a filosofia com a teologia. Toda a ciéncia deve ser situada no conjunto das ciéncias. A filosofia pertence as ciéncias do espirito. Poderemos detectar nela trés aspectos: a) a filosofia; b) a histéria; c) a sistematica. Na filosofia desenvolve seu campo de sentido; na histéria recolhe o material que as ciéncias do ser apresentam e interpreta, de maneira sis- teméatica e criticamente, os dados. Paul Tillich descreve a relacdo entre filosofia da religiao e teologia: “Filosofia da religido é doutrina das fung6es religiosas e de suas categoria. Teologia é apresentagao normativa e siste- mitica da plenificagéo concreta do conceito de religido” (p. 14). A metafisica, segundo Tillich, “é orientagao para o incondicional na esfera tedrica das fungées do espirito” (p. 16). B isto apenas en- quanto for religiosa. Em sintese, podemos dizer que, nos ultimos séculos, para a filosofia, o fendmeno religioso, praticamente universal na huma- nidade, no seu conjunto tendeu a polarizar-se num termo suprem: aRealidade Suprema, de algum modo transcendente com relagdo ao homem e ao mundo, mas com 0 qual o homem pode entrar, de algum modo, em relagiio pessoal. 1.2. Poder-se-4 justificar a religiao perante a razio? A filosofia nasceu, na antiga Grécia, como atitude eritica na vida concreta do homem. Nasceu como tentativa de formular a 8 INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO, questo da verdade desta vida em sua globalidade. Como a reli- gido era parte desta vida concreta, os fildsofos nao podiam deixar de formular a questo da verdade da religiao, de sua significagao para a vida humana e a questao filoséfica sobre Deus. Essas questées foram formuladas no horizonte de pressuposta totalidade. Ora, a pergunta pela realidade em sua totalidade inclui a pergunta pela possibilidade de tal totalidade. Neste contexto da tematizagaio da unidade de todo 0 real surgiu a questao filosofica de Deus. A filosofia grega pensou a totalidade do real como cosmos. Neste cosmos pensou a presenga do divino como fundamento ori- ginério (Anaximandro), como ser imutavel (Parménides), como Logos enquanto ordem do mundo (Heréclito), ou ainda como nots enquanto principio do movimento do mundo (Anaxégoras). A to- talidade do real ou do cosmos era pensada a partir da objetivida- de mundana. A revolugio copernicana no pensamento, no fim da Idade Média e no comego dos tempos modernos, consiste na volta para a subjetividade pensante. Tematiza-se 0 sujeito como con- digdo de possibilidade nao s6 do conhecimento, como também da acao objetiva do homem no mundo. 0 homem moderno questiona 0 acesso imediato do real e passa a falar da realidade através da mediagao da subjetividade; desenvolve novo método de investi- gagao e conhecimento, apoiando-se unicamente na razao e na experimentagio cientifica. A grande virada antropocéntrica, na filosofia ocidental mo- derna, também modificou radicalmente a problematica de Deus. As ciéncias, visando a dominar a natureza através da descoberta da regularidade dos fenémenos naturais, dispensam a hipétese de causa primeira. Mas 0 pensamento moderno nao consegue pensar a subjetividade humana em seu relacionamento teérico e pratico com o mundo sem referéncia, positiva ou negativa, a Deus. A questao de Deus passa a ser tematizada nao mais a partir do mundo, e sim através da mediagao do homem e de suas relagdes com 0 mundo, ou seja, a partir da subjetividade. Indaga-se: havera no homem capacidade subjetiva especifica ou dimensio propria que tenha como correlato a religifio? Seria tal a priori algo como um sentimento universal ¢ irracional? Ou sera religiao algo que precede a todos os contetidos categoriais da consciéncia? Nao ser que toda a filosofia, enquanto autocom- preensao do hemem no horizonte de uma razio ontol6gica INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 9 transcendental a priori, j4 implica uma filosofia da religiao, ao menos de maneira atematica? A filosofia da religiao, como disciplina propria, é recente. Para sua constituigao foi decisiva a filosofia de I. Kant, 0 idealismo alemAo, a