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© cs.Lems deles detém-se apenas no perigo que ameaca o heréi, o outro pode sentir um “temor respeitoso”. Ao passo que um acelera a leitura, movido pela curiosidade, o outro pode fazer uma pausamaravilhada, Para o garoto literariamente iletrado, as cacadas com elefantes e 08 naufrégios podem ser tao bons quanto o elemento mitico ~ eles sio igualmente “emocionantes” —e Haggard geralmente pode oferecer «exatamente o mesmo tipo de entretenimento que John Buchan. O gatoto aficionado dos mitos, se for também literariamente letrado, Jogo vai descobrrir que Buchan é, de longe, melhor escritor; mas ele também tera consciéncia de que é possivel obter em Haggard algo quenao pode ser dimensionado com meras emogées. Lendo Buchan, «le se pergunta “O heréi vai escapar?”" Lendo Haggard, ele sente: "Nunca escapareidisto, Isto nunca escapara de mim, Estas imagens langam fortes raizes nas profundezas da minha mente.” ‘A semelhanga do método entre a leitura de mitos ealeitura tipica dos literariamente iletrados é, portanto, apenas superficial. Eelas sio praticadas por diferentes tipos de pessoas. Ja conheci pessoas litera~ riamente letradas que nao tém gosto por mitos, mas nunca conheci pessoas literariamente iletradas que os apreciem de fato. Os litera- riamente iletrados aceitam historias que consideramos altamente improvaveis: sio inverossimeis no nivel psicolégico, no modo de re- presentara vida social, nas stibitas reviravoltas. Mas eles nao act ‘oqueé admitidamente consideradoimpossivel ou sobrenatural. "Isso no poderia acontecer de verdade”, dizem, e deixam o livro de lado. Consideram-no “bobo” Assim, ao passo que algo que chamariamos de “fantasia” constitui boa parte de sua experiéncia como leitores, eles invariavelmente depreciam o fantastico. Mas essa distinga0 me adverte de que nao podemos conhecer suas preferéncias de modo ‘mais profundo sem antes definirmos alguns termos. 6 Os SENTIDOS DE “FANTASIA” A palavra fantasia éa0 mesmo tempo um termollterario.epsicolé- gico. Como termo literrio, uma fantasia significa qualquer narrativa {que trate de impossibilidades e aspectos sobrenaturais. The Ancient ‘Mariner {O velho marinheiro], Gulliver, Erewhon, The Wind in the Willows [O vento nos salgueiros), The Witch of Atlas [A bruxa de Atlas}, Jurgen, The Crock of Gold [O jarro de ouro}, Vera Historia, “Micromegas e outros contos, Flatland, o pais plano e as Metamorfoses de Apuleio sio fantasias. E claro que essas obras sio muito diferen tes tanto no espirito quanto nos propésitos. A tinica coisa que ha de comum entre elas é 0 fantastico. Chamarei esse tipo de fantasia de “fantasia literdria’” Como termo psicol6gico, fantasia possui trés sentidos. 1. Umaconstrusaoimaginativa que, de um modo ou deoutro, dt prazer ao paciente e ¢ tomada equivocadamente por ele como realidade. Uma mulher nessa condigéo imagina que alguma pessoa famosa esta apaixonada por ela, Um homem acredita que ele seja o filho, ha muito desaparecido, de pais nobres e ricos e que logo sera descoberto, reconhecido e coberto de luxos e honrarias. Os fatos mais comuns sao distorcidos, em geral com muita asticia, para reiterar a ctenca introjetada cs. tews Paraesse tipo de fantasia, nao preciso atribuir nenhum nome particular, porque no sera necessério mencionéla de novo. O deliio, apenas por algum acaso, poderia despertar algum interesseliterério, ‘Uma construgio imaginativa prazerosa mantida incessante- mente pelo paciente, e para seu préprio prejuizo, mas sem a ilusio de que seja realidade, Um sonho acordado ~ reconhe- cido como tal pelo sonhiador de triunfos