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CONCEITO DE LIBERDADE 3 colecgao subse edigdes RES litttada PRIMEIRA PARTE OS HOMENS E A LIBERDADE 1 © homem conguista a sua humanidade ao afirmar a0 realizar sua liberdade no mundo ‘Tudo o que vive... tende a realizar-se na pleni- ‘tude do seu ser. O homem, simultineamente ser vivo e pensante, para se realizar tem primeiro de se conhecer. (Obras, 1, 104, 67) (). Qual € pois esta curiosidade imperiosa que im- pele 0 homem a conhecer 0 mundo que 0 cerca, a erseguir com infatigével paixio os segredos desta, natureza, da qual ele, nesta terra, é a Gltima e a mais perfeita criagio?... Nao hesito em dizer que, de todas as necessidades que constituem a natureza do homem, é a mais humana, e que o homem s6 se distingue efectivamente dos animais das outras espé- cies por esta necessidade inextinguivel de saber, de modo que ele 86 se torna completamente homem pelo despertar e pela satisfacio progressiva desta imensa neeessidade de saber. Para se realizar na plenitude do seu ser, 0 homem tem de se conheeer, ¢ nunca ‘se conhecerfi de um modo real e completo, enquanto no conhecer @ natureza que o cerca e da qual ele 6 produto, A nio ser que queira renunciar 4 sua humanidade, o homem tem de saber, tem de penetrar com o seu pensamento o mundo real e, sem esperar atingir o fundo, tem de aprofundar sempre, cada vex mais, © coordenagio e as leis, pois a sua huma- nidade 96 se atinge por este prego... para que ele (os rfertacios 180 onaltodor not soni no fin do obra © otto ‘name, a ideo, Topreano "2 ona am que e fet. fol 7 possa comprender a sua propria natureza e a sua missio neste mundo, sua patria e seu teatro tinico; para que neste mundo de cega fatalidade, ele possa inaugurar 0 seu mundo humano, o mundo da liber- dade. ‘Tal 6a tarofa do homem: 6 inesgotivel e infi- nita, e suficiente para satisfazer os espiritos 05 coragies mais arrogantes e ambiciosos. Ser efémero e imperceptivel, perdido do meio do oceano sem mar- gens da transformagao universal, com uma eterni- dade que o precede e uma eternidade imensa & sua frente, o homem pensante, o homem consciente do seu papel, fica calmo e orgulhoso com o sentimento dda sua liberdade, que conquista emaneipando-se pelo trabalho, pela ciéneia, e emancipando, revoltando se necessério, todos os homens, seus semelhantes, seus irméos, & sua volta, (Obras, III, 227-228, 70). Por muito limitado que seja em comparacéo com o universo, o nosso globo é ainda um mundo infinito. A este respeito, podemos dizer que 0 nosso ‘mundo, e no sentido mais restrito da palavra, a nossa terra, € igualmente inacessivel, isto é, inesgotavel. ‘Nunca a ciéncia chegaré até ao fim, nem dird a ‘altima palavra, Deveré isto desesperar-nos? Pelo contririo, se a tarefa fosse limitada, depressa res- friaria o espirito do homem que, diga-se o que se disser, nunca se sente tao feliz como quando pode destruir e transpor um limite. (Obras, III, 368, 70). ... armado com a sua formidavel capacidade de abstracgio, ele nfo conhece e nunca conhecerd nenhum limite para a sua curiosidade imperiosa, apaixonada, avida de tudo saber e de tudo abracar. Chega dizer-lhe: «Tu nao passarés além de>, para que, com toda a forca desta curiosidade irritada pelo obstéculo, ele queira lancar-se «além de>. A este respeito, 0 Bom Deus da Biblia mostrou-se muito mais clarividente do que o Sr. Auguste Comte 8 € 09 seus diseipulos positivistes; querendo sem davida que o homem comesse o fruto proibido, impe- diram-no de o comer. Este excesso, esta desobedién- cia, esta revolta do espirito humano contra todo © limite imposto, quer em nome do Bom Deus, quer em nome da ciéncia, constituem a sua honra, 0 segredo da sua forea ¢ da sua liberdade. B, pro- curando 0 impossivel que o homem sempre realizou € conheceu o possivel, e os que se limitaram sabia- ‘mente a0 que Ihes parecia 0 possivel, nunca avan- garam um finieo passo. (Obras, Ill, 325 — 326, 70). fa realizagio desta tarefa nao é s6 uma obra intelectual e moral; é antes de mais, tanto a eseala do tempo como do’ ponto de vista do nosso desen- volvimento racional, uma obra de emanoipagdéo ma- terial. O homem s6 se torna verdadeiramente homem, 86 conquista a possibilidade da sua emancipacio interior, quando conseguir romper as cadelas da eseravatura que a natureza exterior faz pesar sobre todos os seres vivos. (Obras, II, 278-279, 70). Mas [a actividade, que constitui o trabalho) (*) 86 comeca a constituir 0 trabalho propriamente ‘iumano quando for dirigida pela inteligéneia humana e pela sua vontade reflectide, deixando de servir unicamente a satisfacdo das ‘necessidades fixas ¢ fatalmente circunscritas da vida exclusivamente ani inal, mas também as do ser pensante, que conquista @ sua humanidade ao afirmar-se ¢ realizar-se no ‘mundo. (Obras, I, 110, 67). Gracas a esta capacidade de abstraccio... 0 homem desdobra-se, por assim dizer e, a0 separar-se 1 At palowor ene soreiads rete perencam eo iso. fexyin, “aan savant amycam_ oar aH, cada parte, ele eleva-se de qualquer modo acima dos seus préprios movimentos interiores, acima das sen- sagdes que experimenta, dos instintos, dos apetites, dos desejos que despertam nele também das ten- déncias afectivas que ele sente; o que Ihe dé a possi- bilidade de os comparar entre si, do mesmo modo que compara os objectos e os movimentos exteriores, e de tomar partido por uns ou por outros, segundo © ideal de justiga e de bem, ou segundo'a paixio dominante, que a influéncia 'da sociedade © as cir- cunstineias particulares desenvolveram ¢ fortifica- ram nele. Esta capacidade de tomar partido a favor de um ou de varios imputsos que agem nele num sentido determinado, contra outros impulsos igualmente inte- riores e determinados, chama-se vontade. ‘Assim explicado ¢ compreendido, o espirito do hhomem ea sua vontade deixam de se apresen- tar como capacidades absolutamente auténomas, independentemente do mundo material e, capazes, ao criar, um os pensamentos, outro os actos espen- tAneos, de romper o encadeamento fatal dos efeitos e das ¢ausas que constituem a solidariedade univer- sal dos mundos... E sendo assim, nds temos de rejei- tar a possibilidade do que os metafisicos chamam as ideias espontineas da vontade, o livre arbitrio e a responsabilidade moral do homem, no sentido teo- ligico, metafisico ¢ juridico desta’ palavra, (Obras, IIL, 243 a 245, 70). 0 individuo humano, real, é tanto um ser uni- versal e abstracto como’ cada’ um de nés. Desde 0 momento que se forma nas entranhas da mae, j6 esté determinado e particularizado por uma mulii- plicidade de causas e acgdes. (Obras, I, 289, 72). ‘A vontade, como a inteligéncia, nfo é... uma irradiagio mistica, imortal e divina, caida miraculo- samente do oéu para a terra, para dar vida a pedacos de carne humana, a cadaveres. 1 o produto da nossa carne organizada e viva, o produto do organismo animal, (Obras, TI, 249, 40). 10 2 Ralzes e liberdade do individuo ma sociedade ‘cada individuo tem, ao nascer, em graus dife- rentes, no ideias e sentimentos inatos como preten- dem 05 idealistas, mas a capacidade material e for- mal de sentir, de pensar, de falar e de querer. $6 traz consigo @ faculdade de formar e desenvolver idelas e, como acabo de dizer, uma capacidade de actividade formal, sem nenhum contetdo, Quem Ihe i 0 seu primeiro contetido? A sociedade. (Obras, I 289-290, 71). ‘Cada nova geragio depara, no seu bergo, com ‘um mundo de ideias, de sentimentos e de imaginacio, que ela recebe como uma heranga dos séculos passa- dos. Este mundo nao se apresenta logo ao recém- -nascido sob a forma ideal, como sistema de repre- sentagées ¢ de ideias, como religiéo, como doutrina; a erianca seria ineapaz de o receber, nem de o con: ceber, nesta forma; mas ele impée-se a ela como um mundo de factos encarnado e realizado tanto nas pessoas como em todas as coisas que as ceream, falando aos seus sentidos por tudo que ela com: preende e vé desde o primeiro dia de vida. Porque as ideias e as representagdes humanas, comecam por ser unicamente o produto dos factos reais, tanto naturais como sociais, na medida em que so a sua reflexio ou repereussio no eérebro humano e a sua reprodugio, por assim dizer, ideal ¢ mais ou menos judiciosa..., adquirem mais tarde, depois de se terem estabelecido bem... na consciéneia colectiva de uma sociedade qualquer, a capacidade de se tornarem, Por sua vez, as causas que produzem factos novos, no propriamente naturais, mas sociais. Elas acabam por modificar ¢ transformar, muito 1 verdade, a existéncia, os hébitos ¢ hhumanas, numa palavra, todas as relages dos ho- mens na Sociedade e, pela sua incarnagéo nas coisas ctr mais banais da vida de cada um, elas tornam-se sensfveis, palpaveis para todos, mesmo para as erian- gas. De ‘modo quo, cada nova geragio, modelada desde a mais tonra’inffneia, quando chega & idade adulta, em que comega propriamente 0 trabalho do seu pensamento, necessariamente acompanhado de uma nova critica, encontra nela e na sociedade que a eerea, todo um conjunto de pensamentos e repre- sentagées estabelecidas, que Ihe servem de ponto de artida e que Ihe dio, de qualquer modo, o primeiro material ou a base para 0 seu trabalho intelectual e moral. (Obras, I, 201 a 298, 7). Todas as idelas, que ele encontra incarnadas nas coisas e nos homens, desde o seu nascimento, ¢ que se imprimem no seu espfrito pela educagio e ela instrugio que o individuo recebe, antes mesmo de se conhecer a si préprio, vai encontri-las mais tarde consagradas, explicadas e comentadas, por teorias que exprimem a consciéncia universal’ ou 0 Juizo colectivo e por todas as instituicdes religiosas, politicas e econémicas, da sociedade de que faz parte. E, cle préprio, esté de tal modo impregnado com elas, quer esteja ou ndo pessoalmente interessado em as defender, que reage involuntariamente, devido @ todos os hébitos materiais, inteleetuais morais, que 0 tornam etimplice. Nao 6 de espantar que a accio toda poderosa destas ideias, que exprimem a consciéncia colectiva da sociedade, se exerea sobre a massa humana; mas pelo contrério, que se encontre nesta massa, indi- viduos com o pensamento, a vontade e a coragem para as combater. Pois a pressio da sociedade sobre © individuo é imensa. (Obras, I, 294-295, 72) © homem nio eriou a sociedade, nasceu_nela. Nio naseeu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influéncias passadas, por desenvolvimentos © 2 factos histéricos. Hsté mareado pela regio, o elima, © tipo étnico, a classe a que pertence, as condicdes, econémicas e politicas da vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldela, pela casa, pela familia e vizinhanea, em que nasceu. ‘Tudo isto determina o seu carécter e a sua natureza, dé-lhe uma linguagem definida e impée- lhe, sem que ele possa resistir, um mundo consti- ‘tuldo por ideias, costumes, sentimentos, perspectivas mentais, ¢ 0 lugar, antes do despertar da sua cons- ciéncia,’ numa telagio rigorosamente determinada pelo parentesco com 0 meio social que o cerca. Tor- nase organicamente membro de uma sociedade, acorrentado a ela interior e exteriormente, impr: gnado, até ao fim dos seus dias, pelas suas crencas, julzos, paixdes e costumes. (Maximoff, 159, 70). wresso social sobre o individu & imensa, e nfo hé carieter tio forte, nem inteligéncia tao poderosa. que esteja ao abrigo dos golpes desta influéneia tio despética como irresistfvel. ‘Nada prova [tanto] 0 eardcter social do homem como esta influénela. Poder-se-ia dizer que a cons- cigncia eolectiva de qualquer sociedade, inearnada tanto nas grandes instituigdes piblicas como em todas os detalhes da vida privada e servindo de base a todas as suas teorias, forma uma espécie de meio ambiente, uma espécie de meio intelectual e moral, prejudicial mas necessirio & existncia de todos os seus membros. Hla domina-os e sustenta-os a0 mesmo tempo, ligando-os pelos mesmos costumes que ela prépria determina; inspirando a cada um seguranca, confianca e constituindo para todos a condicio si prema da existéncia do grande niimero, a banalidade, vulgar, a rotina. ‘A maior parte dos homens, néo s6 nas massas populares mas também nas classes privilegiadas e eselarecidas, tanto e até mais do que nas massas, 86 se sentem tranquilos e em paz consigo préprios quando, nos seus pensamentos e em todos os actos 1B da sua vida, seguem, com fidelidade e cegueira, @ tradicio e a rotina, (Obras, I, 295-296, 72). ‘A major parte dos individuos... s6 quer e pensa © que toda a gente que os rodeia quer e pensa; eles acreditam, sem diivida, querer e pensar eles proprios, mas s6 fazem reaparecer servilmente, roti- neiramente, com modificagies quase impereeptiveis ou nulas, os pensamentos ¢ as vontades dos outros. Este servilismo, esta rotina, fontes inesgotaveis do individuo vulgar, esta austneia de revolta na vontade e de iniciativa no pensamento dos individuos so as principais causas da lentidio desoladora do desen- volvimento histérico da humanidade. Para nés, mate- rialistas ou realistas, que nfo acreditamos nem na imortalidade da alma nem no livre arbitrio, esta lentidio, por muito exasperante que seja, aparece- -nos como um facto natural. Partindo do nivel do gorila, o homem s6 com muita dificuldade atinge a consciéncia da_sua humanidade e a realizagio da sua liberdade. De infcio, ele néo pode ter*nem esta conseiéneia, nem esta liberdade; ele nasce um ani- mal feroz ¢ eseravo, e s6 se humaniza e emancipa progressivamente no seio de uma sociedade, que é necessariamente anterior ao nascimento do’ pensa- mento, da palavra e da vontade; e s6 0 pode fazer através dos esforgos colectivos de todos os membros, passados e presentes, desta sociedade, que 6, por iss0, a base e o ponto de partida natural da sua existéncia, humana. Disto resulta que o homem s6 realiza a sua liberdade individual e a sua personalidade comple- tando-s com os indviduos que o cercam, 96 gracas a0 trabalho e & forea colectiva da sociedade.... Sociedade, longe de diminuir e de limitar, cria pelo contrério’a Iiberdade dos individuos. (Obras, I, 274- 295, 7). 'A revolta contra esta influéncia natural da socie- dade oficialmente organizada, contra o Estado, ainda que muitas vezes ela seja tdo inevitdvel como esta, iiltima. A tirania social, muitas vezes esmagadora e funesta, néo presenta este caricter de violéneia us imperativa, de despotismo legalizado e formal que caracteriza’ a autoridade do Estado. Ela nfo se impSe como uma lei & qual qualquer individuo & forgado a submeter-se sob pena de se expor a uma punigdo juridica. A sua acco & mais suave, mais insinuante, mais imperceptivel, mas ainda mais pode- rosa... pata se revoltar contra esta influéncia que ‘8 sotiedade exerce naturalmente sobre ele, o homem tem de se revoltar, pelo menos em parte, contra ele proprio, pois com todas as suas tendéncias e aspi- Tagées maternais, intelectuais e morais, ele néo & senio o produto da sociedade. (Obras, I, 283-284, 71) ‘Uma revolta radical contra a sociedade seri ‘tio impossivel para o homem como a revolta contra 2 natureza. (Obras, I, 288, 71). ‘B-nos... tio pouco possfvel interrogar se a socie- dade um'bem ou um mal, como se a natureza, o ser universal, material, ‘inico, real, supremo, abso- luto, 6 um bem ou um mal; é'mais que tudo isto; & um ‘imenso facto positivo e primitivo, anterior a toda a apreciagéo intelectual e moral, é a propria base, 6 0 mundo no qual, fatalmente © mais tarde, se desenvolve por nés 0 que chamamos o bem € o mal. Nao se passa o mesmo com o Estado; ¢ nio hesito em dizer que o Estado é 0 mal, mas um mal historicamente necessério, tio necessério no passado como o seré, mais tarde ou mais cedo, a sua extinglio ‘completa, tio necessirio como foram a bestialidade primitiva e as divagagdes teol6gicas dos homens. O Estado nada tem a ver com a sociedade, ele no 6 senfio uma forma histérica tio brutal como abs- tracta. Ele nasceu, historicamente, em todos os pafses fem que coexistiam a violéncia, a rapinagem, a pilha- gem, numa palavra, da guerra 'e da conquista, com os Deuses criados sucessivamente pela fantasia teol6- ica das nagées. (Obras, I, 287, 71). O Estado é uma instituicdo histérica, transitéria, & uma forma passageira da sociedade. (Obras, 1, 285, 72). 5 # muito mais facil a revolta contra o Estado, porque hé na prépria natureza do Estado qualquer coisa que provoca a revolta. 0 Estado é a autori- dade, a forea, a ostentacio ¢ a presungéo da forca. Ele no se insinua, no procura converter: sempre que se intromete, f4-1o com muito mau gosto, pois © seu hébito nunca é de persuadir, mas de se impor, de forcar. Qualquer justificacio que se dé, 6 para dissimular esta natureza como violadora legal da vontade dos homens, como a negagio permanente da sua liberdade. Entéio, mesmo que ele imponha bem, deteriora-o e corrompe-o, precisamente porque ele 0 impse, ¢ toda a ordem provoca e suscita a revolta legitima da liberdade; e como o bem, desde © momento em que é imposto, segundo a verdadeira moral, a moral humana, nfo a divina certamente, segundo o respeito humano e a liberdade, torna-se 0 mal. A liberdade, a moralidade e a dignidade do ho- ‘mem consistem precisamente em ele praticar o bem, ‘no por ser a isso obrigado, mas*por ele o conceber, © querer e o amar. A sociedade néo se impde formalmente, oficial- mente, autoritariamente, mas naturalmente, © 6 por ‘causa ‘disso mesmo que a sua acgéo sobre o indi- viduo é incomparavelmente mais poderosa do que a do Estado. Ela cria e forma todos os individuos que nagcem e que se desenvolvem no seu seio, Ela trans- mite-thes lentamente, desde o primeiro dia de vida até sua morte, toda a sua natureza material e moral; ela individualiza-se, por assim dizer, em cada um. (Obras, I, 288-289, 72). a influéneia natural que os homens exercem uns sobre os outros ... 6 a propria base, material, intelectual e moral, da solidariedade humana. O indi- viduo, produto da solidariedade, isto é, da sociedade, submetido As suas leis naturais, pode bem, sob a influéncia de sentimentos vindos de fora, e princi- palmente de uma sociedade estrangeira, reagir contra 16 la até um certo grau, mas ele néo saberia desligar-se dela sem se unir a um outro meio solidério e sem receber ai novas influéneias. Pois, para o homem, a vida afastada da sociedade ¢ de todas as influéncias humanas, o isolamento absoluto, é a morte intelec- tual, moral e até material. A solidariedade néo & © produto, mas a mie da individualidade, e a perso- nalidade humana nfo pode nascer e desenvolver-se senfio na sociedade humana. (Obras, V, 159, 69). ‘A lei da solidariedade social é @ primeira lei humana; a liberdade & a segunda lei, Estas duas leis, interpenetram-se e, sendo insepariveis, constituem a esséncia da humanidade. Assim, a liberdade no & negagio da solidariedade; pelo contririo, ela & © seu desenvolvimento e, por assim dizer, a sua humanizagéo. (Maximoff, 156, 71). ‘A quem pretender (que a acco natural ... sobre as massas] ainda é um atentado a liberdade das massas, uma tentativa para criar uma nova forca autoritéria, nés responderemos que ele ou é um sofista ou um tolo. ‘Tanto pior para os que ignoram a lei natural e social da solidariedade humane, 20 ponto de imaginarem que a independéncia méitua absoluta dos individuos ¢ das massas seja uma coisa possivel ou mesmo desejavel. Desejé-la, é querer a destruigio da prépria sociedade, pois toda a vida social néo é outra coisa sendo esta dependéncia miéitua ¢ incessante dos individuos e das massas ‘Todos os individuos, mesmo os mais inteligentes, 03 mais fortes, ¢ sobertudo os inteligentes e 0s fortes, siio, em qualquer momento da sua vida, os produ: tores e os produtos da vontade ¢ da accéo das mas: sas. A liberdade de cada individuo & a resultante, sempre reproduzida de novo, desta série de influén- cias materiais, intelectuais e morais que todos os ividuos que o ceream, que 8 sociedade no meio da qual ele nasce, se desenvolve e morre, exerce nele. Querer escapar a esta influéncia, em nome de uma liberdade transcendente, divina, absolutamente egoista e auto-suficiente, é condenar-se ao nio-ser; aT querer renunciar a exereé-la sobre os outros, é renun- iar a toda a acgGo social, mesmo & expressio do seu Bensamento © dos seus sentimentos, leva ainda ao ‘Tanto na natureza como na sociedade humana, que nao é ainda outra coisa sendo esta mesma natu- reza, tudo o que vive 86 vive com a condicéo suprema de intervir da maneira mais positiva, tdo fortemente quanto a sua natureza o permita, na vida dos outros. A abolicdo desta influéncia métua seria pois a morte. E quando reivindicamos a liberdade das massas, no pretendemos de modo algum abolir qualquer ‘uma das influéncias naturais de qualquer individuo e de qualquer grupo de individuos que exercem a acedo sobre elas. O que nds quetemos, & a aboligéo das influéncias artificiais, privilegiadas, legais, ofi- is. Se a Igreja e o Estado pudessem’ser institui- ses privadas, nés seriamos sem divida seus adver- sérios, mas no protestariamos contra o seu direito de existir. Mas nés protestamos, contra eles porque, sendo sem divida instituigdes “privadas, devido a 86 existirem efectivamente para o interesse parti- cular das classes privilegiadas, eles nfo se servem menos da forca colectiva das’ massas organizadas para este fim, para se imporem autoritariamente, oficialmente, violentamente &s massas. (Obras, VI, 87 a 89, 7D). ‘Tudo 0 que existe verdadeframente 96 fica sem uma completa manifestacéo de si mesmo quando isolado, tanto no que respeita aos homens como em relacdo as coisas mais inertes e menos demonstrati- vas. B a histéria do barbeiro do rei Midas: néo ousando dizer o seu terrivel segredo a ninguém, confiou-o A terra, mas a terra divulgou-c, e foi assim que se soube que o rei Midas tinha orelhas de burro. Existir realmente, tanto para os homens como para ‘tudo 0 que existe, néo significa outra coisa sendo manifestar-se. (Obras, III, 388, 70). Peguem ‘num metal ‘ou numa pedra: haverd, aparentemente, qualquer coisa mais inerte e menos 18 comunicativa? E contudo, isso move-se, age, espa- Tha-se, manifesta-se sem cossar, ¢ $6 existe a0 fazé- lo. A’ pedra eo metal tém todas as propriedades fisicas e, enquanto corpos quimicos, simples ou com- ‘postos, esto incluidos num proceso, por vezes muito Iento, mas incessante, de composicao e decomposigéo molecular, Essas propriedades .... sio uma multipli- cidade de modos de acco e de manifestagio em relagio ao exterior. Mas tirem as suas propriedades & petra, ao metal, e que ficaré? A abstraccio de uma coisa, nada. (Obras, III, 391, 70). Qualquer coisa no é sendo o que ela faz ... Ela no pode conter nada no que chamamos 0 sew énte- rior, que nfo se manifeste no seu exterior: numa palavra, a sua acoio e 0 seu ser sio uma unidade, (Obras, II, 384, 70). ‘B uma verdade universal que néo admite ne- nhuma excepeio ... O homem tem unieamente no seu interior 0 que manifesta de qualquer modo no seu exterior. Esses supostos génios desconhecidos, esses espiritos vios e amando-se a si préprios, que se lamentam eternamente por nunca conseguirem por luz do dia os tesouros que dizem transportar, sf0 sempre, efectivamente, os individuos mais mi vveis em relagio ao seu ser éntimo: eles néo tém em si mesmo nada. (Obras, IIL, 385, 70). ‘A finica autoridade grande'e toda-poderosa € ao mesmo tempo natural e racional, a tinica que nés podemos respeitar, seri a do espirito colectivo pliblico duma sociedade fundada na igualdade e na solidariedade, assim como na liberdade e no respeito hhumano e miituo de todos os seus membros. Sim, eis uma autoridade nada divin, totalmente humana, ‘mas diante da qual nés nos inclinaremos com todo ‘© coragio, com a certeza de que, longe de escravizar, cla emanciparé os homens. Ela seré mil vezes mais poderosa, estejam certos, do que todas as vossas autoridades divinas, teologicas, metafisicas, politicas juridicas, instituldas pela igreja e pelo Estado, 19 mais poderosa do que 08 vossos eédigos criminais do que os vossos carcereiros e carrascos. ‘A forga do sentimento colectivo ou do espfrito phblico & 6 hoje poderosa. Os homens mais capazes de cometer crimes raramente ousam desafid-la, afron- tila abertamente. Eles podem tentar iludi-ia, mas evitardo trati-la com aspereza, a no ser que nem sequer tenham o apoio de uma tminoria qualquer. Ne- nhum homem, por muito forte que se julgue, jamais seré capaz de'suportar o desprezo undnime da soci dade, ninguém seria capaz de viver sem se sentir amparado pela compreensio ¢ estima pelo menos duma parte desta sociedade. B necessdrio que um homem seja impelido por uma imensa ¢ sincera con- viogio, para que tenha coragem para manter uma opiniéo lutando contra todos, e nunca um homem egoista, depravado e indolente, ter essa coragem. Nada prova melhor a solidariedade natural fatal do que esta lei da sociabilidade que liga todos os homens e que qualquer um de nés pode constatar todos 05 dias, tanto nele como em todos os homens que conheca. Mas se esta forea social existe, porque @ que ela néo foi suficiente, até aos nossos dias, para moralizar e humanizar os homens? Para esta ‘questo a resposta 6 muito simples: porque, até aos ‘nossos dias, ela propria nunea foi hymanizada porque 1 vida social da qual ela é sempre‘a expresso mais fel baseia-se, como se sabe, no culto divino e néo no respeito humano; na autoridade e ndo na liber- dade; no privilégio e nfo na igualdade; na exploragéo e nfo na fraternidade dos homens, na corrupcio e na mentira e nfo na justica e na’ verdade. Conse- quentemente, a sua acco real, sempre em contradi- Go com as teorias humanitarias que professa, exer- ceu sempre uma influéncia funesta e pervertida, nao moral. Ela néo reprime os vicios e 0s crimes, ela cria-o. A sua autoridade é por isso, uma autoridade divina, anti-tumana; a sua influéncia é nefasta ¢ funesta, Querem torni-las benéficas e humanas? ‘Fagam a Revolucéo social. Fagam com que todas as 20 necessidades se tornem realmente solidarias, que os interesses materiais e sociais de cada um se tornem conformes as obrigacdes humanas de cada um. E, para isso, s6 h4 uma solugio: destruam todas as instituigdes de desigualdade; fundem a igualdade econémica e social para todos, e nesta base erguer- -se-é a liberdade, a moralidade ¢ a humanidade soli- dria de toda a gente. (Obras, I, 69 a 72, 72). a lei da solidariedade social & ‘inexorével, de modo que para moralizar os individuos é neces- sério ocupar-se nao 86 da sua consciéncia como da natureza da sua existéncia social. (Nettlau, 230, 64-67). € necessdrio moralizar, primeiro de tudo, a propria sociedade. (Obras, V, 160, 69). oi “A liberdade 6, antes de mais, um facto social A liberdade dos outros aumenta a minha até ao infinito. Importa-me muito o que os outros homens so, porque por muito independente que me julgue ou que areca pela minha posicio social, mesmo que eu fosse Papa, Czar, Imperador ou até primeiro minis- ‘tro, ndo deixaria de ser o produto dos iiltimos de entre eles; se eles so ignorantes, miseréveis, escra- os, a minha existéncia & determinada pela sua igno- rancia, pela sua miséria e eseravidao. Eu, um homem esclarecido e inteligente, por exemplo—se for 0 caso —sou tolo pelas suas tolices; se bravo, sou escravo da sua escravatura; se rico, tremo com a sua misé- ria; se privilegiado, empalideco diante da sua justiea. Mesmo que eu queira ser livre, nfo posto, ‘porque & minha volta ainda nenhum homem quer ser livre nfo o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressio. Nao imaginacéo, é uma realidade da qual toda, a gente faz hoje uma triste experiéncia. Porque é que depois de tantos esforgos sobre-humanos, depois de tantas revolucdes vitoriosas, depois de’ tantos sacrificios dolorosos e tantos combates pela liber- dade, a Europa continua escrava? Porque em todos os paises da Europa hé ainda uma massa imével, pelo menos aparentemente, e que esteve até aqui ina- cessivel & propaganda das ideias de emancipacio, de humanidade e de justica —a massa dos camponeses. B cla que constitui hoje a forea, o Gltimo apoio © 0 filtimo reftigio dos déspotas, uma auténtica maga yas suas méos para nos esmagar, e enquanto nés do conseguirmos incutir-lhe as nossas aspiragies, as nossas paixGes, as nossas idelas, nfo deixaremos de ser escravos. Temos de emancipé-la, para nos emanciparmos. (Mazzini, 91-92, 72). Em quase todo o mundo as mulheres sio escra- vas; enquanto clas néo estiverem completamente emancipadas, a nossa liberdade seré impossivel. (Kornilov, 291). e nenhum povo conseguiria ser completo solidariamente livre no sentido humano desta pala- vra, enquanto toda a humanidade nao o estiver. Mazzini, 110-111, 72). 