obra do cardeal Newman, de M. Blondel, a filosofia dialégica de F. Ebner e M. Buber, a fenomenologia de E. Husser!, M. Scheler e a filosofia da existéncia através de G. Marcel, M. Heidegger e K. Jaspers. Entre os catélicos, em nosso século, des- tacam-se ainda os estudos de Romano Guardini, J. Maritain, K. Rahner, B. Welte e outros. Constatamos, hoje, a existéncia de uma linha de investigacéio, mas ndo de uma unidade de enfoque. Como ja dissemos, a filosofia da religiao nao se confunde com a teologia, pois esta tematiza a relagao homem-Deus a partir da livre revelagao de Deus ao homem, ou seja, a partir de Deus. Com B. Welte, podemos dizer que a filosofia da religiao é filosofia; e filosofia que nao se esclarece a partir de outras ciéncias, mas a partir de si mesma. Quando o homem filosofa, ele mesmo pensa. O pensar filoséfico é forma radical da liberdade humana. Aatividade do pensamento exerce-se numa abertura para além do préprio homem, para além de sua subjetividade. Pensar é a busca do encontro do homem com 0 mundo, entre 0 pensante e 0 pensado. Com isso, 0 pensamento vincula-se ao objeto de sua atividade, sem com cle confundir-se. Seu objeto é aquilo que se lhe oferece no mundo. Assim a liberdade do pensar est4 vinculada ao objeto. O pensar tem compromisso com a realidade. Podemos dizer que o pensamento filoséfico deve ser fundado e, ao mesmo tempo, fundante. Deve visar com exatidao 0 objeto e expressé-lo em conceitos e em linguagem tao precisa que permitam reconhecé-lo. Desta maneira, o pensamento filoséfico esta vinculado ao ser e esséncia do objeto. O sujeito do filosofar é o homem. Diz Feuerbach que “a religiao assenta na diferenga essencial que existe entre o homem e 0 ani- mal, pois 0s animais nao tém nenhuma religiao” (A esséncia do cristianismo, p. 4). O homem existe como compreensao de si mesmo e do ser. Pensando, desenvolve-se a si mesmo. Pensa e indaga a si mesmo indagando o mundo. Indaga a luz do ser, como algo que é. Busca o verdadeiro ser das coisas como globalidade. A indagagao filos6fica tematiza, pois, o ser do ente. Nesta perspec- tiva, a filosofia da religiao é diferente das ciéncias da religiao. 10 INTRODUQAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO Como o pensamento nao esta limitado a pura facticidade, in- clui a questao critica do verdadeiro ser e do ser inauténtico ou falso do objeto. A reflexao filoséfica indaga o factico pelo seu ser verda- deiro, ou seja, pela sua verdade. Em outras palavras, 0 pensamento filoséfico nao se contenta com as coisas como se apresentam. Sempre esta a caminho. Nunca é definitivo, porque o ser do ente manifesta-se inesgotavel. Ora, a filosofia da religidio tem a religiao como objeto de seu pensar. Tenta esclarecer 0 ser e a esséncia da religido. Indaga, pois, o que 6, propriamente, religiao? A religiao 6 um dado que esta af e nao se funda na filosofia. Nao ¢ filosofia. Desde Blaise Pascal, costuma-se opor 0 Deus dos filésofos ao Deus de Abrado, Isaac, Jacé, ou seja, ao Deus de Jesus Cristo. Certamente ha influéncia mttua entre a filosofia e a reli- giao. O fildsofo encontra a religiio como o diferente, o outro. Mas a religiao realiza-se como acontecimento humano, como uma for- ma da vida humana. Sao homens que créem em Deus, rezam, se retinem em assembléia para o culto. Na fé em Deus, os homens indagam sempre, de alguma forma, a si mesmos. Embora nao produzam a religiao, cabe-lhes uma liberdade responsavel perante si mesmos, ou seja, perante a razao critica. Radicada na compreensao, que o homem tem do ser e de si mesmo, a religido pode ser considerada como capitulo fandamen- tal da antropologia filoséfica. Expressa-se em linguagem humana, em categorias humanas e possibilidades do pensamento humano. Apresenta um aspecto histérico, mas nao se reduz a ele. Expres- sa-se em linguagem factica, mas no se reduz ao puro factico. No Ocidente, de maneira generalizada, na consciéncia popular, er- roneamente se reduz a realidade ao fato. A religiao crista perdeu sua evidéncia, assim, na sociedade moderna e na consciéncia cultural. Tudo