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12 © Tempo Resisténcias e inovagées culturais kanak “A Area Costumeira” do Gentro Tjibaou (Nova Caledénia) Alban Bensa” A historiografia do mundo kanal somente hi algumas décadas come- gow a recorrer, de maneira regular, ao termo cultura, No século XTX, milita- res, missionérios, comerciantes e administradores — franceses ou ingleses — nem por um instante chegaram a imaginar que os costumes préprios do povo autéctone da Nova Caledénia pudessem ser alcados & categoria distinta de “cultura”. Pelo contriirio, convencidos de que somente os ocidentais encar- navam a “civilizagdo”, concordavam em encontrar entre os kanak provas con- vincentes de primitividade e de selvageria.' De fato, mesmo quando, por vezes subjugados pela paisagem das /arodiéres (tetragos irrigados, que des- cem das colinas), ou seduzidos pela elegancia da hospitalidade kanak, se entregavam a algumas frases de admiragio, era para logo depois retrocedere- * Professor da EHESS — Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales — Paris e Equipe “Genase et Transformation des Mondes Sociaux” "CEB. Douglas, Across the Great Divide. Journeys in History and Anthropology: selected essays, 1979-1994, Amsterdam, Harwood Academie Publishers, 1998. Tempo, Rio de Janeiro, ni 73 Dossié rem, voltando a eterna retérica do desprezo, que prevalecia, €poca, em to- dos os meios brancos dos cinco continentes.* De fato, 0 “racismo de exterminio”* de que foram vitimas os kanak, no século XIX, nfo deixou espago para qualquer gesto de reconhecimento € de valorizagio, que pudesse uansformar em “cultura” os costumes destes povos, nos dois sentidos do rermo (ter “uma cultura” e ter “cultura”). E, mesmo mais tarde, num perfodo em que a nogio de cultura ja se tornara um conceito-chave da antropologia americana, quando surge uma documenta- cdo erudita sobre as sociedades kanak, com a publicagao, em 1930, das Notes ethnologie neo-calédonienne, o autor, Maurice Leenhardt, ainda nfio ousa, no preficio, falar de cultura. O advento da “cultura kanak” Em seu universalismo republican, a colonizagao francesa (que Leenhardt criticou, sem colocé-la em questo!) nao podia tolerar que se mantivesse a longo prazo, em seus territérios, um outro espago social ¢ cultu- ral de referéncia que no o seu. Seria preciso esperar que o império colonial fianeés cnuasse ein crise, pare que a idgia de culture kanuk pudesse emergir. No fim dos anos sessenta, a atenuagio da doutrina colonial e 0 rapido desen- volvimento do nacionalismo kanak na Nova Caledénia acabariio por impor a idéia de que todo 0 povo, na Nova Caleddnia, colo de uma “cultura”. Nao ha nada de completamente calculado nesta mensa- gem, fortemente ligada as reivindicagées locais. Ela se formou, basicamen- te, como a expresso de uma nova correlagio de forgas, estabelecida num momento em que os kanak erguiam a cabega.' Nas décadas que se seguiram, as prdprias autoridades francesas irfio retomar parcialmente esta exigéncia, procurando, porém, dissociar 0 argument politico de fundo (a exigéncia de descolonizagao, com ou sem “cultura”) de sua variante, julgada menos peri- gosa (0 reconhecimento de uma cultura kanak). Com base neste raciocinio, ado ou nfo, é detentor 2 GE. J. Garnier, Voyage a la Nowvelle-Calédonie, 1863-186: Barriére”), Cadeilhan, 191 ° GE. A. Bensa, Ghraniques kanak, Liethnologie en marche, Pavis, Ethnies-Documents, Survival International France, ni 19-20, 1995 “CE. J. Clifford, Maurice Leenhardt. Personne et mythe en Nowvelle-Calédonie, Paris, Jean-Michel Place, 1987. (trad. frang., éd. orig. 1982). 5 Jean-Marie Tjibaou (1996) fizera da relagfo entre reconhecimento cultural ¢ emancipagio politica 0 eixo central de sua reflexk , 1871, réédition, Ed. Zulma (“Hors- 74 Resisténcias ¢ inovagées culturais kanak os governos sucessivos da Republica irdo criar, a partir do comego dos anos 1970, diversos programas e instituigdes, com a intengao de “promover a cul- cura melanésia”.® Assim, a relacao dialética entre a ascensio das exigéncias independen- tistas ¢ a instalagao, no local, pela Franga, de escritérios ¢ outras agéncias encarregadas de expor, de permitir a compreensio ¢, espera-se, de tornar estimado 0 universo kanak, desempenhard o papel essencial de destacar a nogao de cultura kanak € o trabalho do qual ela seré objeto. Aposta politica nacional para os independentistas, mas simplesmente regional para o Esta- do francés, a “cultura kanak”, enquanto tal, suscitou, desde entio, um né- mero crescente de iniciativas que fizeram dela uma realidade espectfica, no seio de um campo comum as intervengdes militantes e/ou ministeriais. O primeiro episédio marcante desta nova redistribuiggo de tarefas foi, sem diivida alguma, 0 Festival Melanésia 2000, em 1975, nascido de uma pro- posico de Jean-Marie Tjibaou, mantida por alguns altos funciondrios do Ministério dos DOM-TOM.’ Apés o sucesso desta excepcional manifesta- cdo no meio melanésio, e repercutindo 0 forte crescimento independentista, a cultura autéctone® se vera dotada, ao longo dos anos, de uma demanda par- ticular, marcada pela criagdo de instituigécs, cujos nomes variario segundo as pocas, mas todas comprometidas com 0 mesmo objetivo: produzir uma imagem identificdvel e compreensivel da “cultura kanak”, Com uma série de decisées claras, liberaram-se verbas, foram criados locais especificos de atuagio e contratados artistas ¢ funciondrios, formando uma pequena equipe especializada de profissionais, composta ao mesmo tempo por kanak e europeus. Pouco numerosos, peritos em artes plésticas ou gréficas, em cinema, em edigao ou animagao cultural, vindos da Franga, além de equipes locais, formadas no proprio ambiente,’ trabalharam, a partir ©O Instituo Melanesiano (1979); 0 Eseritério Cultural Canaque (1984); a Agencia para 0 Desenvolvimento da Cultura Kanak (1989). 