86 serei verdadeiramente™livre quando todos 0s seres humanos que me ceream, homens e mulhe-~ res, forem igualmente livres... de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodelam e quanto mais profunda e maior for @ sua liberdade, tanto mais vasta. mais profunda e maior seré a minha liberdade ... ett 86 posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, ‘© que 6 a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano ... reflectidos pela consciéneia igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de toda a gente. A mi- nha liberdade pessoal, assim confirmada pela liber- dade de todos, estende-se até ao infinite. (Obras, I, 281, 72) A liberdade dos individuos nfo é um facto indi- vidual, é um facto, um produto, colectivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contri- buigéo de toda a sociedade humana, Os individua- listas, ou os falsos amigos que combatemos em todos’ os congressos de trabalhadores, afirmaram, com 0s moralistas e os economistas burgueses, que © homem podia ser livre, que podia ser homem, afas- tado da sociedade, dizendo que a sociedade’ tinha sido fundada por um contrato de homens anterior- mente livres. Esta teoria, desenvolvida por JJ. Rousseau, 0 eseritor mais nefasto do século pasado, o sofista que inspirou todos os revolueionérios burgueses, esta teoria denota uma ignordneia completa tanto da natureza como da histéria... Imaginem 0 homem, dotado pela natureza com as faculdades mais geniai afastado desde tenra infancia da sociedade humana, num deserto, Se ele ndo perecesse miseravelmente, 0 que seria o mais provavel, ficaria um bruto, um macaco privado da palavra e do pensamento, — pois © pensamento é insepardvel da palavra: ninguém con- segue pensar sem linguagem... Mas 0 que € a pala- vra? a comunicacio, € a conversagio dum indi viduo com outros individuos. O homem animal 36 se transforma em ser humano, isto é pensante, por esta conversacio, s6 nesta conversacao. A sua indi- vidualidade humana, a sua liberdade, € pois 0 produto da colectividade. © homem s6 se emancipa da pressio tirénica exercida sobre ele pela natureza exterior com o trabalho colectivo; pois 0 trabalho individual, impo- tente e estéril, nunca saberia veneer a natureza. (Obras, V, 318 a 320, 72). Tudo 0 que é humano no homem, ¢ a liberdade mais do que qualquer outra coisa, € 0 produto de um trabalho social, colectivo. Ser livre no isolamento absoluto é um absurdo inventado pelos tedlogos metafisicos. (Obras, V, 321, 72). ~-- © homem 86 se torna verdadciramente ho- ‘mem “quando respeita e ama a humanidade ¢ @ liberdade de todos, ¢ quando a sua humanidade ¢ Iiberdade so respeitadas, amadas, suscitadas e eria- das por toda a gente. (Obras, I, 280-281, 72) 4 Estado e liberdade © que é o Estado? #, respondem os metafisicos eos doutores em direito, a coisa publica; os inte- esses, 0 bem colectivo e 0 direito de todos, em oposi¢éo & acco dissolvente dos interesses ¢ das paixdes egoistas de cada um. £ a justica ¢ a reali- zagéo da moral e da virtude sobre a terra. Por isso, © acto mais sublime e 0 maior dever dos individuos 6 devotar-se e sacrificar-se, ¢ se for preciso morrer pelo triunfo e pelo poder do Estado. His em poucas palavras toda a teologia do Estado. Vejamos agora se esta teologia politica, do mesmo modo que a teologia religiosa, nio esconde sob belas e poéticas aparéncias, realidades muito comuns ¢ muito sujas. (Obras, I, 222-223, 69). Foi um grande erro da parte de J.-J. Rousseau ter pensado que a sociedade primitiva se tinha esta- bbelecido por um contrato livre, elaborado pelos sel- vagens. A maior parte dos juristas e dos publicistas modernos, da escola de Kent ou de qualquer outra 2 escola individualista e liberal, que néo admitem nem ‘2 sociedade fundada sobre o'direito divino dos teé- logos, nem a sociedade determinada pela escola hegeliana, como a realizagio mais ou menos ristica da Moral objectiva, nem a sociedade primitivamente animal dos naturalistas, tomam nolens volens, e por falta de outro fundamento, o contrato tdcito como ponto de partida. Um contrato tacito! Isto é, um con- trato sem palavras ¢, por isso, sem pensamento e sem vontade—uma revoltante falta de juizo! Uma absurda ficgio, e ainda mais, uma maléfica fiegéo! Uma indigna fraude! Pois ele supie que nao estava em estado de querer, nem de pensar, nem de falar — porque me deixei ‘explorar sem protestar © con- senti, para mim e para toda a minha descendéncia, numa escravatura eterna! ‘As consequéncias do contrato sooial so, efecti- vamente, funestas, porque elas conduzem ao dominio absoluto do Bstado. E, portanto, o principio, tomado como ponto de partida, parece excessivamente liberal. Os individuos, antes de fazerem este contrato, goza- vam de completa liberdade, pois segundo esta teoria, 9 homem selvagem & o tinico que & completamente livre. Nés Jé dissemos 0 que pensamos desta liber- dade natural, que no é seno a dependéncia abso- luta do homem-gorila frente perseguicéo perma- nente do mundo exterior. Kis aqui os homens primitivos, absolutamente livres, em si e para si préprios, e que s6 desfrutam desta liberdade ilimitada enquanto nao se encontram, enquanto permanecem mergulhados num isolamento individual, A liberdade de um néo necessita da liber- dade do outro, pelo contrério, cada uma das suas Uberdades individuais bastam-se a si préprias e exis- tem para si préprias, a liberdade de cada um aparece necessariamente como a negacéo da dos outros, todas estas liberdades, ao encontrarem-se, tém de se Timitar e de se diminuir mutuamente, de se contra- dizer, de se destruir. 25 Para nio se destruirem até ao fim, elas formam entre si um contrato. (Obras, I, 139 a 141, 67). Entio, tudo 0 que se considerou como consti- tuindo o interesse comum, foi proclamado o bem, ¢ tudo o que Ihe era contrério, 0 mal. Os membros contratantes, tornados cidadaos, tendo-se ligado por um compromisso mais ou. menos solene, assumiram um dever: 0 de subordinar os seus interesses pri- vados & salvacio comum, ao insepardvel interesse de todos, e os seus direitos separados [a0] direito piiblico, cujo representante ‘mico, o Estado, foi por isso mesmo investido do poder de reprimir todas as revoltas do egoismo individual. (Obras, I, 146- “M47, 67). ois, segundo este sistema, a sociedade humana 86 comeca com a conclusio do contrato. Mas o que 6, entdo, esta sociedade? # a realizagio pura e légica do contrato, com todas as suas disposigées consequéncias legislativas e priticas,—é 0 Estado. xaminemo-lo de mais perto, O que 6 que repre- senta? A soma da negagio das liberdades individuais de todos os seus seus membros; ou melhor, a dos sacrificios que fazem todos os seus membros, a0 renunciarem a uma parte da sua liberdade em pro- veito do bem comum ... Pois, 1& onde comega 0 Estado, cessa a liberdade individual e vice-versa. Responder-se-4 qtfe o Estado, representante da salvagio pibliea ou do interesse comum, s6 suprime ‘uma parte da liberdade de cada um, para the asse- gurar tudo o resto. Mas este resto, é a seguranca, ‘se quiserem, mas nunca seré a liberdade. A liberdade 6 indivisivel: nao se Ihe pode suprimir uma parte sem a destruir por inteiro. Esta pequena parte que suprimem, 6 a propria esséncia da minha liberdade, 60 todo. Por um movimento natural, necessério ¢ irresistivel, toda a minha liberdade'se concentra precisamente nessa parte, por pequena que seja, que 26 suprimem. # a histéria da mulher do Barba-Azul, que tinha um palécio & sua disposigéo, com toda a liberdade de entrar em todo o lado, de ver e de tocar em tudo, excepto um maléfico quartinho, que vontade soberana do seu terrivel marido the tinha proibido de abrir, sob pena de morte. Pois bem, ten- do-se fartado de todas as maravithas do palicio, 0 seu espfrito concentrou-se inteiramente neste quar- tinho: ela abriu-o e fez bem em o abrir, pois foi um acto necessdrio & sua liberdade, enquanto que a proi- bigéo de af entrar era uma violacdo flagrante desta ‘mesma liberdade. ® ainda a historia do pecado de Adio ¢ Eva: a proibigio de provar o fruto da rvore da ciéneia, sem outra razio a nfo ser a von- tade do Senhor, era da parte do Bom Deus um acto de terrivel despotismo; e se os nossos primeiros pais tivessem obedecido, toda a raga humana teria mer- gulhado_na mais ‘humilhante escravatura. A sua desobediéncia, pelo contririo, emancipou-nos e sal- vou-nos. Este foi, falando misticamente, o primeiro acto de liberdade humana, Mas 0 Estado, dir-se-4, 0 Estado democrittico, baseado no sufrigio livre de todos os cidadios, nao poderia ser a negacdo da liberdade destes? E porque nfo? Isso dependeré absolutamente da missio e do poder que os cidadios delegarem ao Estado. Um Estado republicano, baseado no sufrégio universal, poder ser muito despético, mesmo mais despético do que o Estado monarquico, logo que sob o pretexto de representar a vontade de toda a gente, ele esma- gue a vontade eo movimento livre de cada um dos seus membros, eom todo 0 peso do seu poder colec- tivo, (Obras, I, 143 a 145, 67). ‘Bem nome desta ficedo a que se chama, tantas vvez0s, interesse colectivo, direito colectivo ou vontade ¢ liberdade colectivas, que os absolutistas jacobinos, 0s revolucionérios da’ escola de J.-J. Rousseau ¢ de Robespierre, proclamam a terrivel e desumana teoria do direito absoluto do Estado. (Obras, I, 263, 72). .. a doutrina sentimentalmente terrorista, isto 27 6, religiosa, de JJ. Rousseau, que se repercutiu como uma nota discordante na bela harmonia huma- nitéria do século dezoito, tendo sido sustentada, por outro lado, pelo defame ineonsequente, frivolo e bur- ;, de Voltaire, que pensava que a religiio Eprclutamente necesseris: pore a oamalha—.. esta doutrina, legou & revolucéo o eulto duma divindade abstracta com o culto abstracto do Estado. Estes dois cultos, personifieados na sombria figura de Robespierre—o Calvino da revolugio —mataram >. (Nettlau, 258, 63). : [JJ. Rousseau] representa o tipico da estrei- tem e da mesquinhez desconfiada, da exaltacio sem ‘outro objecto senfo a sua propria pessoa, do entu- siasmo frio e da hipocrisia simultaneamente senti- mental e implacivel, da mentiraforeada do idealismo ‘moderno. Podemos consideré-lo o criador da reaccéo moderna. Aparentemente o escritor mais democrético do século XVII, esconde nele o despotismo impla- evel do homem de Estado. Ele foi o profeta do Estado doutrinario, assim como Robespierre, seu digno e fiel discipwlo, tentou tornar-se seu sumo- -sacerdote. (Obras, II, 121, 72). Mas o Estado, dir-se-4 ainda, s6 restringe a liberdade dos seus membros quando ela se dirige ‘i injustiga, para o mal. Ele impede-os de se matarem uns aos outros, de se saquearem e de se ofenderem Tnutuamente e, dewam modo geral, de fazerem o mal, dixando-lhes, plena liberdade para o bem. & sempre f mesma historia, do Barba-Arul ou do fruto Broi bido: que € 0 mal, o que é o bem? (Obras, I, 145, 67). ‘Toda a teoria consequente e sincera do Estado baseia-se essencialmente no prinefpio da autoridade, 28 isto 6, nesta ideia eminentemente teolégica, meta- fisica, politica, segundo a qual as_massas, ‘sempre incapazes de se governarem, deverio sofrer 0 jugo benfeitor duma sabedoria ¢ duma justiga qué, de uma maneira ou de outra, Ihes serdo impostas de cima. (Obras, I, 171, 67). © Estado é'o governo, de cima para baixo, uma grande quantidade de homens muito diversos no ue respeita ao grau de cultura, & natureza do pais Ou localidade em que habitam, & sua posicéo, a sua Ocupaco, aos seus interesses e aspiragées, por uma minoria’ qualquer; esta minoria, mesmo que fosse eleita mil vezes por sufrigio universal e con- trolada nos seus actos por instituigées populares, a ni ser que seja dotada de omnisciéneia, de omni- resenca e toda-poderosa, como os tedlogos dizem ser o seu Deus, é impossfvel que ela possa conhecer e prever as necessidades, nem satisfazer com igual Justica, os interesses mais legitimos e mais premen- tes de toda a gente. (Obras, IV, 475-476, 72). a vida colectiva nao esté ha multidéo popular; esta multidéo, segundo Mazzini, nfo sendo senéo um agregado mecinico de individuos; a colectividade 36 existe na autoridade, e 36 pode ser representada por ela, Estamos sempre nesta maldita fungio do Estado, que absorve e concentra, destruindo-a, a eolectividade natural do povo, e que provavelmente por causa disso mesmo, é tido per representé-la, como Saturno Tepresentava os seus filhos, 4 medida que os devo- rava, (Obras, VI, 322, 71). © Estado foi sempre o patriménio de uma classe privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classe nobi- lidria, ‘classe burguesa;— classe burocritiea e por fim, quando todas as outras classes esto enfraque- cidas, o Estado cai ou eleva-se, como se quiser, como uma méquina. (Obras, I, 228-227, 69). 29 1o & a autoridade, a dominag&o e o poder organiza ss nse possidoras ¢ suposiamente esclarecidas, sobre as massas. (Obras, VI, 86, 72)- ‘Be garante sempre o que encontra: a uns a su riqueza, # outros a sua pobreza; a uns a liberdade baseada na propriedade, a outros'a eseravatura, con sequéneia fatal da sua miséria. (Obras, III, 160, 72) core . todos os Estados, desde a sua existéncia s a teria Odo ontonndoe om ata perpen, 1a ae ee close gue open aula, a a re ee datado etn, 6. eee um dle, seo onto e tora saan tre te concrete esa fla ane tando, todos os dias, 0 seu poder, tanto no int ior, Lando, toe iy to fo extra, co 0 poderio dos seus visinhos, — dite repeal eri ee eat dee mumente do seu poder Heaptgto da Hberdade interior eda justica exterior. bras, TI, 61-62, 70). : Oo or taulta perfeita que ae, 0b o ponto ao ats Rica de tatao, a organic a edueagdo ¢ da instrugéo popular, da censura¢ da policia, o Estado s6 est seguro da sua existén enquanto tiver, para o defender contra 0s inimigos oquant iver, Pam osconentamento da populate, uma forca armada. (Obras, IV, 475, 72). Meee Sates nomen, dete 4 do ses soit hati sce gata du Merergula il tar, 6 de tal ordem, que eles tém necessidade io sa ta Sutcdnde ele do, fov 0 car sme as trae eg embra fala a criadagem, todos esses ornamentos Site rore § geataee aves que dacingur ob eet ae ale eee patios oe anh jue ocupam grande parte da sua existéncia, fé-los- ato ‘eémicos se nfo fosse o seu ar ameacador = Ra ome a aa nrobundamente do due 30 pensa, da sociedade. Esta engragada farpela e as mil ceriménias pueris no meio das quais se passa a sua vida, somadas aos seus exercicios quotidianos, eujo ‘inico objectivo & a arte da matanca e da des. truigéo, seriam profundamente humilhantes para homens que nfo tivessem perdido o sentimento da dignidade humana. Eles morreriam de vergonha se, por uma sistemética perversio das ideias, nao aca” ‘bassem por se tornar vaidosos. Para néo se des- prezarem a eles préprios, eles necessitam de despre- zar todos os que nfo émpunham um sabre, nem usam farda, Acrescentem ainda, a morte de todo 0 pensamento original, no meio desta existéncia art ficial e rotineira e destas ocupacées monétonas, uni formes, maquinais, 0 esmagamento da vontade indi- lual por uma disciplina implacivel. Deixam de ser homens para se tornarem soldados,”sio autématos arregimentados, numerados e possuidos por uma vontade que hes & estranha. A’ obediéneia passiva a maior virtude, e um devotamento cego a0 chefe, de quem eles so 05 autématos e os escravos, constitul toda a sua honra. £ o cimulo da infami Dominados por um regulamento despético, eles acabam por ter horror a tudo o que sente, tudo 0 ue quer, tudo 0 que se move livremente. ‘Todo 0 Pensador’é um anarquista aos seus olhos, as exi- géncias de liberdade so uma revolta, e naturalmente, querem impor a toda a sociedade as regras de ferro, disciplina brutal e a ordem estapida, da qual eles préprios sio vitimas. ‘A Deus néo agrada que haje entre os militares de profisséo alguns homens inteligentes, instruidos, © até por vezes, apesar de muito raramente, homens sinceramente liberais. Mas j 0 disse, estas 6 podem ser excepeées, anomalias como se encontram em todos os meios possiveis ¢ que, como diz 0 provérbio, 86 confirmam a regra. Um militar inteligente, que nao se contenta com as ideias que Ihe dao a ciéncia ¢ a moral da guerra, gosta de pensar livremente sobre todas as coisas e sufoca no cireulo estreito da rotina das ocupagées militares. Se ama. verdadeiramente iberdade, tem de detestar disciplina que faz dele um eseravo; se esta closo da sua dignidade humana, deve desprezar o que chamam honra e que eu chamaria 0 ponto de honra. Enfim, se ele & since- ramente amigo do seu povo e se € inteligente, escla- tecido © honesto consigo proprio, tem de compreen- Ger que, pela sua posi¢do, 6 0 mais perigoso, o mais ‘opressivo eo mais ruinogo inimigo, de si mesmo; Sentimentos, pensamentos o tendéncias, isso s6 faz dele tum péssimo militar. Pois, para exercer bem a sua. profissio € preciso respeiti-la ¢ amé-la, ¢ no se poderia gostar do servico militar sem detestar 0 povo, (Nettlau, 10-11, 67 ou 68). . hoje assentamos na absoluta necessidade de destruir 08 Estados ou, se se quiser, na, sua completa f radical transformacao, querendo dizer com isto que, deixando de ser forcas centralizadas ¢ organi- Zadas de cima para baixo, tanto pela violéncia como pela autoridade dum prinefpio qualquer, eles reor- Banizam-se,— com liberdade absoluta para todas as partes. (Obras, 1, 195-158, 67). .. énecessirio reconhecer que, depois das lutas sangrentas da Idade média, o jugo do Estado preva- Teceu cont todas as revoitas populares, e que com excepedo da Holanda e da Suica, ele estabeleceu-se triunfante em todos os paises’ do continente da Purefins as massas? Th preciso reconhecé-lo, deixa- ram-se desmoralizar profundamente, enervar, j& para. nao dizer castrar, pela acgio deletéria da civilizacto do Estado, Exmagadas, humilhadas, contrairam 0 hébito fatal da obediéncia e da resignacdo cegt tendo-se transformado, por isso, em imensos rebi 32 nhos separados e encerrados artificialmente, para major comodidade dos seus exploradores. Sei muito bem que os sociélogos da escola do Sr. Marx, como o Sr. Engels, ainda vivo, como 0 Sr. Lasalle, por exemplo, me objectaréo que 0 Estado nunca foi a causa desta miséria, desta degra- dacio e deste servilismo das massas; que a situacdo miserivel das massas e 0 poder despético do Estado foram, pelo contririo, tanto uma como outra, os efeitos de uma causa mais geral, os produtos duma fase inevitével do desenvolvimento econdmico da sociedade, duma fase que, do ponto de vista historico, constitui um verdadeiro progresso, um grande pass em direeeio ao que eles chamam a revolugéo social. Lassalle ‘vai ao ponto de declarar bem alto que a derrota da formidivel revolta dos eamponeses no século XVI, na Alemanha,—derrota deplorivel, se © foi, e da qual data a escravatura secular dos Ale- mies —, e 0 triunfo do Estado despotico ¢ centra- lizado que foi a sua consequéncia necesséria, cons- tituiram um verdadeiro triunfo para esta revolucio; Porque os camponeses, dizem os marxistas, so 08, representantes naturais da reaccio, enquanto que 0 Estado militar e burocritico moderno— produto acompanhante obrigatério da revoluc&o social que, a partir da segunda metade do século XVI, eomecou a transformacdo lenta, mas sempre progressiva, da antiga economia feudal e terrestre em produgio de riquezas, ou, 0 que quer dizer a mesma coisa, em exploragio do trabalho popular pelo capital — foi uma condigéo essencial desta revolugio. Parece que o Sr. Engels, impelido pela mesma lbégica, disse, numa carta enviada, este ano, a um os nossos amigos ('), sem a menor ironia, e pelo (Garo CoFero (Note do trader kone, 33. contririo muito a sério, que tanto Bismark como o rei Victor Manuel prestaram grandes servigos Tevolugio, tendo criado, cada um deles, a grande centralizagio politica dos seus respectivos paises... ‘Materialistas e deterministas, assim como 0 proprio Sr. Marx, também conhecemos 0 encadea- mento fatal dos factos econémicos ¢ politicos na histéria. Conhecemos bem a necessidade, o carécter inevithvel de todos os acontecimentos, mas néo nos inclinamos indiferentemente diante deles, e sobretudo no os admiramos e aplaudimos quando eles se ‘mostram em oposigio flagrante com o fim supremo da histéria, com o ideal essencialmente humano que ‘3e encontra, sob formas mais ou menos manifestas, nos instintos, nas aspiragdes populares e sob os sim- bolos religiosos de todas as épocas, porque é inerente Avraga humana, a mais soclivel de todas as racas ‘animais. Este fim, este ideal, nunca tao bem conhe- ido como hoje, pode-se resumir nestas palavras: &0 triunfo da humanidade, é a conquista e a execucdo completa da liberdade ¢ do pleno desenvolvimento ‘material, intelectual e moral de cada wm, pela orga- ‘nizagho absolutamente espontdnea ¢ Tivre da solida- riedade eoondmica e social, o mais completa possivel, entre todos os seres humanos que vivem na terra ‘Tudo 0 que, na histéria ,estiver de acordo com este fim, do ponto de vista humano— e nio podemos ‘ter outro, —é bom; tudo o que lhe for contrério, mau. Sabemos muito bem que, o que nés chamamos deme mal, s80 sempre, tanto um como outro, os resultados naturais de causas naturais e, por isso, ‘um 6 tao inevitivel como o outro. Mas como, naquilo a que se chama propriamente natureza, reconhece- ‘mos muitas necessidades que estamos poco dispostos a louvar, por exemplo a necessidade de morrer com aiva depois de se ser mordido por um co raivoso, do mesmo modo, nesta continuagio imediata da ‘Vida natural a que se chama histéria, encontramos muitas necessidades que achamos muito bem mais Gignas de maldigio do que de béngdo, e que jul- 3 gamos dever cenaurar com toda a energia de que somos, capazes, no interesse da nossa moralidad tanto individual como social. —— __. Considero como um facto perfeitamente natural, légico, e consequentemente inevitavel, que os cristios, que eram cretinos por graca de Deus, tenham ani: quiledo, com 0 santo furor que nés conhecemos, as bibliotecas dos pagéos, todos os tesouros de arte, filosofia e ciéncia antiga. Mas &me impossivel per- ceber quais as vantagens que resultaram disso para ‘© nosso desenvolvimento politico e social. Estou até disposto a pensar que fora desta progressio fatal dos factos econémicos na qual, se acreditarmos no Sr. Marx, € preciso procurar, excluindo todas as outras consideracdes, a causa tinica de todos os factos intelectuais e morais produaidos na histéria, — estou sinceramente disposto a pensar que este’ acto de santa barbérie, ou melhor, esta longa série de actos barbaros ¢ de crimes que os primeiros cristios, divinamente inspirados, cometeram contra o espirito wumano, foi uma das ‘eausas principais da degra- tumano, fl ume de cyan prints da, Sor ‘bém da escravizagio politica e social, que preenchem esta sucesso de séculos nefastos a que se chama Tdade Média. Estejam certos que, se os primeiros cristios néo tivessem destruido as bibliotecas, os museus ¢ 08 templos da Antiguidade, nés hoje no estariamos condenados a combater estes horriveis odiosos absurdos, que ainda obstruem os oérebros & ponto de nos fazer duvidar, algumas vezes, da Possibilidade dum futuro humano. Protestando sempre contra determinados factos ealizados na histéria e dos quais também reconhego © cardcter inevitavel, paro diante do esplendor das repiblicas italianas 'e do magnifico despertar do génio humano na época de Renascenca. Em seguida Vejo aproximar-se os dois génios do mal, tio antigos 35 como a histéria, as duas gibdias que tém devorado, até aqui, tudo o que a hist6ria produziu de humano ¢ de belo. Séo a Igreja e 0 Estado, 0 Papado ¢ 0 Império. Rivais eternos e aliados insepariveis, ve- jo-os reconciliarem-se, abracarem-se, ¢ devorarem, Suprimirem e esmagarem a infeliz e bela Itflia, con- denando-a a trés séculos de morte. Pois bem, conti- nuo a achar tudo isto muito natural, légieo, inevi ‘tavel, mas no menos abomindvel, e amaldicoo tanto © Papa como o Imperador. ‘Passemos & Franca. Depois duma luta que durou um século, o catolicismo, protegido pelo Estado, triunfou finalmente sobre o protestantismo. Pois bem, nfio bf ainda hoje, em Franca, politicos ¢ historiadores da escola fatalista que, dizendo-se revoluciondrios, consideram esta vitdria do catoli- cismo— vit6ria sangrenta e desumana —como um verdadeiro triunfo para a Revolugao? Eles consi- deram que o catolicismo era entéo o Estado, a democracia, enquanto que o protestantismo repre- sentava a revolta da aristocracia contra o Estado © ‘consequentemente contra a democracia. # com sofis- mas destes, totalmente idénticos aos sofismas mar- xistas, que, também cles, consideram os triunfos do Estado como os da democracia social, —é com estes absurdos, tio desagradaveis como revoltantes, que perverteram o espfrito e o senso moral das mas: sas, habituando-as a considerar os seus exploradores, sanguinérios, os seus inimigos seculares, 0s seus tiranos, os chefes ¢ os servidores do Estado, como érgios, representantes, her6is, servidores dedicados da sua emancipacio. Reconhecendo a inevitabilidade do facto reali- zado, nio hesito em dizer que o triunfo do catoli cismo em Franca, no século dezasseis e dezassete, foi uma grande desgraca para a humanidade, e que tanto a Saint-Barthélemy como a revogacio do édito de Nantes, foram factos tdo desastrosos para a Franca como o foi, posteriormente, a derrota e 0 massacre do povo de Paris. Cheguei a ouvir france- 36 ses muito inteligentes ¢ muito estimad tata derrota do protestantisms om Franca pas eater fe essencialmente evolusioniria do pave frances O protestantismo, diaiam, 26 fol um mela revel, precisavamos da revolucio completa, foi por isso que a nagdo francesa nao quis e nao’ pode parar Reforma. Ela preferiu ‘continuar eatolica até 20 ‘momento em que pudesse proclamar o atefsmo; ¢ fol por isso que ela suportou com resignacio téo erflta, Uo esta, os horrores de Siant-Barthélemy @a tirania no menos abomindv cae indvel dos executores do stes patriotas estiméveis parece que nfo quo- rem considerar uma coisa, © que um pove que, 3b qualquer pretexto, sofre a tirania, perde neccasa- riamente 0 hébito salutar de se revoltar e até 0 proprio instinto de revolta, Perde o sentimento da lberdade, ¢ a vontade, 0 hibito de ser livre, e quando um povo perdeu’ tudo isto, torna-se necessa- Tlamente, nio 86 por condiges exteriores, mas inte. riormente, na prépria esséncia do seu ser, um povo escravo. (Obras, IV, 454-463, 72). 5 A liberdade © 0 governo dos methores: hhomens virtuosos, sablos "Nore: A cigncia e a vide quem poderia ser, com efeito, © guardiéo o excel aa Sf fn 9 ari « blica contra as paixdes indesejiveis de cada um? “sendo cada um’ declarado intapes de saietin? Bi préprio e de reforgar, tanto quanto for necensirio Ivagio comum, 2 sua propria Iiberdade, ‘aturalmente dirigida pare o mal. —Numa palavre, vem executaria as funeies do Estado? : 's melhores cidadios, dir-se-, os mais inteli gentes e mals virtuosos, os ue conipreenderert me. 37 Ihor do que os outros os interesses comuns da sociedade ea necessidade e o dever de cada um de hes subordinar todos os interesses particulares. © preciso, com efeito, que estes homens sejam tio inteligentes como virtuosos, pois se 86 fossem inte- ligentes e sem virtude poderiam servir-se da causa plblica para o seu interesse privado, e se fossem Yirtuosos sem inteligéncia arruini-la-iam infalivel- mente apesar de toda a sua boa £6. # preciso, pois, para que uma repiblica nfo pereca, que possua em Yodas as épocas um niimero considerével destes homens... : ‘His uma condi¢ao que nfo se realiza nem facil- mente, nem frequentemente... Vulgarmente, nas regides do poder, é a insignificineia, € a usura que Gomina e frequentemente, como vimos na histéria, 0 negro e o vermelho, isto é, os vicios e a violéncia sanguindria que triunfam. (Obras, 1, 166-167, 67). ‘Suponhamos que numa sociedade ideal, em qualquer época, existe um niimero suficiente de Homens igualmente inteligentes e virtuosos para executarem dignamente as principais fungoes do Estado. Quem os procuraré, quem os encontraré, quem os distinguiré e quem poré nas suas maos te rédeas do Estado? Apropriar-se-fo do poder, eonscientes da sua inteligéncia e da sua virtude; ‘assim como 0 fizeram dois sibios da Grécia, Kléobulo ¢ Périandro, aos quais, apesar da sua suposta grande Sabedoria, os Gregos’ nao deixaram de considerar odiosos tiranos? Mas de que modo se apoderario Go poder? Seri. pela persuasio ou pela forca? No primeiro caso observaremos que s6 se persuade bem Quando se esti bem persuadido e que os melhores flomens so precisamente os que esto menos per- suadidos do seu proprio mérito; se eles tiverem eonseiéneia disso Tepugna-lhes geralmente impd-lo foe outros, enquanto que os homens maus ¢ medio- eres, sempre satiafeitos consigo préprios, nao expe- rimentam nenhuma repugnineia em se glorificarem. ‘Mas suponhamos até que o desejo de servir a patria, 38 tendo ealado nos homens com um real mérito esta excessiva modéstia, og faz apresentarem-se ao sufri- gio dos seus concidadios —seréo sempre eles acel- tes e preferidos pelo povo em vex dos intriguistas ambiciosos, eloquentes ¢ hibeis? Se, pelo contrario, eles se quiserem impor pela forca, & necessirio, meiramente, que disponham duma forga suficiente para vencer a resisténcia dum partido inteiro. Che- garo ao poder pela guerra civil ao fim da qual haveré um partido que néo se reconcilion mas que esti vencido e seré sempre hostil. Para o conter, serio obrigados a utilizar a forea. J& nfo seré pois uma sociedade livre, mas um Estado despético ba- seado na violéneia eno qual taivez encontrem coisas que vos pareceréo maravilhosas — mas nunca a Md ra se ficar na ficgio do Estado livre prove- niente dum contrato social, é-nos necessirio, pols, supor que a maioria dos cidadios terao tido sempre prudéncia, o discernimento e a justica necessérias ara por & cabega do governo os homens mais dignos e mais capazes. Mas, para que um povo mostre nio Juma 6 vez e por acaso, mas sempre, em todas as eleigées que tenha de fazer durante a sua existéncla, este discernimento, esta justica, esta prudéncia, serd necessirio que tenha adquirido um tio alto grau de moralidade e cultura, que deixa de necessitar de um governo ¢ dum Estado. Um tal povo s6 tem necessidade de viver, dando livre curso aos seus ins- tintos: a justica e a ordem piiblicas surgiréo dele proprio e, naturalmente da sua vida, e 0 Estado, deixando de ser a providéncia, o tutor, 0 educador, o regulador da sociedade, renunciando a todo o poder epressivo e ficando com o papel subalterno que lhe destina Proudhon, jé nio seri senfo um simples @seritério de negécids, uma espécie de banco de eré- Alto pablico ao servico da sociedade, davida, uma tal organizacéo politica, ou antes uma tal redugio da accéo politica, em favor da Iiberdade da vida social, seria um grande bene- 39 ficio para a sociedade, mas cla nio satisfaria de modo algum os partidirios do Estado. B-lhes abso- lutamente necessério um Estado-providéncia, um Estado-director da vida social, distribuidor da jus- tiga e reguiador da ordem piibliea. Quer dizer, quer © invoquem ou no ¢ ainda que se chamem republi- canos, democratas ou mesmo socialistas, — élhes sempre necessério um Povo mais ou menos ignorante, insignificante, ineapaz ou, para chamarmos as coisas pelo seu nome, um povo mais ou menos canalha para governar: com o fim, sem divida, de que, fazendo notar bem o seu desinteresse e modéstia, possam conservar eles préprios os primeiros lugares, a fim de terem sempre ocasiio para se dedicarem & causa iblica e assim seguros da sua dedicagio virtuosa ¢ da sua inteligéncia exclusiva, guardides privile- giados do rebanho humano, impelindo-o sempre para Seu préprio bem e conduzindo-o a salvacio, o possam também explorar um pouco. (Obras, I, 168 a 171, 67). Imaginem uma academia de sibios, composta pelos representantes mais ilustres da ciéncia; supo- mham que esta academia esté