militares ou amo- rosos, de poder ou grandeza, mesmo de mera popularidade, que é monotonamente reiterado ou elaborado ano apés ano, ‘Torma-se a consolacao principal, e quase que o tinico prazer, da vida do sonhador. E para “este anarquismo invisivel da mente, esta prodigalidade secreta do ser” que ele sempre se retira quando as presses da vida o deixam livre. As realida des, mesmo aquelas que agradam aos outros homens, tor- nam-se insipidas para ele. Ele se torna incapaz de realizar todos os esforgos necessirios para alcancar uma felicidade que nao seja meramente imaginaria. Aquele que sonha com a riquezailimitada nfo economizaré alguns poucos centavos, © Don Juan imaginario nao se dara ao trabalho de se fazer minimamente desejavel para qualquer mulher que venha a conhecer. Chamo essa atividade de Construgéo Mérbida de Castelos de Areia ‘A mesmaatividade, mas praticada com moderacio e brevida de, como num periodo de descanso ou recreagio temporirios, devidamente subordinada a outros tipos de atividades, mais cfetivas e expansivas, Talvez nio seja necessério discutir se nao seria mais sensato um homem viver sem nada disso em sua vida porque ninguém faz isso. Nem se esse tipo de de- vvaneio sempre se conclui em si mesmo. © que, na verdade, 1nés fazemos 6 0 que em geral sonhamos fazer. Os livros que escrevemos foram, uma vez, aqueles que, sonhando acorda- do, nésinos imaginamos escrevendo —embora, € claro, nunca de maneira tao perfeita, Chamo essa atividade de Construcao Normal de Castelos de Areia UM EXPERIMENTO NA CRITICA LIERARIA 49 Mas a prépria construsio normal de castelos de areia pode ser de dois tipos, ea diferenga entre as duas é muito importante. Uma pode ser chamada de construsao Egoista, ea outra, desinteressada, Na construcio do primeiro tipo, quem sonha acordado é sempre o herdi e tudo € visto por meio de seus olhos. E ele quem da as respos: tas espirituosas, quem seduz as belas mulheres, quem possui um iate ou que é aclamado como o maior poeta vivo. Na construgao do segundo tipo, quem sonha acordado néo é o heréi do sonho, ou talvez nio esteja presente nele o tempo todo. Assim, um homem 4que na realidade nao tem chance de ir & Suiga pode entreter-se com devaneio’ sobre férias nos Alpes. Ele estara presente na ficgo, nio como o heréi, mas como um espectador. Tal como sua atengio se concentraria nao nele mesmo, mas nas montanhas, se ele estivesse realmente na Suica, também no sonho acordado sua atengao se con- centraria nas montanhas imagindrias. Mas, as vezes, o sonhador nao estd presente no devaneio de modo algum. Sou provavelmente um. entre muitos que, numa noite de insénia, entretém a si mesmo com paisagens inventadas. Desenho 0 curso de grandes rios, saindo dos estuarios, onde as gaivotas gritam, pasando por gargantas cada vez estreitas e ingremes, até se ou pingando da fonte na concavidade dos charcos. Mas nio estou la como um explorador nem mesmo como um turista. Estou olhando aquele mundo de fora. Com freqiiéncia, as criangas conseguem ir além, normalmente em cooperagao. Elas sao capazes de imaginar ‘um mundo por completo, com pessoas em seu interior, e permanccer fora dele. Mas, quando esse estagio ¢ alcangado, algo mais do que ‘o-mero devaneio entrou em ago: construsao, invengao, em suma, Jfiegao, & isso que esti ocorrendo Dessa maneira, se quem sonha acordado tem algum talento, ha ‘uma transigdo suave da construsdo Desinteressada de castelos de areia para a invengio literdria. Ha mesmo uma transicao da Egoista para a Desinteressada, e dai para a fiegio genuina. Trollope conta- hos, em sua autobiografia, como seus préprios romances brotaram