7 CEP. Missote (ed.), “Vingt ans aprés le Festival Mélanésia 2000, Dossiers — Témoignages”, Journal de la Société des Océanistes, 100-101 — 1-2, pp. 57-164, 1995. *N.T: DOM-TOM — sigh para departamentos/territdrios de ultramarda Repiiblica Francesa. Os cermos “Ulindigenall”, “autéctone”e "melanesiano” sao frequentemente utilizados como sinénimos, para designar os kanak. Cada um destes qualificativos ou substantivos tem cono- tages histéricas e politicas muito claras na Nova Caledonia. Se sio aqui utilizados indepen- dentemente do contexto local, o presente artigo adota, no entanto, 0 uso geral e internacional do termo “kanak” para designar a mais antiga populagio do arquipélago (Cf. J. Dahlem, Nouoelle-Calédonie — Pays kanak: un récit, deus histoires, Paris, L'Harmattan, 1996). ° Seria preciso, um dia, refazer exatamente as trajetérias destes e dos que se tornaram, assim, a titulos diversos e por periodos variéveis, os promotores manifests da “cultura kanak”” 5 Dossié de entiio, na preparagao de espeticulos, exposigdes, publicagdes, conferén- cias, etc., que estabeleceram o mundo kanak enquanto realidade cultural, tio singular quanto objetivavel. No ambito da comunicacao e até mesmo da ati- vidade pedagégica, a especificidade incomensuravel da “cultura kanak” fun- cionou como evidéncia preestabelecida. Assim, terminou-se por confirmar, no campo cultural, o distanciamento que os partidos nacionalistas, ao mes- mo tempo, denunciavam e exaltavam. Em apoio a seus projetos politicos, nao sustentavam cles que somente a independéncia seria capaz de preencher 0 fosso que os isolava das estruturas de poder do pafs? Por outro lado, esta so berania deveria produzir também a possibilidade de realizagao plena da cul- cura kanak, irrigando a nova sociedade assim formada. Ao contrario, o Estado frane€s, ao procurar favorecer o aumento de potencialidade do mundo kanak. enquanto “cultura”, esperava certamente manter uma alternativa & luta po- litica que colocava em questo sua tutela. Neste esquema, so avaliados quais beneficios interligados podiam ser obtidos, pelas autoridades francesas e pelos nacionalistas, da capacidade, dos institutos ou dos escritérios especializados, em identificar a cultura kanak a um mundo radicalmente diferente de qual- quer outro, ou, em outros termos, de pensar nas disparidades econémicas & escolares, em termos de cultura especifica." Deste modo, o debate sobre o lugar da cultura kanal no futuro da Nova Caledénia somente péde ser levantado, por ambos os lados, em termos de uma redundincia ou de uma distinggo entre o cultural ¢ o politico, quando 0 dominio da cultura jé estava constitufdo em entidade institucional, distinta da vida comum das populacdes. Uma tal dissociagao esta carregada de con- seqiiéncias para aqueles que se considera encarnarem naturalmente esta cultura, ou seja, os préprios kanak. Com efeito, como se pode viver sem ten- sdcs a ruptura entre a continuidade da vida social habitual e a transformagdo em espeticulo, aos olhos de todos, das formas (esculturas, dangas, livros, ar- quitetura) consideradas capazes de representd-la? A contradigao, para os kanak, entre suas priticas costumeiras, as quais no cogitariam espontanea- mente de dar o estatuto de “cultura”, ¢ as obras mostradas ou mesmo produ- zidas, em seu nome, por ateliés especializados em expor 0 que chamam de '® Esta questdo foi levantada pelos trabalhos de J.-M. Kohler ¢ L, Waequant, que denuncia- ram os efeitos de miiscara, induzidos, por exemplo, pelas interpretagdes culturalistas das de- sigualdades escolares (Cf. J.-M. Kobiler e L Wacquant, Léeo/e inégale. Eléments pour une sociologie del éole en Nouvelle-Calédonie, Nouméa, Institut Culzurel Mélanésien, 1985). 76 Resistincias ¢ inovagoes culturais kanak “sua cultura”, s6 pode suscitar-lhes espanto e, até mesma, itritagio.'" As rea- gdes kanak as iniciativas politicas, relativas 4 sua cultura, evocam esta difi- culdade em aceitar facilmente a disjungao entre o sere o parecer, entre a vida para si e a oferecida aos olhares dos outros, adquirindo esta oposigao um as- pecto ainda mais forte, tendo em vista que ela se desenvolve, ali, num con- texto de descolonizagao. O projeto de emancipagio, defendido pelos inde- pendentistas, colocava, de fato, com acuidade, a questo de uma redefini¢io dos kanak por eles mesmos. O que querem ser, frente aos outros franceses de origem européia, asidtica ou polinésia, que também compéem a popula- gto da Nova Caledénia? Quando, porém, para tentar responder & questo, fornecem imagens mididticas e, portanto, politicas, da “cultura kanak”, dei- xam, entio, necessariamente, formar-se uma defasagem entre a cépia e 0 modelo, entre aquilo que é projetado em uma cena publica, maior do que a que cotidianamente praticam, € o sentimento de pertencimento espontaneo ascu proprio mundo. Este desconforto, jé visivel quando do Festival Melanésia 2000 (niio assistimos, entio, a o Palika — partido da liberagio kanak — de- nunciar “a prostituigdio da cultura kanak”?), reapareceu nitidamente com a criagdo do Centro Cultural Tjibaou, em Nouméa, objeto especifico deste tex- to, Eu me interrogarei, neste artigo, sobre as reagScs que o recorte cntre © “para si” © o “para o outro” péde suscitar, mesmo entre os que trabalharam diretamente na construgio do Centro, planejado como representagiio simb6- lica da cultura kanak, porque isto me parece exemplar desta problematica ¢ rico de ensinamentos para as pesquisas, atualmente em voga, sobre os pro- cessos de “invengiio da tradigao”."