encarregada da legis- lagdo, da organizagio da sociedade, e que, 50 se inspirando no mais puro amor da verdade, ela apenas Ihe dita leis perfeitamente conformes com as mais recentes descobertas da ciéncia. Pois bem, eu afirmo que esta legislagio ¢ esta organizagio serio uma monstruosidade, por varias razdes. A primeira, & que a ciéncia humana é sempre necessariamente imperfeita, e que, comparando 0 que ela deseobriu ‘com o que the falta descobrir, pode-se dizer que ela ainda est no seu bergo. De modo que se quisessemos forgar a vida pritiea, tanto colectiva como individual, eos homens se confirmassem estritamente, exelu- sivamente com as tltimas didivas da ciéncia, con- denarfamos tanto a sociedade como os individuos a sofrerem 0 martirio numa cama de Procuste, que ‘acabaria em breve por os deslocar e abafar, conti- nuando sempre a vida inifinitamente maior do que 490 A segunda razo 6 a seguinte: uma sociedade que obedecesse a uma legislagéo proveniente duma academia cientifica, nao porque nela estivesse contido © carfeter racional, em cuyjo caso a existéncia da academia se tornaria initil, mas porque esta legis- lagio, emanando desta academia, se impunha em nome de uma ciéneia que seria venerada sem se com- breender, — una socigdade dostas, nfo seria de ho- ‘mens, mas de brutos, Seria uma segunda edicio desta pobre repiiblica do Paraguai que se deixou governat tanto tempo pela Companhia de Jesus, Uma socie- dade assim no tardaria a descer ao mais baixo grau do idiotismo. (Obras, TH, 51 a 53, 72), EBxiste realmente em todas as coisas um lado, ou se quiserem uma espécie de ser intimo que nio 6 inacessivel, mas que é imperceptivel para a ciéncia, ‘Nio se trata de modo algum do ser intimo de que nos fala o Sr. Littré juntamente com todos os meta- fisicos © que constituiria segundo eles, 0 ser das coisas, eo porqué dos fendmenos; & pelo contrario © lado menos essencial, 0 menos interior, 0 mais exterior, e 80 mesmo tempo o mais real ¢ 0 mais passageiro, a mais fugitiva das coisas e dos seres: € a sua materialidade imediata, a sua verdadeira individualidade, tal qual se apresenta unicamente 0s nossos sentidos, © que nenhuma reflexio do espirito seria capaz de reter, nem nenhuma palavra seria capaz de exprimir. Repetindo uma observacdo muito curiosa que Hegel fez, julgo eu que J falei, pela primeira ver, desta particularidade da lin: uagem humane de s6 poder exprimir generalidades _nunea a existéneia imediata das coisas, nesta crueza realista em que a impressio imediata 6 caj ‘ada’ pelos ‘nossoa entidos, Tudo o que puderes dizer ‘sobre uma coisa para a caracterizar, todas as propriedades que Ihe atribuam ou que The encon- trem sero determinagdes gerais, aplicdveis em graus a. diferentes e numa quantidade inumerivel de diferen- tes combinagées, a muitas outras coisas. As deter- minagSes e descrigdes mais detalhadas, mais fntimas mais materiais que poderao fazer sero ainda determinagSes gerais e nunca individuais. A indivi- ualidade duma coisa néo se exprime. Para a indicar ‘tém ou de a trazer & presenga do vosso interlocutor, mostrando-lha, fazendo com que ele a ouga e palpe; tém de determinar 0 seu lugar no espago ¢ no tempo ¢, também, as relagées com as outras coisas jé deter- minadas e conhecidas. Ela foge e escapa a todas as outras determinagées. Mas também foge ¢ escapa si propria, pois ela nfo 6 outra coisa senio uma transformagio incessante: ela 6, ela era, ela jf nfo 6 on até ela 4 6 outra coisa. A’sua realidade cons- tante 6 desaparecer ou transformar-se. Mas esta realidade constante 6 o seu aspecto gerai, a sua lei, (© objecto da ciéncia. Hsta lei, tomada ¢ considerada & parte, no é sendo uma abstraceio, desprovida de qualquer caricter real e de toda a existéncia real. Ela 26 existe realmente e s6 se torna uma lel efectiva neste processo real e vivo de transformagées ime- diatas, fugitivas, imperceptiveis e ineffveis, Tal é @ dupla natureza, @ natureza contraditéria das co sas: ser realmente, no que incessantemente deiva de ser, € nunca existir realmente, no que se mantém geral ¢ constante no meio das suas transformagdes perpétuas ‘A cigacia, que 6 se relaciona com o que é exprim{vel e constante, isto é com as generalidades mais ou menos desenvolvidas e determinadas, perde aqui o seu latim e baixa a sua bandeira diante da vvida, pois 86 ela se relaciona com a parte viva e sen- sivel, inacessivel e inefavel, das coisas. Tal & 0 real e, pode-se dizer, o tinico limite da ciéneia, um limite verdadelramente intransponivel... A ciéncia 96 trabalha com sombras... A realidade viva esca- pashe, e 86 se mostra a vida, que, sendo também la fugitiva e passageira, pode discernir e discerne 2 efectivamente tudo o que vive, isto é tudo o que passa ou que foge. (Obras, IIT, 393 a 395, 70). ‘Como seres vivos, discernimos e sentimos esta realidade, ela envolve-nos ¢ nés sofremo-la e exer- cemo-la ns préprios, muitas vezes sem o sabermos, ‘a todo 0 momento, Como seres pensantes, abstraimo- -nos forgonamente dels, pols 0 nosso préprio pensa- mento 86 comega com esta abstracgo e por cla. (Obras, TIT, 399, 70) - A ciéncia néo pode sair da esfera das abstrac- Ges. Neste aspecto, ela & infinitamente inferior & arte, que, também ela, s6 se relaciona propriamente ‘com os tipos gerais e situagdes gerais, mas que, por um artificio que Ihe & peculiar, sabe incarné-los em formas que, por nfo serem vivas, como na vida real, ndo provocam menos, na nossa imaginagio, o senti- ‘mento ou a lembranca desta vida; ela individualiza, de qualquer modo, os tipos e situagdes que concebe, e, por estas individualidades sem carne nem oss0, e, como tais, permanentes e imortais, que ela tem @ necessidade de criar, lembra-nos as individualidade vvivas e reais, que aparecem e desaparecem aos nossos olhos. A arte & pois, de qualquer modo, o regresso da abstraccdo & vida. A ciéncia 6, pelo contrario, 0 sacrificio perpétuo da vida fugitiva, passageira, mas real, sobre o altar das abstraccdes eternas. "A ciéncia é tao pouco eapaz de discernir a indi- vidualidade dum homem como a de um coelho, Quer dizer que ela é tio indiferente com uma como com a outra, Néo significa que ela ignore o princfpio da individualidade. Ela concebe-a perfeitamente como Prinefpio, mas nfo como facto. la sabe muito hem que todas as espécies animais, incluindo a espécie 96 tém existéncia real num nimero inde finido de individuos, que nascem e que morrem, tomando lugar em ‘individuos novos igualmente Passageiros. Hla sabe que, & medida que se sobe 3 nas espécies animais até as espécies superiores, 0 principio da individualidade determina.se melhor, aparecendo os individuos mais completas e mais livres... Ela sabe, quando néo esté absolutamente nada vieiada pelo doutrinarismo quer teolégico, quer metafisico, quer politico e juridico, quer até mesmo por um orgulho estreitamente cientifico, e quando 34 no € surda aos instintos e as aspiracdes espon- Yaneas da vida, ela sabe, e é essa a sua iiltima Palavra, que o respeito do homem é a lei suprema da humanidade ‘A ciéneia sabe tudo isso, mas ela nfo vai nem pode ir além disso. Constituindo a abstraccio a sua natureza, ela pode conceber muito bem o prin- cipio da individualidade real e viva, mas nio pode fazer nada com 0s individuos reais e vivos. Ela ‘ocupa-se dos individuos em geral, no do Pedro e do Joaquim, nem deste ou daquele individuo, que nfo existem nem podem existir para ela, Estes in viduos ndo so para ela, mesmo uma s6 ver, senio abstracgées. (Obras, III, 92 0 94, 71) A cincia inelui o pensamento da realidade, néo a realidade em si mesma; o pensamento da vida, néo a vida... A ciéneia & imutavel, impessoal, geral, abs- tracta, insensivel... A vida 6 sempre fugitiva e passa- geira,'mas também sempre palpitante de realidade e de individualidade, de sensibilidade, de sofrimentos, de alegrias, de aspiragées, de necessidades e de pai- xbes. B 86 ela que cria. espontaneamente, as coisas e todos os seres reais. A ciéncia nfo cria nada, ela 86 constata e reconhece as criagdes da vida. I sempre que os homens da ciéneia, saindo do seu mundo abs- tracto, se ocupam da criaggo viva no mundo real, tudo 6 que propdem ou criam & pobre e ridicula. mente abstracto, sem sangue nem vida, morrendo a nascenca, semelhante ao homunculus ‘criado por “ Wagner, 0 diseipulo pedante do imortal doutor Fausto, Disto resulta que a tinica missao da ciéncia 6 eselarecer a vida © nio governé-la. (Obras, TIT, 88 a 90, 72). ..n6s sabemos que a soviologia 6 uma ciéncia recém-nascida, que ainda esté & procura dos seus elementos... (© que seria uma sociedade que s6 nos apre- sentasse a adaptacio a pritiea ou a aplicacio duma ciéneia, mesmo que esta ciéncia fosse a mais perfeita ea mais completa do mundo? Uma miséria. Imagi- nem um universo que 86 contivesse 0 que 0 espirito humano até hoje apereebeu, reconheceu e compren- deu,—nio seria isto um miserével easebre ao lado do universo que existe? ‘Nés respeitamos inteiramente a ciéncia e consi- deramo-la como um dos mais preciosos tesouros, como uma das glérias mais puras da humanidade. Por sua causa o homem distingue-se do animal, hoje seu irmio mais novo, outrora seu antepassado, torna-se capaz de liberdade. Portanto, também & necessirio reconhecer os limites da ciéneia e de Ihe Tembrar que ela no é 0 todo, & #6 uma parte, e que © todo é a vida ‘A vida, encarada com este sentido universal, deixa de ser a aplicagdo duma teoria humana ou mesmo divina, é uma criagio, diriamos de boa von- tade, se nfo receéssemos dar lugar a um mal-enten- dido’ com esta palavra; e comparando os povos, eriadores da sua historia, com artistas, nés pergun- tariamos se os grandes poetas esperaram, alguma vez, que a ciéncia descobrisse as leis da criacio poética para criarem as suas obras-primas. Bsquilo © Sofocles néo escreveram as suas magnificas tra- gédias muito antes de Aristételes ter decalcado sobre as suas proprias obras a primeira estética? Sha- kespeare deixou-se alguma vez inspirar por alguma teoria © Beethoven alargou alguma vez as bases 5 do contraponto para ciar as suas sinfonias? E que seria uma obra de arte produzid segundo os pre coitos da mais bela estética do mundo? Uma vez ‘mais, uma coisa miserdvel. Mas os povos que eriam a sua histéria néo séo, provavelmente, nem mais pobres de instinto, nem’ mais fracos criadores, nem mais dependentes dos Srs. sibios do que os artistas! (Obras, I, 74 0 77, 67). A auténtica ciéncia da hist6ria, por excmplo, ainda no existe ¢ s6 hoje comecamos a descortinar as condigdes imensamente complicadas desta ciéncia. Mas suponhamo-la realizada: 0 que & que ela n0s poderé dar? Hla reproduziré 0 quadro racional fiel do desenvolvimento natural das condieées gerais, tanto materiais como ideais, tanto econdmicas como politicas e sociais, religiosas, filoséficas, estéticas cientificas, das sociedades que tiveram uma historia, Mas este quadro universal da civilizagio humana, por muito detalhado que seja, conteré. unicamente apreciagdes gerais e, por isso, abstractas, querendo dizer que os milhares de individuos que constitufram ‘a matéria viva e sofrodora desta historia, simulta- neamente triunfante e ligubre, —triunfante sob 0 ponto de vista dos seus resultados gerais, ligubre sob 0 ponto de vista da imensa heeatombe de vitimas ‘humanas # igualmente suportivel... Mas a’aris- tocracia da inteligéncia diz-nos: «Nao sabem nada, nao compreendem nada, so uns burros, e eu, homem inteligente, tenho que ‘vos por a albarda ¢ condu- zir-vos.» Isto 6 intolerdvel. A aristocracia da inteligéncia, esta filha querida do doutrinarismo moderno, este ‘iltimo reftigio do 49 expirito de dominago que desde o comeco da histéria, afligiu © mundo e que constitui e sancionou todos os Estados, este culto pretencioso e ridiculo da inte- ligéneia reconhecida, 96 péde nascer no seio da bur- guesia. Ela tinha apolado o seu poder em dois argu- ‘mentos irresistiveis, dando-Ihe por base a violéncia, a forea do seu brago e a sancao da graca de Deus. Bla violava e a Igreja_abencoava,—era assim a natureza do seu direito. Esta unio intima da bruta- lidade triunfante com @ sancéo divina dava-lhe um grande prestigio e produzia nela uma espécie de vir- tude cavaleiresea que conquistava todos os coragies. ‘A burguesia, desprovida de todas estas virtudes de todas estas gracas, s6 teve para fundamentar © seu direito um argumento: 0 poderio muito real, mas muito prosaico, do dinheiro. 8 a negagio cinica de todas as virtudes: se tiveres dinheiro, por muito canalha e estiipido que sejas, tens todos 08 direitos; se nio tiveres um vintém, sejam quais forem os teus méritos pesoais, tu nfo vales nada. Eis aqui na sua frangueza rude, o prinefpio fundamental da bur- guesia, Parece-nos que um argumento destes, por muito forte que seja, nfo bastaria para o estabeleci- mento e sobretudo “para a consolidacéo do poder ‘burgués. A sociedade humana é constituida de tal modo que as piores coisas 6 se podem estabelecer nela com a ajuda de uma aparéncia respeitével. Daf nasceu o provérbio que diz que @ hipocrisia é uma homenagem que o vicio faz & virtude. As mais fortes brutalidades necessitam duma sangio. ‘Vimos que a nobreza tinha posto todas as suas prorrogativas sob a proteccdo da graca divina. A burguesia nfo podia recorrer a esta protecgio... Procurou-a na inteligéneia reconhecida. ‘Bla sabe muito bem que a principal base, e até se poderia dizer a nica, da sua forca politica actual, é a sua riqueza; mas, nfo querendo nem podendo confessé-lo, ela procura explicar esta forga pela superioridade da sua inteligéncia, nfo natural mas cientifiea; para governar os homens, acha ela, & preciso saber muito e hoje s6 ela 6 que sabe. (Obras, V, 129 a 132, 69). © governo da ciéneia e dos homens de ciéncia, mesmo que se chamassem positivistas, discipulos le Auguste Comte ou até discfpulos da Escola dou- trinéria do comunismo alemfo, s6 pode ser impo- tente, ridiculo, desumano, cruel, opressivo, explora- dor, maléfico. 'Pode-se dizer dos homens da ciéncia, como tais, o que eu disse dos teblogos e dos meta- fisicos: néo tém nem senso, nem coracéo para 03 seres individuais e vivos. Nem sequer se pode censu- Hi-los, pols sfo consequéncia natural da sus pro- isso... ‘Nao so exclusivamente homens de ciéneia, eles também sao mais ou menos homens da vida, De qualquer modo, é melhor no nos fiarmos muito nisso, e, se podemos estar mais ou menos certos que nenhum sébio ousaré, hoje, tratar um homem como trata um coelho, & de recear sempre que equi- pas de sébios, se tanto Ihes permitirem, submetam 0s homens vivos a experiéncias cientificas sem divida ‘menos cruéis, mag que nfo seriam menos desastrosas para as suas vitimas humanas. Se os silos nfo Podem fazer experiéneias no corpo dos homens indi- Viduais, eles exigirio fazé-las no corpo social e eis 0 gus, 6 Aevomivio impedir totalmente, (Obras, I, A cigncia, quando no humaniza, deprava. Ela refina o erime ¢ torna mais te a cobardia. Um eseravo sibio é um doente incurdvel. Os sibios opressores, carrascos, déspotas, estio sempre coura- gados contra tudo o' que se chama humanidade e Pledade. Nada os demove, nada os assusta nem o8 toca, excepto os seus sofrimentos e os seus perigos. © despotismo sébio 6 mil vezes mais desmoralizante, mais perigoso para as suas vitimas do que o despo- tismo que é s6 brutal. Este s6 tem influéneia sobre 1 © corpo, sobre @ vida exterior, sobre a riqueza, sobre as relagées, sobre os actos. Ele no pode penetrar na fortaleza interior, porque nfo tem a chave. Fal- ta-lhe o espirito para esmagar o espirito. O despo- tismo inteligente e sfibio, pelo contrario, penetra na alma dos homens e corrompe os seus pensamentos na sua origem. (Nettlau, 605, 72). Repelirei eu qualquer autoridade? Longe de ‘mim pensar isso. Quando se trata de botas, recorro & autoridade do sapateiro; se se trata duma casa, dum canal ou dum caminho de ferro, consulto a do arquitecto ou do engenheiro. Para cada ciéncia espe- cifica dirijo-me a este ou Aquele sfbio. Mas nao deixo imporem-me nem o sapateiro, nem o arquitecto, nem © sSbio. Eu eseuto-os livremente e com todo 0 res- peito que me merecem a sua inteligéncia, o seu carfeter, a sua sabedoria, reservando no entanto 0 meu direito incontestivel de critica e de controlo. ‘Nao me contento em consultar uma finica autoridade ppecialista, eu consulto varias; comparo as suas opinides e ‘escolho a que me parece mais justa. Mas nfo reconhego nenhuma autoridade infalivel, mesmo nas questies mais especfficas; por isso, por muito respeito que eu possa ter pela’ honestidade e pela sinceridade deste ou daquele individuo, nunca terei £6 absoluta em ninguém. Uma fé destas seria fatal para a minha razdo, para a minha liberdade © até para o sucesso dos meus empreendimentos; ela transformar-me-ia imediatamente num eseravo estipido e num instrumento da vontade e dos inte- esses dos outros. ‘Se me inclino diante da autoridade dos espe- cialistas e se me declaro pronto a seguir, em certa ‘medida, pelo tempo que me pareca necessério, as suas indicagées e até a sua direceio, 6 porque esta auto- ridade nfo me & imposta por ninguém, nem pelos homens, nem por Deus. De outro modo repeli-los-ei com horror e mandarei para o diabo os seus conse- 52 thos, a sua direc¢o ¢ a sua ciéncia, com a certeza de que me fariam pagar pela perda da minha liber- dade e da minha dignidade os restos de verdade humana, envolvidos com muitas mentiras, que me poderiam dar. Inclino-me diante da autoridade dos especialistas porque ela me é imposta pela minha razio. Tenho conseiéneia de s6 poder abragar em todos os seus detalhes e desenvolvimentos positivos uma peque- nissima parte da ciéncia humana, A maior inteli- géncia no chegaria para abragar o todo. Donde resulta, tanto para a ciénoia como para a indistria, a necessidade de diviso e de associagao do trabalho. Recebo e dou, tal é a vida humana. Cada um 6 uma autoridade dirigente e cada um € dirigido por sua vez. Entio nfo hi nenhuma autoridade fixa e cons- tante, mas uma troca continua de autoridade e subordinagto mituas, passageiras e sobretudo volun- as. ‘Esta mesma razio impede-me pois de reconhecer uma autoridade fixa, constante e universal, pois nio hi nenhum homem ‘universal, nenhum homem que seja capaz de abragar nesta riqueza de detalhes, sem @ qual a aplicacéo da ciéncia & vida de modo algum € possfvel, todas as eciéncias, todos os ramos de vida social. E, se uma tal universalidade se pudesse algum dia realizar num s6 homem, e se ele quisesse fazer-se prevalecer para nos impor a sua autoridade, seria preciso eliminar esse homem da sociedade, porque a sua autoridade reduziria inevitavelmente todos os outros & escravatura ¢ & imbecilidade. Nao penso que @ sociedade tenha de maltratar os homens de génio como o tem feito até aqui. Mas também nio enso que ela tenha de os engordar, nem de hes conceder sobretudo privilégios ou direitos de espécie alguma. (Obras, TI, 55 a 57, 72) © espirito do maior génio do mundo acaso 6 outra coisa senio 0 produto do trabalho colectivo, 53 tanto intelectual como industrial, de todas as gera- es passadas e presentes? Para nos convencermos disto, imaginemos este mesmo génio transportado desde a mais tenra infancia para uma ilha deserta; supondo que ele néo morre de fome, no que é que ele se tornaré? Um animal, um bruto que nem saber Pronunciar uma palavra é que por isso nunca. pen- sard; transportem-no para esta ilha com a idade de dez anos, no que é que ele se tornaré alguns anos, mais tarde? Ainda num bruto, que perderé o hébito de falar e que s6 conservaré da sua humanidade passada um vago instinto. Enfim transportem-no para I com a idade de vinte anos, trinta anos passados dez, quinze, vinte anos, tornar-seé esti- pido. Talvez invente qualquer religiéo nova! ‘© que é que isto prova? Prova que o homem mais bem dotado pela natureza s6 recebe faculdades, mas que estas faculdades permanecem mortas, s¢ ndo forem fertilizadas pela forte e benéfica accéo da colectividade. Diremos mais: Quanto mais favo- recido 6 0 homem pela natureza, mais recebe da colectividade; donde resulta que mais Ihe deve dar, com toda a justica. De qualquer modo, reconhecemos de boa vontade que ainda que uma grande parte dos trabalhos inte- Jectuais se possam executar melhor e mais depressa colectivamente do que individualmente, existe ‘outros que exigem o trabalho isolado. Mas o que € que se conclui daqui? Que os trabalhos isolados do génio ou do talento, sendo mais raros, mais preciosos ¢ mais ‘iteis do que os dos trabalhadores vulgares, deverdo ser melhor retribuidos do que estes ‘éltimos? E em que base, digam-me? Hstes trabalhos sero mais penosos do que os trabalhos manuais? elo contrario, estes wiltimos sio sem comparacéo mais penosos. 0 trabalho intelectual 6 um trabalho atraente, que tem a sua recompensa em si préprio e que no precisa de outra retribuigio. Tem uma outra na estima e no reconhecimento dos eontemporineos, na luz que Ihes di e no bem que Ihes faz. Voces rs que cultivam com tanta forga o ideal, senhores socia- listas, burgueses, no acham que esta recompensa vale bem uma cutra, ou preferiam que ele tivesse uma remuneragio mais sélida em dinhelro bem sonante? E aliés, ficariam muito embaragados se vos fosse preciso estabelecer as taxas dos produtos inte- lectuais do génio. Sio, como Proudhon observou ‘muito bem, valores inomensordveis: eles no custam nada, ou melhor, eles custam milhées. (Obras, V, 125 a 12%, 69). Esperemos todavia que a futura sociedade encon- trena organizacio verdadeiramente pratica e popular da sua forca colectiva o meio de tornar estes grandes génios menos necessérios, menos opressivos e mais benéficos para toda a gente. Pois é preciso munca esquecer a profunda frase de Voltaire: ; e, por uma consequéncia necesséria, declaram que o Ser real, a matéria, o mundo, era o Nada. Depois disto vém-nos dizer gravemente que esta matéria é incapaz de produzir nada, nem mesmo de se pr em movi- mento por si propria, ¢ por isso ela teve de ser eriada pelo seu Deus. (Obras, III, 24-25, 71). elas palavras material € maiéria, nos entende- mos a totalidade, toda a escala dos seres reais, con! cidos e desconhecidos, desde os corpos orginicos mais simples até & constitui¢éo e ao funcionamento do eérebro do maior génio: os mais belos sentimentos, ‘98 maiores pensamentos, os feitos heréicos, os actos de devogio, tanto os deveres como os direitos, tanto © sacrificio como 0 egoismo, tudo, até as aberragdes, transcendentes e misticas de Mazzini, do mesmo modo que as manifestagdes da vida orginica, as pro- priedades ¢ acgées quimicas, a electricidade, a luz, © calor, a atracgio natural dos corpos, constituem ‘203 nossos olhos tantas evolugées sem diivida dife- rentes, mas nio menos estreitamente solidarias, desta totalidade de seres reais a que chamamos matéria, (Obras, VI, 117-118, 7). [Mazeini}, voo8 nio se contenta, contudo, em eontestar © nosso atefsmo e 0 nosso materialismo, eonclui que no podemos ter amor pelos homens, nem respeito pela sua dignidade; que todas as gran- des coisas que em todos os tempos fizeram bater os coragées mais nobres... tém de nos ser completa- 86 mente estranhas, € que, arrastando ao acaso @ nossa existéncia miserével, rastejando mais do que an- dando, as tinicas preocupagdes que podemos conhecer 8 satisfacdo dos nossos apetites sensuais e gros- seiros. Se fosse outro a dizé-lo, chamar-Ihe-famos calu- niador desavergonhado. A voc8, mestre respeitado ¢ injusto, diremos que é da sua parte um erro deplo- ravel. Quer saber até que ponto é que nés gostamos de todas essas grandes e belas coisas de que nos recusa o conhecimento e o amor? Pois saiba que és as amamos ao ponto de fiearmos fatigados desgostosos por as Vermos suspensas eternamente do seu céu, que as roubou a terra, como tantos simbolos e promessas nunca realiziveis! J& nfo nos contentamos com a ficgéo destas coisas, nds quere- ‘mos a realidade. (Obras, VI, 115, 71). a lei moral da qual nés, materialistas e ateus, reconhecemos a existéncia tdo realmente como nfo © podem fazer os idealistas de qualquer época que seja, mazzinianos e nao mazzinianos, no é uma lei verdadeiramente moral, uma lei que s6 triunfa sobre as conspiragdes de todos 0s idealistas do mundo por emanar da propria natureza da sociedade humana, natureza essa na qual 6 preciso procurar as bases reais, néo em Deus, mas na animalidade. (Obras, ‘VI, 122, 72). ca, @ propria vida animal nfo é tio brutalmente material como os teolégicos, os idealistas consequen- tes e o proprio Mazzini so levados a crer: 0s animais cuja toda a existéncia se concentra exclusivamente na dupla paixio da digestio e da reproducéo per- teneem as espécies mais inferiores. Mas nas espécies mais desenvolvidas sob 2 influéncia da inteligéncia, nas que se aproximam do homem, encontrarao os germes de todas as paixdes do homem, sem exceptuar nenhuma, encontrardo o amor das criancas, 0 sen- 87 timento religioso, o sacrificio, a paixdo social, a devogio patriética e até um comeco de curiosidade cientifica. Sem davida que a preocupagio do ventre e do amor sexual desempenham af um papel domi- nante, mas nao desempenharao também um papel senio dominante, pelo menos excessivamente impor- tante no préprio mundo humano? Para se conservar, tanto o animal como o indi- viduo, tem de comer, e como espécie, tem de se reproduzir. Eis a primeira base da vida real, comum a todas as espécies animais desde as mais inferiores, inclusivamente, até ao homem. Todas as outras facul- dades e paixdes 56 se podem desenvolver com a condic&o destas duas necesidades primordiais esta~ rem satisfeitas. £ a lei soberana da vida a qual nenhum ser vivo saberia subtrair-se. (Mazzini, T1- “12, 72) " 1. esta lei moral... 0 que 6 senfo a expresso mais pura, mais completa, mais adequada, como diriam os metafisicos, desta mesma natureza humana, essencialmete socialista e individualista ao mesmo tempo. ( principal defeito dos sistemas de moral ensi- nados no passado, é terem sido ou exclusivamente socialistas ou exclusivamente individualistas, (Natu- reza do Estado, 581, ano?). Na moral privada, enquanto ainda no esta vieiada pelos dogmas religiosos, hi um fundamento etemo, mais ou menos reconhécido, compreendido, aceitado ¢ realizado em cada sociedade humana, Este fundamento nfo & sendo o respeito humano, o res- peito pela dignidade humana, pelo direito’e pela liberdade de todos os individios bumanos, Respei- tirlos, eis o dever de cada um; armé-los e provocé-los, eis a virtude; violé-los, pelo’ contrario, € 0 crime, (Obras, V, 3 © que é que entendemos por respeito humano? # o reconhecimento... da dignidade humana no ho- mem, qualquer que soja & sua raga, a sua cor, 0 grau de desenvolvimento da sua inteligéncia e mesmo da sua moralidade. Mas se este homem € estipido, mau, desprezivel, poderei eu respeité-lo? Sem davida, se ele é tudo isso, éme impossivel respeitar a sua vilania, a sua estupides ¢ a sua brutalidade; clas desgostam-me e indignam-me; tomarei contra elas, em caso de necessidade, as medidas mais enérgicas, ‘até ao ponto de o matar se ndo me restar outro meio, de defender contra ele a minha vida, o meu direito fou 0 que me & respeitével e querido. Mas no meio do combate mais enérgico e mais enearnigado, e em caso de necessidade mesmo mortal contra ele, tenho de respeitar o seu carécter humano.— A minha pro- pria dignidade de homem s6 0 é por este prego. Portanto, se ele no reconhece esta dignidade em ‘inguém, seré preciso, poderemos reconhecé-lo nele? Se ele 6 uma espécie de besta feroz ou, como sucede frequentemente, pior que uma hesta, réconhecer nele © carfcter humano, nio seria isto’ cair na fiegdo? Néo, pois seja qual for a sua degradacéo inte- lectual © moral actual, se ele no é organicamente um idiota, nem um doido, em cujos casos seria neeessirio’ tratilo nfo como criminoso mas como Goente, — se ele esté em plena posse dos seus direi- tos e da inteligéneia com que a natureza o dotou, © seu cardcter humano, mesmo no meio dos seus mais monstruosos desvios, continua a existir nele duma maneira muito real, como faculdade, sempre ‘vive enquanto ele viver para se elevar a consciéncia da sua humanidade, — por pouoo que se efectue uma mudanca radical nas condigées sociais que 0 torna- ram tal qual ele 6. (Obras, I, 177-178, 67). ‘A moral antiga, baseada nas tradigGes patriar- cais, religiosas e hierérquicas, desmorona-se irre- vogavelmente,. Uma moral nova ainda no pode ser criada, esté unicamente prevista. Com efeito, s6 pela accéo de uma revolugio social é que cla se pode tornar conereta. A inteliéncia e a forga dum inico homem, por muito grandes que elas sejam, nao seriam suficientes. £ por isso que uma moral nova nao se pode ainda formular. (Correspondéncia, 269, 67) .. todas as religides e todos os sistemas de moral que reinam numa sociedade so sempre a expresso ideal da sua situacdo real, material, isto é da sua organizagio econdmica principalmente, mas também da sua organizacio politica, esta diltima nunca sendo alids outra coisa sendo a consagracio juridica e vio- lenta da primeira, (Maszini, 69, 77) Regra geral e demonstrada pela historia de todas as religides: «Nunca nenhuma religigo nova pode interromper 0 desenvolvimento natural ¢ fatal dos factos sociais, nem mesmo desvié-lo da vida que Ihe estava tragada pela combinagio de forgas reais, tanto naturais como sociais. Muitas vezes as crengas reli- giosas serviram de simbolo as foreas nascentes, no preciso momento em que estas forcas iam realizar factos novos: mas foram sempre os sintomas ow (08 prognéeticos, nunca as causas reais destes factos. Quanto a estas causas, & preciso procuré-las no desenvolvimento ascendente das necessidades eco- némicas e das forgas organizadas e activas, nio ‘deais mas reais, da sociedade; o ideal nunca sendo Seno a expresso mais ou menos fiel e a dltima esultante, tanto positiva como negativa, da luta destas forcas na sociedade. Esta ideia tio justa... 6 combatida, necessaria- mente, por Mazzini. (Mazzini, 78, 71). 