You are on page 1of 11
XI Matriz fenomenolédgica e existencialista Como vimos no capitulo IX, as cigneias da compreensio ¢ da interpretagio enfrentam com dificuldade 0 problema da vverdade: como produzir, como identificar e como fundamentar uma interpretago verdadeira? 3s estruturalismos como a fenomenologia, enquanto matriz. do pensamento psicoldgico, Fepresentam respostas_alternativas para esta problemética, ambos se autoproclamam adequados para a construgao de dis, ciplinas compreensivas rigorosamente cientificas. Contudo, en. quanto os estruturalismos concebem o rigor prioritarlamente em termos metodolégicos, exigindo 0 maximo de empenho na ddas hipéteses e dos procedimentos analiticos, a fenomenologia se preocupa essencialmente com 0 rigor epistemolégico, promovendo a radicalizagao do projeto de anise critica dos fundamentos e das condides de possibiidade doconhecimento. f,efetivamente, na tradigdo de Descartes, Kant €, Para 0 caso das ciéncias humanas, Dilthey que se coloca E. Husserl 1. A FENOMENOLOGIA FA QUESTAO EPISTEMOLOGICA! © projeto cartesiano se norteia pela busca de um funda- ‘mento absoluto e indubitével para o conhecimento. Segundo usta corresponde a intencionalidade operante em toda pratica cientifica; a idéia de ciéncia traria implicita a exigéncia de uma fundamentagdo sélida, metodicamente obtida samenteavaliads, Foi mediante o exeecio da divida ea que Descartes lcangoo sult pensante como endo ica evidéneia de que nao se tem 0 dreito de duvidar.O : , exatament, por em sus ese impoaih na piven erando com exteestorgo a fe natura alcangar as evidenciasapoditicas que pues. egtimamecte funda fod um sient de cenecibents sido delas deduzido segundo procedimentos estrita- igicos e matematicos. Descartes, porém, na opinio de go aprofundou jente a sua investigagéo ilégica; retornou ido natural, restabeleceu muito cedo a confianga nos dados da experiéncia e deixou inexplorado todo o imenso continente fenomenologia serd o de elucidar as estrururas formais (ger especificas) que operam de forma encoberta na oryanizacao da experiéncia segundo os diferentes modos da consciéncia visar seus objetos e de acordo com as particularidades das diversas regides do ser (mundo natural, indispensavel de revelar seus ruras a priori das regides origor e com o cardter de nece aprioristica, as categorias bésicas intencionalidade que anima suas p de pesquisa, explicitar, 173 das cigncias do espirito que se haviam articulado sob romantica. Trata-se, contudo, de uma apy smo fenomenolégico opse-se ao enfim, as ontologias que subjazem as experiéncias empirie i , possiveis naquelas regides especificas, com todas as ciéncias. Haveria, contudo, relacdes particulares fenomenologia com as ciéncias humanas. Serd destas que o| trataré em seguida. 2. © ENCONTRO DA FENOMENOLOGIA COM AS ‘CIENCIAS HUMANAS Gale dizer, a tinica que poderia orientar a psicologia, a fogia, a antropologia e a histéria como ciéncias compreen- Ser como a fenomenologia, estas sao também ciéneias do oe das suas objetivizagées, diferenciando-se assim das ‘da natureza. Convém assinalar, todavia, uma grande mnga entre a fenomenologia flos6fica eas cifncias humanas menolégicas: enquanto as ciéncias compreensivas visam 03 tivamente, as palavras de Sto. Agostinho que afirmara: “ foras ire, inte ispsum redi, in interiore hominis habitat veri ‘Vimos no primeiro capftulo como a psicologia cientifica no‘ xix nasceu, calcada no modelo das ciéncias naturais, em parte para atender A necessidade de conhecer o homem parai eficazmente neutralizar as interferéncias indesejéveis da sut tividade na prética cientifica. A fenomenologia transforma pletamente os termos do problema: conhecer o homem necessdrio por que é 0 sujeito a fonte constitutiva nio 36 de ‘conhecimento como de todo objeto possivel de experiéncla reflexio. O esclarecimento do homem é pré-condi¢ao pare fundamentagdo do conhecimento do mundo. verdade qua fenomenologia é uma herdeira da disposicao iluminista de os preconceitos e as crengas mal fundadas. Nesta medida, fenomenologia é um anti-romantismo, o que se manifesta oposigio de Husser! 