* Tomarei por fio condutor desta reflexao um dos problemas levantados pela realizagio do Centro Tyitaou, de Nouméa, O Centro Tyibaou e sua “Area Costumeira” Na Nova Caledonia, arquipélago do Pacifico de que a Franga havia tomado posse em 1853, a populacao auréctone, chamada kanak, tornou-se, " Assim, por exemplo, um membro da ADCK declarou: “Nossa sociedade enfatiza menos 0 espeticulo que a partilha”; pois o essencial de nossa cultura permanece da ordem do imacerial, do inacessivel” (Cf. A. Bensa, “La culture kanak au présent, Dialogue sur Part océanien”, Le Genre Humain (“Actualités du contemporain”), né 32, Paris, Seuil, pp. 65-79, 2000. "Os trabalhos que se destacam desta corrente teérica foram apresentados ¢ discutidos recen- temente — para o ptiblico francés — por A. Babadzan (ed.), “Les politiques de la tradition: identités culturelles et identités nationales dans le Pacifique”, Journal de a Sacieté des Océanistes, n® 109-2, 1999, ¢ E. Wittersheim, “Les chemins de ’authenticité. Les anthropologues et la Renaissance mélanésienne, L'Homme, nd 151, juillet-décembre, pp. 181-206, 1999. 7 Dossié em menos de dois séculos, minoritéria em sua propria terra, em virtude de uma colonizagio de povoamento. Em 1984, os kanak desencadearam um movimento de carter insurrecional, exigindo novas instituigdes, que tornas- sem posstvel 0 acesso A independéncia para este cerritério do ultramar fran- cés. Em 1988, a assinatura dos Acordos conhecidos como “de Matignon” tornaram a trazer a paz civil A Nova Caled6nia. Neste novo clima, Jean-Marie ‘Tjibaou, presidente da Frente de Libertagao Kanak Socialista (FLNKS), exigia a construgio de um centro cultural kanak em Nouméa, capital do arquipéla- go. O Estado francés criou, entdo, em 1989, a Agéncia para o Desenvolvimento da Cultura Kanak (ADCK) ea encarregou de realizar um concurso inverna- cional de arquitetura para escolher o projetista do futuro centro. Em 1991, 0 arquiteto italiano Renzo Piano € sua equipe ganharam 0 concurso." O Gen- tro, construido sobre um local chamado Tina, na periferia de Nouméa (bafa de Magenta), foi inaugurado em 5 de maio de 1998, coma presenga de Lionel Jospin e de Michel Rocard."* O projeto de instalar na capital da Nova Caledénia um signo imponen- te da presenga kanak associava estreitamente a autopromogfio de um povo (enquanto cultura) & sua estratégia de subversio da ordem colonial. Ao fim de um perfodo conturbado, que consagrou a implantago definitiva dos independentistas no campo politico caledoniano e francés, a criagiio da Agén- Gia para 0 Desenvolvimento da Cultura Kanak, segundo os mesmo principios juridicos dos precedentes institutos ¢ escritérios culturais, vai produzir mei- os importantes para os kanak se dizerem e se mostrarem, em uma cidade que 0s renegou por muito tempo. Com grande influéncia politica, entre suas atri- buigdes, a Agéncia recebeu a de executora do projeto arquitetonico aprova- do® para o futuro centro cultural. Os responstiveis kanak da instituigao sou- beram tirar proveito desta extraordindria ocasido para trabalhar, com Renzo Piano e sua equipe, na representacio arquiteténica de seu povo. Aimagem emblemética miditica assim proposta — colocada a dit tncia de si, por si e pelos outros — deixava, no entanto, encoberto, o essen- © De 1990 a 1997, participei, como etnélogo € consultor da Renzo Piano Building Workshop (paris, Génes) ¢ da Agéncia para o Desenvolvimento da Cultura Kanak (nouméa), do tra Iho de concepgo do Centro Cultural Tjibaou “GEA, Bensa, Evhnologie er architecture, Le Centre Culturel Tyibaou (Nouméa, Nowvelle-Calédonie) Une réalisation de Renzo Piano, Patis, Editions Adam Biro, 2000. Num projeto arquitetonico, o executor cuida para que 0 que the foi encomendado seja rea- lizada segundo as intengdes do arquitero, idealizador ¢ responsivel, que foi escolhido pelo jit do concurso. Resisténcias ¢ inowagées culturais kanak otom cial, a saber, a propria vida social. Sensiveis a esta , os kanak enear- regados do projeto nfo deixaram de tornar de conhecimento geral, logo de saida, que, para eles, nfo se tratava, de modo algum, de consagrar /odo o terre- no somente a construgao de um simbolo, cujo referencial seria a sua “cultu- ra”, no sentido quase publicitario do termo. Também desejavam poder apro- veitar este espago para nele darem continuidade aos seus préprios costumes, independentemente de qualquer légica midiatica. Elaborado em 1990, pela entdo recém-criada Agéncia para o Desenvol- vimento da Cultura Kanak, 0 edital do coneurso de arquitetura tornava publi- co, com efeito, uma exigéncia bastante particular: reservar na quase ilha de ‘Tina um espago, onde os arquitetos responsaveis pelo projeto nao interviri- am. Nesta “area sagrada”, onde os kanak exerceriam uma autoridade sem divisdo, os arquitetos ndo deveriam construir nada. Esta necessidade impe- tiosa, colocada como exigéncia incontorndvel, iniciou uma negociagao espe- cifica entre todas as partes ligadas ao projcto. A limitacZo do espaco para a intervencao do arquiteto nao seria uma resisténcia ao “todo cultural”, do qual a légica do Centro poderia ser portadora? Oantincio de um enclave no interior do terreno do futuro Centro Cul- tural gerou grande perplexidade na equipe de Renzo Piano. Que relagdes estabelecer entre este espago reservado € as edificagdes do Centro? Como pensar a circulago pelo conjunto do perimetro disponivel, visto que seria necessério contornar