isso, entretanto, nao justifica o siléncio da filosofia na indagagao pelo ser e pela esséncia da religio. Ao contrario, se se conseguir uma viséo da esséncia da religizio consegue-se uma posigao critica em relagio ao proprio fato ¢ torna-se possivel es- clarecer o direito e o sentido da religido na vida humana. A existéncia religiosa do homem desenvolve-se em muitas dimensoes, como, por exemplo, a interior e a exterior. Na primeira situa-se a fé e a meditagao; na segunda, o culto e a pregacao. E verdade que, em geral, por religiao s6 se entende o exterior, 0 “manto cultual” (P. Tillich). Pode-se dizer, prelimmarmente, que INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO qt é a crenga na garantia divina oferecida ao homem para sua sal- vagao e, ao mesmo tempo, seu comportamento (culto, ética) para obter e conservar tal garantia. Como a religiao é anterior A filosofia, a reflexao filos6fica bus- card refletir sobre sua maneira de ser e sobre sua esséncia, Tal re- flexdo, porém, também ter conseqiiéncias, ou seja, a religiao cri- ticamente refletida. Segundo Hegel, a religido e a filosofia tem em comum a busca da verdade: “A filosofia tem seus objetivos em co- mum com a religiao porque o objetivo de ambas é a verdade, no sentido mais alto da palavra, isto é, enquanto Deus, e somente Deus, 6 a verdade” (Enciclopédia, § 1). Mas, segundo Hegel, a re- ligido se distingue da filosofia enquanto exprime a verdade nao sob a forma de conceito, e sim sob a forma da representagao e do sen- timento. “A religidio é a relagao com o Absoluto na forma do senti- mento, da representagao, da fé; e no seu centro que tudo compreen- de, tudo esté somente como algo acidental e evanescente” (Prin- ctpios da Filosofia do Direito, § 270). Em outras palavras, o que na religiao é instituido de modo acidental, e confuso, é demonstrado pela filosofia com cardter de necessidade (Enciclopédia, § 573). 1.3. Huminismo e religiaéo A religiao nao é fenémeno situado fora do tempo. Nao esclare- ce problemas eternos, mas os que se colocam em determinadas cireunstAncias. Hoje nos defrontamos com problemas radicados no iluminismo ou dele derivados. Com Hegel, podemos caracterizar toda a historia ocidental & maneira de proceso progressivo da tomada de posse pelo homem de sua liberdade. Esta historia da liberdade entrou em nova fase no comego da era moderna, quan- do a liberdade e o pensamento se tornaram conscientes e criticos acerca de si mesmos. Como se sabe, Kant descreveu o iluminismo como “a saida do homem da sua minoridade culpada. A minoridade 6 a incapacidade de servir-se do préprio entendimento sem a di- rego de outrem... Sapere aude! Tem a coragem de servir-te do teu préprio entendimento! Tal é 0 lema do iluminismo!” (Critica da razdo pura). O iluminismo ainda ndo esté ultrapassado. Surge como pro- cesso que perpassa toda a hist6ria espiritual do Ocidente. Repre- 12 INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO senta, antes de tudo, um processo de emancipagdo. O homem li- berta-se da tutela da autoridade e da tradigao. Quer ver, julgar e decidir por si mesmo. 0 homem torna-se ponto de referéncia da realidade, transformando-se em medida do homem e do mundo, o qual é pensado a partir do homem e projetado para o homem. A virada antropolégica moderna modificou, fundamental- mente, toda a nossa realidade sociocultural. No campo politico levou ao reconhecimento da liberdade e igualdade de todos os homens, a declaragao dos direitos universais do homem e & revo- lugdo francesa. Como movimento de democratizagao, substituindo a ordem social hierarquica e patriarcal pela ordem associativa de membros iguais e livres, provocou profunda crise de autoridade. No campo do conhecimento, as modernas ciéncias experi- mentais transformaram totalmente nossa viséo de mundo e con- duziram ao comportamento racional perante a realidade. Per- manece e prevalece o que resiste a critica racional. A ciéncia e a técnica déo ao homem pelo menos um suposto senhorio sobre as coisas para sua manipulago e o planejamento racional. O resul- tado é