20 historicismo de Hegel e Dilthey defesa da legitimidade de um conhecimento invulnerével ceticismo decorrente da subordinagéo do ideal cientifico relativismo humanista. No entanto, a0 esposar com o méximo fidelidade a perspectiva cartesiana e kantiana, ao radical ‘mesmo esta tradigdo, Husser! opés-se também & vertente ol tivista do iluminismo, o que se manifest i ralismo e em particular ao ceticismo psicologista. dos preconceitos emerge, ndo 2 aniquilacéo do concomitante fortalecimento da confianga na experi sivel e nas virtudes da observacdo objetiva, mas, a0 comt ‘uma egologia, Desta maneira, @ fenomenologia termina por, as experiéncias tar — pela contemplagao ime- ssseiéneia individual e da consciéncia coletiva, Desta sineica, a fenomenologia filos6fica passaria a exercer em rela- do a estas ciéncias uma fungi fomecendo.Ihes exata- fnente os instrumentos conce cessdrios & prética da Trmpreensdo que supere o nivel do senso comum e que se possa validar rigorosamente. 3. AS ESTRUTURAS DA CONSCIENCIA. TRANSCENDENTAL: mncias compreensivas foram profundamente igdes fenomenclégicas da estrutura re contexto avultam, entre outros, os Todas as influenciadas p geral da consciéncia. 175 174 idade da consciéncia € um coneeito pro- veniente de F. Brentano (1838-1917), psicdlogo austriaco e professor de Husserl e Freud. Refere-se 8 consciéncia enquanto ato, em oposigao & conseineia enquanto contetido, Para a psico- logia mentalista, derivada de Wundt, analisar a conscléncia era ‘dentificar 0 que ela era em termos de perceptos, imagens, vontades, lembrangas etc. O problema que se colocava era 0 de descobrir uma via de acesso a estes contetidos internos, 20 que estava “dentro de cada mente”. A solugio parecia inevitdvel: 0 método introspectivo. A nogéo de intencionalidade elimina 0 problema ao negar aplicabilidade & consciéncia da oposiglo fora/dentro. A consciéncia ndo é 0 dentro de um invéluero corporal e comportamental: ¢ um ato que visa um objeto. A ia é sempre consciéncia de, e a andlise da consciéneia al & a descrigdo das formas da consciéncia tematizar seus objetos, ou, dito de outra forma, éa descrigdo das diferentes formas de relagio en '¢0 seu mundo. Se a conseiéneia no esté dentro do st s é mediadora entre 0 sujeito e 0 mundo, néo se coloc introspecionista, mas a captag8o da intencionalidade a partir de suas manifestagées corporais e ‘comportamentais e também das suas obras e criagdes espirituais, a0 fato de que manifestagdes mais elementares (na percepgo) uma sintese no tempo. A percepeto do objeto supde a percepedo da sua ident dade ao longo de uma sucesso temporal de imagens. Toda percepgdo implica a meméria e a antecipagio; o si ‘objeto depende do que recordamos dele (e de obj Ihantes) e do que esperamos ver dele sob diferent Todo ato de conscigncia retine, diferencia, compara e sintel no tempo. Cabe a fenomenologia filoséfica descrever as formas que a temporalidade assume nos diferentes modos intencionais (Percepgio, lembraca, imaginacdo etc.) e nas diferentes regides ontolégicas. As ciéncias humanas de inspira¢do fenomenolégica, igualmente, estdo sempre preocupadas em captar a vivéncia do tempo dos sao vital tratam de compreender. ‘O conceito de horizonte da consciéneia refere-se ao fato de que a consciéncia intencional, em qualquer modo que se dd, 176 cenvolve uma atualidade como conscitncla de uma potencialidade apenas , que 6 conjunto de: passados, antecipados, sugeridos, suspeitados, assemel contrastados etc. em relagao ao qual o objeto tematizado adq um significado para o sujeito. 