90 Este principio, que constitui aliés o fundamento esencial do socialismo positive, foi pela primeira ver cientifieamente formulado desenvolvido pelo Sr. Karl Marx, 0 principal chefe da Escola dos comunistas alemées. Ele constitui o pensamento do- minante do célebre ‘Manifesto dos Comunistas, que um Comité internacional de comunistas franceses, ingleses, belgas e alemies, reunidos em Londres, langou em 1848, com o titulo: Proletdrios de todos 08 paises, uni-vos! Este manifesto, redigido, como se sabe, pelos Srs. Marx e Engels, tornou-se a base de todos os trabalhos cientificos posteriores da Es- cola, ¢ da agitacio popular sublevada, mais tarde, por Ferdinand Lasalle na Alemanha. Este prinefpio 6 absolutamente oposto ao prinei- pio reconhecido pelos idealistas de todas as escolas. Enquanto que estes titimos derivam todos os factos da historia, inclusive 0 desenvolvimento dos inte- rresses materiais e das diferentes fases da organizacéo econémiea da sociedade, do desenvolvimento das ideias, os comunistas alemies, pelo contririo, 96 véem em toda a hist6ria humana, nas manifestacdes, mais ideais da vida tanto colectiva como individual da humanidade, em todos os desenvolvimentos inte- lectuais e morais, religiosos, metafisicos, cientificos, artisticos, politicos, juridicos e sociais, produzidos contimuam a produzir no pre- sente, unicamente reflexos ou contragolpes neces- sérios do desenvolvimento dos factos econdmicos. Enquanto que os idealistas afirmam que as ideias dizem que, pelo contrario, 0s factos fazem nascer as ideias e que estas Gltimas so sempre a expressio ideal dos factos realizados; e que entre todos os factos, os factos econémicos, materiais, os factos por exeeléneia, constituem a base essencial, o prin- cipal fundamento, do qual todos os outros factos intelectuais e morais, politicos e sociais, néo sio a1 Sendo, os derivatives obrigatérios. (Obras, Ul, 12 218, 71). um principio profundamente verdadeiro logo gue 0 consideramos sob o seu verdadeiro aspecto, isto é sob um ponto de vista relativo, mas que’ visto e posto de uma maneira absoluta, como o ‘nico fundamento e a primeira fonte de todos 0s outros prinefpios, como 0 faz esta escola, torna-se comple: tamente falso. (Obras, TI 11, 72). 0 estado politico de cada’ pais... 6 sempre o pro- duto e a expressio fiel da sua situagéo econémica; Para mudar 0 primeiro 6 & necessirio transforma? esta iltima, Todo o segredo das evoluges historicas, segundo o Sr. Marx, esti 16. Ele nio toma em con’ sideracio os outros elementos da histéria, tais como 4 Teactio contudo evidente, das instituigces poll. ticas, juridicas e religiosas sobre a situagio econé. ‘mica Ble diz: redigida até 2 de Dezembro pelo Sr. Victor Considérant. ‘O mérito destes dois sistemas socialistas, ainda que diferentes sob muitos aspectos, consiste na cerftica profunda, cientifiea, severa, que eles fizeram & organizacéo actual da sociedade, cujas contradi- ees monstruosas desvendaram com ousadia:—se- guiu-se o facto importante de terem atacado e desacreditado fortemente o Cristianismo, em nome da reabilitagdo da matéria e das paixdes humanas, simultaneamente caluniadas e praticadas pelos padres cristios, Os Saint-Simonianos quiseram substituir 0 Cristianismo por uma religifo nova, baseada no culto mistico da carne, com uma nova hierarquia dos padres, novos exploradores do povo pelo privilégio do génio, da habilidade e do talento. Os Fourie- ristas, muito mais ¢ até sinceramente democratas, imaginaram os seus falanstérios governados ¢ admi- nistrados por chefes, eleitos por sufrégio universal, onde cada um, pensavam eles, encontraria por si proprio o seu trabalho e 0 seu lugar, segundo a 100 natureza das suas paixies.— As faltas dos Saint- -Simonianos sio suficientemente visiveis para se falar disso. O duplo erro dos Fourieristas consistiu, primeiro, em acreditarem que s6 com forga da sua ersuaséo e da sua propaganda pacificia ‘eles che- gariam a tocar 0 coragdo dos ricos, a ponto destes virem depor o excedente da sua riqueza as portas dos seus falantérios; e em segundo lugar, em terem imaginado que se podia construir teoricamente, @ priori, um paraiso social, onde se poderia meter toda # humanidade futura. Eles no compreenderam que podemos enunciar muito bem os grandes prin- ipios do seu desenvolvimento futuro, mas que deve- mos deixar as experiéncias do futuro a realizacao desses prineipios. ‘Em geral, a regra foi a paixio comum de todos 08 socialistas anteriores a 1848, sem excepcio: Cabet, Louis Blanc, Fourieristas, Saint-Simonianos, todos tinham a paixéo de endoutrinar e de organizar o futuro, todos foram mais ou menos autoritdrios. ‘Mas eis que apareceu Proudhon: filho de um camponés ¢ cem vezes mais revolucionério de facto como de instinto, do que todos os socialistas dou- trindrios e burgueses, armou-se com uma critica tio profunda e penetrante como impiedosa, para destruir ‘todos os sistemas deles. Opondo a liberdade & auto- ridade contra os socialistas de Estado, proclamou-se cusadamete anarquista, o teve a coragem de se dizer ateu, nas barbas do deismo ou do pantetsmo deles, ou antes como August Comte positivista, (© seu socialismo, baseado tanto na. liberdade individual como colectiva, e na acco esponténea das associagées livres, no obedecendo a outras leis senio as leis gerais da economia social descobertas ou a descobrir pela Ciéncia, sem qualquer regula mentagéo governamental ou proteccio do Estado, subordinando aliés a politica aos interesses econd: ‘micos, intelectuais e morais da sociedade; por uma consequénela necesséria tinha de conduzir, mais tarde, ao federalismo, (Obras, I, 36 a 40, 67). 101 2 Marx e Proudhon nio hé nenhuma divida que na eritiea impie- dosa que [Marx] fez a Proudhon ha muito de ver- dade... Hste parte da ideia abstracta do direito; do direito passa ao facto econémico, enquanto que © Sr. Marx, contrariamente a Proudion, exprimiu e demonstrou a verdade indubitivel, confirmada pela histOria passada e contempordnea da sociedade humana, dos povos e dos Estados, que o factor econémico precedeu sempre e precede sempre 0 ireto Jriclo e potion. (atatismo ¢ Anarquime, .-. Marx & um pensador econémico muito sério, muito profundo, Ele tem a grande vantagem sobre Proudhon de ser um verdadeiro materialista. Prou- ‘dhon, apesar de todos os seus esforgos para sacudir ‘as tradigdes do idealismo eldssico, nfo deixou de ser toda ‘a sua vida um idealista incorrigivel, inspi- rando-se, como eu Ihe disse dois meses antes da sua ‘morte, ora na Biblia, ora no direito romano, e sempre metafisico até & raiz dos cabelos. A sua grande desgraga foi nunca ter estudado ciéncias naturais, ¢ de nfo se ter apropriado do seu método. Ble teve instintos de génio que Ihe teriam feito entrever a via justa, mas seduzido pelos habitos maus ou idea- listis do seu esplrito, retornava sempre aos seus ‘velhos erros; o que fez com que Proudhon fosse uma contradigio perpétua, um génio vigoroso, um pen- sador revoluciondrio debatendo-se sempre contra os fantasmas do idealismo, e nunca tendo conseguido veneé-los, Marx como pensador esté na boa via. Ele esta- beleceu como prinefpio que todas as evolucdes poli- ticas, religiosas ¢ juridicas, na hist6ria, sio, nio a8 causas, mas os efeitos de evolugdes econémicas —6 um grande e fecundo pensamento que nio foi 102 totalmente inventado por ele, foi entrevisto, em parte exprimido, por muitos aiém dele — mas de qualquer modo pertence-Ihe a ele a honra de o ter estabele- cido solidamente e de o ter posto como base de todo o su sistema econdmico. Por outro lado, Prou- hn compreendeu e sentiu a liberdade muito melhor do que ele— Proudhon, quando nao praticava dou- trina e metafisica, tinha o verdadero instinto revo- Tuciondrio, — Ele adorava Satanés e proclamava a anarquia. B bem possivel que Marx se possa elevar tooricamente a um sistema ainda mais racional da liberdade do que Proudhon—mas falta-lhe o tinto de Proudhon... ele é um comunista autoritario dos pés & cabeca, [Marx] dedicou-se sempre, com sinceridade, & causa da emancipacéo do proletariado, causa a que ele prestou servigos incontestivels © 4 qual munca traiu conscientemente, mas que compromete hoje com a sua formidavel vaidade, com o seu cardc- tet odioso e malévolo, ¢ com a tendéncia & ditadura ‘mesmo no seio do partido dos revoluciondrios socia- listas. Efectivamente a sua vaidade nfo tem limites e é pena, € um luxo inttil, pois a vaidade com- preende-se num ser nulo, que néo sendo nada, quer Parecer tudo. Marx tem qualidades e uma ‘capa- cidade de pensamento e de accéo muito grandes, muito positivas e que Ihe poderiam ter pousado, ‘me, a pena de.ter recorrido aos meios mise- rivels da vaidade! (Nettlau, 70-71, 72). [Tem também o defeito] de todos os sébios de profissio, 6 um dout ). Acredita absolutamente nnas suas teorias e do alto das suas teorias despreza toda a gente. (Nettlau, 368, 72). a A Comuna Bu sou um partidério da Comuna de Paris que, por ter sido massacrada, esmagada em sangue pelos earrascos da reaceio monfrquica e clerical, s6 se tornou mais viva, mais forte na imaginagio e no coracéo do proletariado europeu; eu sou seu parti- dério principalmente porque ela foi uma negacio fudactoas, bem pronunciads, do Estado, (Obras, 1V, A comuna proclamou-se federalista, e sem negar a wnidade nacional da Franga que é um facto natu- ral e social, ela negou audaciosamente o Estado que a unidade violenta ¢ artificial, (Lehning, 1-1, 254, 72). 0 efeito foi tio formidével por todo o lado, que os préprios marxistas, a quem todas as suas ideias tinham sido invertidas por esta insurreigdo, viram-se obrigados @ tirar o chapéu diante dela, Fizeram mais: ao contririo da mais simples légica e dos seus Verdadeiros sentimentos, declararam que 0 seu programa eo seu fim eram os deles. Foi um disfarce verdadeiramente burlesco, mas forgado. les tinham de 0 fazer, sob pena de se verem marginalizados © abandonados por todos, tdo forte era a paixio que esta revolucio tinha provocado em toda a gente. (Obras, IV, 387, 72). A Comuna de Paris durou muito pouco tempo e foi muito entravada no seu desenvolvimento inte- rior pela luta mortal que ela teve de sustentar contra a reacgio de Versalhes, para que ela pudesse, néo digo mesmo aplicar, mas pelo menos elaborar teori- camente o seu programa socialista. Por outro lado, € preciso reconhecé-lo, a maioria dos membros da Comuna nio eram propriamente socialistas e se ‘se mostraram como tal foi por terem sido entra- vados invencivelmente pela forga irresistivel das 108 coisas, pela natureza do seu meio, pelas necessidades da sua posigio e nao por conviecio intima, Os socialistas, & cabeca dos quais se situa natu- ralmente 0 nosso amigo Varlin, constituiam na Comuna uma infima minoria; néo eram mais do {que catorze ou quinze membros. O resto era com- posto por... Jacobinos francamente revolucionsrios, ‘08 her6is, os iiitimos representantes sinceros da fé democritica de 1793, capazes de sacrificar a sua unidade e a sua autoridade bem-amadas is neces- sidades da revolugdo, mais do que submeter a sua consciéncia a insoléncia da reacgdo. Estes Jacobinos magnénimos, & cabeca dos quais se encontra natu- ralmente Delescluze, uma grande alma e um grande cardcter,... assinaram programas e publicagdes eujo espirito geral e as promessas cram positivamente sovialistas. Mas como, apesar de toda a sua boa £6 e de toda a sua boa vontade, eles no eram senio socialistas muito mais entravados exteriormente do que convencidos interiormente, como nao tiveram © tempo, nem mesmo a capacidade para vencer ¢ suprimir neles uma série de preconceitos burgueses que estavam em contradi¢éo com o seu socialism recente; compreende-se que, paralisados por esta luta interior, nunea pudessem sair de generalidades, nem tomar uma das medidas decisivas que rompesse para sempre a sua solidariedade e todas as suas relagdes com o mundo burgués. Foi uma grande desgraca para a Comuna e para eles; eles fiearam paralisados ¢ paralisaram ‘@ Comuna; mas néo Ihes podemos censurar, eomo uma falta. Os homens néo se transformam de um dia para o outro e ndo mudam nem de natureza nem de habitos & sua vontade. Eles provaram a sua sinceridade dando a sua vida pela Comuna. Quem ousaria pedir-lhes mai Bles sio mais desculpaveis do que 0 proprio povo de Paris, sob influéncia do qual eles pensaram @ agiram, era muito mais socialista por instinto do que por ideia ou conviegio reflectida... Hé ainda 105 muitos preconceitos jacobinos, muitas imaginagées ditaturiais e governamentais,, no proletariado das ‘grandes cidades de Franca e até no de Paris. (Obras, TV, 205 a 257, 72). ‘lids, a situagdo do pequeno ntimero de socia- listas convencidos, que fizeram parte da Comuna, era excessivamente dificil. Nao se sentindo suficien- temente defendidos pela populagéo parisiense, organizacéo da Associacio Internacional, apesar de muito imperfeita, nfo abragando mais’ de alguns milhares de individuos, eles tiveram de sustentar ‘uma luta diéria contra'a maioria jacobina. E ainda em gue circunstancias! Foi-Ihes preciso dar trabalho e pao a alguns milhares de operirios, organizé-los, armé-los, © vigiar ao mesmo tempo'as manobras reacciondrias numa cidade tao grande como Paris, sitiada, ameacada pela fome ¢ entregue &s mano- bbras sujas da reaccio que se estabeleceu_e que se mantinha em Versalhes, com @ autorizagao ¢ pela graga dos Prussianos.' Foi-lhe preciso. opor um overno e um extreito revoluciondrio ao govern € ‘20 exéreito de Versalhes, quer dizer que para com- bater a reaccéo mondrquica e clerical, eles tiveram, esquecendo e sacrifieando as primeiras condigées do socialismo revoluciondrio, de se organizar em Go jacobina. ‘Nao 6 natural que no meio de tais circuns- tancias, os Jacobinos, que eram os mais fortes visto que constituiam a maioria na Comuna, e que, por outro lado, possuiam num grau infinitamente supe- rior 0 instinto politico, a tradigio e a pratica da organizagdo governamental, tivessem tido grandes vantagens sobre os socialistas? O que é de espantar 6 eles nfo se terem aproveitado disso muito mais do que o fizeram, que eles no tenham dado & suble- vagao de Paris um caracter exclusivamente jacobino, € que se tenham deixado arrastar, pelo contréric numa revolugéo social. Eu sei que muitos socialistas, muito conse- quentes em teoria, censuraram os’ nossos amigos 108 de Paris por eles nio se terem mostrado suficien- temente socialistas na sua prética revolucionéria...; eu observarei aos tedricos severos da emancipacéo do proletariado que eles so injustos em relagio aos nostos irmaos de Paris, pois, entre as teorias mais justas e a sua realizagio pritica, hé uma grande distincia que nfo se transpde em alguns dias. (Obras, TV, 258-259, 72). 107 IL © PARTIDO REVOLUCIONARIO A LUTA OPERARIA E CAMPONESA. L Operérios, camponeses, burgueses © intelectuais todas as outras questées: religiosas, nacio- nais, ‘politieas, tendo sido completamente esgotadas pela histéria, 56 resta hoje uma ‘mica questo na qual se resumem todas as outras ¢ a tinica doravante eapaz de sublevar os povos: a questdo social. (Net- ‘lau, 221 64-67). (0 que é bastante notével, e que aliés foi obser- vado e constatado muitas vezes por um grande mimero de eseritores de tendéncias muito diversas 6 que hoje 96 o proletariado possui um ideal positivo para o qual tende com toda a sua paixdo, quase virgem ainda, do seu ser; ele vé diante de si uma estrela, um sol que o lumina, que i © aquece, pelo ‘menos na sua imaginacio, na sua fe, ¢ que Ihe mos- ‘tra com uma clareza certa a via que ele deve seguir, enquanto que todas as classes privilegiadas e pre- tensamente esclarecidas estio mergulhadas numa obscuridade simultaneamente desoladora e assus- tadora. Hlas j4 nfo vém nada & sua frente, j4 nio acreditam ném aspiram a nada e s6 querem a conservacio eterna do status quo, reconhecendo que © status quo néo vale nada. Nada prova melhor que estas classes esto condenadas a morrer e que © futuro pertence ao proletariado. Sio os Pelo contrario nés dizemos: Ble que se emancipe primeiro ¢ instruir-seé a ele proprio... Deixam-no macar-se com 0 seu trabalho quotidiano e com a sua miséria, e dizem-Ihe: . ‘Nao, senhores, apesar do nosso respeito pela questéo da instrugio integral, declaramos que hoje ji nfo é a maior questo para o povo. A primeira Questo 6 a da sua emancipacgio econémica, que engendra imediatamente e ao mesmo tempo a sua emancipagio politica, e muito em breve a sua eman- cipagéo intelectual © moral. (Obras, V, 167-168, 69). ‘Mas como chegar, do abismo da ignorancia, de miséria e de escravatura, no qual 0s proletérios dos campos e das cidades estio mergulhados, a este paraiso, a esta realizagio da justiga e da humani- dade na terra? — Para isso, os trabalhadores 36 tém um tinico meio: a associacéo. (Obras, V, 42, 69). ois s6 resta uma tinica via, 6 a da (sua) eman- cipagéo pela prética. (Obras, V, 182, 69). A Secgdio Central, jé dissémos, foi o primeiro germe, 0 primeiro corpo constituinte da Associagéo Internacional em Genebra; ela deveria continuar a ser a sua alma, a sua inspiradora e a sua prope: gandista permanente. ® neste sentido, sem divida, que muitas vezes se The chamou a eseego da inicia~ tivas. Ela criou a Internacional em Genebra, devia conservar ¢ desenvolver 0 seu esplrito. Sendo todas ‘a8 outras secgdes corporativas, (1) os operdrios estéo af reunidos e organizados nao pela ideia, mas pelo facto e pelas proprian necessdates do seu trabatho \déntloo, Bste facto econémico, o de uma indistria especial e de condigées particulares de explora desta indistria ‘pelo capital, solidariedsde intana e particularmente os interesses, as necessidades, os sofrimentos, a situagéo e as aspiragées que existem entre todos os operirios que fazem parte da mesma secgdo corporativa, tudo isto forma a base real da sua associagio. A ideia vem depois, como explicagéo ou como expressio equivalente do desenvolvimento ¢ da consciéncia colectiva e reflectida deste facto. (Obras, VI 55-56, 72); | 6es centrais nio representam nenhuma indistria em especial, visto que os operirios mais avancados de todas as indistrias possiveis encon- tram-se ai renuidos. Entéo o que é que elas repre- sentam? A prépria ideia da Internacional. Qual a sua misao? O desenvolvimento e a propaganda desta ideia. E esta ideia o que 6? © a emancipacéo nfo 86 dos trabalhadores de tal indistria e de tal pais, mas também de todas as indistrias possiveis e de todos os paises do mundo... Tal 6 a forca negs tiva, belicosa ou revoluciondria da ideia. Ea forca positiva? @ a fundac&o de um novo mundo social. (Obras, VI, 65-66, 72). ‘As SecoSes centrais so os centros activos e (0) A swepdo canal tem ogui_o papel ave sat mit tarde o as orgenaagser sciaintor:Foridon sy enatonto vw at super corpo rates prefiguam or euros inicio 1M) 12 vivos onde se conserva, se desenvolve, ¢ se explica a nova £6 L& ninguém entra como operdrio espe- cial desta ou daquela profissio, segundo a organi: zagho particular desta profissio; li entram todos ‘unieamente como trabalhadores em geral, com o fim da emancipagio e da organizacéo geral do trabalho e do novo mundo social baseado no trabalho, em todos os paises. Os operérios que fazem parte dela, deixando & entrada a sua qualidade de operdrios especiais ou ereaiss, no sentido da especialidade, apresentam-se 1é como trabalhadores «em geral>. ‘Trabalhadores de qué? Trabalhadores da idea, da propaganda e da organizacao do poder tanto econd- mico como militante da Internacional: Trabalhado- res da Revolucio social. ‘Vé-se que as secgdes centrais tém um carieter totalmente diferente das secodes de profissio ¢ até diametralmente oposto. Enquanto que estas iltimas, seguindo a via do desenvolvimento natural, come- gam pelo facto para chegar ideia, as secoies centrais, pelo contrério, seguindo a do desenvol mento ideal ou abstracto, comecam pela ideia para chegar ao facto. © evidente que em oposicéo a0 método tdo completamente realista ou positivo das seegbes de profissio, o método das seccdes centrais apresenta-se como artificial ou abstracto. Esta ma- neira de proceder da ideia ao facto & precisamente a de que se tém setvido cternamente os idealistas de todas as escolas, tedlogos e metafisicos, e cuja impoténcia final foi constatada pela histéria. Se 86 tivesse havido na Associacio Internacional dos Trabalhadores seccées centrais, nao hi divida que ela nfo teria atingido nem a centésima parte da forga considerdvel de que agora se glorifica. ‘As secodes centrais teriam sido igualmente acade- mias operérias onde seriam sempre debatidas todas as questées, incluindo naturalmente a da organi ‘edo do trabalho, mas sem a minima tentativa séria nem mesmo seta alguma possibilidade de realiza- ‘¢80; e isto por uma razio muito simples: o trabalho 143 em geral> no 6 sono uma ideia abstracta que nfo encontra a sua erealidades senéo numa imensa diversidade de indéstrias especiais, em que cada uma tem a sua natureza propria, as suas préprias con- digées, que no se podem adivinhar e muito menos determinar pelo pensamento abstracto, mas que, 86 se manifestando pelo facto do seu desenvolvimento real, podem determinar sozinhos o seu equilfbrio particular, as suas relagies e o seu lugar na orga- nizago geral do trabalho, —organizacao que, como todas as coisas gerais, tem de ser a resultante sem- pre reproduzida de novo pela combinagio viva © Teal de todas as indistrias particulares ¢ nfo o seu principio abstracto, imposto violenta doutrinaria- mente, como o queriam os comunistas alem&es, par- tidrios do Bstado popular. Se 86 tivesse havido, na Internacional, secgies centrais, provavelmente elas jé teriam conseguido formar conspiracées populares para a inversdo da ordem actual das coisas, conspiragies de intencio, ‘mas muito fracas para atingir os seus fins, porque elas nunca poderiam arrastar e reeeber no seu seio senfo um pequenissimo nimero de operérios, o8 mais inteligentes, os mais enérgicos, os mais conven- cidos e os mais dedicados. A imensa maioria, os milhdes de proletérios, ficaria de fora, e, para inverter ¢ destruir a ordem politica e social que hoje nos esmaga, é preciso concorréncia destes milhdes. ‘86 08 individuos, e somente um pequeno néimero de individuos se deixa definir pela cideia> abstracta, e pura, Os milhdes, as massas, nfo s6 no proleta- riado, mas também nas classes esclarecidas e privi- legiadas, 26 se deixam arrastar pela forea ¢ pela légica dos , no estandarte da Internacional, esta associagio teria podido reunir no seu seio cen- tenas de milhares de aderentes? Toda a gente sabe que no, néo por o povo ser verdadeiramente reli-! gioso, mas por ele acreditar sélo; ¢ ele acreditaré sé-lo enquanto que uma revolugdo social néo Ihe facultar os meios para realizar todas as suas aspira- ges neste mundo. B certo que se a Internacional Pusesse 0 ateismo, como um prinefpio obrigatério, no seu programa, teria excluido do seu seio a flor do proletariado,—e por esta palavra eu nao quero dizer, como o fazem og marxistas, a camada superior, ‘a mais civilizada e a mais desembaragada do mundo operdrio, essa camada de operdrios quase-burgueses de que eles querem precisamente servirse para eons: truir a sua quarta classe ental, e que & verdadeiramente capaz de formar uma, se os nis Pusermos na ordem do interesse da massa do pro- letariado, porque, com o seu bem-estar relativo quase burgués, no esti infelizmente senéo profun- damente penetrada por todos os preconeeitos poli- ticos e sociais e pelas estreitas aspiracdes e preten- ses dos burgueses. Pode dizer-se que esta comads 150 1 a menos socialista e a mais individualista de todo o proletariado. odo Soh flor do proletariado, eu considero sobretudo esta grande massa, este milhdes de néo-civilizdos, de deserdados, de miseréveis e de analfabetos que © Sr. Engels e 0 Sr. Marx pretendem submeter 20 1e paternal dum governo muito forte ()... Por flor do proletariado, eu considero precisamente esta carne para governo eterno, esta grande canalha ‘popular (2) que, estando quase virgem de toda a Sivilizagio burguesa, traz no seu selo, mas suas Jaixdes, nos seus instintos, nas suas aspiragies, Todas a8 necessidades e as misérias da sua posicéo colectiva, todos os germes do socialismo do futuro, fe que s6'ela é hoje suficientemente forte para inau- gurar e para fazer triunfar a Revolugio social. (Obras, IV, 413-414, 72). ‘A ‘Alianga 6 0 eomplemento necessirio da Inter- nacional... Mas a Internacional ea Alianca, ten- dendo para 0 mesmo objectivo final, perseguem a0 ‘mesmo tempo objectivos diferentes. — Uma tem por Imissio Teunir a8 massas operdrias, os milhdes de trabalhadores, através das diferencas das nagbes € dos paises, através das frontelras de todos os Hsta- os, num ‘s6 corpo imenso e compacto; a outrs, a ‘Alianga, tem por missfio dar as massas uma direc- do verdadeiramente revolucionéria. Os programas Guma e doutra, sem serem nada opostos, sio dife- rentes pelo proprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Internacional, se 0 tomarmos a sério, também em germe, mas’s6 em germe, todo © programa da Alianca, O programa da Alianga é . Se ae ee = Documentos « Recordagies, por , Se ae ce tngees pose pore Para: + adutetnomeas does '¢ por timpertreloerieds, 0. «Pe SRST let ia ain 151 ‘& explicagio Ultima do da Internacional. (Nettlau, + 286, 72). Reconhego com alegria que, em todos os paises, 1s classes privilegiadas perderam muito da sua forga Perderam totalmente a sua forca moral; 6 nfo tém £8 nos seus direitos, sabem que sic infquas ¢ odiosas, desprezam-se a'si proprias. bastante. ‘Tendo perdido a sua forca moral, elas perdem ostensiva e necessariamente também a forea inteligente. Elas sio muito mais sabias do que 0 proletariado, mas isso nio as de se tornarem cada vez mais brutas. Elas perderam toda 8 coragem intelectual e moral... O proletariado, cuja vivaeidade herdow da sua anterior capacidade inte- Jeetual e moral, preparase hoje para as forcar nos seus filtimos reffigios politicos © econémicos. ‘Tudo isto & verdade. Mas ndo se pode ter nenhu- mas ilusdes. Eases reftigios sfo ainda muito fortes sio o Estado, a Igreja, a Bolsa, a policia, o exército e também esta grande conspiragéo internacional ¢ Pliblica, legal, armada, a que se chama diplomacia, Tudo isto € organizado sabiamente © 6 forte pla onganizagdo, etm presenga desta organizacio vel, 0 proletariado, ainda que unido, agru- Vado ¢,sciatmde pel Tntermeion!, contin izado, Que faz 0 seu nfimero? O povo mesmo que seja um milhio, varios milhdes, seré posto em xeque por algumas dezenas de milhares de soldados, sustentados e disciplinados & sua custa, contra ele, pelos escudos burgueses produzidos pelo seu préprio trabalho. Por exemplo, a seccio mais numerosa, mais avangada ¢ melhor organizada da Internacional — esti-o para o combate? Sabem que néo. Em mil trabalhadores, seria muito se reunissem uma ou no méximo duas centenas no ’ para organizar uma forga, nao chega unir os into- esses, os sentimentos, 0 pensamento. © preciso 162 lunir as vontades e os caricteres, Os nossos inimi- ‘gos organizam as suas foreas com @ forea do dinheiro @ com a autoridade do Estado, Nés s6 podemos o nnossas com a convicgéo, com a paixéo. ‘Nés néo podemos endo queremos unir outro exéreito seno 0 povo, Mas para que esta massa se erga em conjunto simultaneamente—e 86 com esta condigéo é que ela pode vencer—o que fazer? Sobretudo como fazer para que as massas mesmo lectrizadas, quando sublevadas néo se contradigam € nao se paralisem pelos seus movimentos opostos? $6 hé um tinico meio; & assegurar-se da parti- sipagio de, todos os chefes populares. bu chamo chefe popular a individuos saidos do povo, vivendo com ele, da sua vida, e que, gracas & sua superiori- dade intelectual e moral, exercem nele uma grande influéncia. H& muitos entre cles que abusam desta superioridade e a fazem servir os seus interesses pessoais. So homens muito perigosos e que é pre- ciso evitar como a peste, que é preciso combater e anigilar gempre que possvel, B preciso procurar ons chefes, os que s6 defendem os seus inte- ressea no interesse de toda a gente. Mas como encon- tré-los e reconhecé-los, e qual é o individuo tao inte- ligente, téo perspicaz e tio forte, para nfo se enganar absolutamente nada, primeiro na sua escolha e em Segulda para os convencer ¢ pars o# orgunizar 86 homem; que 36 muitos homens associados podem empreender e conduzir a bom termo uma empresa to dificil. Mas para isso, é necessério primeiro que se entendam entre eles e que déem as mos para esta obra comum. Mas tendo esta obra um objectivo prético, revolucionério, o entendimento miituo que 6a condi¢éo necessiria nfo se pode fazer publica- mente; se se fizesse em pGblico, atrairia contra os inieiadores as perseguicées de todo o mundo oficial € oficioso e ver-se-iam esmagados antes de terem podido fazer a minima coisa. 183 Pois este entendimento e esta associagio que | ‘tem de sair dele 86 podem ser feitos em segredo. Quer dizer que & preciso estabelecer uma conspiracio, uma sociedade secreta a sério. | ‘Também 6 assim 0 pensamento ¢ 0 objectivo da Alianga. B uma sociedade secreta £¢ no sei0 da prépria Internacional, (?) para dar a esta dltima ‘uma organizagio revolucionéria, para a transformar, acla ea todas as massas populares que estao fora dela, numa forga suficientemente organizada para aniquilar a reacgdo politico-clérico-burguesa, para destruir todas as instituigdes econdmicas, juridicas, religiosas e politicas dos Hstados. (Nettlau, 289 a 291, 72). ‘mesmo que conseguissem, & custa duma lute enérgica e habit, salvaguardar a existéncia das voo- sas seegées pébblieas, cu acho que acabariam mais tarde ou mais cedo por compreender a necesidade de formar entre elas miicleos compostos por mem- bros mais seguros, mais dedieados, mais inteligentes e mais enérgicos, numa palavra, pelos mais intimos. Estes néicleos intimamente ligados entre si e com leos semelhantes que se organizam ou que se log semeanen ae se Osim oe geiro, terfo uma dupla missi da alma inspiradora e vivificante deste grande corpo fa que chamamos Associa¢io Internacional dos tra- balhadores tanto em Ttilis como em qualquer outro lado; e em seguida ocupar-se-A0 dos problemas que 6 impossivel tratar publicamente. Eles formario a (0) Paclelonanin oot stn oar olen plc elon pete ror mae) ain tenon ope poli arf ‘Seaivoment, oF pecgon cele oF ‘Mino tovedode.fecea’ fia. com em sive el ‘lecting. (FM 154 “ponte necesséria entre a propaganda das teorias socialistas e a pritica revoluciondria. ‘Naturalmente, esta alianga scoreta s6 acei taria no seu seio um pequenissimo numero de indi viduos...; pois neste tipo de organizagées, nfo & a quantidade, mas a qualidade que é preciso pro- curar... Vocés sé querem uma revolugio popular, or isso nfo vio recrutar um exéreito, pois 0 Vosso exéreito 6 0 povo. O que devem formar, so os esta- dos-maiores, a rede bem organizada e bem inspirada dos, chefes do movimento popular. (Cerrett, 104- & Atenc&o ao reformismo cooperativista, Enquanto que os socialistas revolucionstios, convencidos de que o proletariado néo se pode liber- tar no quadro do sistema econémico actual, querem 8 liquidagdo sovial,.... 