um mundo hominizado e secularizado, despido dos vestigios de Deus. O iluminismo também repercutiu sobre a religido, de modo especial sobre o cristianismo. Sua imagem do homem e do mundo estava por demais vinculada a uma época definitivamente ultra- passada. Com isso a fé tornou-se objeto de suspeita como ideologia de ordem ultrapassada e como forga reacionéria. No Ocidente, o problema da religio adquiriu novas conotagées a partir do século XVIII. Talvez se pudesse caracterizar esta nova situagdo como a ruptura entre o mundo judaico-cristao e o mundo profano, com a emancipagio da razao critica, que visa ao discernimento da verdade da religiao. Os pressupostos, no Oriente, sao outros. Depois do iluminismo, no Ocidente, também os pres- supostos da Idade Média e da Antiguidade perderam sua evi- déncia. Nos tempos modernos, a subjetividade e a razao criticas, no processo de emancipagao iluminista, sentiram a necessidade do conhecimento. No Ocidente, j4 nos séculos XVII e XVIII, inicia um movimen- to de emancipagdo, quando os teélogos aplicam o método hist6ri- co-critico das ciéncias profanas a leitura e interpretagéo da Biblia. Tornou-se claro o abismo cavado entre as concepgdes miticas da INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 13 Biblia e as concepgies proprias da época. O progresso, nas ciéncias, conduziu naturalmente a certa demitologizagéo das concepgbes religiosas. Da mesma forma o questionamento critico da metafisica repercutiu nas formulagoes do cristianismo, cujas doutrinas ha- viam sido formuladas em linguagem metafisica. A constituigao dos Estados modernos como sistemas de garantias da liberdade e do direito e da sociedade moderna como sistema baseado na satisfa- Gao de necessidades, levou ao questionamento de tradigdes morais, sociais, politicas de instituigdes sociais com as quais a Igreja se havia identificado em grande parte. Assim, com o movimento iluminista, o cristianismo tradicional e ambiental entra em crise. ‘Aumenta a tensdo entre a subjetividade critica e sua interioridade, de um lado, e, de outro, as instituigdes religiosas tradicionais. Como conseqiiéncia, dentro da propria Igreja catdlica, hoje, cres- ce o mimero dos que apenas parcialmente ainda se identificam com ela, com sua doutrina e com suas orientagées praticas 'Na atual situagéio do proceso de emancipagao iluminista en- contramos trés atitudes unilaterais a respeito do fenémeno reli- gioso. a) Negacdo total da religido a atitude que declara a religiéio como consciéncia falsa ou simples ideologia para, como tal, dever negé-la. Essa atitude en- contra-se em Feuerbach, Nietzsche e Freud e em alguns marxis- tas. Trata-se de atitude com carater mais romAntico que, em Feuerbach, parte da concepeao de vida, de vida natural nao alie- nada do homem e da humanidade. Alimenta-se, pois, da saudade do paraiso perdido. Na forma mais cética, como em Freud, espera que, no futuro, com o fim da ilusdo religiosa, a humanidade esteja em condigées de, com a ajuda da ciéncia e da razao critica, cons- truir a harmonia total. Esta tendéncia conduz a liquidagao da religido em nome da razao, que pretende ser a tinica possuidora da verdade, considerando a religiao como uma ilusao. Em sua Critica da filosofia hegeliana do direito, trés anos depois que Feuerbach publicara A esséncia do cristianismo (1841), Karl Marx escreveu: “Para a Alemanha est essencialmente ter- minada a critica da religiao, e a critica religiosa 6 0 pressuposto do toda a critica”. Feuerbach desmascara a fé em Deus como 14 INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO projecdo humana. Mais tarde F. Engels também assumiu essa critica, escrevendo em L. Feuerbach e o fim da filosofia cldssica (1886): “De um golpe, Feuerbach desfez a contradigao ao recolicar o materialismo no trono... Fora da natureza e do homem nada existe, ¢ 0s seres supe- riores que a nossa fantasia religiosa criou apenas sao reflexos fantasti- cos de nosso ser... I fazer-se uma id & preciso ter vivido o efeito libertador deste livro para a do assunto”. Os representantes dessa critiea