0 foco da consciéncia esté sempre cercado por estas franjas e delas recebe um valor cognitive € afetivo particular. Os horizontes so, na experiéncia pré-refle- xxiva, “inconscientes”, passam desapercebidos, e uma das tarefas das andlises fenomenolégicas concretas ¢ justamente elucidé-los. Uma descrigéo fenomenolégica bem-sucedida deve ser capaz de trazer & luz 0 “significado oculto” das vivéncias, esclarecendo ao méximo o horizonte de experiéncias virtuais que esté de fato implicado na vivéncia. A experiéncia pré-reflexiva, porém, est sempre adiante da reflexo, motivo por que a compreensio da vivencia é uma tarefa essencialmente inacabada. Nunca se chega ao sentido tiltimo porque nunca se esclarece totalmente o con- junto de significados e valores dentro do qual a experiéncia se constitui. 4. OS MODOS DA CONSCIENCIA TRANSCENDENTAL BE AS ONTOLOGIAS REGIONAIS® Da descrigdo das estruturas gerais da consciéneia, a feno- menologia deve caminhar para as estruturas tipicas especiais. ‘Aqui surgem as fenomenologias da percepcio, da imaginagio, da emogio, da meméria ete, empreendidas por M. Merleau-Ponty ¢ Jean-Paul Sartre, entre outros. Simultaneamente foram-se esbogando as fenomenologias das diferentes regiées do ser, das diferentes dreas da experiéncia: a fenomenologia do jogo e da “seriedade”, a fenomenologia da experiéncia estética e da ex- periéncia prética, a fenomenologia da experiéncia sagrada e da experiéncia profana, a fenomenologia das relacdes interpessoais e dos comportamentos éticos etc. Estas ontologi i revelam o que hé de especifico nas relagées entre 0 8 mundo em cada uma destas regides, quais as formas tipicas de temporalidade e qual a natureza dos horizontes que af configu- ram as vivéncias concretas. 5, A INFLEXAO ROMANTICA NA FENOMENOLOGIA DE M. SCHELER* 0 filésofo, ‘humanas compreensivas. Scheler limites do conhecimento do outro em embro de um grupo social elemento .€ 0 problema fun- geral edo outro enquant de um conjunto hi damental, atinente das ciéncias morais” primeira coisa que o homem pere Sua auto-representacao, igualment simbélico: “toda percepcao de si si deve ser percebido se transforma em Através da obra de Scheler a fenome- jentagdo husserliana, voltada para a fun- ja_do saber, e que desembocara no subjetivismo metodolégico, enquanto se acentua a temética da descrigdo da vivéncia concreta pré-reflexiva, na qual a presenga, do outo os fenémenos expresivs adquirem um peso que vem aniquilar o subjetivismo: E um erro crer que comegamos por acrescentarfamos em seguida a experiéncia nossas tendéncias e movimentos expressivos e de Uma autopercepgao puramente ‘interna’ e ‘ps simples ficgdo (..). A prépria linguagem com psicolégicas significativas projeta sua rede de difere articulagdes entre nossa percepcdo e nossas experiéncias, gue cas”, Daf, Scheler parte para uma estética tipicamente rom: t que na mesma dpoea era assum pelos formalistase Cura tas: “Alargando e fazendo explodir 05 quadros nos quais nossa linguagem aprisiona nossa vida psfquica, criando novas formas 178 sistemas lingifsticos enquanto objetos tividade. O foco seré sempre a fala, a expresso concreta de uma aproxima, entdo, dos modelos roménticos da comunicacao compreensio, enquanto compreensio do ato e do objetivo, nao é nada mais que uma participagao de um ser espiritual na vida de um outro ser espiritual”, 6. AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS A influéncia da fenomenologia sobre apsicologia entendida como ciéncia compreensiva foi em grande parte mediada pelas doutrinas existencialistas. Nao ser possivel, dentro dos limites, deste texto, fazer justiga &s muitas diferencas que separam os autores exis tas, e as consideragées que se seguem tero como base uma unificagdo proposta por Jolivet: “o conjunto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objetivo a andlise e a descrigio da existéncia concreta, considerada como ato de uma liberdade que se constitu afirmando-se e que tem ‘unicamente como génese ou fundamento esta afirmagio de si". A andlise e a descrigo da existéncia concreta ndo tiveram de esperar pela fenomenologia de Husserl para colocarem-se como tarefa filoséfica ~ Kierkegaard e Nietzsche so unanimemente considerados os precursores mais resolutos da filosofia existen- nolégico sistematizado no infcio do século XX despertou em muitos a esperanga de proporcionar & descrigéo da existéncia concreta um rigor ainda nao alcangado. E necessdrio, porém, estabelecer. uma distingZo entre 0s que, como K. Jaspers, adotaram o método fenomenoldgico para a descricao do existen- te, ou das diferentes maneiras do existir, e aqueles que, como Heidegger e Sartre, intentaram uma descrigdo da existéncia, inando-se assim para uma ontologia ou antropologia existen- cialista. 