nitidamente o ruido da agua da construcio de castelos de areia, que tinham sido em sua origem. do tipo mais flagrantemente egoista e compensatorio, so CS.tEMs Na presente investigagio, contudo, nio estamos preocupados com arelagao entre a construsio de castelos de areia ea composicio, ‘mas com aquela entre a construgao de castelos de areia e a leitura. Jé afirmei anteriormente que um tipo de hist6ria admirada pelos literariamente iletrados € aquela que os capacita a vivenciar vica- riamente o amor, a riqueza ou o prestigio por meio de personagens. E, na verdade, a construgao Egoista de castelos de areia guiada ou conduzida. A medida que léem, projetama si mesmos na maisinve- javel ou admiravel personagem; e, provavelmente, apés erminarem aleitura, seus deleitese vitorias tenham poder sugestivo para muitos outros devaneios, Por vezes, acredito, pressupde-se que todas as leituras dos litera riamenteiletrados sio desse tipo eimplicam esta projesio. Por “esta projesdo” quero dizer uma projegio voltada a busca de prestigio, prazeres € triunfos vicdrios. Algum tipo de projesao em todos os protagonistas, tanto vildes quanto herdis, sejam invejéveis, sejam deploraveis, é sem diivida necessario para todos os leitores de todas ashist6rias, Precisamos ter “empatia” por eles, precisamos mergulhar em seussentimentos, ou maisnosvaleria,entdo, ler sobre os triéngulos amorosos. Mas, por outro lado, seria precipitado presumir que mesmo paraoseitores literariamenteiletrados de fiegao popular sempre haja ‘uma projegio das construges Egoistas de castelos de areia, De inicio, deve-se dizer que alguns deles gostam de histérias hu- moristicas. Nao penso que a fruicao de uma piada ou gracejo, para cles ou para qualquer outra pessoa, seja uma forma de construgao de castelos de areia. Nés certamente nao desejamos ser 0 Sr. Malvolio cenredado nas ligas ou 0 Sr. Pickwick ao cair no tanque. E concebivel dizermos: “Bem que eu gostaria de estar ld para ver essa cena”. Mas {sso significa desejar estar liapenas na condigdo de espectadores ~0 aque ja somos ~ ocupando os melhores lugares. Acrescente-se ainda {que muitos dos literariamente iletrados gostam de histérias de fan- tasmas e de outros horrores; mas, quanto mais eles gostam dessas historias, tanto menos desejariam ser eles proprios suas personagens, E possivel que historias de aventuras sejam, por vezes, apreciadas ‘porque oleitor consegue ver-se no papel de um heréi corajoso eaudaz, LUM EXPERIMENTO NA CRITICA LITERARIA 51 Mas nao acho que possamos ter certeza de que esse seja sempre 0 ‘ou mesmo o principal prazer em jogo. Ele pode admirar um dado hersi e desejar que alcance sucesso, sem considerar este como seu proprio sucesso, Resta ainda um tipo de histérias, cujaatragao, até onde possamos perceber, depende essencialmente da construgao egoista de castelos deareia: historias sobre sucesso, historias de amor ehistérias ambien: tadas na alta sociedade. Em conjunto, compem as leituras favoritas dos leitores situados na classe mais baixa; mais baixa porque a leitura os leva a extrair 0 minimo de si mesmos, incentivando-os a serem auto-indulgentes, quando jéo sio demasiadamente, eos conduz para Jonge da maior parte das coisas que de fato tém valor tanto nos livros ‘quanto na vida, Essa construgio de castelos de areia, seja realizada coma ajuda dos livros ou sem ela, €0 que os psicélogos chamam de fantasia, numa de suas acepgdes. Se nao tivéssemos estabelecido as, necessérias diferengas entre os sentidos de fantasia, seria facil, nto, presumir que tais leitores gostariam de fantasias literarias. Mas 0 contrario é verdadeiro, Basta fazermos