esperam, com recurso & na- tureza ea ciéncia e com o desmascaramento da alienagao religiosa, obter a transformagao da consciéncia humana. Véem a causa dessa alienagdo na falta de conhecimento cientifico e na falta de dominio do inconsciente. Enfim, esperam a superacéo ou o fim da religiao com base no dominio tecnol6gico sobre as forgas da natureza. Evidentemente Marx e Engels se equivocaram. Os pais da moderna critica da religiao tinham confianga exagerada na razo, na ciéncia e no progresso. O desejo de libertar a humanidade da jlusao de Deus e da tirania da fé religiosa reverteu, ele mesmo, em jlusio. Nao s6 na filosofia, como também na psicologia profunda ena sociologia, hoje se buscam fundamentos para a existéncia da fé em uma realidade chamada Deus. Marx negara a religiao como ideologia, como instituigao soci- ale politica reacionaria que obstaculiza 0 progresso da humani- dade. Segundo ele, a religiaio impede a libertagao total do homem porque ou justifica 0 status quo desumano de situagées politico- sociais ou busca uma reconciliagao iluséria, apelando ao além para deixar aqui tudo como esta. Essa forma de eritica da religido tinha forga de convencer en- quanto se esperava a realizagao de uma sociedade mais humana e mais justa através do socialismo marxista. Entretanto, hoje, os argumentos outrora aduzidos também perderam sua forga. O ho- mem aumentou seu poder sobre a natureza através da ciéncia e da técnica. Mas nao hé indicios para sociedade mais humana como simples resultado de tal evolugao, tanto no regime capitalista como no socialista. Karl Marx, com base nas tensoes sociais da socieda- de burguesa, acreditava que transformando a filosofia hegeliana da historia eo materialismo através de sua anélise da consciéncia ee ew ie as ee ee 2 me cee ce I i eee ee A ee INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 15 de classe do proletariado, podia constatar tendéncias para trans- formagées revolucionérias, capacitando o proletariado a ser 0 su- jeito da historia. Com o passar do tempo, tanto a teoria como a praxis marxistas perdem sua forga de convencimento. Nada ga- rante que o marxismo, hoje, seja menos manipulado a favor dos poderosos do que a religido que outrora criticara, ou seja, que 0 préprio marxismo nao seja uma religido sem Deus. Em resumo, a negagao radical e total da religiao hoje se vé em circunsténcias pouco cémodas e deverd rever sua posigao ou, pelo menos, diferencid-la melhor, pois, no minimo, necessita de autocritica. Esta tendéncia confunde a expressfo com o expres- sado, crendo ter esclarecido este quando apenas explicou aquela. b) Aceitagao total da religiéo Durante séculos e milénios, a religiao era tema na filosofia como qualquer outro. Por isso, todos os grandes filésofos dela trataram de uma ou outra forma. Desde o século XVII, surgem. esforcos apologéticos para justificar a religiéo no mundo moderno porque esta (0 cristianismo) se distanciou da evolugao histérica do mundo técnico-cientifico. Os limites de tal filosofia da religiao aparecem na chamada teologia natural, na filosofia transcen- dental, existencial e personalista do nosso século. ‘A teologia natural é de grande atualidade. Interroga pelo lugar da fé na experiéncia humana. Mas quando essa teclogia quer provar demais, nada prova. Poder-se-A perguntar até que ponto a distancia de Deus ou de sua auséncia nao expressam a auto-re- clusdo do homem. A fé, como fundamento da religido, constitui também ato integro e totalmente humano. Tem que se reconhecer como humanamente cheia de sentido e intelectualmente honesta e responsavel. ‘A teologia natural, marcada pela metafisica do século XVIIL, parte da natureza da razao compreendida de maneira teleolégica, deduzindo afirmagdes materiais sobre a esséncia de Deus, do mundo e do homem. Julga, desta maneira, poder fornecer, com os meios e métodos da razao, novo fundamento & religiao. Entretanto, isso nado mais convence a subjetividade critica moderna. Quis-se buscar verdades absolutas, eternas, fora da histéria. Ora, depois da aplicagao do método histérico-critico