179 7. A PSIGOPATOLOGIA DE K. JASPERS® K Jaspers ndo foi apenas a figura de maior destaque de uma das correntes comparagio com os animais, épara ele vitalmente imp uma perfeicao origindria. O homem deve conquisté-la como forma da sua vida. Nao é um mero 180 resultado. & para si mesmo uma tarefa(...); 0 que acontece no homem produzido por doenga mental nao se esgota co ‘categorias da 3 que se tornaram tra suas proprias determinagées. Quando jé as fixadas, passa a nivelar-se a uma expécie abandona 0 rumo do existir humano”. A pode por isso transformar numa onto dogma do 181 logia pode ter, quando muito, o valor de teoria, ou de construgdo para conexdes compreensiveis. particu- As obras dos autores que aplicam esta ontologia & logia parecem-me, decerto, tocar, por sua vez, no que E flosoticamente essencial/~ tratando-o porém como objeu. ‘cado, conhecido e descoberto, com o que a filosofia se perde sem ‘que adquiramos conhecimento real algumé. f exatamente esta dependéncia da psicologia compreensiva em relagio a filosofia cexistencialista que encontraremos em L. Binswanger e na anti- psiquiatria de Laing e Cooper. 8. ANALITICA E PSICANALISE EXISTENCIAL® L. Binswanger (1881-1966) é um dos grandes nomes da psiquiatria fenomenolégica e 0 criador da andlise existencial. teoria e técnica psiquidtrica, ia experimental, mesmo se 0 6 com um método préprio e um ideal de exatidéo proprio, a saber, o método ¢ o ideal das : fenomenolégicas”. Enquanto isso, a ani Heidegger ¢ a descrigdo fenomenoldgica da tal do dasein ou, nas palavras de Binswanger “o esclarecimento floséfico-fenomenolégico da estrutura aprioristica ou trans- ‘cendental do dasein como ‘ser no mundo”. Esta analitica existen- ial é a base e a orientagdo para a andlise dos modos e estruturas factuais do dasein. Torna-se assim necessério, para a compreen- so da obra de Binswanger, um répido esbogo da ontologia existencialista de Heidegger. Martin Heidegger’, cuja obra extensa néo seré objeto dos comentérios que se seguem, em 1927 publicou o livro que, embora superado pelo préprio autor, constituiu-se numa das obras fundamentais do século XX e que marcou profundamente orumo do pensamento de Ludwig Binswanger: Ser etempo. Aqui reteremos de Sere tempo aquilo que configurou uma imagem da existéncia em seus determinantes universais a priori. Na tima segio deste capitulo retomarei a obra no contexto da proble- mitica hermenéutica das citncias compreensivas e histéricas, € do seu desenvolvimento através das reflexes de H.G. Gadamer. ois parégrafos acima introduzi, sem maiores ¢x dade de exercer 0 poder de escolha. possibilidades em que jeta o dasein e que o define. 0 dasein & obrigado a e € constrangido a assumir a i as. O dasein, sendo essencial- que definem o existir humano, o homem situagdo original de ser alienado. A existéncia é inevitavelmente temporal: uma antecipagio do futuro no voltar-se para a com- preensio das possibilidades abertas no presente e uma assun¢ao do passado. A existéncia auténtica caracteriza-se pela respon- i inacabamento e pela transcendéncia, no sentido da capacidade de ultrapassar constantemente a situagao ‘ea realizacéo, assumindo o passado, compreendendo o presente virtual e negando-os mediante um projeto livre e autodetermi- nado. transcrevo alguns trechos de Binswanger em que porque esta estrutura nos fornece uma norma; ilidade de estabelecer com exatidio cientifica os da norma. Para nosso espanto vimos que estes desvios (..) no devem ser compreendidos de forma