esta “Area costumeira”? O esboco apresentado pelo ar- quiteto para o concurso, em 1991, respondia ao problema, imaginando que, entre “o espago sagrado” kanak, instalado em um vale, ¢ 0 Gentro propria- mente dito, se estenderiam, na vertente sudeste do terreno, terragos irriga- dos, campos de inhame, de banana e de cana-de-agticar. Enquanto, sobre a borda da restinga, a altura ¢ a luminosidade do edificio prenderiam primeira- mente a atengao, a “érea costumeira” seria procegida dos olhares ¢ das intrusdes por esta tela vegetal. Para além de uma fechada cerca vegetal de arbustos, reforgada por algumas paligadas — limite entre as duas zonas — seria necessdrio utilizar um caminho, atravessando as culturas de viveres, para aleangar, descendo, as cabanas tradicionais, que se ergueriam no fundo do vale. Estas moradias, tipicamente kanak, em ntimero de seis ou oito, seriam um contraponto aos prédios esbeltos do Centro. O relatério final do concurso arquiteténico considerava que “a unidade de um tal projeto reside nesta tran- igdo leve e equilibrada entre a mais perene cultura kanak e as inovadoras 9 Dossié exigéncias da modernidade”. Esta primeira hip6tese respeitava, entio, a idéia de um tipo de lugar reservado, mas tentava afogar na vegetagao 0 corte que este espago & parte introduzia inevitavelmente no plano do conjunto. Delimitando um terreno de certa forma “mais kanak” que o resto do terreno manejavel, a ADCK interiorizava a complexidade das relagGes entre 0s componente da populagao da Nova Caledonia, Enquanto uma lenta evo- lugio politica impunha, a partir de entio, a presenga kanak como uma forga com a qual era preciso contar, as seqiiclas da colonizagio ainda mantinham a distancia os kanak que, em suas “reservas” (agora chamadas “tribos”), nio cessaram, até hoje, de viver, em parte, segundo outras regras que as dos eu- ropeus. As discussdes com os responsaveis da ADCK fizeram aparecer pou- co a pouco estes bastidores do debate: a “rea costumeira, explicaram eles, estabelecia as condigdes de possibilidade da construgio do Gentro, porque ela marcaria, no terreno, a autoridade dos clas-senhores do local”. Nesta fra- se, expressava-se a forga tranquila de uma pratica antiga, que os Kanak naio pretendiam ¢ ndo pretendem abandonar, mas, pelo contrério, na qual que- rem empenhar-se ao maximo. Assim, a voz dos senhores do solo vinha resso- ar nas portas de Nouméa, para lembrar, em um contexto politico, conferin- do-Ihe uma ressonancia particular, que, sob a ponte das jurisdigdes france- sas, corre, tenaz, o rio de uma palavra kanak, que governa os lagos com 0 solo. Através da “rea costumeira” assim justificada, os kanak buscavam falar aos kanak, para aquém para além do exclusive projeto do Centro cultural e em uma lingua independente da que se atribui a “cultura”, quando esta se diri- ge aos estrangeiros, A logica desta area era a da ordem social kanak, tal como existia antes € apés sua simbolizagio por todas as politicas culturais a cla concernentes. Mais que de uma “cultura”, a “érea costumeira” se ergueria de uma organizagao essencial do mundo kanak, a que harmonizava as rela~ Ges estruturantes com a terra. Apropriar-se do espago Do ponto de vista dos kanak, todas as terras da Nova Caledénia, culti- vadas ou selvagens, litorAneas ou montanhosas e, hoje em dia, tanto rurais quanto urbanas, esto dispostas sob 0 controle de clas definidos, aqueles que hi mais tempo se instalaram em cada uma delas. Evidentemente, a quase ilha de Tina nao foge a regra. Os senhores de seu solo foram longamente consultados para que autorizassem a construgao do Centro cultural. O acor- 80 Resisténcias e inovagies culturais kanak do foi selado quando, tendo vindo ao local, aceitaram os cigarros, o tecido ¢ a “moeda” de conchas, que hes deu o diretor da ADCK. No pais kanak, toda palavra solene é acompanhada de um presente, € um contradom equivalen- te encerra a cerim@nia. Para uma transagdo importante, trocam-se pequenas conchas alisadas por abrasio, enfileiradas em um cordao ¢ guardadas em um estojo de casca: este objeto no é propriamente uma “moeda”, mas, de fato, um selo da contrata realizado. Fim frances local, faire la coutume (seguir 0 6os- tume) significa proceder a estas trocas de bens de valor simbélico, a fim de firmar uma relagio; gesto indispensdvel na ocasitio, para que os senhores do terreno pudessem acolher o projeto de construgio em suas terras. Frequentemente, os senhores da terra ja h4 muito tempo no moram nos lugares onde sua autoridade é exercida. O poder que detém ¢ legitimado se que, antiga- mente, eles abriram espagos até entao selvagens para a habitagao humana Este gesto de fundagio teria sido beneficiado pela ajuda dos espiritos do lu- gar, que transmitiram ao primeiro homem do pafs as técnicas cinegéticas ¢ de horticultura necess4rias & sua sobrevivéncia. Fortalecido por esta instala- gio, apoiade pelos deuses locais, 0 senhor do terreno pode, em seguida, aco- Iher os grupos que Ihe pedem asilo. Estes recém-chegados tomam parte em uma organizagdo sociopolitica, cujos senhores do solo so © centro de gravi- dade. Alias, 0 poder de nomear o representante da organizagio social, pro- gressivamente constituida pela chegada sucessiva de grupos ou de individuos, Ihes é reconhecido: um dos recém-chegados receber4 dos ancitios do lugar 0 titulo de “chefe” ¢, com este, uma grande mascara de madeira esculpida. Enquanto o dominio politico do solo permanece nas mios dos que o acolhe- ram, 0 chefe deve assumir numerosas obrigag6es para beneficio de todos. O estrangeiro, ao mesmo tempo magnificado € colocado sob a tutela de seus anfitrides, torna-se, por isto mesmo, o emblema de sua regio, por vezes com- parado a um cstandarte. Para tanto, planta-se no alto de sua cabana uma fle- cha decorativa, longa pega esculpida, cujos motivos variam de uma regio para a outra.'