08 sooialistas pacificos que- rem, pelo contrario, preservar todas as bases prin- cipais, essenciais, da ordem econdmica existente. E eles afirmam que mesmo nestas condigdes e nesta ordem social, nevesséring tanto umas como a outra a0 sucesso da civilizago burguesa, os operdrios podem libertar-se e melhorar substancialmente a sua situagio material, unicamente gragas a0 poder miraculoso das associagdes livres. _ Consequentemente eles propdem aos operérios formagio de sociedades de socorro miituo, de ban- cos de trabalho, de associagdes cooperativas de pro- dugfio e de consumo, que consideram como os finicos meios de salvacéo. Ao mesmo tempo eles imploram tg, opertros para nfo aerediiarem nos revlusio. rio utopistas que, na verdade, Ihes prometem uma igualdade impossivel, e que,’ conscientemente ou no, os arrastam para'a ruina e perdicao defi nitivas. 185 Vinte anos de experiéneias em Inglaterra, em’ Franga, na Alemanha,... provaram enfim que o sis- ‘tema cooperativo.... néo pode libertar os operiirios, nem sequer melhorar sensivelmente a sua situagio, nas condigGes sociais actuais. A famosa associagio dos operirios de Rochdale em Inglaterra, que fez tanto barulho e suscitou tanta emulagdo e ensaios noutros paises, acabou por criar uma nova bur guesia colectiva que nio se importa em explorar ‘2 massa dos operérios que no pertencem & coope- rativa. (Maximoff, 385, 70). ‘Os proprios economistas provaram que as coo- pperativas de produgio s6 sfo possiveis nos ramos de indistrias que ainda néo estéo explorados pelo grande capital, pois nenhuma associagéo operdria pode competir’ com esta itima na producao dos ‘bens de consumo em grande escala, E como o grande capital, em virtude de uma necessidade que lhe é inerente, procura controlar todos os ramos da indds- tria, o destino das cooperativas de produgéo seri © mesmo que o da pequena ea média burguesia: miséria_geral inevitével, submissio ao capital da oligarquia burguesa e absorcio de toda a espécie de pequenas ¢ médias empresas pelas grandes em- presas de algumas centenas de pessoas de fortuna na Europa, (Maximoff, 387, 70). Organizemo-nos, alarguemos a nossa Associa- gio, mas ao mesmo tempo néo nos esquecamos de @ consolidar, para que a nossa solidariedade, que 6 toda a nossa forca, se torne de dia para dia mais real. Tornemo-nos cada vex mais solidérios no es- ‘tudo, no trabalho, na acco piblica, na vida. Asso- clemo-nos nos empreendimentos comuns para nos tornar a existéneia um pouco mais suportivel e menos diffeil; formemos em todo 0 lado e tanto quanto nos for possivel as sociedades de consumo, de crédito miituo e de producio, que, sendo comple- 156 \tamente incapazes de nos emaneipar dum modo st cliente ¢ sério nas condigdes econémicas actuais, habituam os operdrios a resolver dificuldades ¢ pre- param germes preciosos a organizagéo do Fatano, (Obras, ¥, 47, 69). _ Burocracia sindical. ‘As pessoas © 08 prinefpios um principio que the ouvi enunciar muitas veres e que sempre considerei como essencialmente falso: «Que néo & preciso ocuparse das pessoas, Bas lunlcamente, doe ‘prineipos» Quanto a. min ‘unea consegui conceber que os principios pudessem ‘progredir sem a intervenco das pessoas que Ihes io dodioadae © que etio unidas solideriamente em seu nome, dei sempre um valor is (Obras, 216277, 7. Possoas Os melhores homens so facilmente corruptiveis, sobretudo quando o proprio meio provoca a corrup- gio dos individuos pela ausénela do controlo sério e de oposi¢ao permanente, Na Internacional nio se pode tratar de corrupgio venal, porque a asso- ciacdo é ainda muito pobre para’ dar rendimentos ou até retribuicdes justas a cada um dos seus che- fes,... Mas existe outro género de corrupgéo & qual a Associagio Internacional infelizmente nao nada estranha: 6 a da vaidade e da ambicio. ‘Hé em todos os homens um instinto natural de comando que tem a sua primeira origem nesta Jei fundamental da vida, que nenhum individuo pode assegurar a sua existéncia ou fazer valer os seus direitos senfo por intermédio da luta. (Obras, VI, 15-16, 71). Gada “um traz consigo o germe, e qualquer 157 germe, sabemo-lo, por uma lei fundamental da vida, tem necessariamente de se desenvolver © crescer, por poueo favordveis ao seu desenvolvimento que sejam as condigdes que encontre no seu meio. Estas condigies, na sociedade humana, so a estupidez, 2 ignordneia, a indiferenca apStica e os hibitos servis das massas; de modo que podemos dizer com todo © direlto que so as proprias massas que produzem estes exploradores, estes opressores, estes déspotas, estes carrascos da humanidade dos quais sio as vitimas. Quando elas estio adormecidos e quando suportam pacientemente a sua abjeccio e a sua escravatura, os melhores homens que nascem no seu seio, os mais inteligentes, os mais enérgicos, mesmo (0s que num melo diferente poderiam prestar grandes servigos & humanidade, tornam-se forcosamente dés- potas. Tornam-se muitas vezes iludindo-se sobre eles préprios e acreditando trabalhar para o bem dos que oprimem. Pelo contrario, numa sociedade inteligente, desperta, zelosa da sua liberdade, e dis- posta a defender os seus direitos, os individuos mais egoistas, mais maldosos, tornam-se necessariamente bons. Tal é a forca da'sociedade, mil vezes maior do que a dos mais fortes individuos. “"Também 6 evidente que a auséncia de oposicéo fe de controlo continuo se tornam inevitavelmente uma fonte de depravacio para todos os individuos que esto investidos por um poder social qualquer; e que aqueles que, de entre eles, queiram de todo © coragio salvar a’sua moralidade pessoal deveriam ter 0 euidado, primeiro, de nunea guardarem muito ‘tempo este poder e, segundo, de provocarem, contra, cles préprios, esta oposicao e este controlo salutar. ‘Bo que os membros dos comités de Genebra, sem divide por ignorancia dos perigos que corriam sob © ponto de vista da sua moralidade social, negligen- claram geralmente em fazer. A forca de se sacrifi- carem e de se dedicarem, fizeram do comando um doce hébito, e, por uma espécie de alueinacéo, natu- ral e quase inevitével em todas as pessoas que 158 tm o poder nas suas méos durante muito tempo, acabaram por imaginar que eram homens indispen- siveis. Foi assim que se formou imperceptivelmente, no sefo das préprias associagdes, tio francamente populares, dos operdrios da construgio, uma espécie de aristocracia governamental, ~. Com a autoridade crescente dos comités desenvolveram-se naturalmente a indiferenca e & ignordncia das secgdes em todas as questies, a nio ser as das greves ¢ do pagamento das cotas, paga- mento esse que se efectua com dificuldades cada vez maiores ¢ duma maneira muito pouco regular. # uma consequéncia natural da apatia intelectual e moral das secgées, e esta apatia & por sua vez, o resultado também necessario da subordinacéo auto- mética & qual o autoritarismo dos comités reduziu as seegies. ‘Exceptuando os problemas de greves e de coti- zagées, sob todos os outros aspectos as seccdes dos operdrios da construgéo renunciaram a qualquer julgamento, a qualquer deliberacdo, a qualquer inter- vengéo; elas confiam simplesmente nas decisées dos seus comités. «Nés elegemos 0 nosso comité, ele que decida.» Eis 0 que os operirios da construcéo respondem frequentemente aos que se esforcam por por conhecer a sua opinido sobre um problema qual- quer. Eles acabaram por néo ter mais nenhuma opi- nigo, semelhantes a folhas brancas nas quais os seus’ comités ‘podem escrever tudo o que quiserem. Providenciando para que os seus comités nio Thes pecam muito dinheiro ¢ no os persigam muito para que paguem 0 que devem, estes podem, sem os consultar, decidir e fazer impunemente em seu nome ‘tudo quanto Thes parecer bem. £ muito eémodo para os comités, mas isto nfo 6 nada favordvel para o desenvolvimento social, inte- lectual e moral das secodes, nem para o desenvol- vimento real da forca colectiva da Associacéo Inter- nacional. Pois, deste modo, a tinica coisa real sfio os comités... Mas os comités, j4 96 se representam a 150 les préprios, ¢ 86 tendo atrés deles massas igno- antes e indiferentes, J no so capazes de formar sendo uma forga fictica, nfo uma forca verdadeira. Esta forga ficticia, consequéncia detestével e ine- vitével do autoritarismo, logo que introduzido na organizagio das seegGes da Internacional, é excessi- vamente favordvel ao desenvolvimento de toda a espécie de intrigas, de vaidades, de ambigdes ¢ de interesses pessoais; ela é até excelente para inspirar um contentamento pueril consigo proprio, e uma segu- ranga tio ridfeula como fatal ao proletariado; tam- bém é excelente para assustar a imaginacio dos ‘burgueses. Mas ela néo servira para nada na luta de morte que o proletariado de todos os pases da ‘tem de sustentar agora contra a forca ainda mult real do mundo burgués. (Obras, Vi, 17 = a, 7). 10. Unidade ¢ Programa das forcas revolucionarias. RelagSes das organizacées socialistas ‘com os sindicatos, 2. Unidade e ditadura. Sendo a exploragio burguesa solidiria, a lute contra ela também o deve ser; e a organizagao desta solidariedade militante entre os trabalhadores de todo 0 mundo & 0 ‘inico objectivo da Internacional. (Obras, IV, 397, 72). Que desta organizacio, cada vez maior, da soli- dariedade militante do proictariado contra a explo- ragdo burguesa deva sair e surja efectivamente a uta politiea do proletariado contra a burguesia, quem duvida disso? Tanto os marxistas como nés, ‘somos uundnimes neste ponto. Mas aparece imediatamente a questo que nos ‘to profundamente dos marxistas. (Obras, IV, 344, 72). Déem-se 20 trabalho’ de reler os magnificos 160 considerandos que estio & cabeca dos nossos esta- tutos gerais, 86 encontrarfo af palavras que fagam mengio da questo politica: “«Considerando: «Que a emancipacio dos trabalhadores deve ser obra dos préprios trabalhadores; que os esforgos dos trabalhadores para conguistar a sua emanei- pagio nio devem levar & constituigao de novos privi- Jégios, mas a estabelecer para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres; «Que a escraviza¢io do trabalhador pelo capital & fonte de todas as escravidées: politica, moral ¢ material; «Que, por esta razio, a emancipagio econémica dos trabathadores 6 0 grande objectivo ao qual se deve subordinar qualquer ‘movimento politico» (), is frase decisiva de todo o programa da Inter- nacional. Ela quobrow as amarras, servindo-me da expresso memorivel de Sieyés, destruiu os 1agos que mantinham o proletariado aprisionado & politiea burguesa "A Aliana, seccdo da Internacional em Genebra, traduzin e comegou este parégrafo dos consideran- dos nestes termos: _ «A Alianga repele qualquer acpio politica que ndo tenha por objectivo imediato e directo o triunfo dos trabalhadores sobre o capital.» .. elo contririo, o Partido da democracia socia- lista dos operdrios’alemées, fundado no mesmo ano (1869), sob os auspfcios do Sr. Marx, pelos Srs. Lieblmecht e Bebel, anunciava no seu programa que 8 conquista do poder politico era a condi ic a emancipagdo econdmica do protetariado Entre estas duas tendéncias, vee, existe a mesma diferenca, 0 mesmo abismo, que hi entre 0 (1) Sabete que se tla do todo fancts dor sComideandom «| ve a vrs ial, ou eigial, do fersivo omicwrandoaccbore SNivolewer morimeno pliien como um meios fe 161 proletariado © a burguesia, Depois disto seré de espantar que elas se tenham encontrado na Interna- cional como adversirias irreconciliaveis e que con- tinuem a combater-se, sob todas as formas e em todas as ocasides? (Obras, IV, 401 a 403, 72). entre as duas tendénclas atris indicadas, j4 néo é possivel qualquer coneiliagio. $6 a prética da revolugao social, de grandes experiéneias histéricas rnovas, a légica dos acontecimentos, poderdo levi-las mais ‘tarde ou mais cedo a uma’ solucdo comum, (Obras, IV, 347, 72). Mas que fazer neste momento? Sendo hoje im- possivel a solugio e a conciliagio no terreno politico, & preciso que se tolerem mutuamente, deixando a cada pais 0 direito incontestvel de seguir as ten- éncias poltiens que lhe agradem mais ou que the parecam melhor adaptadas & sua situagdo particular. Rejeitando, consequentemente, todas as questdes politicas que Ihe agradem mais ou que Ihe parec melhor adaptadas & sua situacdo particular. Rejei- tando, consequentemente, todas as questdes politicas do programa obrigatério da Internacioal, é preciso tentar a unidade desta grande associacdo unicamente no campo da solidariedade econémiea. Esta solida- riedade une-nos, enguanto que as questées politicas nos separam fatalmente. (Obras, IV, 348, 72). Mag entio seria interditada a acupagdo em ques- t6es politicas e filoséficas na Internacional? Abs- traindo tanto dos desenvolvimentos que se fazem no mundo do pensamento como dos acontecimentos que acompanham ou seguem a luta politica, tanto exterior como interior, nos Estados, a Internacional ocupar- ~se-ia 96 da questo econémica? Ela faria estatistica comparada, estudaria as leis da produeio e da distri- uigdo das riquezas, ocupar-se-ia exclusivamente do regulamento dos saldrios, formaria caixas de resis- ~tenefs:~orgenizaria -ereves-locais,.nacionais.e inter- 162. nacionais, constituiria local e internacionalmente as corporagoes de profissio e formaria sociedades coo- perativas de erédito mituo, de consumo e de pro- Gugio, nos momentos e nas’ localidades em que tais eri fonsem possivels? Umit abstracgio destas, apressemo-nos a dizé-lo, é absolutamente impossivel. Nata preopeupacio ex: clusiva dos interesses unicamente econdmicos, seria a morte para o proletariado, Sem diivida que a defesa e a organizacéo destes intereases — questo de vida ou de morte para ele—devem constituir a base de toda a sua acco actual. Mas é-Ihe impossfvel arar af sem renuneiar & humanidade e sem se privar mesmo da forca intelectual e moral necessdria i conquista dos seus direitos econémicos... ., Mas entiéo como resolver esta aparente contr: digdo: por um lado, as questdes filoséticas e polf- ticas ‘devem ser exclufdas do programa da Inter- nacional, € por outro elas devem ai ser discutidas necesaramente? fe problema resolve-se por si pr 'berdade. Nenhuma {eoria filesica ou politica deve entrar, como fundamento essencial, e como condi- sio oficial obrigatéria, no programa da Internacio- nal... Mas isto néo implica que nfo possam e nao devam ser livremente discutidas na Internacional todas as questdes politicas e filoséficas, Pelo con- trario, a existéncia de uma teoria oficial & que ™mataria, tornando-a absolutamente inttil, a dis- cussiio viva. (Obras, IV, 433 a 435, 72). Mas entio a ‘Internacional ‘transformar-se-& numa torre de Babel? Pelo contrério, 36 entio € ue ela constituini a sua unidade real, primeiro eco- Némica e depois necessariamente poiftica; entdo é que ela criari, néo sem diivida de um s6 golpe, a grande polftica da Internacional, nio emanando uma cabega isolada, ambiciosa, muito sibia e no entanto neapaz de abracar as mil necessidades do proleta- iado, por muitos miolos que tena, mas da_aceao absolutamente livre, espontinea e simulténes dos trabalhadores de todos os paises. ‘A base desta grande unidade, que se procura em vio nas ideias filoséficas e politieas do momento, € dada totalmente pela solidariedade dos sofrimentos, dos interesses, das necessidades ¢ das verdadeiras aspiragées do'proletariado de todo o mundo. Esta solidariedade nao se vai eriar, ela existe de facto; ela constitui a propria vida, experiéncia quotidiana do mundo operdrio. (Obras, TV, 420-421, 72). . esta religio de todos os espiritos dogmaticos ¢ absolutes, a paixio da uniformidade a que chamam a unidade e que & o tamulo da liberdade. (Obras, VI, 110, 72). ... esta harmonia é irrealizivel e até nao é de javel. Esta harmonia, 6 a auséneia de luta, a aus cia da vida, é a morte. Em politiea 6 o despotismo. Othem paar toda a histéria e convengam-se que em todas as époeas e em todos os paises em que hé desenvolvimento e exuberdncia da vida, do pen: mento, da acco criadora e livre, houve divergéncia, Iuta intelectual e social, luta de partidos politicos, 6 precisamente no meio destas lutas, e gracas a elas, que as nagGes foram as mais felizes e as mais fortes no sentido humano desta palavra. Esta luta nunca ‘ou quase nunca existiu nas grandes monarquias asifticas: e daf nelas haver auséncia completa de desenvolvimento humano. Vejam por um lado a mo- narguia persa, com as suas tropas inumeriveis ¢ disciplinadas e, por outro lado a Grécia livre, apenas federada, continuamente atormentada pela luta dos seus povos, das suas ideias, dos seus partidos. Quem veneeu? Foi a Grécia. Qual foi a época mais fecunda a hist6ria romana? Foi a da luta da plebe contra o patriciado. E que é que fez a grandeza e a gloria da Itilia da Tdade Média? Certamente no foram nem 0 papado nem o império. Foram as liberdades munici- 164 pais e a luta intestina das opiniges ¢ dos partidos... ‘Nunca me cansarei de o repetir: a uniformidade 6 a morte. A diversidade 6 a vida. A unidade disci- plinar, que 36 se pode estabelocer em qualquer meio social 'em detrimento da espontaneidade eriadora do pensamento e da vida, mata as nagées. A unidade viva, verdadeiramente forte, a que todos nés quere- mos, & a liberdade que cria as livres e diversas manifestagies da vida, exprimindo-se pela Ita: & 0 a harmonia de as fc as. (Corretti, 195 a 197, 72). ae _, Reparem que os que pregam a paz & viva forca, imolagio das conviegdes opostas as necessidades duma unio aparente, e que langam as suas maldi- ges no que chamam a guerra civil, sio sempre moderados, reaceionérios, ou pelo menos homens a quem falta conviceéo, energia e fé. Sio os embus- tein, 0 tepides recisamente os qui cans? P que perdem todas as ‘Uma boa guerra civil, bem franca, bem aberta, vale mil vezes mais do que uma paz corrompida. Allés esta paz nunca & sendo aparente; sob a sua égide enganosa, a guerra continua, mas impedida de se manifestar livremente, toma o earicter de intriga, um cardcter mesquinho, miserdvel, muitas vezes infame. Aliés trata-se agi duma guerra muito mais tebriea do que pritiea, de luta de idelas, no de interesses. E uma luta’ destas 36 pode ter efeitos benéficos para a Internacional; ela contribui necessa~ rlamente para o desenvolvimento do seu pensamento sem trazer o minimo projulzo & sua solidariedade eal, pois esta solidariedade nfo 6 absolutamente nada tedrica, mas prética. (Autonomia, 249, 72) Suponhamos que queremos im ldeias a todas an seogies da Internacional: a que é 165 que isto levaria? A criar uma seita ainda menos mumerosa ¢ a mais impotente que a de Mazzini. (Nettlau, 652, 72). Se a Internacional fosse menos viva..., os deere- tos deste nefasto Congresso de La Haye, encarnacao bastante complacente e fiel das teorias e da pratica marxistas, teriam chegado para maté-la, Teriam tornado simultaneamente ridfcula e odiosa esta magnifica associacéo, na fundagio da qual, gosto de 0 constatar, 0 Sr. Marx teve um papel ‘nfo 6 inteligente como enérgico. ‘Um Estado, um governo, uma ditadura univer- sal! © sonho dos Gregérios Vil, dos Bonifacios VIII, dos Carlos V e dos Napoledes, reproduzindo-se sob novas formas, mas sempre com as mesmas pret s6es, no campo da democracia socialista! Poder-se-& imaginar alguma coisa mais burlesea e também mais revoltante? Pretender que um grupo de individuos, mesmo os mais inteligentes e os melhor intencionados, se- jam capazes de se tornarem o pensamento, a alma, fa vontade dirigente e unificadora do movimento revolucionario e da organizacio econémica do prole- tariado de todos os paises, 6 uma heresia de tal ‘ordem contra 0 senso comum e contra a experiéneia histérica, que, perguntamos com espanto, como é que um homem tao inteligente como o Sr. Marx a pode coneeber? (Os papas tiveram, pelo menos para se descul- parem, a verdade absoluta, que diziam ter nas méos pela grace do Mspfrito Santo e na qual eles pareciam acreditar. O Sr. Marx nao tem de modo algum esta desculpa ‘e eu nfo o insultarei pensando que ele imagina ter inventado cientificamente qualquer coisa que se aproxime da verdade absoluta. (Obras, TV, 342-343, 73). Eu concebo perfeitamente que os déspotas coroados ou nao corados tenham podido sonhar com © eeptro do mundo; mas que dizer dum amigo do proletariado, dum revoluciondrio que diz querer seri 168 mente a emancipacio das massas e que, fazendo-se dirigente e arbitro supremo de todos os movimentos revolucionirios que podem rebentar em diferentes paises, ousa sonhar a submissio do proletariado de fodas estes paises a um pensamento tinico, desabro- chado no seu cérebro! Bu acho que o Sr. Marx é um revoluciondrio muito sério, permanentemente muito sério, que quer verdadeiramente a sublevagéo das massas; e inter- rogo-me como € que ele néo consegue ver que 0 estabelecimento de uma ditadura univrsal, eolectiva ou individual, de uma ditadura se tornaria alids a obra dum engenheiro em chefe da revolugéo mun- dial, regulando e dirigindo o movimento insurrecional das massas de todos os paises como se dirige uma maquina, —que o estabelecimento duma ditadura deste tipo chegaria por si s6 para matar a revolugdo, para paralisar e para deturpar todos os movimentos Populares? Qual € 0 homem, qual € 0 grupo de indi- viduos, por muito grande que seja o seu génio, que ousaria vangloriar-se de poder abracar e compreen- der a infinita diversidade de interesses, de tendén- cias e de acgdes tao diversas em cada pafs, em cada provineia, em cada localidade, em cada profissio ¢ cujo imenso conjunto, unido mas nao uniformizado por uma grande aspiracio comum, e por alguns Prineipios fundamentais que doravante pesaréo na consciéncia das massas, constituiré a futura revo- lugdo social? E que pensar dum Congresso internacional que, xno suposto interesse desta revolugéo, impde ao pro- letarindo de todo o mundo civilizado um governo investido de poderes ditatoriais, com o direito inqui- sitorial e pontifical de suspender federagées regio- nais, de interditar nagies inteiras em nome dum Principio dito oficial e que néo é outro senio o préprio pensamento do St. Marx, transformado pelo voto duma maioria fieticia numa verdade absoluta? (Obras, IV, 349 a 351, 72) 167 mL ‘As ilusies do sufrigio universal As regides mais avangadas da Sufga procura- ram, por volta de 1830, a garantia da liberdade no sufrigio universal. Era um movimento absoluta- mente legitico. Enquanto que os nossos Conselhos legislativos s6 eram nomeados por uma classe de cidadios privilegiados, enquanto existiam diferen- gas, em relacéo ao direito eleitoral entre aa cida- des! e os campos, entre os patricios € 0 povo, 0 poder executivo escolhido por estes Conselhos, assim como as leis elaboradas no seu seio, néo podiam ter outro objecto sendo assegurar e regulamentar 0 do- m{nio de uma aristocracia sobre a nagdo. Era preciso pois, no interesse da liberdade popular, inverter este regitme e substitui-lo pelo da soberania do povo. ‘Uma ver. estabelecido 0 sufrégio universal, acre- ditou-se ter assegurado a liberdade das populagdes. Pois bem, foi uma grande ilusio e podese dizer que a consciéneia desta ilusio levon om varias Tegides & queda e, em todas, & desmoralizacio hoje to flagrante do partido radical. Os radicais néo quiseram enganar 0 povo, como o confirma a nossa imprensa dita liberal, mas eles enganaramse a si prOprios. Eles estavam verdadeiramente convencidos quando prometeram ao povo, por meio do sufrégio universal, a liberdade, e cheios desta convieeio, con- seguiram sublevar a8 massas e subverter os governos aristocréticos estabelecidos. Hoje, instruidos pela experiéneia e pela pritica do poder, perderam a £6 neles proprios ¢ no seu principio, ¢ € por isso que estéo profundamente corrompidos e abatidos. E, com efeito, a coisa parecia tio natural ¢ téo simples: uma vez que o poder legislativo eo poder executivo emanassem directamente da elei¢éo popular, nfo deviam tornar-se a ex pura da vontade do povo e esta vontade poderia produzir 168 outra coisa senéo a liberdade e a prosperidade popular? ‘Toda a mentira do sistema representativo reside nesta ficgéo, segundo a qual um poder e uma cémara legislativa saidos da eleicéo popular devem ou até podem representar absolutamente a vontade do povo. (Obras, I, 36-37, 70). ‘Na Suiga, como em todo o lado, por muito igualitrias que sojam as nossas constitigies pol icas, é a burguesia que governa e 6 a populacio dos trabalhadores, incluindo os camponeses, que obe- dece a estas leis, O povo nao tem tempo, nem a instrugio necesséria para se ocupar do governo. ‘A burguesia, possuindo os dois, tem, néo por direito, mas de facto, o seu privilégio exclusivo. Pois a igual- dade polities no é na Sufea como em qualquer outro lado, senfo uma fiegdo pueril, uma mentira (Obras, TT, 40, 70) Dantes, quando se era um bom republicano, recomendava-se a desconfianca na democracia. Aliés até nem era preciso aconselhé-la: a democracia 6 desconfiada por posigéo, por natureza e também por experiéneia histérica; pois ela foi sempre a vitima € a palavra de todos os ambiciosos, de todos os intriguistas, classes e individuos, que, sob o pre- texto de a dirigir e de a conduzir a um bom porto, exploraram-na e enganaram-na eternamente. Até aqui ela no fez outra coisa sendo servir de esca- dote, (Obras, II, 299, 70-71). ‘A sociedade moderna esta de tal modo conven- cida desta verdade: que todo 0 poder politioo, s¢ja qual for a sua origem ¢ a sua forma, tende necessa- riamente para o 2, — que, em todos os paf- sea em que ela se conseguiu emancipar um pouco, apressou-se a submeter os governos, desde a sua saida da revolucio ¢ da eleicéo popular, a wm con- trolo o mais severo possivel. Ela pos a salvacio da 169 liberdade na organizagio real e séria do controlo exercido pela opinido e pela vontade popular sobre todos os homens investidos pela forca piblica. Em todos os paises que usufruem do governo represen- tativo, e a Suiga 6 um deles, a liberdade 86 pode ‘set real quando este controlo é real. Pelo contrario, se 0 controlo é ficticio, a liberdade popular torna-se também necessariamente uma pura fiegio. (Obras, I, 35.36, 70). © povo, que é forgosamente ignorante ¢ indi- ferente, devido a situagéo econémica na qual ainda se encontra, 86 conhece bem as coisas que o tocam de muito perto, Ele compreende bem os seus inte- rresses quotidianos, as suas ocupagées de todos os as. Para além disso comecam para ele o desconhe- ido, o incerto, e o perigo das mistificagées politicas. Como ele possui uma grande dose de instinto pratico, raramente se engani nas eleigSes comunais, por exemplo. Ele conhece mais ou menos os problemas da sua comuna, interessa-se muito neles, e sabe escolher no sev ‘seio os homens mais capazes de 08 conduairem melhor. Nestas questies, o préprio con- trolo 6 possfvel, pois elas fazem-se sob os olhos dos cleitores, e tocam os interesses mais intimos da sua existéncia quotidiana. © por isso que as elei- es comunais si sempre as melhores, as mais verdadeiramente conformes com os sentimentos, com os interesses e com a vontade popular. ‘As eleigdes para os Grandes-Conselhos assim como para os Pequenos-Conselhos, em que estas tilti- ‘mas se fazem directamente pelo povo, jé séo muito menos perfeitas. As questées politicas, judiciérias e administrativas, cuja solugdo e boa direccdo cons- tituem a principal tarefa destes Conselhos, sio & maior parte das vezes desconhecidas do povo, ultra~ passam os limites da sua prética didria, eseapam quase sempre ao seu controlo; e ocupam-se delas omens que, vivendo numa esfera quase totalmente separada da sua, s4o-lhe quase completamente des- conhecidos; se ele os conhece, s6 & pelos seus dis- 110 cursos, principalmente quando o seu objectivo é captar a benevoléncia popular, e em relagio a pro- bblemas que 0 povo conhece muito male de que muitas vezes ndo compreende absolutamente nada. ‘Segue-se que os Grandes-Conselhos cantonais ji esto e tém de estar necessariamente muito mais ‘afastados do sentimento popular do que os Conselhos comunais. Portanto néo se pode dizer que Ihe sio absolutamente estranhos. Gracas a longa prética da Uberdade e a0 habito do povo suigo de ler os jor- nals, as populages sufgas conhecem pelo menos na generalidade os seus problemas cantonais e inte- ressam-se mais ou menos por eles. Pelo contririo, elas ignoram completamente os problemas federais e nao tém nenhum interesse neles. (Obras, I, 46 2 48, 70). Se'o exereicio do controlo popular nas questses cantonais € muito dificil, nas questes federais € absolutamente impossfvel. Alife estas questées resol- Vemn-se exclusivamente nas altas camadas oficiais, por cima das cabecas das nossas populagies, de modo que a maior parte das vezes, estas tltimas ignoram-nas completamente. (Obras, Tl, 49, 70) ‘A maior parte dos assuntos e das leis, e muitos assuntos e leis importantes, que tém uma relacgio directa com o bem-estar, com os interesses materiais, das comunas, realizam-se por cima da cabeca do ovo, sem que 0 povo se aperceha, se precupe ¢ se meta nisso. Comprometem-no, ligam-no, arrui- nam-no as vezes, sem que cle tenha consciéncia disso. Ele no tem 0 hébito, nem 0 tempo necessério ara estudar tudo isto, e deixa os seus eleitos fazé-lo, les que servem naturalmente os interesses da sua, e'asse, do seu mundo, nfo os seus, e cuja maior arte consiste em apresentar-Ihes as suas medidas e as suas leis sob a forma mais inofensiva e mais popular. O sistema de representacio democratica 6 o da hipo- ctisia e da mentira perpétuas. Ble tem necessidade da estupides do povo e funda nela todos os seus ‘riunfos. (Obras, TI, 43, 70) m © sufrégio universal, como ia dizendo, & a exibigio 20 mesmo tempo mais larga e mais refinada do charlatanismo politico do Estado; um