puramente negativa, mas que correspondem a uma nova norma, a uma nova forma de estar no mundo. Quando podemos falar, por exemplo, de uma forma de vida, ou melhor, de uma forma de dasein manfaca, isto significa que pudemos estabelecer uma norma que compreende erage todos os modos de expresso e de comportamento dai nados como man{acos. Ora, esta norma é 0 que chamamos ‘mundo’ do manfaco(...); é sempre um tinico projeto de munde, 183 ou séo sempre os mesmos projetos de mundo com ‘devemos ros esforcar por entender de onde pode: eles resultam do seguinte: os doentes mentais vivem e diferentes do nosso. O conhecimento ¢ a descrigdo ses simbélicas em que se manifestam a5 relagbes do ‘com o seu mundo como “flexdes determinadas da textura aprioristica ou da estrutura transcendental do ser-home necessério, entdo, uma hermenéutica capaz de elucidar 0 ficado das formas idiossincréticas de expresséo remetendo- projetos de mundo que as fundam. A analitica existencial é 0 padrao das graméticas expressivas que devem ser reconstituldas para a compreensio destas formas simbélicas obscuras. A psi Terapia terd como objetivos proporcionar ao préprio si (paciente) uma compreensio de sie uma reestruturagdo das suas 9. A ANTIPSIQUIATRIA EXISTENCIAL-MARXISTA® Os ingleses David Cooper eR. Laing sofreram por seu tumo uma influéncia dominante da filosofia existencialista de Jeans’ Paul Sartre, embora nao apenas da sua principal obra existenv ‘€ 0 nada, mas também do neomarxismo da Critlea 3. Descontentes com a psiquiatria convenciona doenga mental, concebendo-a segundo o modg+ naturalista da medicina somética, os antipsiquiatras procure 184 lum outro quadro de referéncias e vao encontré-Io na das interagGes pessoais. A andlise destas interacbes, nto interpretativo de Laing e Cooper. A interpretago, , das diferentes formas de interagao depende, segt le uma teoria geral do homem, de “uma antropol concebida constitui a meta nas — a psicologia, a micro: gia social” (Cooper). Convém por! pode ser formulada a partir do existencialismo e do neomarxismo de Sartre. Também em relagio a Sartre, como fizera com Heideg- er, deixarei de lado os aspectos mais especificamente filoséficos epistemolégicos da sua obra para resgatar apenas aqueles que contribuiram para compor a antropologia de quenos fala Cooper. Ohomem é 0 ser cuja existéncia precede a esséncia. A vida no é nem determinada por, nem a expresso de uma realidade material ou ideal que a anteceda cronolégica ou logicamente. Na auséncia de toda esséncia prévia desaparece também toda neces- sidade — a existéncia é totalmente contingente e gratuita. O homem é assim obrigado a inventar a prépria vida e, queira ou no, é 0 que faz: no optar uma forma de op¢ao; a respon- total e irredutivel. Como o ser do homem é uma réncia) de ser - ex-istir, no sentido de estar fora de le & apenas o que projets pars, negando seus , acabada e determinada, mas um processo icompleto de totalizagdo. A préxis é 0 fazer ental de humano referido ao seu projeto eautocriagio. Todas as manifesta - ticas, produtivas so express6i 5) que so 0 homem. A existéncia, porém, esté perenemente ameagada pela presenca do outro. Se eu sou um centro de organizacao e ‘uma fonte livre de atribuicdo de sentido, existem no meu campo de existéncia outros sujeitos igualmente dotados da mesma liberdade. O que eu fago e 0 que eu me faco aparecem para 0 ‘outro como objeto. O meu processo incessante de totalizagho & sistematicamente congelado pelo outro que, me objetivande, me reduz a uma totalidade acabada. A vergonha o sentimento original desta queda em que perco minha condigao de sujelto e asso a “ser para 0 outro", na condigdo de objeto. As relaches 185 liminagéo de mim enquani horizonte de possibilidades e projeto de fururo. Assim, diante condicionamei ‘agdo do outro que o ameaga i possivel — o sujeito deve sem jetando-se para além dela, tr cendendo-a e transcendendo- mana, nfo pode ser apreendida apenas ao inerte, mas somente preende uma parte