A prépria Biblia, tais ob- 16 INTRODUCAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO jetivos nao se justificam mais. Por sua abertura ao ser, a razao conduz necessariamente a religiao como expressio de uma di- mensao transcendente da existéncia humana. M. Blondel escre- veu que “a expectativa de uma religiao é natural”. Ora, toda a apologia da religiao hoje deveré enfrentar o problema da histo- ricidade. A fundamentagao da religiao pela filosofia transcendental, como a tentaram Joseph Maréchal, Karl Rahner, E. Coreth e outros 6, nos seus pressupostos e nas suas conseqiiéncias, a-his- Lorica. O eu transcendental permanece ambivalente. Por um lado, é diferenciado do eu histérico e, por outro, identificado com o meu eu. O objetivo do método transcendental 6 mostrar que, sem re- flexéo consciente, pode-se interpretar 0 homem como aberto para as verdades religiosas historicamente mediadas. Fala da anima naturaliter christiana. Essa forma de religiao talvez convencesse enquanto a tradigao sociocultural e o meio eram determinados pela cultura judaico-crista. Mas, no fundo, 6 a tentativa de uma fun- damenta¢ao formal, nao mediada historicamente. A fundamentagao existencialista e personalista da religifio, em nosso século, também assenta em pressupostos que perderam sua evidéncia. Apés as duas guerras mundiais tinham uma fungao critica, ao menos na Europa. Na teologia catélica, o personalismo 6 um corretivo necessdrio ao menos para a neo-escoldstica. A teologia existencial tornou-se corretivo, entre os protestantes, para 0 liberalismo cultural dos séculos XIX e XX. Entretanto limitam areligifio a uma privatizacao e a privam, de certo modo, do mundo socioeconémico-politico. Além disso, assumem atitude de critica unilateralmente negativa para com a evolugdo técnico-cientifica. Em resumo, esta tendéncia geralmente ocorre entre crentes que praticam a filosofia da religiao sob o sinal da concordancia. Com diferentes estratégias, querem os representantes dessa tendéncia mostrar a profunda solidariedade entre raziioe religiao. c) Descrigéo empirica e andlise das diferentes concepcées e instituigées religiosas Com Max Weber, E. Durkheim, Lévy-Bruhl e L. Strauss for- maram-se grupos que estudam as religides do ponto de vista historico, psicol6gico, sociolégico, da andlise da linguagem, enfim, INTRODUCAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 7 mediante pesquisas empiricas. Contentam-se com descrigdes e andlises detectando as estruturas comuns em fenémenos dife- rentes. Os representantes desta corrente geralmente interpretam o mundo atual como resultado do processo de secularizagéo, con- tentando-se com afirmagdes meramente formais sobre o fenéme- no da religiao. 1.4. Tarefas da filosofia da religiao A filosofia da religidio atualmente se encontra em situagao precdria dentro do conjunto. Nao deve ser identificada simples- mente com religiao filoséfica ou com filosofia religiosa. Trata-se de indagagio filos6fica que usa métodos filos6ficos com objetivos filoséficos. Mas nao é qualquer filosofia capaz de criticar correta- mente 0 mundo humano da fé e da religiao. As filosofias que pretendem simplesmente explicar a religiao ou reduzi-la a ele- mento nao religioso como libido ou situagao socioecondmica alie- nada néo servem, como veremos adiante. Da mesma maneira, nao servem para estabelecer corretamente o sentido da religiao hoje as filosofias que se péem diretamente a servigo da fé (sao Boaventura, santo Tomés de Aquino), pois nao se trata da simples recuperag&o de certos dogmas, p. ex., a transcendéncia do Abso- luto, pela filosofia. Cabe investigar se o fenémeno religioso é ori- gindrio e irredutivel no homem, e se leva, por sua natureza, a um termo supremo chamado Deus. Na questo, se a religiao é fenémeno originario no homem, encontramos um afrontamento de posigdes: a) uma série de teorias que tendem a reduzir o religioso como reflexo de situagao defi- ciente: ignorancia, impoténcia etc., negam sua originalidade e a irredutibilidade. Assim Feuerbach vé a religiao como alienagio, Marx como épio do povo, Nietzsche como debilidade gregaria e Freud como sobrevivéncia nociva e patologica da imagem paterna na idéia de Deus; b) outras filosofias reduzem o fenémeno religioso a uma perspectiva exclusivamente racional, seja moral (Kant), seja especulativa (Spinosa, Hegel); ¢) entretanta a fenomenologia da religiao (R. Otto, M. Scheler, M. Eliade e outros) reconhece e co- mega a descrever as irredutiveis estruturas do sagrado como contraposto ao profano. 