testes para descobrir que eles as detestam. Pensam nelas apenas como “coisas feitas paracriangas”, no véern nenhum sentido em ler “sobre coisas que nunca poderiam acontecer de verdade” Para nds €evidente que os livros de que eles gostam sao cheios de impossibilidades. Eles ndo fazem objegao a caracterizagées psicol6gi- cas que sao auténticas monstruosidades e a coincidéncias absurdas, Mas exigem a observancia rigorosa das leis naturais tal como as co: nhecem e uma normalidade geral no que concerne a roupas, acessé: rios, alimentasio, habitasio, ocupacoes e o tom da vida cotidiana ‘Sem diivida, isso ocorre, em parte, devido a extrema inércia de suas imaginagées. Eles podem tornar real para si mesmos apenas aquilo «que jé leram mil vezes e que ja viram uma centena de vezes. Mas ha ‘uma profunda razao para isso. Embora eles nio tomem sua construgao de castelos de areia pela realidade, querem sentir que isso pode ser possivel. A leitora nio acredita que todos os olhos a sigam, como seguem a heroina do li: vvro, mas ela quer tera sensago de que, uma vez.que houvesse mais 52 cs. tewss dinheiro e, portanto, vestidos melhores, jdias, cosméticos e oportu- nidades, isso seria possivel. O leitor nao acredita que seja rico e que usufrua de grande prestigio social, mas que, ao menos, seele ganhasse na loteria, se as fortunas pudessem ser alcangadas sem talento, ele seria capaz de chegar li, Sabendo que o devaneio nao se realiza, exi- ge a0 menos que seja realizavel. E.é esse o motivo pelo qual o mais, débil indicio do que é admitidamente impossivel estraga seu prazer. A histéria que apresenta o elemento maravilhoso, fantastico, deixa implicito para ele: ‘Sou meramente uma obra de arte. Vocé precisa me aceitar como tal-deve fruir-me por minhas sugesties, minha beleza, minha ironia, ‘minha construgdo e assim por diante, Nao ha a menor chance de isso the acontecer no mundo real Diante disso, ler ~ tal como esse leitor lé -deixa de fazer sentido. A. menos que ele possa sentir que “Isso poderia - quem sabe? — isso poderia acontecer comigo um dia” todo o propésito pelo qual ele lé €frustrado. Trata-se, portanto, de uma regra absoluta: quanto mais, completamente a leitura de alguém assume a forma de construgio, egoista de castelos de arei superficial e menos apreciara o fantastico, Ele deseja ser iludido, pelo ‘menos momentaneamente. E nada consegue iludira menos que pro- diuza uma semelhanga plausivel em relacao i realidade. A construsao ‘Desinteressada de castelos de areia pode sonhar com néctar eambro. sia, com o pio das fadas ¢ 0 orvalho de mel; jé a construsio egoista sonharé antes com ovos com bacon ou bife. No entanto, utilizei anteriormente a palavra realismo, que é po- lémica e deve ser analisada com detalhe mais esse alguém exigira um realismo 7 SOBRE REALISMOS ‘A palavra realismo tem um sentido em légica, cujo oposto & nominalismo, e outro em metafisica, cujo oposto é idealismo. Na linguagem politica, a palavra possui um terceiro sentido, de algum ‘modo pejorativo: as atitudes que deveriamos chamar de “cinicas" «em nossos oponentes sio chamadas de “realistas” quando 0 nosso proprio partido as adota. Aqui nao nos ocuparemos com nenhuma dessas acepgdes, mas somente com realismo e realista como termos dacriticaliterdria. E, mesmo nese campo restrito, ¢ preciso delinear imediatamente uma distingio. ‘Todos classificariamos como realistas as especificades exatas de tamanho que sao dadas pela mensuracio direta em Gulliver ou por comparagao com objetos bem conhecidos na Divina comédia.E, quando o frade de Chaucer enxota o gato do banco onde ele mesmo pretende se