instrumento perigoso, sem diivida, e que exige uma grande habi- Iidade da parte de quem o utiliza, mas que, se souber servir-se dele, é o meio mais seguro de fazer cooperar ‘a3 massas na edificagdo da sua propria priséo. Napo- Teéo II baseou toda a sua forga no sufrégio uni- versal, que nunca iludiu a sua confianga, Bismark fez dele a base do seu Império cnuto-germanico. (Obras, Uf, 168-169, 72). a verdade, reconhecida hoje pelos déspotas mais tolos, segundo a qual as formas ditas cons- titucionais ou representativas no sfo de modo algum um obstaculo ao despotismo estatista, militar, polf- tico e finaneeiro; pelo contrario, elas legalizam 0 despotismo, e, dando-Ihe a aparéneia duma adminis- tragdo popular, podem aumentar consideravelmente a sua forca e’ poder interior. (Estatismo e Anar- quismo, 207, 73). ‘Todas as eleigdes, que desde 0 golpe de Estado de Dezembro, foram feitas directamente pelo povo de Franca, néo foram diametralmente opostas aos interesses ‘deste povo, e a iiltima votagio sobre 0 plebiscito imperial ndo deu sete milhdes de «SIM> 40 imperador? Dir-se-4 sem diivida que o sufrégio universal nunea foi exercido livremente no império, a liberdade de imprensa, a de associagio e de reu- nio, condigdes essenciais da iberdade politica, foram proibidas, tendo 0 povo sido abandonado, sem defesa, 2 acco corruptora duma imprensa estipendiada ¢ duma administragio infame. Seja, mas as eleigées de 1848 para a Constituinte e para a presidéncia, a5 de Maio de 1849 para a Assembleia legislativa, foram absolutamente livres, penso eu. Blas fize- ram-se fora de qualquer presséo ou mesmo inter- Yengao oficial, nas condigdes da mais absoluta liber- 1 dade, E no entanto o que 6 que produziram? one que é q juziram? Apenas __ «Um dos primeiros actos do governo provisério, diz Proudhon, () aquele de que mais se eongratulou, foi a aplieagdo do sufrégio universal. O préprio dia fem que o decreto foi promulgado, nés eserevemos estas, palavras, que entdo podlam passer por um paradoxo: 0 sufrdgio universal é a contra-revolupdo, Pode-se julgar, segundo os acontecimentos, se nés nos enganimos, As eleigdes de 1848 foram feitas, na grande maioria, pelos padres, os legitimistas, pelos Ainketioa, por tudo © que a Franga tom de mais reacciondrio, de mais retrégrado, Na so de outro modo.» ee ae fio, no podia ser e ainda hoje isso no podia ser dovoutro iodo, enguant a desigualiade’ das condigdes econémicas e sociais de vida continuar a prevalecer na organizacéo da sociedade; enquanto a sociedade continuar a estar dividida em duas clas- es, em que uma, a classe exploradora e privilegiada, goza de todas as vantagens da fortuna, da instrucio e do lazer, e & outra, incluindo todo o proletariado, 86 Ihe cabe o trabalho manual, macador e forgado, a ignorincia, a miséria, e a sua acompanhante obri gatéria, a escravatura, no de direito, mas de facto, __ Sim, a eseravatura, pois por muito grandes que sejam os direitos politicos que atribuam a eases mi- Ihdes de proletérios’ assalariados, verdadeiros con- denados da fome, nunea conseguirdo subtrair-los & influéneia perniciosa, ao dominio natural dos diversos representantes da clase privilegiada, desde o padre até a0 republicano burgués mais jacobino, mais ver- metho, (Obras, I, 311 a 313, 70-72). Mas, dir-se-4: os trabalhadores, tendo tomado ‘mais jutzo pela propria experiéncia que fizeram, ndo enviaréo mais burgueses para as assembleias cons- tituintes ‘ou legislativas, 86 enviario. operdrios. Sabem o que vai resultar disto? Os operirios deputa- (0) ein rv lar (Noto de Baton 113 dos, transportados para condigGes de existéneia bur- guesas ¢ numa atmosfera de ideias politicas total- mente burguesas, deixando de ser trabalhadores de facto para se tornarem homens de Hstado, tornar- -se-fo burgueses, o talvez ainda mais burgueses do que os préprios burgueses, Pois os homens nao fazem as posigées, pelo contrério, so as posicdes que fazem 08 homens. E nés sabemos por experiéncia que 05 operdrios burguescs muitas vezes nio sio menos egoistas do que os burgueses exploradores, nem menos prejudiciais para a Internacional do qué os burgueses socialistas, nem menos vaidosos e ridi- culos do que os burgueses enobrecidos. (Obras, V, 194, 69). Quer isto dizer que nés, sovialistas revolucio- nirios, néo queremos o sufrégio universal, e que preferimos tanto o sufrégio restrito como 0 despo- tismo dum tinico? De modo nenhum. O que nds afirmamos, & que o sufrigio universal, considerado isoladamente e agindo numa sociedade baseada na desigualdade econémica e social, nunca serd para 0 ovo sendo um chamariz; que, da parte dos demo- cratas burgueses, nunca seré sendo uma odiosa men- tira, 0 instrumento mais seguro para consolidar, com uma aparéneia de liberalismo e de justica, em detri- mento dos interesses e da liberdade populares, eterna dominagio das classes exploradoras e possui- doras. Por isso nés negamos que o sufrigio universal seja um instrumento de que 0 povo possa servirse para conquistar a justica ou a igualdade econdmica e soeial; visto que) como acabo de o demonstrar, 0 suftégio universal exercido... no melo da dependén- cia e da ignordncia popular... produziré necessaria- mente e sempre um voto contrario aos interesses do ovo. ‘A partir disto, nés afirmamos que os preten- sos democratas socialistas que, nos pafses em que © sufrigio universal ainda néo existe, se esfoream or persuadir 0 povo @ conguisté-lo acima de tudo, 14 como o fazem hoje os chefes do partido da democracia socialista na Alemanha, dizendo-lhe que a liberdade politica é a condigao prévia da sua emancipagio eco- némica, ou so vitimas dum erro funesto, ou entao enganam o povo. Ignorardo realmente, ou fazem que ignoram, que esta liberdade polities prévia, — isto 6, existindo necessariamente fora da igualdade econé- mica e social, visto que ela deveré preceder esta ‘iltima, —seré esencialmente uma liberdade burgue- ssa, isto 6 baseada na escravatura econémica do povo, por isso incapaz de produzir 0 seu contrario e de criar esta igualdade econémica ¢ social que implica a destruigao da liberdade exclusiva dos burgueses? ‘O que para mim é certo, 6 que hoje jé nao ‘hd piores inimigos do povo do que os que procuram desvid-lo da revolugio social, a tiniea que Ihe pode dar a verdadeira libeniade, a justica e o bem-estar, para o arrastar novamente para as experiéncias enganosas destas reformas ou destas revolugdes, exclusivamente politicas, das quais ele foi sempre 0 instrumento, a vitima ¢ 0 papalvo. ‘A revolugéo social nfo exclui_absolutamente nada a revolugio politica. Pelo contrario, ela imp!i- ca-a necessariamente, mas imprimindo-lhe um ca- rieter totalmente novo, o da verdadeira emancipacio o jugo do Estado pelo povo. Visto que todas as instituigdes e todas as autoridades politicas néo foram criadas, definitivamente, senéo com o fim de proteger e de garantir os privilégios econémicos das classes possuidoras e exploradoras contra as revoltas do proletariado, 6 claro que a revolucéo social deveré destruir estas instituigdes e estas auto- ridades, nem antes, nem depois, mas AO MESMO TEMPO que levar ‘@ sua mao audaciosa as bases econémicas da servidao do povo. ‘A revolugio politica, contempordnea e total- mente insepariivel da revoluedo social, da qual seré, por assim dizer, a expresso ou a manifestacéo nega- tiva, no seré mais uma transformagio, mas uma 175 grandiosa liquidagéo do Estado. (Obras, IV, 195 a 198, 70). Devese... excluir sem piedade a politica dos burgueses democratas ou socialistas burgueses, que, declarando que «a liberdade politica é a condi¢ao prévia da emancipacao econdmiea», nfo podem que- ter dizer com estas palavras outra coisa senio isto: «as reformas politicas, ou a revolugdo politica, devem preceder as reformas econdmicas ou a revolucéo econémica; os operirios devem aliar-se, por isso, aos burgueses mais ou menos radicais ‘para fazer com eles’ as primeiras, sob a condigéo de fazer, em seguida, as Gltimas contra eles. (Obras, 191-192, 69) © absurdo do sistema marxista consiste precisa- mente nesta esperanca de que encurtando o pro- grama socialista, desmedidamente, para que seja aceite pelos burgueses radicais, transformard estes {iltimos em servidores inconscientes involuntérios da revolucéo social. ® esse o grande erro; todas as experiéncias da histéria demonstram-nos'que uma alianca feita entre dois partidos diferentes trans- forma-se sempre em proveito do mais retrogrado; essa alianca enfraquece necessariamente o partido mais avancado, enfraquecendo, falseando 0 seu pro- grama, destruindo a sua forea moral, a sua confianea em si préprio; enquanto que quando um partido retrogrado mente, esté sempre e mais do que nunca na sua verdade. © exemplo de Mazzini que, apesar da sua rigides republicana, passou toda a sua vida em transacgdes com a monarquia, © que, com todo © seu génio, acabou por ser o papalvo’ dela, este exemplo nfo o podemos perder. Quanto a mim, nfo hesito em dizer que todas as galantarias marxistas com 0 radicalismo, tanto reformista como revolu- cionério, dos burgueses, nfo podem ter outros resul- tados senio 2 desmoralizacio e a desorganizacio da forea nascente do proletariado, e consequente- 176 ‘mente uma nova consolidagio da forga estabelecida dos burgueses. (Obras, IV, 385-386, 72). ‘A quem duvidar disto, nés 6 teremos de mos- trar o que se passa hoje na Alemanha, onde os Srgéos da democracia socialista cantam hinos de alegria ‘ao ver um Congresso de professores de economia politica burguesa recomendar o proletariado da Ale- manha 4 alta e paternal protecgao do Estado, e nos partidos da Suiga, em que prevalece o programa marxista, em Genebra, em Zurique em Bale, onde a Internacional desceu ao ponto de jf ndo ser senfio uma espécie de caixa eleitoral em proveito dos bur- gueses radicais. Bstes factos incontestéveis pare- cem-me mais eloquentes do que todas as palavras. Eles so reais, e so légicos na medida em que sio um efeito natural do triunfo da propaganda marxista, E & por isso que nés combatemos a todo © custo as teorias marxistas, convencidos de que se las triunfassem em toda a Internacional, pelo menos no teriam deixado de matar o seu espirito em todo ‘© mundo. (Obras, TV, 405-406, 72) Estamos cansados de todas as ficgdes, tanto religiosas como politicas. O povo esté cansado de se alimentar com fantasmas e com fébulas. Este ali- mento nao engorda. (Obras, V, 323-324, 71). ‘A Internacional nfo repele a politica, duma ma- neira geral; ela seri até obrigada a envoiver-se nela enquanto for constrangida a lutar contra a classe burguesa. Hla repele unicamente a polftica burguesa. (Obras, VI, 336, 72) 2 Face as realidades politicas (Bakunine no foi um revoluciondrio edoutri- nério». A rigidez do capitulo precedente 6 duma wt conveniéncia tdctica. Vejamos 0 «Prefécio» Puy ejamos primeiro. um nto duma carta de Bakunine a Gambuzzi, de 16-2-1870, Tinha dissua- dido Gambuzzi de ir a Franga; ele regoatja-se que este tenha renunoiado a este projecto...) .. € que tonhas regressado a Napoles, para te fazeres eleger deputado, se possivel. Ese, afinal de contas, nfo fores ein susedido nett, project, odes sempre voltar ao teu velho projecto— Ovqual no serd demasiado tarde; podes estar bem oo niet ea sn decidido e apaixonado, empurro agora os meus ami- gos para se fazerem cleger deputados. —® que as ‘circunstincias e os tempos mudaram. Em. primeiro lugar, os meus amigos, a comecar por ti, sfio de tal modo aguerridos nas nossas ideias, nos nossos prinefpios, que j4 no hé perigo de poderem esque- ‘cé-los, deformé-los, sacrificé-los, e tornar a cair nos seus antigos hébitos politicos. -- Depois, os tempos ‘tornaram-se de tal modo graves, o perigo que ameaca a liberdade de todos os paises & de tal modo extraor- dindrio, que & preciso que os homens de boa vontade setejam sempre na brecha em toda a part, ¢ sobre 0s nossos amigos estejam numa : Gue.a_sun influeneia be torme o mas eficae pesive. (Nettlau, Itélia, 189). ‘Vejamos agora uma passagem duma carta a cotae Corret, caorita em i8tB: Battunine aconseTha 08 seus companheiros de Itélia a uma colaboragio com partidos burguescs, para atingirobjectivas ime- iatos puramente polit ote an nao sip, tebicos utopistas, querem for- mar um partido activo e forte, capaz de transformar, num prazo tio préximo quanto possivel, a vos bola Tilia mum pals de liberdade, de igualdade, de justia, de felicidade de honra para todos. Voeés Organizam-se para a acto; por conseguinte, no vos é permitido ignorar nenbum dos elementos qu constituem realidade actual. Conhecem bem, com 178 certeza, @ forga dos erros que teriio de combater e também a dos elementos que sem serem precisa~ mente 0s vossos, so forcados a tornar-se até um certo ponto e durante todo o periodo de transicao, numa espécie de vossos aliados, de vossos amigos, tendo os mesmos adversérios a combater. Os mazzic nianos, embora doutra maneira e por outras razdes diferentes das vossas, so inimigos renhidos deste governo que, temendo-vos muito mais do que a eles, ‘omega @ perseguir-vos em toda a Itélia e perseguir- Vos ao corrente de todos os seus empreendimentos, ainda mais feroz. Até um certo ponto, sereis pois forcados a andar paralelamente com eles, a manter- vos ao corrente de todos os seu sempreendimentos, € néo s6 deixi-los fazer, mas mesmo algumas vezes, sem divida em rarissimas ocasiées, ¢ tendo em conta maior prudéncia, secundé-los indirectamente, e a0 fazé-lo, podeis ter’ esperanca de enfraquecer dos- moralizar 0 governo actual, o vosso inimigo dora- vante mais encarnigado, mais forte e mais ineémodo. Em todas as lutas dos mazzinianos ou dos bertania- os, quer dizer, de republicanos burgueses contra 0 overno, voots abster-se-do, sem diivida, o mais pos- alvel e tanto quanto possivel de o fazerem sem se Suicidarem moral e materialmete; mas sempre que ‘Vooés se sentirem obrigados a sair desta passividade aparente, nfo sairdo dela, & preciso dizé-lo, senio Para tomar o seu partido contra o governo. ‘Voeés serfio pois obrigados a organizarem-se © a seguirem paralelamente a eles, para poderem tirar proveito, para a realizacio dos -vossos objec- tivos, de cada um dos seus movimentos. Mas livrem-se em, na verdade, de se aliarem com eles, a ponto de ‘se confundirem, nunca os deizem penetrar na vossa organizagao, na qual eles nunca quererio entrar Sendo para a deturpar, senio para a desviar do seu gbiectivo, sendo para a paralisar e para a dissolver. Eles, mesmo nfo tendo essa intencio, trabalhariam Indirectamente para esse objectivo, téo contraria 6 sua natureza & vossa. (Cerretti, 191-192). 179 [Torturado pela doenca que ndo the dava o ‘mais pequeno descanso, Bakunine abandonou a vida ‘militante em 1873; ele morreu menos de trés anos depois. Bis aqui fragmentos de alguns cscritos da- tando deste tiltimo periodo da sua vida. Em pri- ‘meiro lugar uma carta ao seu amigo A. Reichel, de 19-10-1875:) E tu, meu caro amigo, que fazes? Como é que concilias 0 teu mundo interior, o teu santuario, com a atmosfera pestilenta da reaceéo triunfante em todo o lado e com as duras condigées de vida na sociedade? Quanto a mim tornei-me um verdadeiro eremita, € procuro reencontrar o meu velho eu, por meio da contemplacio calma —se é que o consigo? Nao sel.—Portanto é preciso que eu te confesse ‘uma coisa, totalmente afastado da vida activa, sinto © perigo ‘de me tornar um bismarkiano—e no entanto detesto, nao o proprio Bismark —é um fol- gazio muito consequente— mas o bismarkianismo, como anteriormente, com todo 0 coracio—mas ainda odeio mais 0 catolicismo, o clericalismo hoje triunfante em todo o lado, ou aparentemente a ponto de triunfar.— uma afronta para a humanidade, um insulto para tudo o que nos 6 razoivel, honesto, hhumano; —eu preocupar-me-ia muito pouco com 0 clero se ele limitasse a sua actividade a embrutecer ‘ainda mais os velhos burros—mas em Franca, na Itélia, em Espanha, na Bélgica, e também em muitos cantos da Suica, como por exemplo Tessin, ele toma nas suas miios pesadas toda a educacdo das criancas, 6 futuro, e 6 uma verdadeira desgraca;...—e apesar de eu saber muito bem que Bismark no faz guerra 4 religido do Bom Deus sendo para pér em seu lugar a religifo do Estado, que sempre detestei, e da cria- dagem do Estado — tenho no entanto de observar que se no houvese politica bismarkiana actualmente na Europa, tornar-nos-iamos todos dntro de pouco tempo carne de cura — presentemente, parece-me que € novamente itil, necessario, fazer ressoar o grito esquecido dos enciclopedistas: Esmaguemos a infi- 180 mia —e como nos meus bons velhos tempos fané- flcos, em que costumava dizer: «De que tmpareia. lidade me falar, deixemoe a imparcialidade 1o Bora Deus!» —, do mesmo modo estou novamente muito ppouco inelinado a preocupar-me com uma legitim’. ide abetracta: tudo’ que destl o'levealismo feos frades 6, quanto a mim, bom, timo, (Nettian, 828). ea Len & quanto @ mim, bom, justo ¢ legitimo: bmi et und grec ena craft eet alemao). Numa carta a B. Beller, de 210-1815, oT trobleme, doa "10 problema dos padres... 6 um problema mun- dial que domina hoje todos os outros — ao, ponto dk... me tornar relativamente bismarilano — éhlaro que no, eu 86 eaminho a0 lado de Bismark, cont manda Re ew propa (Nata, 4) agora wma carta a Blisée Be w2187)4 ‘ eels de _lsstou de acordo contigo em que a hora da revo- lugéo passou, nfo por causa dos horrivels desastres de que fomos testemunnas e dos torrivels erros de ue fomos vitimas, e mais ou menos culpados, Mas Porque, para meu grande desespero, constatele cons. {ato todos os dias de novo, que o pensamento, ¢ esperanga e a paindo revoluciondrias nfo ae eneon- am absolutamente pada nas massas e quando esto asusentes, bem podemos esfatfar-nos, nada. se fark, j;Aiimito a'pacitncla © © perseveranca herdien dos Jurassianos e dos Belgas este itimos Mohicanos ae fogo da intmacional —que apenar de todas aa ificuldades, adversdades, o apesnr de todos on cba. culos, no meio da indiferenea geral, opocm a sua fronte’ obstinada ao curso. das” coisas totalmente verso, continuando a fazer tranquilamente 0 due ‘oor antes das catigtrofe, no Momento on gue iovimento era ascendente e que o minim criava uma forea, ane ¢ minimo evferse Quanto a mim, meu caro, torne-me muito velho, ‘muito doente, muito cansado, 6 preciso dio, 181 em muitos pontos de vista muito desiludido, para sentir o desejo ea forea para participar nesta obra. —Retirei-me decididamente da luta, e passarei o Testo dos meus dias numa contemplacéo nao ociosa, até pelo contrario, muito activa intelectualmente, ¢ Julgo que nfo deixaré de produzir qualquer coisa ae wt. ‘Neste momento uma das paixdes que me domi- nam é uma imensa curiosidade—.. Quais os actores ¢ quais os ceniirios; —a0 fundo e dominando toda a situagéo na Europa, 0 imperador Guilherme e Bismark & cabeca dum grande povo lacaio. Contra eles, o Papa com os seus jesuitas, toda a Igreja catélica ¢ romana, senhores de milha- res, dominando uma grande parte do mundo pelas mulheres, pela ignordncia das masses ¢ pela incom- parivel habilidade dos seus espides inconfessdvei tendo em todo o lado os seus olhos ¢ as suas méos. ‘Terceiro actor. — A Civilizagéo francesa, encar- nada em Mac-Mahon, Dupanloup e Broglie, pren- dendo as cadeias dum grande povo decaido—em seguida, em volta de tudo isto, a Espanha, a Austria, a Riéissia mostrando cada uma delas a sua mé cara de ocasiio—e ao longe a Inglaterra, néo podendo decidir-se a voltar a ser qualquer coisa, ¢ ainda mais longe a Repiiblica-modelo dos Estados Unidos da América enfeitando-se j& com a sua ditadura militar. Pobre humanidade! # evidente que cla s6 conseguird sair desta cloaea por uma enorme revolucio social. — Mas como é que cla fark essa revolucdo? Nunca a reacgio internacional da Europa esteve tao bem armada contra qualquer movimento popular. — Ela fea da repressio uma nova ciéncia que se ensina sistematicamente nas escolas militares aos tenentes de todos os paises. — E 0 que & que temos, para ata~ car esta fortaleza inexpugndvel? — As massas desor- ganizadas, Mas como organizi-las quando elas nem Sequer esiéo suficientemente apaixonadas pela sua 182 salvacdo, quando néo sabem o que é que devem querer € quando no querem o que unicamente as ode salvar. (Netlay, £22-529) videntemente que se compreende que Baku- nine tonha desejado a vitéria dos republicanos fran. ceses nas eleigoes de 1876, como mostra este frag- mento dum manusorito:] Todavia nés vemos hoje a Franga, este nobre pais, que parece ter recebido a missio de fazer muito mais em proveito de todo o mundo, do que em seu proprio proveito, as experiéncias mais auda- ciosas e frequentemente mais cruéis, tentar um fltimo esforgo para se constituir, apesar de todos os entraves que a prendem, num Estado republieano @ franeamente democratic. muito provivel que nas proximas eleigées {202:187e} trate o partido republcano: tanto os que todos os partidos que Ihe so opostos jé nao sdo propriamente partidos, mas intrigas sijas e miserfveis, tendo a tolice por insignia, e nenhuma outra base séria senfo o Clericalismo juseuitico- ~romano, isto é, 0 timulo da Franga, (Nettlau, 824, 75 ow 76). quanige Benoit Maton conta a alegria de, Bakunine tuando conheceu esta vitéria dos licanos ele tinha esperado:] ooo Eu vi este velho anarquista rejubilar de alegria com o antineio da grande vit6ria eleitoral republ cana de 20 de Fevereiro de 1878. — ¢ afirmas que «56 do jogos de criancas>. Eu no compartilho comple- tamente da tua opiniéo neste ponto, 1 detestivel uma regulamentagéo excessiva, e julgo, como tu, que «as pessoas sérias devem tragar uma linha dé conduta ¢ nfo se desviar dela». Portanto tentemos compreendermo-nos um ao outro. A fim de estabelecer uma certa coordenagio na cei, coordenagio necessfria, erelo eu, entre pessoas Que ‘tendem para o mesmo’ objectivo, impoem-se 197 determinadas condigdes: um certo mimero de regras ligando cada um a todos, determinados pactos e acordos renovados frequentemente—se falta tudo isto, se cada um trabalha como Ihe apetece, as pes- 0a mais sérias encontrar-se-o clas proprias numa situagdo em que os esforgos de uns serao neutrali- zados pelos dos outros. Disto resultaré a desarmonia endo a harmonia e a confianca serena para a qual és. tendemos. ++. Bu quero que no nosso trabalho haja ordem uma confianea serena, e que nem uma nem outra sejam os resultados de ordens duma ‘inica vontade, mas da vontade colectiva, da vontade bem organi zada de mumerosos companheiros disseminados em numerosos paises... Mas para que uma tal descen- tralizagio seja possivel, é preciso ter uma auténtica organizacio, e uma tal organizacéo nao é possivel sem um certo grau de regulamentagio, que ao fim © a0 cabo no é senao o resultado dum acordo mituo ou dum contrato. (Maximoff, 379-380, 68-70). Tratase da disciplina e da confianca assim gomo da unio. So coisas excelentes quando sio ‘bem aplicadas, funestas quando se dirigem a quem nfo as merece. Amante apaixonado da liberdade, confesso que desconfio muito dos que tém sempre nna boca a palavra disciplina. (Obras, II, 296, 70-71). Por muito inimigo que seja do que se¢ chama em Franca a disciplina, no entanto reconhego que uma certa disciplina, ido automética, mas. volun- thria e reflectida, e estando perfeitamente de acordo com a liberdade dos individuos, continua a ser seré. sempre necessiria, todas as vezes que virios individuos, livremente unidos, empreenderem um trabalho ou uma acco colectiva qualquer. Esta dis- ciplina no & pois senfo a concordincia voluntéria reflectida de todos os esforgos individuais para um objective comum. No momento da accéo, no meio 198 da luta, os papéis dividem-se naturalmente, segundo as aptiddes de cada um, apreciados e julgados por toda a colectividade: uns dirigem e ordenam, outros executam as ordens. Mas nenhuma funcio se petri- fica, se fixa e fica irrevogavelmente ligada a ne- nhuma entidade ou pessoa. A ordem e a promogio hierdrquicas no existem, de modo que o comandante de ontem pode tornar-se o subalterno de hoje. Nin- guém se cleva acima dos outros, ou se se eleva, no 6 sendo para cair logo a seguir, como as ondas omar, voltando sempre ao nivel salutar da gual- ‘Neste sistema jA nfo hi propriamente poder. © poder baseia-se na colectividade, e torne-se a ‘expresso sincera da liberdade de cada um, a reali- ‘agi fiel e séria da vontade de todos; 56 obedecendo cada um de per si, ao chefe do dia, este 86 ordenard, © que ele proprio quer. Eis a disciplina verdadetramente humana, a isciplina necessiria & organizago da liberdade. (Obras, II, 297-298, 70-71). Doravante que cada grupo, cada seccio de ‘grupo, nfo receba no seu seio um novo membro Sendo por unanimidade, nunca unicamente pela maio- ria das vores, isto & de todos os membros que fazem parte desta seccio de grupo.—Se s6 sio dois, ndo devem admitir um terceiro sendo quando estiverem os dois perfeitamente de acordo e igual- mente convencidos da utilidade, da inteligéncia, da dedicagéo, da energia e da descri¢io que ele ‘vos traré. E nesta escolha nunca se devem deixar con- Guzir por nenhuma outra consideracéo senio 0 Programa da Alianga, a concorréneia perfeita dos Seus sentimentos e das suas ideias com este pro- grama, ¢ a sua capacidade real de os seguir com energia, com descrigo e com perseveranca ¢ pru- déncia, 'e sobretudo a sua capacidade de renunciar 199 ara sempre a qualquer iniciativa individual isolada ede subotdinar sempre a sua accao 4 vontade colec- tiva—eapacidade que os vaidosos ¢ os ambiciosos nunca tm, pois o que eles procuram, muitas vezes —sem eles préprios repararem nisso, —o que pro- curam em todas as colectividades, tanto piblicas ‘como secretas, que encontram, é um pedestal para, si, um trampotim para a sua gléria on clevacio pessoal — por causa disso, impusemos a nés proprios a lei de nunea receber no nosso sanctum sanctorum, na nossa intimidade e fraternidade colectiva, nenkum ambieioso e nenhum vaidoso, por muito parecidas que sejam as suas ideias e as suas tendéncias apai- xonadas com as nossas, por muito inteligentes ‘sébios que sejam e por muito grande que pudesse ser 8 utilidade que as suas relagdes e a sua influéncia no mundo nos trouxesse. Preferimos resignarmo-nos do que recebé-los entre nés, pela certeza que temos de que a sua ambicdo ou a sua vaidade néo deixariam, de trazer para o nosso mefo, mais tarde ou mais eodo, os germes da divisio e' da desorganizacio. Eles querergo tornar-se chefes, dirigentes, mestres, nfo 0s reconhecemos de modo nenhum entre nés e como socialistas revolucionérios ndo os devemos reconhecer. Nao pode e nfo deve ser dos nossos senéo © que & capaz de, individualmente, imergir com- pletamente na solidariedade fraternal e na accéo colectiva dos aliados—néo para se tornar um escravo, mas pelo contrério para se retemperar nela e para se reencontrar forte, livre, inteligente, pela forea, pela liberdade, pela inteligéncia e pela assisténcia, sempre activa e sempre presente, de todos. (Nettlau, 283-284, 72). [is aqui trés artigos do . O socialista, pelo contritrio, apoia-se nos seus direitos positives & vida e a todos os prazeres tanto intelectuais morais como fisicos da vida. Ele ama a vidi gozi-la plenamente. Como as suas conviecdes fazem Parte de si préprio e como os seus deveres em rela- Glo & sociedade esto indissoluvelmente ligados aos Seus direitos, para ser fiel a uns e a outros, teré de viver segundo a justica, como Proudhon, e se necessirio morrer como Babeuf; mas nunea dir que a vide da humanidade deve ser um sacrificio, nem que a morte é a sorte mais doce. (Obras, I, 42-48, 67). ‘sem nos preocuparmos com as consequéncias priticas, primeiro de tudo queremos a verdade ¢ 96 a verdade. Além disso, temos esta £6, que, apesar de todas as aparéneias do contrério, apesar de todas as sugestoes receosas duma prudéncia politica, € céptica, 86 a verdade pode criar o bem pritico dos homens. 204 Tal é o primeiro artigo da nossa £6; e forcar- -vos-emos a Feconhecet que também. temos uma. somente, nunca olha para trés, mas sempre para a frente. (Obras, VI, 114-115, 72) Para mim, socialista revolucionério, inimigo fidagal de todas as aristocracias, de todas as tute- las, penso pelo contrario que é preciso dizer tudo a0 povo, porque é a tinica maneira de provocar a sua emancipacéo répida e completa. (Obras, VI, 301, 72). 