® por mitos, que remontam, as vezes, a origem do mundo. Diz ‘Tudo se passa como se os senhores do solo quisessem desdobrar sua tomada de posse sobre a regido: controlar ritualmente seu espago € confiar a um estrangeiro o cuidado de manifestar 0 seu esplendor. No terreno de Tina, a “Grea costumeira” estaria para os senhores da terra como 0 Centro Tjibaou CER Boulay, La Maison Kanak, Marscille, Editions Parentheses, 1990. aL Dossié para os detentores do poder. Nesta légica, era a autoridade dos mais antigos guardides do local que tornava possivel a realizacao do projeto que, assim como um novo chefe, era um recém-chegado em terras ancestrais. Para uns, em- baixo € na sombra, a “érea costumeira” € 0 poder eterno sobre a terra; para outros, no alto ¢ em plena luz, o Centro cultural ¢ a gléria efémera do reinado sobre os homens: a dualidade politica kanak sé seria respeitada com a condi- so de que estes dois pélos estivessem bem estabelecidos pelo plano princi- pal. A “area costumeira” tornava, assim, tangivel a extensio das representa- Ses politicas kanak ao dispositivo fundador do Centro. Além desta fungio imbélica, deveria permitir também As pessoas que vivem longe de Nouméa apropriar-se do lugar, onde, segundo seus desejos, a cultura kanak deveria ser tanto vivida quanto mostrada, Com a “area costumeira”, a referéncia ao mundo kanak nao estaria somente contida na resposta arquitetnica ao edital, mas colocada pelos préprios kanak em um lugar consagrado ao funcionamento efetivo de sua sociedade. Tudo ali deixa perceber uma firme recusa de se deixar inventar pelos outros, uma nitida vontade de se agarrar 4 continuida- de dos costumes que os kanak nao saberiam abandonar no limiar da “cidade branca”. Para um grande niimero de kanak, sobretudo para os que vivem no interior do arquipélago, 0 Centro Cultural, antes de ser construido, era pensa- do, antes de tudo, como um espago pritico, onde os kanak que viriam visitar Nouméa pudessem habitar, Uma pesquisa sobre a percepgio do projeto, rea lizada a pedido da Missdo dos Grandes Trabalhos, em 1992, mostrava claramente que os habitantes das reas rurais esperavam encontrar em Tina “a vida da tribo”."” Assim, diante dos planos que Ihes eram apresentados, as criangas da Escola Popular de Canala imaginaram que seria necessario prever “um lugar onde os pequenos irdo cozinhar com sua mamie: uma casa aberta, com um. teto que protege do sol ¢ da chuva ¢ suportes de ferro para fazer fogo”. Os adultos, por sua vez, insistiram no grande numero de pessoas que se retinem nas cerim@nias ou nos encontros: “as nossas delegages, quando se deslocam, retinem imediatamente por volta de quarenta pessoas; entdo, precisaremos de um lugar onde se possam instalar dois fornos para grelhar a carne € prepa- rar o bougua”. Na mente de nossos interlocutores dos vilarejos do interior, a "CEA. Bensa (ed.), La réalisation du Centre Culturel Jean-Marie Tjibaou, Mission des Grands ‘Travaux et Renzo Piano Building Workshop, ms., Nouméa-Paris, 1992 *N.Ts Iguaria tipica, feita com inhames, batatas doces, bananas poingo, taro [tubérculo co- mestivel) d°fgua, frango (ou peixe ou lagosta), pimentdes, cebolas verdes, sale pimenta, lei- 82 Resisténcias ¢ inovacies culturais kanak “rea costumeira” foi imediatamente consagrada aos “acontecimentos da vida kanak”. Uma tal insisténcia a respeito da parte do terreno em que 0 arquiteto , devia ser pelo me- nos tolerada ¢, na melhor, deveria ser pensada no ambito da economia geral do projeto — revela o quanto a arte de viver junto, para os kanak, prevaleceu sobre “a invengao da cultura”. Para os habitantes das reas rurais, a criagao do Centro nao poderia ser outra coisa senao a oportunidade de perpetuar, nas cercanias de Nouméa, suas maneiras costumeiras de fazer, de sc cncontrar, de pronunciar discursos ou realizar trocas ccrimoniais. Em sintonia com esta verdade, 0 projeto vencedor do concurso deveria fornecer & populagao melanésia da Nova Caledénia um espago em consonancia com seu modo de vida preferido. nada teria a construir — Area que, na pior das hipoteses A terra ea hist6ria Mas seria legitimo relacionar a “Area costumeira” a tinica preocupagio de preservar um lugar, onde se poderao realizar os gestos costumeiros ao abrigo de toda cncenagao? Na verdade, niio se pode abster também de estabelecer uma analogia entre este distanciamento voluntirio, em forma de reivindica- ao de especificidade, e a experiéncia das reserva: nas” a uma drea minima de seu territério de origem, suficiente apenas para sua subsisténcia. A “area costumeira” fixava os senhores do solo no terreno ¢, neste sentido, pode ser definida como um lugar politico essencial. Mas, na condigao de enclave, reflete também esta histéria do confinamento, de que os kanak foram vitimas. E necessdrio lembrar, aqui, que as espoliagdes fundiérias massivas, em beneficio dos europeus, causaram um choque tao profundo que, com elas, partes inteiras da sociedade kanak pré-colonial de- sapareceram'* irremediavelmente. Para este povo de agricultores, instalado hd mais de trés mil anos no arquipélayo, « criagdv de gado, ocupando milha- , que confinou os “indige- res de hectares, a abertura de minas a céu aberto e a aparigao de espagos ur- te de coco € tomates; os ingredientes so partidos em pedagos, temperados ¢ acrescidos do leite de coco. Envolvem-se porgdes em folhas