sentar, descreverfamosiisso como um toque realista.'Iss0 0 que chamarei de Realismo de Representagao— a arte de tornar algo mais préximo de nés, tornando-o palpavel e vivido, por meio de detalhes precisamente observados ou nitidamente imaginados. Podemos citar como exemplos o dragio "farejando por toda pedra" 1 Oseantas de Canterbury, 1775 em Beowulf; Arthur de Layamon, que, ao ouvir que era, sentou- seem siléncio e “num momento ele se fazia enrubescido e no outro se fazia pélido"; as ctipulas elevadas em Gauain, que pareciam como se tivessem sido “recortadas em papel”; Jonas entrando pela boca da baleia como “um gro de pé pela porta de uma catedral”; as fadas padeiras em Huon, tirando a massa de seus dedos; Falstaff, em seu leito de morte, agarrando o lengol; os riachos de Wordsworth que podem ser ouvidos & noite, mas sio “inaudiveis a luz-do dia”. Para Macaulay, tal realismo de representagio é 0 que, sobretudo, distingue Dante de Milton. E Macaulay estava certo até determinado ponto, embora nunca tenha percebido que havia se deparado nao com ‘uma diferenga entre dois poetasem particular, mascom umadiferenga de carater geral entre as obras medievaiseasclassicas, A Idade Média favoreceu odesenvolvimento brilhante ¢ exuberante do realismo dere- presentagao porque os homens naquele tempo nao eram inibidos nem, por um espirito de época —eles elaboravam suas histérias incorporando ‘08 costumes de seu proprio tempo nem por um senso de decoro. A. tradiggo medieval nos deu “Fire and fleet and candle-light”;'aclassica nos deu “Cétait pendant lhorreur d'une profonde nuit” * E possivel constatar quea maior parte de meus exemplos de rea- lismo de representagao, embora eu nao os tena escolhido com esse propésito, ocorrem na narragao de histérias que nao sio elas préprias, completamente “realistas”, no sentido de algo ser provavel oumesmo possivel, Isso deveria esclarecer de uma vez por todas uma confusio ‘muito elementar que tenho, por vezes, observado entre orealismo de representacio (ow a representacao realista) eo que chamode realismo de contetido. 2 Beowulf, 2288; Brut, 1987 s8.; Gawain an the Green Knight, 802; Patience, 268; Duke Huon of Burdews, Il, ex, p409,ed.S. Lee, EET. Hey V, Ii, 14 Excursion, IV, 1174 3. Verso de Lyke- Wake Dinge,cangio inglesa tradicional que fla da viagers da alma at 0 Céu. Li chegando, a pessoa tera "Fite and let and candlelight" calor, abrigoe luz de velas, ou una morada onde estar protegida e segua (0 Cex). (NE) 4 "Foi durante o horror de uma noite profunda.."trecho de Atal, peyatea tral de Jean Racine esrta em 1691. (NE) LUM EXPERMENTONACRITICA LTERARIA 55 Uma ficeio é realista de contetido quando é provavel ow “fiel a realidade”. Vemos realismo de contetido, separado do menor realis ‘mo de representaco que seja, ¢, por conseguinte, “quimicamente puro”, numa obra como Adolfo, de Constant. Nessa obra, a paixio, na verdade um tipo de paixo que nao é muito raro no mundo real, pode ser acompanhada em suas mais recénditas minticias atéa morte. ‘Nao hd incredulidade a ser evitada, Nunca duvidamos de que aquilo éexatamente 0 que poderia acontecer. Mas, enquanto ha muito para ser sentido e muito para ser analisado, nao ha nada para ser visto, couvido, degustado ou tocado. Nao ha “close-ups” nem detalhes. Nao ha personagens secundarias nem sequer lugares dignos de deserigio, Exceto em uma curta passagem, para um propésito especial, nao ha referéncias nem ao clima nem a0 campo. Em Racine, do mesmo modo, uma vez dada a situagdo, tudo é provavel e mesmo inevi tavel. O realismo de conteddo € grande, mas nao hé realismo de representagio. Nés nao sabemos que