86 com a verdade se pode arranjar forcas para combater o mal de que sofremos. (Nettlau, + 252, 45). a meia-verdade & téo ilégica em teoria como prejudicial na prética, (Obras, V, 241, 69). Percebes, enfim, que sobre a mentira jesuitica, niio se pode construir nada s6lido, nem duradouro; que nio € sobre as paixdes vis e baixas que se deve Spoiar a acgéo revoluciondria. (Correspondéneia, 379, 4) I. VIAS PARA A SOCIEDADE SOCIALISTA 1 Destruir? ‘Ninguém pode querer destruir sem ter pelo me- nos uma imaginagio distante, verdadeira ou falsa, da ordem das coisas que deveria, segundo ele, suce- der & que existe presentemente: e quanto mais viva, 6 a imaginacio nele, mais forte se torna a sua forca destrutiva, e mais ela se aproxima da verdade, isto 6, mais est4 ‘conforme ao desenvolvimento neces- rério do mundo social actual, mais os efeitos da sua, accio destrutiva se tornam salutares e iiteis. Pois, 8 acco destrutiva é sempre determinada, no s6 na sua esséncia e no grau da sua intensidade, mas ‘também nos seus modos, nas suas vias e nos meios que ela emprega, pelo ideal positivo que constitui a sua inspiragdo primeira, a sua alma. (Obras, VI, 66-67, 72). ios, no componhamos ipadamente constituigGes colocando-nos como legisladres do povo. Lembremo-nos que @ nossa mis- sto 6 outra: nés néo somos perceptores, mas uni- camente os precursores do povo; esti a nosso cargo tragar o caminho; e 0 nosso fim no é tanto tedrico 207 amo pritic. (Aos meus Amigos Russoe ¢ Polaco B impossivel determinar uma forma conereta, universal e obrigatéria para o desenvolvimento inte- rior e para a organizaco politica das nacdes; estando subordinada a existncia de cada uma a uma quan- tidade de condigSes histérios, geogriticas e econé- micas diferentes’ e que nunca permitirdo estabelecer um modelo de organizacio igualmente bom e acei- tével para todas, Uma tal empresa, total provida de utilidade pritica, daria prejuizo, ali 4 riqueza e 4 espontaneidade da vida que gosta da diversidade infinita, e o que ainda é mais importante, seria contréria ao’ proprio principio da liberdade. Portanto h& condigdes essenciais, absolutas, fora das ‘quais a realizacéo pritica e a organizagdo da liber- dade serdo sempre impossiveis. (Nettlau, 222, 64-67) 3 Aboligao do Estado. Abolicgéo do direito de heranca. Abolic&o, dissoluefo e bancarrota moral, poll- tiea, judiciéria, burocratica e financeira do Estado tutelar, transcendente, centralista. abolicdo da magistratura do Rstado, todos 0s juizes deve ser eleitos pelo povo; aboligto dos cédigos criminais ¢ civis que esto em vigor actual- mente na Europa— porque todos eles, igualmente inspirados pelo culto de Deus, do Estado, da familia religiosa ou polticamente consagrada, e da proprie- dade — so contrérios ao direito humano, ¢ porque 0 ebdigo da liberdade 86 poderia ser criado unica- mente pela tiberdade, (Nettlau, 222, 64-67). ‘A inveraio do Estado e do monopélio finaneeiro actual, tal 6 pois o objectivo negative da revolugio 208 social. Qual seré o limite desta revolugio? Em teoria, pela sua légica, ela vai muito longe. Mas a pritica fica sempre atrés da teoris, porque esté submetida a uma multiplicidade de condigées sociais, cujo conjunto constitui a situagio real dum pais, © que pesam necessariamente em qualquer revolugao popular. O dever dos chefes ser, em vez de impor as suas fantasias as massas, ir tio longe quanto 0 permitirem ou o obrigarem o instinto e a8 aspiragdes populares. (Cerretti, 184, 72). [A abolicio do Estado] néo conseguiria atin-. gir-se com um s6 golpe, pois tanto na histéria como nna natureza fisica nada se faz de uma s6 vez. Mesmo 0s revolucionérios mais répidos, mais inesperados e mais radicais foram sempre preparados por um longo trabalho de decomposicio e de nova formagéo, trabalho subterréneo ou visivel, mas nunca interrom- pido e sempre crescente. Pois também para a Inter- nacional, néo se trata de destruir de um dia para ‘0 outro todos os Estados, Tenté-lo ou apenas sonhé-lo seria uma loucura. (Nettlau, 608, 72). Seré preciso mostrar como & que o direito de ‘heranga origina todos os privilégios econémicos, polf- tieos e sociais? # evidente que a diferenca de ciasses, 86 se mantém por ele! Pelo direito de heranca, tanto as diferenges naturais como as diferencas passage! ras de fortuna ou de felicidade que podem existir entre 0s individuos e que deveriam desaparecer, eternizam-se, petrificam-se por assim dizer, ¢, tor nando-se diferencas tradicionais, eriam os privilégios de nascenca, fundam as classes e tornam-se uma fonte permanente de exploragéo de milhdes de tra- alhadores por milhares de homens bem nascides. Enquanto funcionar o direito de heranga, nfo 209 leréexistir igualdade econdmica, social e politica rrr opressio e exploragao. (Obras, V, 201, 69). ‘O que nés queremos ¢ devemos abo, & 0 direito de heranga fundado pela jurispradéncia ¢ consti- tuindo a base da familia juridica e do Estado. ‘Também se compreende que nés nfo tenciona- ‘mos abolir a heranga sentimental. Tncluimos nesta denominaclo a heranga que faz passar para as mios dos filhos ou dos amigos objectos de pequeno valor que pertenceram aos seus amigos ou aos seus pais que faleceram, que por terem sido utilizados por cles durante tanto tempo conservaram, por assim dizer, 0 seu cunho pessoal. A heranca séria, 6 a que assegura aos herdeiros, quer completamente, quer mesmo #6 em parte, a possibilidade de viver sem trabalhar, prevalecendo sobre o trabalho colec- tivo quer a renda da terra, quer o interesse do capital. Nés achamos que o capital, agsim como a terra, numa palavra todos os instrumentos ¢ todas as matérias-primas do trabalho, deixando de ser transmissiveis pelo direito de heranca, tornam-se para sempre a propriedade colectiva de todas as associagdes produtivas. ‘A. igualdade e consequentemente também a emancipago do trabalho © dos trabalhadores 36 se atingem por este prego. Poucos sio os operirios que nfo compreendem que no futuro a aboligéo do direito de heranca seja a condi¢éo suprema da igualdade. Mas hi-os que eceiam que se a abolissemos presentemente, antes de uma nova organizagio social asseguarar o des- tino de todas as criancas, sejam quais forem as condigées em que tiverem nascido, as suas eriangas, depois da morte dos pais, ficariam na miséria. «Como! dizem cles, amealhei com 0 suor do meu rosto, condenando-me as mais cruéis privagées, duzentos, trezentos ou quatrocentos francos, © 05 meus filhos ficarao sem eles!>—Sim, ficardo sem les, mas em compensac&o reeeberdo ‘da sociedade, 210 sem nenhum prejuizo dos direitos naturais da mie e do pai, um sustento, uma educagio e uma instrugio que vooés nio seriam capazes de Ihe assegurar com trinta ou quarenta mil francos, Pois é evidente que Jogo que for abolido o direito de heranga, a socie- dade deveré tomar a seu cargo todos os gastos do desenvolvimento fisico, moral e intelectual de todas as criangas de ambos 0s sexos que nascerem no seu selo, ‘Muitos pretendem que abolindo o direito de heranga, destruir-se-& 0 maior estimulante que im- pele os ‘homens ao trabalho. Os que pensam assim consideram o trabalho como um mal necessério ou, para falar teologicamente, como o efeito da maldicio que Jeova, num momento de célera, langou contra a infeliz espécie humana, e na qual, por um capricho singular, incluiu toda a sua eriagéo. Sem entrar nesta grave discussio teolégica, tomando por base o simples estudo da natuneza humana, responderemas a estes difamadores do tra- balho, que este fitimo, longe de ser um mal ou uma dura necessidade, &, para todo o homem, na posse das suas faculdades, uma necesidade. Para se asse- gurar disso, cada um pode fazer uma experiéncia consigo préprio: condenar-se apenas por alguns dias @ uma inace&o absoluta, ou mesmo a um trabalho estéril, improdutivo, estipido, e veré se ao fim no se sentir’ o mais infeliz e © mais humilhado dos homens. © homem, pela sua propria natureza, é foreado a trabalhar, como & forcado a comer, a beber, a pensar, a falar. Se hoje o trabalho 6 maldito, 6 porque ele excessivo, embrutecedor, e forgado, 6 porque ele elimina o lazer e priva os homens da_possibilidade de gozar a vida humanamente; 6 porque eada um, ou quase cada um, é forgado a aplicar a sua forca produtiva no género de trabalho que convém menos fs suas disposicées naturais, © dia em que o trabalho muscular e nervoso, manual e intelectual simultaneamente, for conside- 211 ado como a maior honra dos homens, como o sinal da sua virilidade e da sua humanidade, a sociedade estaré salva; mas este dia néo chegaré enquanto durar o reino da desigualdade, enquanto o direito de hheranga no for abolido. (Obras, V, 202 205, 69) ‘Uns colocam-se em pleno futuro e, tomando como ponto de partida a propriedade’ colectiva, acham que j4 nfo hi necessidade de falar de direito de heranga; n6s, pelo contririo, partimos do pre- sente, encontramo-nos sob o regime da propriedade individual triunfante, e, caminhando para a proprie- dade colectiva encontramos um obstéculo: o direito de heranga; pensamos pois que & preciso inverté-lo, aboli-lo. O'relatério do Conselho geral diz que 0 facto juridieo nunca sendo senéo a consequéncia dum facto econémico, basta transformar este ‘iltimo para aniguilar o primeiro, © incontestvel que tudo © que se chama direito juridico ou politico nunca foi na historia senio a expresso ou o produto dum facto realizado. Mas também 6 incontestével que depois de ter sido um efeito de actos ou de factos anteriormente realizados, o direito torna-se por sua vvez a causa dos factos ulteriores, torna-se ele proprio um facto muito real, muito forte, e que é preciso inverter se se quiser atingir uma ordem de coisas diferente da que existe. Foi assim que o direito de heranga, depois de ter sido a consequéncia natural da apropriacdo violenta das riquezas naturais ¢ s0- ciais, tornou-se mais tarde a base do Estado politico eda familia jurfdica, que garantem e sancionam a propriedade individual. (Guillaume, 1, 202, 69). ‘A aboligio do direito de heranca pode fazer-se por duas vias: ou pela das reformas sucessivas, ou pela revolugdo soctal. 212 Podera fazer-se pela via das reformas nos paises felizes, muito raros, para nio dizer desco- mhecidos, onde a classe dos proprietétios ¢ dos capitalistas, os burgueses, impelidos por um espirito e uma sabedoria que Ihes falta hoje, e compreen- dendo enfim a imingncia da revolugao social, qui- serem entrar, duma maneira séria, em acordo com 9 mundo dos’trabalhadores. Neste caso, mas unica- mente neste cago, a via das reformas pacificas sera possivel..., poder-se-4 abolir completamente, em vinte ou trinta anos, 0 direito de heranca. ‘B-nos impossivel determinar melhor o carkcter destas reformas, porque se deverfio adaptar neces- sariamente a situacio particular de cada pais. Mas em todos 08 paises, o objectivo 6 sempre 0 mesmo: © estabelecimento ‘do trabalho e da propriedade colectivos. © método da revolugéo seré naturalmente mais curto e mais simples. (Obras, V, 208-209, 69) 4. A familia legal e a familia natural Igualizagdo dos direitos da mulher — direitos politicos assim como direitos socio-eeonémicos—com 0 do homem. (Maximoff, 247, 70-78). ‘Aboligéo ndo da familia natural mas da famflia legal, baseada no direito civil ¢ na propriedade. © easamento religioso civil 6 substituido pelo casamento Tivre. Dois individuos maiores de sexo diferente tém 0 direito de se unirem de se sepa- rarem segundo a sua vontade, os seus interesses miituos e as necessidades do seu coracio, sem que a sociedade tenha o direito, quer de impedir a sua unio, quer de a manter contra a vontade deles.. A unio dos dois sexos deve ser deixada & sua inteira liberdade, que aqui, como em qualquer lado 213 fe sempre, é a condicio sine qua non da moralidade sincera. Nem a violéneia da paixio, nem os direi- tos livremente aceites no passado poderdo servir de deseulpa para qualquer atentado da parte de um contra a liberdade do outro —e qualquer ataque destes seri considerado como um crime. (Nettlau, 231, 64-67). ..- estamos convencidos que abolindo 0 casa mento religioso, 0 casamento civil e juridico, tor- namos a vida, @ realidade, a moralidade no ‘casa- mento natural baseado unieamente no respeito hu: mano e na liberdade das duas pessoas, homem e mulher, que se amam,.. repelindo duma maneira geral qualquer intervencio, de néo importa que auto- Tidade, na sua unigo, tornamo-los mais estreita- mente unidos, muito mais fiéis e leais um em relaglo a0 outro, (Obras, IV, 385, 71) As criangas nao sao propriedade de ninguém: néo sao propriedade nem dos seus pais, nem da Sociedade, las s6 pertoncem a sua liberdade futura ‘Mas nas criangas esta liberdade ainda nao é real, nao é sendo virtual. Pois a liberdade real, — isto é, a realizacéo duma plena consciéncia baseada num sentimento de dignidade proprio e no respeito da liberdade e da dignidade dos outros, numa palavra, baseada na justiga—uma tal liberdade s6 se pode desenvolver nas eriancas por um desenvolvimento racional do seu espirito, do seu caricter e da sua vontade. Seguese que a sociedade, eujo futuro depende totalmente da educagio e da instrugio das eriangas, @ que consequentemente tem no s6 0 dircito como © dever de as vigiar, 6 a dnica guardia das criangas dos dois sexos. (Maximoff, 327, 72). 214 © sustento, a educagio ¢ a instrugio de todas as eriangas deverdo ser feitas igualmente para todas, a expensas da sociedade. (Nettlau, 211, 65-67). Gs pais terdo o direito de conservar junto deles as eriangas ¢ de se ocuparem da sua edicacéo, sob a tutela‘e sob controlo supremo da sociedade, que conservard sempre 0 direito e o dever de separar as criangas de seus pais, sempre que estes, quer pelo seu exemplo, quer pelos seus prineipios ou tra- tamento brutal, desumano, possam desmoralizar ou até entravar 0 desenvolvimento dos seus filhos. (Nettlau, 232, 64-67) Os velhos, os invilidos, os doentes, cereados de atengies, de respeito e gozando de todos os direitos tanto poifticos como sociais, serdo tratados e manti- dos com abundancia a expensas da sociedade. (Net- tla, 242, 64-67). 5 Liberdade dos cultos Liberdade absoluta de consciéncia e de propa- ganda para cada um, com a possibilidade ilimitada de construir tantos templos quantos quiserem, aos seus deuses, sejam quais forem, e de pagar, de manter os pregadores da sua religiéo, (Nettleu, 222, 64-67). AS igrejas néo poderdo herdar, nem possuir bens em comum, excepto a5 stias casas ou esta- belecimentos de oragées, e nunca poderéo ocupar-se da educagio das criangas. (Nettlau, 223, 64-67). 215 6 Direltos individuais A liberdade de qualquer individuo maior — homem e mulher—deve ser absoluta e completa. Liberdade de ir e de vir, de professar claramente todas as opiniGes possiveis, de ser indolente ou activo, imoral ou moral, numa palavra, de dispor da sua pessoa e dos seus haveres, & sua vontade, sem dar contas a ninguém; liberdade de viver tanto hones- tamente, pelo seu proprio trabalho, como explorando vergonhosamente a caridade ou a confianca privada, contanto que esta caridade e esta confianga sejam voluntérias ¢ 86 the sejam prodigalizadas por indivi- duos maiores. Liberdade ilimitada, sem qualquer espécie de pro- paganda pelo discurso, pela imprensa, nas reunides Pablicas e privadas, sendo o tinico freio a esta liber- dade a forca salutar e natural da opiniso piblica. Liberdade absoluta de associacéo sem exceptuar as que pelo seu objecto sejam ou parecam imorais ‘mesmo as que tenham como objecto a corrupgao e a perversio da liberdade individual e piblica. ‘A liberdade no pode e nem deve defender-se sendo pela liberdade; e 6 um contrasenso perigoso querer defendé-la sob o pretexto especial de a pro- teger; e como a moral nao tem outra fonte, outro estimulante, outra causa, outro objecto senéo a liber- dade, e como ela propria nfo é sendo a liberdade, todas as restrig6es que se impuseram a esta dltima com o fim de proteger a moral, foram sempre em detrimento desta. A Psicologia, a estatistica e toda @ hist6ria provam-nos que a imoralidade individual e social foi sempre consequéncia necessiria de uma Teh clarke alten o privade, da guntace «de degradacéo da opiniao piblica, que nao existe, nao se desenvolve e nunea se moraliza sendo unicamente pela liberdade, e sobretudo a consequéncia de uma organizagio viciosa da sociedade. A experiéneia ensi- 2168 na-nos, diz o ilustre estatistico francés Quetelet, que @ a sociedade que prepara sempre os crimes ¢ que ‘05 malfeitores 86 80 os instrumentos fatais que os realizam. & pois imitil opor & imoralidade social os rigores duma legislacéo que usurparia a liberdade individual... devemos dar-lhe [& sociedade] a opi- ifo piblica para proteccéo, e para a alma, a mais absoluta liberdade. Portanto, a sociedade nao deve ficar completa- mente desarmada contra os individuos parasi- tirios, malfeitores e prejudiciais. Devendo ser © trabalho a base de todos os direitos politicos, a sociedade, nas suas comunas, provincias ¢ nagées, poderd privar deles todos os individuos maiores que, nem sendo invalidos, nem velhos, viverem & custa da caridade piblica ou privada, com a obrigacéo de thos restituir, logo que comecarem a viver do seu proprio trabalho. Sendo a liberdade de cada individuo inaliendvel, a sociedade nunca sofrera quando um individuo qual- ‘quer aliena juridicamente a sua liberdade, ou quando @ compromete num contrato com outro individuo sem ser no pé da mais completa igualdade e reci- procidade. Portanto ela nfo podert impedir que um homem ou uma mulher, desprovidos de qualquer sentimento de dignidade pessoal, facam um con- trato com um outro individuo, ‘numa relagdo de servidio voluntéria, mas consideré-los-4 como indi- viduos vivendo da earidade privada e por isso des- titwldos do usufruto dos direitos politicos, durante @ duragdo desta serviddo. Todas as pessoas que tiverem perdido os seus direitos politicos também estaréo privadas do de eduear ¢ de ficar com os filhos. Em caso de infide- lidade a um contrato livremente aceite ou até em ‘caso de ataque aberto ou provoeado contra a pro- priedade, contra o individuo ou sobretudo contra a liberdade dum cidadio, quer indigena, quer estran- geiro, a sociedade infligiré ao delinquente indigena ‘ou estrangeiro as penas determinadas pelas suas leis. aut Completa abolig&o de todas as penas degradantes e cruéis, das punigdes corporais e da pena de morte, enguanto consagrada e executada pela lei. Abolic&o de todas as penas de tempo ilimitado ou tao longas que nao deixem nenhuma esperanca, nenhuma possi- bilidade real de reabilitagéo; devendo o crime ser considerado como uma doenga e a puni¢éo mais como uma cura do que como uma reivindicagao da socie- dade. Qualquer individuo condenado pelas leis duma sociedade qualquer, comuna, provincia ou nacio, conservard o direito de nao se submeter & pena que Ihe tiver sido imposta, declarando que J néo quer fazer parte desta sociedade, Mas neste caso esta teri todo 0 direito de o expulsar do seu seio e de © declarar fora da sua salvaguarda e da sua pro- teegio. Caindo assim sob a lei natural (Lebning, 1-2, 190, 72). Mazzini fol sempre o advershrio encarnigado da autonomia das provineias, que perturbaria natural- mente a uniformidade severa do seu grande Estado italiano, Ele afirma que, para contrabalancar a omni- potEncia da repGblica fortemente constitufda, che- garé a autonomia das comunas. Engana-se: nenhuma comuna isolada seria capaz de resistir & forca desta formidével centralizagéo; ela seria esmagada por esta. Para néo sucumbir de maneira nenhuma nesta luta, deverd federar-se, com ‘0 objectivo duma resisténcia comum, com todas as comunas vizinhas, isto é, deveré formar com elas uma provincia auténoma. Além disso, desde o mo- mento em que as provincias jé nfo so auténomas, seré preciso governé-las com funciondrios do Estado. Entre o federalismo rigorosamente consequente e 0 apime buroertico nfo hé meio termo, (Obras, 1 .. Mas convém distinguir federalism e fede- ralismo, Bm Itilia existe a tradicao dum federalismo regional, que se tornou hoje uma mentira politica 225 ¢ histérica. Digamo-lo uma vez por todas: o passado nunea reviveu; e seria uma grande desgraga se ele pudesse reviver. (Obras, VI, 388, 71). IE desgracados dos povos—assim como dos individuos — que vivem retrospectivamente: enfra- ‘quecem 0 seu ite © 0 seu futuro, Esta retrospectividade 6 tanto mais nociva quanto embrulha os prinefpios, quanto desvia, em Proveito do pasado, a atengio das questées vitais contempordneas, e sacrifica por fontes de gloria e forca. passadas, estes princfpios palpitantes de vida, que 86 eles podem criar uma gidria e uma forga novas. (Aos meus Amigos Russos ¢ Polacos, 17, 62). A Sufga esté hoje num dilema. Ela ndo pode querer regressar ao seu regime passado, ao da autonomia politica dos cantées, que constituia uma confederagéo de Estados politica- mente separados e independentes uns dos outros. 0 restabelecimento de uma constituicéo destas teria como consequéncia infalivel o empobrecimento da Suica, pararia simplesmente os grandes progressos econémicos que ela fez, desde que a nova constituiggo centralista inverteu as barreiras que separavam © isolavam os cantées. A centralizagio econémica & uma das condigSes essenciais do desenvolvimento das riquezas, e esta centralizacéo teria sido impos- sivel se ndo se tivesse abolido a autonomia polftiea dos cantées. Por outro lado, a experiéneia de vinte e dois anos demonstra-nos que a centralizagéo politica também & prejudicial & Sufga. Ela destréi a sua Uberdade, pde em perigo a sua independéncia, faz dela uma guarda complacente e servil de todos os 226 fortes déspotas da Europa. Diminuindo a sua forga moral, ela compromete a sua existéncia material. Ento que fazer? Voltar & autonomia politica dos cantées & uma coisa impossivel. Conservar a centralizacio politica nio & desejével. © dilema, posto assim, 86 admite uma solugao: é a aboligéo de qualquer Estado politico, tanto can- tonal como federal, é a transformacio da federagao Eginémion, “nacional ¢ internacional. (Obras, Th, QUARTA PARTE A BURGUESIA L Liberdade — Igualdade — Fraternidade A revolugio de 1798, diga-se o que se disser, nem era socialista, nem materialista, ou, servindo-me da expresso pretenciosa do Sr. Gambetta, ela nio era nada positivista, Ela foi essencialmente burguesa, jacobina, metafisica, politica e idealista. Generosa € infinitamente grande nas suas aspiracdes, quis uma coisa impossivel: o estabelecimento duma igualdade ‘ideal, no seio da desigualdade material. Conservando, como bases sagradas, todas as condicdes da desi- gualdade econdmica, ela acreditava poder reunir ¢ envolver todos os homens num imenso sentimento de igualdade fraternal, humana, intelectual, moral, politica ¢ social. Este foi o seu sonho, a sua religiao manifestada pelo entusiasmo e pelos actos grandio- samente herdicos dos seus melhores, dos setis maio- tres representantes. Mas a realizacio deste sonho era impossfvel, porque era contriria a todas as leis naturais e sociais, (Obras, IT, 190-191, 70). Bla tinha proclamado a liberdade de cada um ¢ de todos, ou antes tinha proclamado o direito de ser livre ‘para cada um e para todos. Mas realmente néo deu og meios para realizar esta liberdade e para, gozar sendo aos proprictérios, aos capitalistas, aos Ficos. (Obras, V, 316, 72). Liberdade, Ygualdade, Fraternidade. Mas que igualdade? A igualdade perante a lei, a igualdade dos cidadios, ndo a dos homens; porque o Estado n&o eonhece os homens, 86 conhece os cidadaos. Para ele, o homem 96 existe enquanto exerce — ou, Por uma’ pura ficgéo, supostamente exerce—os di- 231 reitos politicos. © homem esmagado pelo trabalho forgado, pela miséria, pela fome, o homem oprimido soeialmente, explorado economicamente, esmagado, fe que sofre, nao existe para o Estado, que ignora os seus sofrimentos e a sua escravatura econémica ¢ social, a sua servidio real que se esconde sob aparéneias duma ilusdria liberdade politica. pois a igualdade politica, no a igualdade social. (Obras, ‘V, 322-323, 71). Enquanto no houver igualdade econmica social,... a igualdade politica seré uma mentira, Bis’ o que nem os grandes heréis da Revolugio de 1798, Danton, Robespierre, Saint Just, compreen- Geram, ies a6 queriam a liberdade e igualdade polt- ticas, néo econdmicas e sociais. E & por isso que a igualdade fundada por eles constituiram e consoli- daram a dominagio dos burgueses sobre o povo. les julgaram que iludiam esta contradigéo pondo conto tereeiro termo da sua formula revolu- cionéria a Fraternidade. Foi mais uma mentira! Eu pergunto se 6 possivel a fraternidade entre explo- radoret ¢ explorados, entre opressores e oprimidos? Como? Hei-de fazer-vos suar e sofrer durante um dia inteiro, e a noite, quando tiver recolhido 0 fruto ‘dos vossos sofrimentos e do vosso stor, deixando-vos ‘unicamente uma pequenissima parte para que pos- sam viver, isto é, suar e sofrer novamente amanhé para meu proveito, —& noite, dir-vos-ei: abracemo- nos, somos irméos! ‘a assim a fraternidade da Revolugio burguesa. (Obras, V, 329-830, 72). (Os jacobinos de 1793 eram grandes homens, tinham 0 fogo sagrado, 0 culto da justiga, da liber- dade e da igualdade. Nao foi culpa deles no terem compreendido melhor certas palavras que ainda hoje Tesumem todas as nossas aspiracies. Eles s6 consi- Geraram 0 aspecto politico, nfo o aspecto econémico @ social. Mas, repito-o, néo foi culpa deles, como ‘Bo € nosto 0 merito. de of compreendermos hoje. Ba culpa eo mérito do tempo... 6 86 pela sucessio 232 de erros e de faltas, e sobretudo de experiéncias eruéis, que sfo sempre a sua consequéncia necessé- ria, que os homens conquistam a verdade. (Obras, V, 334, 71). 2 Sangue, Estado ¢ reaccio A revolugéo jacobina, exclusivamente politica, de 1792 a 1704, tinha necessariamente de levar & hhipoerisia legal e & solucdo de todas as dificuldades e de todos os problemas pelo vitoriaso argumento da guilhotina, ‘Quando, para extirpar a_reacgio, se contenta em atacar as suas manifestagdes, sem tocar na sua raiz e nag causas que a voltam sempre a produzir, chega-se forcosamente & necessidade de matar mui- tas pessoas, de exterminar, com ou sem formas legais, muitos reaccionérios. Sucede fatalmente, entéo, que depois de terem morto muitos, os revo- lucfonérios chegam & melancélica conclusdo que no gaharam nada, nem sequer um tinico passo pela sua causa, que pelo contrério a prejudiearam e pre~ Pararam com as suas préprias maos 0 triunfo da reacgdo. E isto por duas raz6es: primeiro, porque tendo sido poupadas as causas da reaccio, ela repro- duz-se e multiplica-se sob novas formas; ¢ segundo, Porque a matanca, o massacre, acabam’ sempre por Tevoltar que h& de humano nos homens e por fazer voltar, em breve, o sentimento popular para © lado das vitimas. (Obras, III, 189-190, 70). Derramar sangue a frio, ‘com 0 acompanha- ‘mento obrigatério da hipoerisia juridica, 6 uma coisa odiosa e horrivel. Quando se faz a revolugio para @ emancipacéo da humanidade, & preciso respeitar & ‘vida e a liberdade dos homnes; mas néo vejo porque 233, se hide respeitar as bolsas, quando essas bolsas se encheram com a pilhagem, com o roubo, com 0 crime. (Obras, IV, 113-114, 70). © Estado... 6 a consagracio histérica de todos os despotismos, de todos os privilégios, a razo politiea de todas as escravizagdes econémicas © sociais, a propria essncia e o centro de toda a reacgao. (Obras, II, 240, 70). 'se, em duas ocasides diferentes, a France perdeu a sua liberdade e viu a sua repiblica demo- critica transformarse em ditadura e democracia militares, a culpa nfo 6 do carécter do seu povo, mas da sua centralizagao politica que, preparada desde hé muito pelos seus reis ¢ homens de Wstado, personificada mais tarde naquele que a retérica com- Placente das cortes chamou o Grande Rei, empurrada depois para o abismo pelas vergonhosas desordens duma monarquia eaduea, teria perecido certamente nna lama, se a Revolugéo'néo a tivesse erguido com 0s sous’ bracos fortes. Sim, coisa estranha, esta, grande revolugéo que, pela primeira vez na his tinha proclamado a ‘liberdade nfo s6 do cidadio, mas também do homem,—tornando-se a herdeira da monarquia que matava, tinha ressuscitado ao mes- mo tempo esta negagio de toda a liberdade: a cen- tralizagéo ¢ @ omnipoténcia do Estado. Reconstruida de novo pela Constituinte, com- batida, € verdade, mas com pouco sucesso’ pelos Girondinos, esta centralizagio foi completada pela Convengio Nacional. Robespierre ¢ Saint-Just foram (05 seus verdadeiros restauradores: nada faltou & nova méquina governamental, nem seguer o Ser supremo com o culto do Estado. Bla 6 esperava por um hébito maquinista para mostrar a0 mundo espan- tado todas as forcas de opressio de que tinha sido munida pelos seus imprudentes construtores... & Napoledo I apareceu. (Obras, I, 11-12, 67). 3 Situagio burguesa actual [A burguesia] & uma classe condenada pela sua propria histéria e fisiologicamente enfraquecida. Dantes caminhava a frente, com toda a sua forca; hoje recua, tem medo, condena-se a si propria a0 desaparecimento. (Obras, V, 61, 69). ~- adormecida e destnoralizada pelo usufruto dos bens adquiridos, separada por um abismo, dora- vante intransponfvel, do proletariado que explora, tendo perdido a audicia de pensamento de accéo com que conquistou o poder politico de que abusa agora, j6 nfo compreendendo mada presentemente, ousando ainda menos encarar o futuro, e j6 86 olhando para um passado que nenhuma forga do ‘mundo conseguiria restituir-Ihe, a burguesia perdeu toda a capacidade criadora, quer na polities, quer no socialismo. (Obras, V, 268, 69). ‘Tanto hoje como’ ontem e até ainda mais do ontem, traida pelo dedo acusador lancado pelos acon- ‘tecimentos sobre os homens assim como sobre as coisas, ela mostra-se dura, egofsta, vida, mesquinha, esta, brutal e servil ao mesmo tempo, feroz quando julga’ poder s8-1o sem muito perigo, como nos fatais dias de Junho, prostrada sempre diante da autoridade e da forga pibliea, de quem espera a sua salvagio, e sempre inimiga do povo. (Obras, 1, 301-302, 70-72). Portanto... eu 86 posso admitir que seja o inte- esse 0 tinico motivo dos seus pensamentos e dos seus actos. His sem diivida om cada classe e em cada partido um grupo mais ou menos numeroso de exploradores, inteligentes, audaciosos © conscienciosamente deso- estos, aguilo a que se chama os homens fortes, libertos de todos os preconceitos intelectuais ¢ 235 morais, igualmente indiferentes a todas as convic- ges e servindo-se de todas, se necessério, para atingi- Tem og seus fins. Mas esses homens distintos nunca foram nas classes mais corrompidas senio uma infima minoria; também af a multidao 6 imitadora como no proprio povo. Ela sofre naturalmente a influéneia dos seus interesses que sio uma condigio de existéncia para a reaecSo. Mas 6 impossivel admi- tir que causando reaccio ela obedeca unicamente a um sentimento de egofsmo. Uma grande massa de homens, ainda que razcavelmente corrompides, quando age colectivamente, néo conseguiria ser tio depravada, Ha em qualquer associagio numerosa, com mais razio nas associagies tradicionais, histé- rioas, com as classes, mesmo que tivessem chegado 40 ponto de se tornarem totalmente maléficas ou contririas ao interesse e ao direito de toda a gente, um principio de moralidade, uma religiio, uma renga qualquer, sem dGvida muito pouco racionais, a maioria das vezes ridiculas e, consequentemente, muito estreitas, mas sinceras, e que constituem a condigio moral indispensivel da sua existéncia. (Obras, T, 297-298, 71). Por muito profundo que seja 0 nosso desprezo pela burguesia moderna, a antipatia e a desconfianca que ela “nos inspira, hé todavia duas categorias, nesta classe, de que esperamos ver pelo menos uma parte deixar-se converter mais tarde ou mais cedo ela propaganda socialista, e que, impelidas, uma delas, pela prépria forca das coisas e pelas necessi- dades da sua posicéo actual, a outra por um tempe- ramento generoso, deverdo colaborar conosco, sem. divide alguma, na destruicio das presentes corrup- 96es ¢ na edificagéo dum novo mundo. __ Referimomnos a toda a pequena burguesia e a juventude das escolas e das universidades. s filhos dos burgueses herdam, 6 verdade, fre- 236 quentemente hébitos exclusives, preconceitos mes- quinhos ¢ instintos egoistas dos seus pais. Mas enquanto sto jovens, é preciso ter esperanca neles. Na juventude hd uma energia, uma largueza de aspiragées generosas e um instinto natural de jus- iga, capazes de contrabalancar bem influéncias per- niciosas. Corrompidos pelo exemplo e pelos princ!