de bananeira, bem atadas com tiras vegetais, para serem assadas sobre as pedras incandescentes do forno (previamente preparado, em buraco cavado na terra), durante cerea de 2 horas. "SCE. J. Dauphin€, Les spoliations fonciéresen Nowrvelle-Calédonie (1853-1913), Paris, L’Harmattan, 1989, Dossié banos até entio desconhecidos foram vivides como um trauma sem prece- dente. Diante deste cataclisma, as reservas, cadastradas a partir de 1876 so- bre apenas 10% dos espagos de outrora, constituiram o diltimo refiigio da populagao kanak. Estas reas exiguas de terras ruins tiveram sua vocagao confirmada, quando, de 1887 a 1946, 0 Cédigo do indigenato proibiu seus ocupantes de sair sem autorizagio expressa da policia, Quando os kanak re- cuperaram sua liberdade de movimento, depois de sessenta anos de imobili- dade forgada, conservavam, ¢ isto até os dias de hoje, um forte apego as re- servas, onde experimentaram sua alienagao, mas também sua sobrevivéncia.” A respeito desta experiéncia histérica, dolorosa e decisiva, a nogio de “cul- tura”, & qual remetem tantas iniciativas hoje em dia, parece entio bastante deslocada e esterilizada. No fundo, para a maioria dos kanak, a forga do Gen- tro Tjibaou, enquanto reafirmacao deles proprios, nao se deveria mais a seus lagos com este passado recente que a evocagio de sua “cultura”? Para o arquiteto, em contrapartida, nao importa qual tenha sido 0 fun- damento destas motivagdes subjacentes, sua expresso no seio de uma Area especifica, colocada logo de saida como auténoma, no interior do perimetro reservado ao conjunto do projeto, ndo ajudava a resolver os problemas arquiteténicos. Nada poderia ser mais detestavel, aos olhos do arquiteto res- ponsavel pela elaboragao do projeto, do que fazer a oposigao entre duas es- truturas espaciais herméticas, uma contra a outra. Nao correriam os visitan- tes 0 risco de nelas verem dois mundos irredutiveis, separados para sempre, quando, pelo contrario, todo o trabalho simbélico contratado em relagao ao Centro tendia a propor uma imagem positiva da presenga kanak contempo- rnea, a saber, integrada 4 totalidade do territorio da Nova Caledonia? A ten- so entre a “érea costumeira” e © prédio nfo poderia ser por demais nitida, com 0 risco de ver 0 projeto enquistado em uma problematica, que, desde 1988, precisamente, a evolugao da situacio politica na Nova Caled6nia ten- dia a ultrapassar. Além disto, e mais concretamente, como regulamentar a circulagao, se uma parte do espago nfio teria acesso liberado? O que fazer das cabanas da “area costumeira” fora dos grandes momentos das reunides ceri moniais? Quantas destas moradias tradicionais seria necessario construir € segundo que plano reparti-las? embremos que a Constituigao francesa reconhece aos kanak um “estatuto de direito par ticular”, que os distingue juridicamente do “estatuto de direito comum”, partilhado pelas populagdes nfo melanésias, que vivem na Nova Caledénia Co Resisténcias ¢ inovagdes culturais kanak A idéia de oferecer ao visitante a possibilidade de contornar o longo prédio, seguindo por um caminho que atravessava um vasto jardim, foi aos poucos se impondo. O debate sobre estas questdes progrediu consideravel- mente coma extensao deste “caminho kanak”® até a “érea costumeira”. Por ali, este espago © suas cabanas tradicionais se encontram integrados a con- cepgo global do projeto. Em contrapartida, é-nos revelada uma das fontes de inspiracdo de Renzo Piano e de sua equipe, quando foram desenhadas estas “lembrangas de cabanas”, que dao 20 Centro sua carteira de identidade. Faltava determinar 0 némero de cabanas tradicionais ¢ sua distribui- do no espago. Langou-se a idéia de instald-las em semicirculo, de frente para omar. Mas este esquema nada tem de local, visto que os kanak organizavam seu Aabitat em longas alamedas, ¢ no em casas em volta de uma praga. Para suplantar este modelo, por demais ocidental ¢ um pouco turistico, seria, en- to, necessario tragar tantas avenidas quantas fossem as cabanas de hospeda- gem? A este risco de confusao, somava-se o problema do numero de edifi- cios a ser previsto. Nao sendo uma cabana apenas uma construgao, mas tam- bém, e sobretudo, uma entidade social, a distribuigio de moradias nao podia ser prevista segundo um esquema puramente estético. Era conveniente, ao contrério, determinar primeiro que entidade cada uma delas iria representar no conjunto da area. f a partir de tal classificag3o que o ntimero ¢ a localiza- fo das cabanas poderiam ser decididos. Uma légica estritamente tradicional autorizava somente 0 cla dos se- nhores do solo a erguer sua casa neste terreno, hoje desocupado, liberado para que cle aceitasse, em seguida, a instalagio de outros cls. Mas a vocagao do lugar que representaria o conjunto do mundo kanal atual absorvia mal esta apropriago da “area costumeira” pelo tinico que teria o dircito original de fazé-lo, Para passar do cli ao “povo”, da unidade privada a coletividade poli- tica, tal como ela se elaborou progressivamente ao longo das vicissitudes da hisréria colonial, convinha fazer de cada cabana o simbolo de uma das milti- plas entidades territoriais e culturais do pats kanak. Entretanto, a menos que se construfsse uma gigantesca aldeia, seria impossivel fazé-lo, pois os grupos lingiifsticos sdo por demais numerosos (vinte ¢ oito, no total) para serem to- ® Diferentes espagos do jardim kanak, que se avizinham do Centro, do lado da laguna, sio atravessados por um caminho que, do comego até a restauracao, simboliza 0 percutso do herGi mitico, Téa Kanaké, Sobre este caminho, ef. E. Kasarhérou ¢ B. Wédoye, “Le chemin