regres que define o leque de possibilidades, dentro da qual o pro forma e se expressa, e uma parte progressiva em que se capta exatamente a conduta e suas obras como superagio da situagdo manifestacdo do projeto. Como elementos de negagao e total preender o que 0 do que ele é feito” andlise existencial em estudos literérios e psicol6gicos em que procurava identifiar a dialética imanente & co Zagiio dos projetos existenciais de grandes géni Baudelaire e Flaubert. A antipsiquiatria é atra cialismo sartreano, mais que por qualquer outro, pela pro néncia que nele recebe a problematica da interagao interpessoal, Para Laing e Cooper, tanto a génese da “esquizofrenia”, como & solugéo terapéutica, como ainda a prépria caracterizagdo deste a de interagées sociais que a critica, no seio da familia no conjunto da sociedade e, configuram o projeto de loucura. Ou¢ da origem da esquizofrenia: “no inic mae e a crianca formam uma unida persiste durante algum tempo apés 0 mento. Pouco a pouco os atos da mie, se so corretos (Aum sentido determinado que pode ser definide) engendram um campo de préxis, com possibilidade de reciprocidade comego de ago que afeta 0 outro, ou comego da pe: segundo nascimente que transcende dialeticamente ico e, atingindo um novo nivel de organizagio sint amie pode fracassar na criagdo do campo de ago recipruca (...) {Neste caso} a crianga ndo desfrutard desde o i que restringem a liberdade, eliminam o campo de pos do individu, exigem dele a submissdo total. A esquizofrenia é a prépria configuragdo da situagao social que se vai construindo: “6 uma situagio de crise micro: nna qual os atos e a cexperiéncia de uma certa pessoa sao invalidados pelos outros por certas razdes culturais e microculturais (geralmente familiares) , finalmente, fazem com que esta pessoa seja leita e identificada como ‘doente mental’ e em seguida contir- mada na sua identidade de paciente esquizofrénico por agentes médicos ou paramédicos”. Dentro desta situasao, pode ser obtido com “a criagdo de uma situagio controlada na qual os ‘membros da familia modificam eles proprios suas relagSes de tal maneira que o membro paciente descobre um dominio de ago auténoma se abrindo incessantemente di criagéo das comunidades te pessoais fossem jertagao: a loucura. Como se vé, o pessimismo bastante atenuado no momento em que a anti- ropée como uma terapéutica existencial, o que a 10. © PROBLEMA DA COMPREENSAO NAS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS™* Nesta tiltima segdo pretendo expor brevemente os resul- tados da imbricagdo dos existencialismos na velha problematica 187 romantica da expresso e da interpretagdo das formas expres- sivas, tomando como exemplos, por um lado, o neomarxismo de io do problema her- ‘menéutico nao séo diretamente compardveis, j4 que se do em planos diferentes: em Sartre encontramos a problemdtica da compreensio e da interpretagdo situada no terreno empirico comunicagio entre individuos histérica, cultural e psicologi mente diferenciados; Sartre, a partir de sua antropol a, define uma metodologia progressivo-regres tética) e a explora em intimeras andlises lades hist6ricas e autores literdrios. Jé em Heidegger ‘© problema da compreensao emerge no contexto da investigagdo fenomenolégica do dasein; Heidegger nao oferece, portanto, solugdes metodolégicas, ou epist cas, mas’ uma fun- damentago ontolégica da compre “O homem - diz Sartre - é para si mesmo e para os outros uum ser significante, pois ndo se pode jamais compreender 0 ‘menor de seus gestos sem superar o puro presente e explicd1o pelo futuro. &, em outras palavras, um eriador de signos na medida em que utiliza alguns objetos para designar outros dobjetos ausentes e ururos. Mas uma e outra operagao se reduuzem a pura e simples superagdo: superar as condigées presentes na diregéo de uma mudanga ulterior, superar o objeto presente na diregdo de uma auséncia é a mesma coisa. O homem constréi signos porque é significante em sua prdpria natureza e