18 INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO Ha razées para acreditar que muitas formas tradicionais de religidio desaparegam. Com isso, todavia, nao se pode concluir 0 desaparecimento da religido como tal. Trata-se, antes, de exami- nar a possibilidade e a necessidade de uma filosofia da religiéo no mundo marcado pelo iluminismo e a conseqiente secularizagao. Essa tentativa tera a fungao de esclarecer racionalmente a reli- gidio, que perdeu sua evidéncia e, ao mesmo tempo, a insuficiéncia das tradicionais provas da existéncia de Deus como da declaragao do “deus esta morto”. Hoje a filosofia da religiéo deverd formular questées que angustiam os individuos, as igrejas e a sociedade. Como? Quais seriam tais questées? No Ocidente, marcado profundamente pela religiao e cultura judaico-crista, parece haver trés questdes fundamentais: a) Entre a tradigdo religiosa e as experiéncias da intersubje- tividade critica moderna surgiu um abismo profundo. O proceso do iluminismo age de maneira dialética sobre a tradigao religio- sa: destroi e conserva. Destréi, por exemplo, certas concepgoes de Deus como 0 deus que sanciona instituigdes e regimes politicos indefensdveis por ser indigno de nossa fé. Mas 0 processo do jluminismo também pode purificar o conceito de Deus e conservar a auténtica tradigao da fé. Assim a situagao de crise pode rever- ter em nova oportunidade. b) A relagao do cristianismo e das igrejas para com as religides ndo cristas modificou-se profundamente. Também no Ocidente, 0 cristianismo deixa de ser a religido que integra a sociedade glo- bal. Os pagaos ndo mais estao fora da sociedade e o cristianismo carece da evidéncia racional de ser a tinica verdadeira religio. Tornou-se um religido ao lado de muitas outras. A tentativa de interpretar todas as religides nao cristas simplesmente como cifras de uma fé filoséfica ou declarar os no cristaos de cristaos ané- nimos nao satisfaz. c) O lugar e a fungao da religido e das igrejas no novo mundo politico-social modificaram-se radicalmente. O iluminismo, que declara a liberdade de todos como principio da ética e da politica e exige instituigdes que favorecam e garantam a liberdade e o di- reito de todos os homens, questiona radicalmente a tradigao antiga e medieval. Neste mundo, a filosofia da religiao tem papel en- INTRODUGAO A UMA FILOSOFIA DA RELIGIAO 19 quanto dura a exigéncia de conhecer criticamente a verdade reli- giosa. Dentro da perspectiva delineada, propomo-nos estudar o fun- damento antropolégico da religido para, depois, examinar seu contetido formal e material. Primeiro examinaremos a alternati- va raziio e/ou fé ou fé e/ou razdo, partindo de questies classicas propostas por Descartes, Pascal, Kant, Hegel e filésofos como Wittgenstein, Popper e outros. Por fim, indagaremos criticamente posigdes do ateismo como o de Feuerbach, Marx, Freud, Nietzsche e Sartre. Bibliografia EUERBACH, Ludwig, A esséncia da religiao, Campinas, Papirus, 1989. , Aesséncia do cristianismo, Campinas, Papirus, 1988. HEGEL, G. W. F., Enzyklopddie der philosophischen Wissenschaften, Frankfurt a. M., Hamburg, Suhrkamp, 1970 (v. 3). __, Principios da filosofia do direito, Lisboa, Guimaraes, 1986, NEWMAN, John Henry, Grammar of assent, New York, Doubleday & Company, 1955. RAHNER, Karl, Teologia e antropologia, Sao Paulo, Paulinas, 1969, ‘TILLICH, Paul, Religionsphilosophie, Stuttgart, Kohlhammer, 1962. WELTE, Bernhard, Religionsphilophie, Freiburg i. Br., Herder, 1978. STACCONE, Giuseppe, Filosofia da religido, Petrépolis, Vozes, 1989.

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