de ‘Téa Kanaké” e “Sur le chemin kanak”, Mord Vie (“Le monde végétal kanak"), n® 16, 1997, coy Dossié dos representados desta forma. Que recorte adotar? A solugao aceita inicial- mente foi a de uma divisdo do arquipélago em oito subconjuntos geografi- cos, correspondendo a entidades sociais ¢ culturais coerentes, do ponto de vista das tradiges kanak. Esta divistio foi sugerida, pela primeira vez, em 1983, por iniciativa da administragdo Georges Lemoine (entio Secretério de Esta- do nos DOM-TOM), e, em seguida, oficializada pelos Acordos de Matignon, em 1988, para dar corpo ao principio de uma instancia consultiva kanak. As “4reas costumeiras” de Maré, Lifou, Ouvéa, para as ilhas Loyauté, Djubéa Kaponé (sul), Xaracitit e também Ajié (centro), Paici-cémuhi (centro-norte), Hoot ma Hwaap (norte)! para a Grande ‘Terra, restabeleceram em oito as unidades territoriais consideradas sociologicamente pertinentes, parecendo emanar diretamente realidades etnogrificas. Cada Area seria convidada a construir sua grande cabana e a tornar conhecidas dos outros suas proprias tradigbes. Em menos de vinte anos, de fato, as pecas deste grande quebra- cabega tinham adquirido certa identidade. Ao sabor dos encontros festivos € da repetigdio dos nomes das areas, nas conversas, nos cartazes, nas camisas ou nos mapas culturais do arquipélago, as populagées locais interiorizaram, 1. pectivamente, seu pertencimento a cada uma destas entidades, a ponto de sé apresentarem, daf em diante, sob suas bandeiras. Para os kanuk, 0 uadi- cional é o contemporaneo, na medida em que se inscreve sempre no presen- te. Conseqiientemente, nada parece mais natural do que atribuir a cada rea regional um espago, préximo a um prédio, com a fungio de representar 0 conjunto do pais kanak. Esta formula pareceu ideal, tanto que nao foram percebido: mente os problemas priticos que levantava, Assegurar a manucengiio perma- nente de oito habitagdes, construfdas com material vegetal, instaladas na periferia de Nouméa, nao seria carefa facil. Imaginar que construgées to inflamaveis pudessem ser visitadas diariamente por freqtientadores do Gen- tro (turistas, escolas, ptiblico de festividades etc.) implicava em problemas de seguranga ainda mais sérios, que os responsaveis pelo setor nao deixaram, e com razao, de assinalar. Tornou-se preciso, evidentemente, render-se a uma hipétese menos ambiciosa e mais realista. Novamente, um recorte totalmente oficial ¢ recente mostrou-se como solugao: a partilha da Nova Caledénia em trés provincias: “Ilhas Loyauté”, “Nord” ¢ “Sud”. s imediata- 21 GE, mapa em anexo. 86 Resistincias ¢ inovagées culturais kanak ze Fm Northen Province ~ Province 2, Maré A evolugio da situagio politica impés, desde 1985, a instituigao de autoridades locais elcitas. Apés diversas modelagens do mapa administrati- vo do arquipélago, o recorte escolhido em 1986, oficializado em 1988, permi- tiu uma descentralizagao importante. Tomando esta nova geografia eleitoral a sua maneira, a “rea costumeira” do Centro Tjibaow viu o mimero de suas cabanas reduzido de oito para trés. Assim, as maiores entidades pol{tico- territoriais da Nova Caledénia atual seriam representadas por construgdes tradicionais. Se a redugao do ntimero de construgées impedia, ao final, que sc pudesse acolher as pessoas das tribos para nelas viverem temporariamen- te, cla apresentou, no entanto, a vantagem, mais ideolégica, de introduzir nas estruturas politicas fortalecidas pelos Acordas de Matignon, uma area consa- grada aos “costumes kanak”. Oespago dos costumes Areferéncia aos “costumes” —e nao “cultura” — nao é, aqui, fortui: ta. Além de reivindicar uma especificidade local dos kanak, os tinicos, na Nova Caledénia, dos quais se diz. que tém um “costume”, ela retoma o tema recor rente do “Pacific way” ou do “Melanesian way”, argumento pelo qual os oceaneos entendem distinguir-se de todas as outras populagdes do Pacifico. 7 Dossié Em varios paises da Oceania, em Papua Nova-Guiné, em Vanuatu ou em Fidji, a exalragio da fastom” constituiu um tema maior dos discursos nacionalistas. © terme, pela forga generalizante de sua obscuridade, permite que se con- funda, sob um mesmo significado, a diversidade de praticas caracteristicas das muito numerosas comunidades que compdem estas jovens nagoes. Ele apresenta, além do mais, a vantagem de deixar pensar que, para além da his- t6ria da colonizagio € da emancipagao dos povos da Oceania, um substrato cultural teria sido mantido. Sobre esta identidade, pensada como inalteravel, 08 responséveis politicos de Papua, de Vanuatu ou de Fidji tentam fundar sua ideologia nacionalista, que as complexidades politicas regionais de seus paises freqitentemente ameacam. Priticas de propaganda do Estado foram, assim, muitas vezes substicuidas, em nivel local, por incitagdes a ressuscitar ritos ou artes desaparecidos. Estas identidades nacionais em construgo, en- tretanto, sdio assumidas de forma extremamente diversa pelas populagdes. As comunidades oceanienses aderem, aparentemente, antes de tudo a seus modos de vida locais e a seus particularismos. Consciéneia de partilhar as coisas (cultura/social) Jean-Marie Tjibaou teve participagdo ativa neste debate, defendendo uma posigio original. Longe dele a idéia de uma tradiggo kanak milenar, mantida intacta antes ¢ depois do choque colonial. Na sua perspectiva, ne- nhuma concepgao de cultura como algo fixo € aceitavel. A referéncia a iden- tidade kanak s6 pode ser relativa a historia antiga e contemporfinea da Oceania. Esta dimensao deliberadamente moderna de seu pensamento o leva a criticar vigorosamente todos