ele & significante porque ¢ superacao dialética de tudo que é simples- mente dado”. Como se vé, aos olhos de Sartre é enquantonegagéo do condicionado, do dado, do que Ihe fizeram e do que é feito que o homem caracteriza-se como ser significante. “A conduta mais elementar deve-se determinar simultaneamente em relagio aos fatores reais e presentes que a condicionam e em relagdo a um certo objeto futuro que ela deve fazer nascer. £ 0 que nés ‘chamamos o projeto(...). O homem se define por seu projeto. Este acto e pelo esta perpétua produgio de sie pelo trabalho e pela praxis ¢ a nossa estrutura propriat.). & 0 que denominames existéncia,e por este conceito ndo eatendemos uma substancia estavel que repousa em si mesma, 'mas um desequilibrio perpétuo (...). Como este impulso para objetiviza- do toma formas diversas segundo os individu projeta através de um campo de possiveis dos esclarece 0 sentido do projeto enquanto negatividade, escolha ¢ realizagao. A compreensdo se aprofunda e concretiza neste movimento de vai e vem. A metodologia da compreensto, baseada nesta antropologia que identifica o existente com sua situada e limitada, deve comportar, que a situagdo oferece ao existente, as limitagées ¢ jonamentos que constrangem sua ago, inclusive aqueles interiorizados na forma de hdbitos e de um “caréter”; e um ‘momento progressivo, em que se verd como o individuo enfrenta sua situagio e se define em seu projeto através de suas escolhas. Areconstituigdo da situagio histérica cultural e psicol6gica nao visa explicar o comportamento, que seria entdo reduzido a uma pura e simples reagdo automdtiea ao contexto, um dado entre dados, um elo de uma relagao causal. Ao contrério,o que importa mente, a diferenca entre (o geral e) a idéia ou atitude concreta dda pessoa estudada, seu enriquecimento, seu tipo de coneretiza- 0, seus desvios ete. que devem nos esclarecer sobre nosso objeto, Esta diferenga constitui sua si condutas e obras serd 0 ‘Acexisténcia é assim produtora de signos e formas de negagao do presente) sio projeto. “Para apreender o sentido de uma conduta humana é preciso dispor do que os psiquiatras e histori- adores alemies chamaram de compreensio’. Mas no se trata de nenhum dom particular nem de uma faculdade especial de intuigdo: este conhecimento é simplesmente o movimento dialé- tico que explica o ato por sua significagio terminal a partir de suas condigées de inicio.” Contudo, a compreensio, Sartre 0 admite, ndo & um conhecimento imediato proporcionado por 189 uma atividade puramente contemplativa. Em primeiro lugar, porque a expresso do projeto ‘ada e deformada pelos instrumentos culturais disponiveis. "O projeto deve necessa- riamente atravessar o campo das possibilidades instrumentais. Os caracteres particulares dos instrumentos o transformam mais ou menos profundamente; eles condicionam a objetivizacao\..); J que os instrumentos alienam quem os usa e modificam 0 sentido de sua acio, ¢ preciso considerar (as realizagées) como 4 objetivizagao do homem e como sua alienagéo.” Esta relagéo diiplice e contraditéria do projeto com suas manifestagdes empir- icas exige uma prética de interpretagdo e nao a simples com- Preensdo imediata do sentido. Em acréscimo: “nossa compreensao do outro nao é jamais contemplativa: 6 apenas um ‘momento da nossa préxis, uma maneira de viver na luta ou na convivéncia a relagéo concreta e humana que nos une a ele”. Mas se a compreensio do outro é parte do meu projeto, que pese a tentativa de distanciar-se de todo irra todo intuicionismo psicologista — estabelecer posso obter da compreensio do outro? Ela néo estaré inevita- velmente comprometida pelo meu engajamento pessoal no ato de compreendé-lo, e pelas limitagées instrumentais do meu proprio projeto? Ea divida que nos remete ao problema central da hermenéutica que sofreu com Heidegger e Gadamer um reequacionamento. Em Heidegger “compreender ndo é um modo de comporta- ‘mento do sujeito entre outros, mas o modo de ser do préprio