aspecto tinha cada um, 0 que vvestia, o que comia. Todos falam segundo um mesmo estilo. Quase no ha informagées sobre o comportamento das pessoas. Sei muite bem o que significaria ser Orestes (ou Adolfo); mas no seria capaz de reconhecer um ou outro se os encontrasse, como eu certamente reconheceria Pickwick ou Falstaff, etambém provavelmente o velhe Karamazov ou Bercilak Os dois realismos sao totalmente independentes. Podemos en: contrar o de representagao sem o de contetido, como no romanct medieval; ouo de contetido sem o de representacio, comonna tragédit francesa (¢ em algumas tragédias gregas); ou os dois realismos jun tos, como em Guerra e paz; ou nenhum realismo, como em Orlandi furioso ou em Rasselas ou Candido. Em nossa época ¢ importante nos lembrarmos de que os quatr) ‘caminhos de escrita sio bons, e obras-primas podem ser realizada em qualquer um deles. © gosto dominante na atualidade pede realismo de contetido.* As grandes conquistas do romance do sécul 5 E-usualmente também o ralismo de representagio. Mas este iltima nio é importante neste moment. se cS Lewis XIX nos ensinaram a aprecia-lo e a esperd-lo. Mas cometeriamos ‘um erro desastroso e criariamos mais uma falsa classificagio de li ros €leitores se erigissemos essa preferéncia natural e determinada historicamente como um principio geral. Seria perigoso fazer isso. \Ninguém que eu conheca chegou ao ponto de afirmar que uma obra ficcional nao pode se prestara uma eitura adultaecivilizada a menos que represente a vida tal como constatamos que ela seja ou temos a probabilidade de vir aconstatar, experimentalmente. Contudo, esse Dressuposto parece espreitar tacitamente no fundo de muita critica e discussao literéria. Podemos sentir isso tanto no abandono ou no descrédito generalizado a que foram relegados 0 romantico, idilico € 0 fantéstico, quanto no imediatismo com que se estigmatizaram essas instincias como “escapismo”. Percebemos isso quando os li vr0s sao valorizados por constituir “comentirios sobre a”, ou “re. flexos da" (ou mais deploravelmente “fatias” da) Vida. Observamos. também que essa “fidelidade ao real” é considerada tio significativa em literatura que supera todas as demais consideragdes. Os autores, ‘impedidos por nossas leis contra a obscenidade por mais bobas que sejam tais eis —de usar meia dlizia de monossilabos, sentem-se como se fossem martires da ciéncia, assim como Galileu. A objegao “Isto € ‘obsceno” ou “Isto é depravado", ou mesmo a objegio mais relevante para a critica - “Isto é desinteressante” a resposta “Isto ocorre na vida real” parece, por vezes, ser considerada quase suficiente Em primeiro lugar, precisamos decidir que tipos de ficea0 podem ser legitimamente considerados fis realidade. Imagino que deve- riamos dizer que um livro tem essa caracteristica quando um leitor sensivel, aotermind-lo, pode dizera si mesmo: "Sim, isto assim tris. te, ouespléndido, ou vazio, ou irdnico~é como nossa vida é. Esteéo tipo de coisa que acontece. E assim que as pessoas se comportam"” Mas, quando dizemos “O tipo de coisa que acontece”, quere- ‘mos de fato dizer 0 tipo de coisa que em geral ou freqiientemente acontece, 0 tipo de coisa que é proprio de nossa sina? Ou queremos dizer “O tipo de coisa que de modo concebivel poderia acontecer ‘ou que poderia ter acontecido uma tinica vez, com a probabilidade de uma em mil?” Porque, a esse respeito, ha uma grande diferenga UM EXPERMENTONACRITICA LTERARA 57 entre 0 Edipo tirano ou Great Expectations [Grandes esperangas}, de um lado, e Middlemarch ou Guerra e paz, de outro. No caso das,

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