- ios dos seus pais, os jovens da burguesia ainda néo esto pela pratica real da vida; os seus actos ainda ndo cavaram um abismo entre a justiga e eles p rigs, ¢ quanto As mis tradigoee dos seus pais, estfio um pouco salvaguardados delas pelo espi de contradigéo e contestagio naturais de que as jjovens geragées esto sempre animadas em relagéo s geragdes que as precederam. A juventude é irre- verente, desprezada instintivamente a tradicio e 0 principio da autoridade. A sua forca ¢ a sua salvagio est al. (Obras, V, 115 a 117, 69). Mas logo que [os adolescentes| deixam a escola, logo que tomam um lugar definido na sociedade ‘e que se impregnam com os hibitos, os interesses, , por assim dizer, com a légica duma situacgdo mai ‘ou menos privilegiada, logo que isto sucede, eles — ou a maior parte deles — tomam o seu lugar de acordo com a velha geraedo contra a qual se tinham revoltado. (Maximoff, 335, 70). Querem viver? Esto cansados de girar inutil- mente num efrculo vicioso? De pensar sem inventar nada? De gritar aos quatro ventos repetindo sempre ‘a mesma coisa a um piiblico que j& nao vos escuta? De se agitarem incessantemente dem fazerem nada? Querem escapar & condenagio suspensa ao mundo em que nasceram? Enfim, querem viver, pensar, inventar, agir, criar, ser homens? Renunciem defi nitivamente ao mundo burgués, aos seus preconcei- tos, aos seus sentimentos, as suas vaidades, ¢ po- 21 nham-se & cabeca do proletariado. Abracem a sua causa, dediquem-se a esta causa, déem-Ihe 0 vosso pensamento, e ela dar-vos-é a forea ¢ a vida. (Obras, VI, 402, 72). 4 © soctalismo adormecedor dos burgueses ___ - @ grande maioria dos capitalistas e proprie- tarios burgueses, os que tém a coragem de confessar francamente o que querem, tém igualmente a de manifestar com a mesma frangueza o horror que hes inspira o movimento actual da classe operiiria. Estes so inimigos tio resolutos como sinceros, n6s conhecemo-los bem. ‘Mas hi uma outra categoria de burgueses que nem tém a mesma franqueza, hem a mesma coragem. Inimigos da liquidacéo social, a que chamamos, nés, com toda a forca do nosso espirito, um grande acto de justica, o ponto de partida necessério e a base indispensével para uma organizacio igualitéria e racional da sociedade, eles querem, assim como todos 08 outros burgueses, conservar a desigualdade eco- némica, esta fonte de todas as outras desigualdades; € a0 mesmo tempo dizem querer como nés a eman- cipagdo integral do trabalhador e do trabalho... Enganam-se ou enganam? Alguns enganam-se de boa £6, muitos enganam; a maior parte engana-se fe engana ao mesmo tempo. Eles pertencem todos a esta categoria de burgueses radicais e de socialistas burgueses que fundaram a Liga da Paz e da Liber- dade, (Obras, V, 186-187, 69). ‘© que distingue @ Associagio Internacional dos Trabalhadores da Liga da Paz e da Liberdade, é que esta dltima, composta exclusivamente por filan- tropos burgueses, ama idealmente, platonicamente 0 princfpios da'humanidade, da fraternidade, da igualdade, da liberdade, da justica, enquanto que a 238 primeira, composta principalmente ou quase exclu- sivamente por trabalhadores manuais, com algumas raras adjungdes de trabalhadores de espfrito que pela sua situacio econémica pertencem igualmente ao proletariado, quer a sua realizacéo tao imediata como possfvel, ‘com toda a energia duma vontade téo forte como apaixonada. ®, perdoem-me esta com- paracdo trivial, a eterna diferenca que existe entre ‘8 barriga cheia e a barriga vazia; e a barriga cheia, como diz o provérbio, nunca compreenderé a barriga varia. A primeira, enquanto faz a sua digestéo, pode sonhar benignamente, suavemente com a felicidade de todo o mundo; este sonho virtuoso dé-lhe de qual- quer modo uma’ satisfagio nova, sendo como um testemunho da sua propria bondade; este sonho, ainda que lhe lembre que hé pelo mundo fora muita, muita miséria, néo o faz sofrer ao ponto de per- turbar a sua digestio, porque a maior parte das vezes estas misérias e estes sofrimentos sem nome que existem, tocam a sua fantasia, néo o seu cora- io, € mesmo quando a sua imaginagio chora, o seu coragio nfo sangra... ‘Desta diferenca de situagSes resulta natural- mente uma grande diferenca de temperamento, de pensamento ¢ de acco. Os bons burgueses filantro- ‘pos, nas suas reuniGes platénicas, sonham alto, dis- cutem, ostentam os seus bons sentimentos e conten- tam-se em fazer promessas. Mas o operirio, quando se associa e se agita, deixando as belas frases para (0s burgueses, pensa, diz o que Pensa, quere-o e fé-lo. (Lehning, [-1, 265-266, 71). ‘Mas, por muito desagradavel que seja, néo nos ccupariamos deste filho ilegitimo da burguesia, [0 socialismo burgués], se a sua tinica missio fosse converter os burgueses ao socialismo e, sem ter a ‘m{nima confianga no sucesso dos seus esforcos, pode- rlamos até admirar a intencio generosa, se néo pretendesse ao mesmo tempo um objectivo diametral- mente oposto e que nos parece exeessivamente imo- ral: o de fazer penctrar nas classes operdrias as teorias burguesas. 0 socialismo burgués, como uma espécie de ser ibrido, colocou-se, entre dois mundos doravante irreconciliéveis: 0 mundo burgués e o mundo ope- rhrio; e a sua acgio equivoca e deletéria acelera, 6 verdade, por um lado, a morte da burguesia, mas ‘a0 mesmo tempo, por outro lado, corrompe o prole- ‘tariado & sua nascenga. Ela corrompe-o duplamente: primeiro diminuindo e desnaturando o seu principio, © seu programa; em seguida, dando-lhe esperancas impossiveis, acompanhadas por uma fé ridicula na Comverato préxima doe burgueses. (Obras, V, 121- .. 8¢ & forga no faz com que o proletariado obtenha justiga, o que 6 que tha faré obter?... Algum dia houve, em qualquer época, em qualquer pais, um ‘énico exemplo duma classe privilegiada e dominante que tenha feito concessdes livremente, espontanea- mente, e sem ter sido a isso obrigada pela forca ou pelo medo? (Obras, VI, 359-360, 72). Esta famosa noite de 4 de Agosto, om que se fizeram grandes honras & nobreza francesa, néo foi a consequéncia forcada da sublevac&o geral dos cam- ‘Poneses, que queimaram os pergaminhos nobilidrios, e com ‘esses pergaminhos os castelos? (Nettlau, 415, 70). Poder-sei inventar uma Constituicéo politica que impeca o capital de oprimir e de explorar o tra- dalho? — impossivel. Todas as transacgies que se fizessem 86 levariam a uma nova exploragio do tra- balho pelo capital, e voltarse-iam todas necessa- riamente em detrimento dos trabalhadores e em roveito dos burgueses: pois as instituigdes politieas 86 exercem uma forea quando no esto em con- tradig&éo com a forga econémica das coisas; donde resulta que enquanto o capital continuar nas méos dos burgueses, nada poderé impedir estes ‘ltimos do explorar © esravisar o proletariado, (Obras, V, 240 A predomindncia incessante eo triunfo da forca —tal & a base; e tudo o que, em linguagem politica, se chama 0 direito, néo 6 outra coisa senfio a ilus- tragdo do facto criado pela forca. (Estatismo € Anarquismo, 279, 73). ‘A forea, a necessidade da justica imposta vio- lentamente, eis 0 Ginico argumento capaz de tocar 0 corac&o dos burgueses. Quando eles vos virem muito ‘bem organizados, fortes e resolutos para avancarem em frente,... entio, fazendo da necessidade virtude, entrario convosco'na via das concessdes nio ilu- sérias mas sérias; e uma vez chegados a este resul- tado pela forea e unicamente gragas & demonstracio muito real da vossa forea organizada, vocés poderao, para evitar encontros sangrentos ¢ sempre desa- gradivels para as duas partes, contemiporizar, tran- sigir com eles, concedendo-lhes, segundo as cireuns- taneias, dez, quinze ou até vinte anos para atingir, or meio de reformas econdmicas reais e sabiamente combinadas, a igualdade das condicdes econémicas do trabalho e da vida social para toda a gente. (Lebning, 1-2, 94, 70) Entre o grande niimero de exploradores mali- ciosos do socialismo encontram-se, aqui ¢ acolé, pessoas sinceras e bem intencionadas que querem Tealmente um melhoramento da condi¢&o do prole- tariado, mas que no tém energia, coragem inte- ectual e vontade necessirias para’ encarar o pro- blema social em toda a sua formidivel realidade, de modo a reconhecer a oposigio absoluta do passado e do futuro, ¢ até do dia de hoje com o dia de amanhé. (Maximoff, 281, 70). ‘Todavia, como se hé-de conciliar duas coisas aparentemente tao incompativels: enganadores 241 enganados, mentirosos e erentes? Logicamente, isso parece dificil; no entanto, de facto, isto é na vida Pritica, essas qualidades associam-se frequente- mente. ‘Na grande maioria, as pessoas vivem em con- teadigfo consigo propria, e em continues mal-entan- geralmente no reparam nisso, até que um ——hrrr——_—_. Iéncia habitual ¢ as forca a dar uma olhadela para sie & sua volta. (Obras, IV, 273.274, 72). © homem acredita'sempre faciimente no que deseja e no que néo contradiz os seus interesses. Mesmo que seja inteligente ¢ instruido, é a mesma coisa: pelo seu amor proprio e pelo seu desejo de viver com os seus préximos e de gozar do sett res- peito, ele acreditaré sempre no que Ihe & agradavel e dtil, (Obras, IV, 272, 71). 5 Soclatismos hibridos. Sr. Coullery. 0 radicalismo Hii conservadores que so socialistas, bi socialistas, e liberais e radicais socialistas. Todos repararam que 0 socialismo era uma forca formi- dével que levantava o seu voo e cada um deles quer tirar-lhe esta forga, com a esperanca de restituir, com a sus ajuda, a vitalidade ao seu partido cadueo e em rufnas. (Maximoff, 281, 70). ‘Até hoje tivemos espécies diferentes de socia- lismos hfbridos: 0 socialismo doutrinério, ou de escola, preparando camas de Procuste para a huma- nidade futura: 0 socialismo autoritario fazendo do Estado uma espécie de bom Deus na terra, o regu- Indor e o distribuidor da vida e da liberdade huma- nas; o socialismo adormecedor dos burgueses, esfor- ando-se por provar aos trabalhadores... que devem 22 esperar tudo da indulgéncia dos seus patrées; hi enfim o soclalismo dos radieais... Pertence ao Senhor Coullery a notdvel honra de ter acrescentado a0 socialismo burgués, do qual foi sempre o mais fer- voroso apéstolo, uma nova invencio do seu eérebro: Q SOCIALISMG JESUITICO OU MOMIER. (Obras, V, 82, 69). Digam o que disserem os nossos adversérios, xnés temos o maior respeito, nfo por todas as opi- nides, mas pelo direito de'cada um professar as suas; e quanto mais um homem as defende com honestidade e franqueza, mais respeito nos merece. © Sr. Coullery, depois de ter sido um fogoso radical, separouse ‘do radicalismo, ‘Tinka esse di reito, Este pobre radicalismo, depois de ter prestado Ineontestivelsservigos 20 unto, Wese Hole aban Aonado por todos os homens vivos. O Sr. Coullery, vivo, senao pelo pensamento, pelo menos pela ima- ginaco, deixou-o como os outros; o essencial é pois saber qual o caminho que ele tomou, depois de ter saido, Ele tinha de escolher entre duas vias. Por um lado, era a grande via do futuro: a da grande LIBERDADE, universal e finica, da eman- cipac&o total do proletariado pela igualizagio eco- némica e social de todos os homens na terra. Era um mundo novo, um oceano sem limites. Era a revolugio social. Por outro lado, eram os caminhos romAnticos pitorescos dum passado simultaneamente mistico ¢ brutal. Eram a Igreja, a monarquia e a aristocracia abengoadas e consagradas pela Igreja, os privilégios burgueses, a separagio das massas’ trabalhadoras em corporagdes de profissdes,— muitas poquenas liberdades bastante restritas, auséneia da LIBER- DADE. O reino da violéncia, uma realidade bem ‘efnica, mas envolvida por uma nuvem de misticismo divino que ocultava parcialmente as suas monstruo- idades quotidianas ¢ the emprestava uma falsa paréneia de » talidade triunfante, mas animada e procurando con- 243 solar-se com os contos azuis da religiio e com outras ficgdes que falam de amor. # ainda hoje a pritica ideal de todas as almas romanescas ¢ sentimentais, de todos os espiritos det corrompidos pelo espiritualismo. (Obras, V, 87 a 89, 69). 0 Sr. Couilery teve sem dfivida mil razées exce- lentes para se separar do radicalismo. Talvez 0 par- tido radical tivesse tido a culpa por no ter arran- Jado no seu seio um lugar suficientemente grande Dara esta personagem téo profundamente preocupada consigo prépria. © temperamento do Sr. Coullery é eminente- mente fantasista e sentimental; éhe necessério calor, verdadeiro ou falso, muito movimento dramé- tico e principalmente muita exibic&o pessoal; ele identifica ingenuamente a sua cara pessoa com os prinefpios, gosta que se ocupem dele, ao ponto de, quando 0 mundo 0 esquece ou o ignora, o Sr. Coul- Jery imagina naturaimente que esquecem os prin- efpios... Sr. Coullery 86 teve um erro... Imaginou que recuando no campo da reaccao, tinha feito um pro- gresso! O seu juizo errado impediu-o, sem divide, de compreender que se os socialistas combatem 6 radicalismo burgués, nao é certamente em relacéo a0 pasado, mas sim’ ao futuro, e que, se era preciso escolher entre o presente e o passado, nenhum homem de coracéo e de juizo hesitaria: pois o radicalismo Presente, com todas es suse imperfeicées e contra- digGes, 6'sempre mil vezes melhor do que um passado infame que a Revolucio destruiu e que espiritos equivocos, vaidosos ¢ confusos, quereriam fazer reviver. Se 0 socialismo protesta contra o radicalismo, néo 6 de modo nenhum para recuar, mas sim para avancar. (Obras, V, 90-91, 69). ae ¢ ela morreu sem ter vencido. ‘Também seré esta a sorte de todo o partido da burguesia radical na Europa. A sua existéncia nunca foi sendo um belo sonho. Ile sonhou durante a Restauracéo e a monarquia de Julho. Em 1848, tendo-se mostrado incapaz de construir alguma coisa real, teve uma queda deplorivel, e o sentimento da sua’ ineapacidade e da sua impoténcia empurrou-o ara a reaccio. Depois de 1848, teve a infelicidade de sobreviver. Ainda sonha! Mas jé nfo é um sonho do futuro, & 0 sonho retrospective dum velho que nunca venceu verdadeiramente; e, enquanto se obs- tina a sonhar pesadamente, sente o novo mundo que se agita em volta dele, a fora do futuro que nasce, B a forea e o mundo dos trabalhadores. (Obras, V, 120, 69). Houve um tempo em que a imprensa radical se orgulhava de representar as aspiragdes do pov Esse tempo j4 passou. A imprensa radical, assi ‘como o partido de quem ela toma o nome, jé néo representa hoje sendo a ambicéo individual dos seus chefes que quereriam ocupar fungies ¢ lugares J tomados, segundo o provérbio: «Sai daf para que eu entre.» De resto, desde hé alguns anos, o radi- calismo renunciou 4s suas extravagancias revolucio- nrias, como 0 partido conservador ou aristocratico, pelo seu lado, renunciou a todas as suas aspiragdes antiquadas. J& ndo hé quase nenhuma diferenca entre os dois partidos, e vé-los-emos confundir-se brevemente num finico ‘partido dé conservacdo ¢ da dominag&o burguesa, opondo uma resisténcia deses- perada as aspirag6és revoluciondrias e socialistas do povo. (Obras, II, 50-51, 70) 245 6 A burguesia © o regime do sabre «.. 0 burgués, ainda que se tenha tornado servil por interesses, continuou no entanto, por tempera- mento e por mau hibito, muito descontente. Ele reconhece a necessidade dum poder forte e capaz de proteger os seus privilégios econdmicos contra as Tevoltas da vil multidio. Inclina-se diante da dita- dura militar, reconhecendo, ai! que hoje s6 ela & suficientemente forte para o defender. Mas detes- ta-a ao mesmo tempo com todo o seu coragio, por- que ela ofusea-o no seu liberalismo, na sua vaidade, porque acaba sempre por comprometer os seus préprios interesses, em cujo nome e para a defesa dos quais ela existe. © ‘ideal ‘burgués mantém-se invariavelmente, sempre e em todo o lado, o mesmo... & chamando as coisas pelo seu nome, a liberdade politica, real para as classes possuidoras, ficticia para as massas Populares, e baseada na escravizacdo econémica des- tas itimas. # um excelente sistema e s6 em proveito da classe burguesa, como se vé, mas que 56 se flode manter nos paises em que a massa dos traba- Ihadores & muito sossegada e resignads, ou muito generosa, para se sentir orgulhosa por trazer as suas costas de escrava a liberdade dos outros. ‘Logo que comegam a penetrar nas massas aspi- ragées e ideias contririas; desde 0 momento em que estes milhées de trabalhadores... comegam a reelamar para eles todos os direitos hiumanos, e que ‘se mostram dispostos a conquisté-los, se necessério, pela forga, — todo o sistema do liberalismo burgués desaba como um castelo de cartas. A sua humanidade transforma-se em furor; vimo-lo em Junho de 1848, pressentimo-lo hoje em todo 0 lado; e 0 seu res- peito pelos direitos do préximo, o seu culto da liber- dade, dio lugar & repressio feroz. Desaparece 0 iberatismo politico dos burgueses, e, no tendo nem 246 os meios nem a forga necessérios para reprimir as massas, sacrificando-se em proveito da conservacio dos interesses econémicos, os burgueses dio lugar & ditadura militar. (Obras, IV, 171-172, 70). 86 a8 classes dirigentes pudessem desemba- ragar-se sem governo, mantendo s6 0 Estado — isto 6, possibilidade e o direito de explorar o trabalho do povo— mesmo assim néo mudavam de governo. ‘Mas a experiéncia historia — por exemplo, a mé sorte que teve @ repiblica Polace, desembaracada da sua pequena nobreza—mostrou-lhes que seria impossivel manter 0 Estado sem um governo... ‘Mas porque € necessirio o governo & conserva~ Go do Estado? Porque nenhum Estado se pode manter sem uma conspiragio permanente, uma. cons- piragio dirigida, evidentemente, contra as massas Populares, cuja exploracdo e escravatura & a razéo de ser do Estado, Hem, eada Estado o governo nio 6 senio uma conspiragéo permanente da minoria contra a maioria, (Maximotf, 363-364, 70). ‘Qualquer governo tem uma tendéncia dupla, um ‘objectivo duplo. O seu primeiro e principal objec- tivo, 0 seu objectivo confessado, consiste em pre- servar ¢ em reforcar 0 Estado, a civilizacio e a ordem civil, isto 6 dominacio sistematica e lega- lizada da classe dirigente sobre o povo explorado. © outro objectivo também é muito importante aos olhos do governo, ainda que ndo seja confessado tao abertamente e téo naturalmente, ¢ a conser- vagio das suas préprias e exclusivas vantagens governamentais e a manutengao do seu pessoal. O Brimeiro objectivo concorda com os interesses gerais, das classes dirigentes; o segundo satisfaz a vaidade fe assegura privilégios excepcionais aos individuos ‘membros do governo. elo seu primeiro objectivo 0 governo coloca-se numa atitude hostil em relagdo 0 povo; pelo seu aT segundo objectivo torna-se hostil relativamente ao povo e as classes privilegiadas; hi até momentos na historia em que 0 governo parece tornar-se mais hhostil relativamente &s classes possuidoras do que em relacio ao povo, Isso sucede quando as classes possuidoras, descontentes com este governo, tentam destrui-lo ou diminuir o seu poder. Entdo 0 aspecto da sua conservacio leva o governo a esquecer 0 seu objectivo principal, a sua razio de ser: a preser- vagio do Estado, da dominagéo e do bem-estar duma classe em detrimento do povo. Mas estes momentos no podem durar muito tempo, pois 0 governo, seja ‘qual for a sua natureza, nao pode existir sem uma classe privilegiada, do mesmo modo que esta ditima nao pode existir’ sem um governo. (Maximoft, 365, 70). 248 QUINTA PARTE DIVERSOS L Algumas palavras aos meus jovens irmiios da Réssia Onde véo buscar a vossa forea e a vossa £6? Uma £6 sem Deus, uma forga sem esperanca e sem objectivo pessoal. Onde encontram esta forga para aniquilar conscientemente toda a vossa existéncia e para afrontar a tortura e a morte sem vaidade € sem frases? Onde esta fonte desta impactvel vontade de destruicio ¢ desta resolucio fria apaironada, diante da qual se apavora 0 cspirito se regela o sangue nas veias dos nossos adversirios? ‘A nossa literatura oficial e oficiosa que pretende ‘exprimir 0 pensamento do povo russo, parou, com- pletamente desconcertada diante de voeés. Hla jé néo compreende nada, Code Se vocés fossem uma juventude ideal, doutri- néria ou sentimental; se ¥oo8s se divertiasem a sonhar com a ciéncia e com a arte, com a liberdade e com a humanidade em teoria, nas vossas conversas ou nos livros, ela ainda vos’amnistiaria; pois os veteranos, dignos desta literatura aviltada, também tiveram 2 sua juventude. Também cles sonharam, quando ainda no eram sendo estudantes. Entusias- tas das belas teorias, também juraram dedicar a sua vida ao eulto do ‘ideal, as nobres faganhas, 20 servico da liberdade e da humanidade. Depois veio a experiéncia, uma experiéneia adquirida no mundo mais abjecto que se pode imaginar, ¢ sob a influén- cia deste mundo, tornaram-se naquilo que so, cana- Thas. Mas lembram-se com ternura dos sonhos da sua juventude, e ter-vos-iam perdoado os vossos, 251 com tanta mais boa vontade quanto mais estives- sem convencidos de que com a mesma experiénci e sob a influéncia da mesma realidade, vocés néo tardariam, sem ddvida, © tornarse ainda mais cele- rados do ‘que eles. © que eles nunca vos perdoario, 6 que vooés no se queiram tornar nem ladrdes, nem sonhadores. ‘Vocés desprezam tanto este mundo odioso cuja re lidade vos oprime, como o mundo ideal que, até qui, serviu de refigio as almas puras, contra a5 inffmmias da realidade. (Algumas Palavras, 69) 2 © povo russo Pois 0 povo russo, apesar da terrivel escrava- tura que o deprime e apesar de todas as pauladas que se abatem sobre ele de todos os lados, tem instintos e comportamentos perfeitamente democré- ticos. Ele néo esté nada corrompido, ele, néo & senéo infeliz, H& na sua natureza semi-barbara qualquer coisa to enérgica e tio grande, uma tal abundancia, de poesia, de paixio e de espirito, que & impossivel nfo estar convencido, conhecendo-o, de que ele ainda tem uma grande misséo a realizar neste mundo. (Nettlau, +252, 45). FONTES PARA A ESOOLHA DOS TEXTOS ‘As diversas obras, textos © documentos consultades ‘mas flo ‘Ulllzados fo’ io ‘menclonados ‘a lista ques "Bm Paris pode-se consultar as obras desta lista quer ‘na Biblioteca Nacional, quer na biblioteca do Museu Social, quer na biblioteca de’ documentacto. Internacional contem- porinca (BDIC.), quer na biblioteca da Hecola de Linguas Ortentais (para Kérnilov; também se encontra al uma edicho ‘russe de eiistatismo e Anarquismor), quer ainda ‘a biblo- ‘feoa do’ Arsenal (para 0 jormal «La Libertés, de Bruxelas) AOS MEUS AMIGOS RUSSOS E POLACOS Bakunine: , Lelpstg, 11662. Brochura em francts. AUTONOMIA, Bakunine: cA Autonomia na Amociagior (Publicado na Fevista La Révolte, Paris, 1882, volume TI, pl. 249 a 250 Sho n= 38 do «Supplement Litteralres’ ate titulo fol dado pelos editores @ um extracto dum manuscrito em francts datando de Janeiro de 1872; trata-ae dum artigo que Bakunine destinava 8 Bevolupdo Social. (CERRETTI Batunine: Carta a Colso Cerrett, escrita em francés, de Wa 17 do Margo do 1872, Publicada ‘na revista La Société Nouvelle, Bruxclas, Fevereiro de 1606, pag. 175 a 19 CORRESPONDENCIA Bakunine: «Correspondincla de Miguel Bakunine — Cartas f Herzen ¢ a Ogaret? (1860-1874)>, eacritas em russo. Publl- fcadaa com prefécio © anotagtes' de Miguel Dragomanov. ‘Pradugto francesa de Maria Stromberg. Livraria Academica Perrine Cle, Paris, 1806. Hasta traduglo francesa de edigdo rrusea€ tncompleta, 255 ESTATISMO E ANARQUISMO Bakunine: estatismo y Anarqulas: tradueho em lingua expa- ahiols, por A. Chapiro © 'D. A. de Santillan, duma obra Inéaita ‘em francés que Bakunine oscroveu ema russo, em 4878. Esta traducdo publlcada em 1920 constitul 9 tomo V das ‘), edigto que ests Incompleta” falta-Ine 0 importante Apéndice Ae 0 Apén dice B que existem na edugho Tussa de 3813. GUILLAUME James Guillaume: hd documentos’ raros quase impessiveis de encontrar, por exemplo sobre a histérla, ‘da Internacional. Apareceram agora dole volumes. LEHNING 11: (destinado A Revolucdo Social, mas que nfo aparece al), Janeiro de 1872, escrito em trancts por Bakunine, manuserlio TLS, parte dele inédto Extracts seus foram publicadoe pela revista La. Révotte Sob os dtulos: e «A cadela og tempos 237 MALON Benoit Malon: 4, pag. 9 a 12 ) <0 nosso programas, proveniente do tomo III das obras, fm ‘rosso publiesdas ‘por «Golos ‘Pruda>. Bserito (em ‘ruaso?) em 18701873 ©) <0 Programa da Allanga da Revolugdo Internacional sorito em francts em 1871, publicado no Anarchicheeky Yeetnik, publieagio ruses," em Berlim. Volume V-Vi, Novembro de 1923, pag. 37 a 41 e volume VII, Malo de 1024, pag. 38 a 4 4) <0 Programa da Secelo Eslava da Internacional: escrito, em francte em 1872; provem do tomo TIT das obras ppubllcadas por , ©) Carta de Bakunine Albert Richard, escrita em fran- ‘te, em 1865-70, publicada no Pechat ‘Revoliutsia, Jornal russe, Moscovo, Junho de 3921, 1880 (datas dadas por ‘Maximoff). £) cA clfnela ea urgente tarefa revoluciondriar: escrito ém fusso,"publicado no Kolokol de Genebra de 1870, 18) (1871), NETTLAU—ITALIA ‘Max Nettiau: eBaleunine e Vnternazionale in Ttalla dal 1864 al 1872». Con ‘prefazione l Ervico Malatesta. dizione del Rlavegllo, Cinevra, 1028. Hate livro contém, em tradugio IHallana, cartas e manuecritos de Bakunine inédites em fran- ‘6a, assim ‘como documentos sobre ele 260 OBRAS Bakunine: : sels tomos publicados por P. V. Stock, Paris, de 1895 0 1913.0 tomo T fol publicado por Max Net: fa, ‘contends uma introdugdo sua. Gs tomos I VI foram ublicados por James Guillaume e tem uma nota blograion Sobre Bakunine, introdugbes, adverténcias w notas. Todos os frabalhios reunidos estes sols volumes foram escritos por Baltinlne em francts. So reproduzidos no seu texto Oriel: ‘bal, excepto a «Hespostaa Unita Itallana> ea. «Circular ‘Aog meus amigos de Ttéllas, do tomo VE cujos originals Gesaparcceram © que J. Guillaume teve de retraduzir park ‘frances da tradiggo ‘tallana, OBRAS, I. Bate tomo contém: Pig. 1 8 200: eProposta Motivada ao Comité Central da Liga da'Paz e da Liberdade, por Mt ‘Bakunine> ou: ede rallsmo, Seclalismo e Antiteologismo> (1867). pag. 207 0 260" cast} Dg. TO a 134: «Cartas a um Francés sobre a crise actual. ‘raia-se dum texto adaptado por J. Guillaume; 60 0 uti ize; est@ seguldo da Teprodugio tniegral do manuserito de Baleuning ‘ig. 135 8 268: «Cartas a um Francés sobre a crise actuals (asi). Ag. 265 a 455: <0 Império cnuto-germAnico e a Revolugto Bocials, primetro faactoulo (70-1811) OBRAS, II. Rete tomo contém: pig, 7 a 177: «0 Império cauto-germAnico ¢ a Revolugto Bocials, segundo fasciculo (1871). Uma parte desta obra fol ‘Publicada sob a forma de brochira, com niimerosta alter ‘6c, por Carlo. Caflero ¢ Elisée Reclus com este titulo da ‘Hin igvengfo: “Deus ¢ 0 Hstador. 261 pag, 185 a 215: Fothotos que fazem a conecgio entre <0 Tmpério ennto-germantco...» ¢ 0 seu ao «lmpério eauto-germanico..» "Consideragoes Mloséfieas sobre o Fantasma divino, s0bre 0 Mundo Reale sobre 0 Homems (1870) OBRAS IV. Bote tomo contém: pag. 5 a 72: «Cartas a um Francie sobre a crise actuals (continuagio), (1870), lig. 55 a 220: Manuserito de 114 paginas escrito em Mar- teh. G8t0) 229 a 240: «Carta a Bsquiros> (1870) Dag. 269 a 210: cPredmbulos pare 0 segundo fascleulo do ‘Himpério cauto-germanico...>_ (871). ag. 281 @ 333: eAdvertGacias para " (1ST), pag. 399 a 300: Carta so jornel La Liberté, de Bruxelas (ast). Ag. 395 a 510: Fragmento constituinds uma continuagho Serco Império couto-germanico..» (1872), OBRAS, V. Este tomo contém: ig. 13 a 210: Os artigos seguintes escritos pelo jornal “et a 76: . ‘a 124: ¢Os_Adormecedores> Ag. 299 a 860: Tr8s conferéncias feitas aos operirios do Wal de Saint-lmier (1871). OBRAS, VI. Bete tomo contém: hg, 19 9 96: (TD) PAE or aise: itemosta dom’ Internacional @ Mazzini> asta). DOE 161 « 370: Carta de Bakunine & secgto da Allanca de Bebetmm 8t) Dap 47 4 280" Relatéro sobre a Alianga> (187) aE 25? & 202: SRespenta ao Unita alana (387), BE, Sth a tad: (573) ALGUMAS PALAVRAS Balcunine: 14 Programs revoluonério¢ programa IMberat . 02 108 100 uz 125 cet 136 aT aa wt 160 a aa 158 15, ‘Téctlea © dlsciplina do Partido Revo- Iuclondrto . 16, Moral revoluctonéria UL VIAS PARA A SOCINDADE SOCIALISTA 1. Destrutr? 2, No legisiemos Aboligho do Batado, Aboligho do aireito ‘de heranga ‘A famiia legal e a famifia natural . Liberdade dos cultoe Dieltos individuats Direttos das assoclagées Organtzagio das comunas, provincias rnagbes. A comuna da Tdade Média e a comuna moderna Quarta Parte: A BURGUESIA [Liberdade-Igualdade-Fraternidado Sangue, Estado © reacto Situagdo da burguesia actual © socialismo adormecedor dos burgueses Secinlomoe hiro, Sr, Colley (© radlcalismo : 6. A burguesia ¢ 0 regime do sabre Quinta Parte: DIVERSOS Fontes A. Algumas palavras aos meus jovens ir- ‘milos da. Réssla 2. © povo russe . a9 202 207 207 na 16 ns ne as 283 235 28 m2 16 251 22 edicoes RES limitada rua lima janior, 64 / porto / Portugal catdlogo dezembro / 1975 Coleoglo TEORIA E CONHECIMENTO 1. Nietzsche, Froud ¢ Mar /‘Theatrum Philosoficum, Michel Foucault Parties e Pessoas, Reinaldo do Carvalho Diclontirio de Marxismo, André Barjonet Grande Masica Negra, J. Lima Barreto Bstruturallsme em Marx ¢ Althusser, A. Gluksmann ‘A Planiticagio e o8 Polos de Desenvolvimento, F. Perrous, 4. Priedmann e J. Tinbergen 7. Das Cléncias na Filosofia: Da Filosofia, nas Citaclas, ‘Monod, Althusser, Piaget ¢ Reinaldo Consequtncias da Bvoluglo do Homem, F. Bngele outros Economia Nacional ¢ Rconomis Politica, XK, Marz, F. Engels pare CColeceto SUBSTANCIA 1. Rock /THp, Jorge Lima Barreto 2, A Movda em Marx, Suzanne de Brunhof} 3. Introdusdo & Economia Politica, F. Kngele Colecpto REVOLUGAO SOCIAL” . 1. A Situagso Politien de Portugal vista pelo Movimento Marxista-Leninista Internacional, Antologia,selecodo, pre- clo @ notas de José Pacheco Pereira 2. Som Independiincla Nacional, Um Povo Nada Tera, Anto- logia, selecgdo, preticio e motos de Joss Pacheco Pereira

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