dasein”, como bem o diz Gadamer. O ser-ai &essencialmente uma relagao original do sujeito com o mundo em que este 6 0 mundo projetado pelo dasein como horizonte das suas ser. Neste contexto, a compreensdo é primitivamente a orienta- ‘¢80 do dasein na situago, ou seja, uma compreensio antecipada das suas possibilidades de ser. O dasein compreende-se através da compreensio das suas possibilidades futuras: 0 presente, 0 ser-no-mundo, é sempre compreendido do ponto de vista do fururo que, por sua vez, éalvo de uma compreensio antecipada. Nesta medida, toda compreensio é precedida de uma antecipa- sao de compreensio, e isto € inerente ao modo de ser do dasein, ue é um ser orientado para o futuro e que s6 a partir do futuro, assim antecipado, pode compreender seu estar no mundo pre- sente. Este modo de ser do dasein prefigura o circulo her- menéutico com que se defrontaram os autores que haviam procurado fundamentar as préticas interpretativas das ciéncias do espirito: o sentido 6 se oferece a um sistema di previamente elaborado; como, entio, garantir 0 Lido verdadeiro se toda interpretacdo jest previ cionada pelo sistema compreensivo adotado? Ou como Gadamer: “Quem queira compreender um texto, tem sempre projeto. Desde que se esboga um primeiro sentido no te intérprete antecipa um sentido para o todo. Por seu tumo, primeiro sentido s6 se esboga porque jé se Ié 0 texto guiado pela expectativa de um sentido determi Quem queira com- preender est4 exposto aos erros suscitados pelas preconcepcBes que nao sofreram a prova das préprias coisas. Tal é a tarefa constante do compreender: elaborar os prc ‘ados A coisa que, enquanto projetos, sdo esperam confirmagio apenas das coisas mesm: entio, reconhecer que o intérprete no cheg: ‘mente, assente numa preconcep¢io jé pronta e acabada, mas que & necessério pér expressamente & interrogando-se sobre sua legitimidad compreensio ¢, fundamentalmente, do modo de ser do dasein. Mas se néo é possivel evité-lo e sair dele definitivamente, & possivel experimenté-lo de uma forma positiva e nfo apenas Como uma limitagio absoluta ao acesso a verdade. Reconhecer a inevitabilidade do efrculo implica em alterar radicalmente 0 status do preconceito e da tradigio tal como fora definido iluminismo e parcialmente reformulado pelo romantismo. “E do iluminismo que 0 conceito de preconceito recebeu o acento fundamental do cos em gerallea recusa, conseqilent 3°. Haveri a razio ¢ tradiglo um antagonismo de base e insuperdvel. O romantismo confirma esta ciséo, invertendo, porém, os sinais valoratives. preconceitos e da tradig dum ponto de vista soberano {que nos introduza na coisa mesma, que nos faculte a compreen- Sao imediata, adequada e indubitavel. Mas, em contrapartida, no ha um antagonismo estético entre razdo ¢ tradigio: “A tradigdo, mesmo a mais respeitdvel e auténtica, nfo se reallza somente de maneia natural em virtude da forga de perseveraglo 191 do que existe; ela exige ser afirmada, apreendida e avaliada. Ela essencialmente perseveracdo(...). Mas a perseveragi da razio, um dos que, efetivamente, passam desapercé ‘encontrar com as possibilidades comunicativas do outro ou do texto, criando o terreno comum do didlogo. Neste processo nem 3G um rompinenta do ivépete com tus pros horgontes a colocam como uma ciéncia interpretativa) e na psicandlise 192 (trabalhos de Habermas e Lorenzer’®, revalorizagao da hermentutica decorrent nomenolégicas e existencialistas. NOTAS 1, Acerea da epstemologia fenomenolégioa, ver: HUSSERL, E. La laa como cinciaestricta. Buenos Airs, Nova, p.7-73. idem. Médiaton catasienns 2. Acerea do andlsefenomenokigca da conscitcia transcendental, vr: [HUSSERL, E- Médliations..GURWITSCH, A. Thdorte du champ dela consence. Bruges, 1957. Fenemensogi dos mio conan ranean (xen: ftomem Ems GADAMBR, H.G-~ VOGLER, P (org) Op. cp 95-128 7.Cf. HEIDEGGER, M. Being and time. Nova lorque, 1962. 8.C1. COOPER, D. Pychitry and antipyehiatry. Londres, Tavistock, 1967,

You might also like