os tradicionalismos: “Fala-se sempre da cul- tura tradicional; mas 0 que € 0 tradicional? O que os outros viviam antes; mas, dentro de cem anos, o que vivemos hoje & que seré tradicional, ¢, dentro de mil anos, 0 que vocés vivem hoje talvez valha ouro! Acredito que sempre se tem uma concepgao por demais arqueolégica da cultura; seria cultura aurén- tica o que € do passado, tudo 0 que é criagdo contemporanea, ao contriitio, € percebido como 0 que tem que ser autenticado, talvez, pelo tempo”. Se- guindo a linha desta argumentagao, a defesa da vida kanak atual, como tnica garantia da autenticidade da tradigao, € perfeitamente ilustrada pela vonta- bitos, conjunco de leis orais, cransmitidas de geracdo em geragto, desde “N.T: Costumes, hi as origens, Cf. JM. Tjibaou, La présence kanak (Edition écablie et présentée par A. Bensa et Wittersheim), Paris, Odile Jacob, p. 296, 1996. 88 Resistencias e inovagies culturais kanak de de implantar uma “area costumeira” integrada a dinamica do Centro Tjibaon. Seria erréneo, entio, ver nesta exigéncia uma falsificagao. Lembremos que a iniciativa que deveria resultar na instituigZo deste espago particular foi to- mada por personalidades melanésias, muito presentes no seio de seu proprio universo. Pareceu-lhes, assim, muito natural definir, aos pés do edificio cons- truido em sua homenagem, um espaco do mesmo tipo que os das reservas, tais como existem hoje. A yontade de implantar uma “area costumeira” adquire um relevo particular no contexto caledoniano, porque torna visivel, sendo compreensi- vel, os “costumes kanak”. Os curopeus designaram assim, por muito tempo, observava Jean-Marie Tjibaou, “aquilo que nao Ihes concernia” ¢ devia per- manecer na periferia de seu universo. A contestagao politica das tiltimas dé- cadas, que langou, dentre outras, a palavra de ordem “kanak e orgulhoso de s@-lo”,8 reivindicou um reconhecimento cultural do qual a criagdo da ADCK eaconstrugio do Centro Tjibaou foram os mais espetaculares resultados. Neste contexto, a invocagio do costume nao destaca nenhuma encenagio folclorizante, mas se identifica com 0 combate cotidiano, conduzido pelos kanak, para fazer aceitar o que, finalmente, é somente “[sua] maneira de vi- ver, 0 conjunto das instituigdes que [us] 1ege”.2* A “daca costumcira”, longo de qualquer afetagdo, representa simplesmente esta afirmagio de si, para si mesmos ¢ dirigida aos outros. E, alias, este local que os responsdveis pela ADCK escolhcram para organizar a inauguragao do Centro cultural, no dia 5 de maio de 1998. Por trds das trés grandes cabanas tradicionais, destacam-se as altas es~ truturas do Centro. Destes dois conjuntos de prédios, 0 primeiro comanda o segundo e parece dizer que nada de nove pode advir, se 0 mundo kanak € sua hist6ria nao forem levados em conta. As cabanas da “area costumeira” tornam possiveis, de certa forma, as de Renzo Piano, nao como um modelo € sua c6pia, mas como uma meméria, posta em referéncia ao prédio imaginado pelo criador do Centro Georges Pompidou, em Paris. O jogo de imagens, ponte langada entre o'presente e 0 futuro, se deseja uma mao estendida a todos os habitanves da Nova Caledénia. Do coragio de sua hist6ria diffcil nas reservas © com toda a forga de sua identidade acual, os responsaveis pela ADCK er- ® Em 1984, este sizgan foi substituido, pela Unido Caledoniana (formagio independentista, cn- to presidida por Jean-Marie Tijibaou), pelo antigo lema deste partido, “Duas cores, um s6 povo”, CE JM. Tiibaou, La présence kanak (Edition établic et présentée par A. Bensa et E. Wittersheim), Paris, Odile Jacob, p. 202, 1996. 39 Dossié guem o Centro Tjibaow como uma bandeira, na qual seria escrita a legenda langada durante os “acontecimentos” que abalaram a Nova Caledénia (1984- 1989): “Reconhecam o povo kanak para que, por sua vez, ele os reconhega”. Nao dissociando o cultural do politico, Jean-Marie ‘Tjibaou esperava propor a Nova Caledénia uma formula original de descolonizacao A cultura e/ou a vida Em resumo, tudo se passa como se os oito hectares destinados ao pro- jeto tivessem sido repartidos em duas categorias distintas de espago: de um lado, a “Grea costumeira”, prolongamento da reserva, hoje chamada de “tri- bo”, do outro, 0 Centro cultural, percebido como um espago urbano voltado para todas as comunidades da Nova Caledonia. Esta dicotomia retoma tam- bém aquela que opde a sociedade (compreendida como um conjunto de pré- ticas nfo objetivadas) A “cultura”, enquanto projeto politico e institucional. Uma tal diferenciagao resulta da maior complexidade do Estado francés: a criagao, em 1958, sob a influéncia de André Malraux, de um Ministério das Questées Culturais, seguida da implementagao de uma politica cultural des- centralizada, que serd gradualmente estendida aos departamentos ¢ aos ter- ritérios de ultramar, foi conjugada 4 exigéncia independentista, para a elabo- ragio do projeto de uma cultura kanak a ser valorizada, a scr defendida ¢, as vezes, a ser combatida.” Instalada nos prédios, pensada por agentes espe- cializados, recrutados e remunerados para isto, mostrada as outras comuni- dades da Nova Caled6nia em diversas manifestagdes (espeticulos, festivais, exposigdes ete.), a cultura kanak se vé progressivamente constituida em um dominio especifico. Ela se tornou uma entidade especial, separada da vida social comum, tal como € vivida pelas pessoas, na medida em que se fez pro- duto de uma problemitica politica estatal, elaborada e operada por agentes especializados, que se vio profissionalizando cada vez mais. Entre “a cultu- ra”, assim colocada como 0 resultado de um trabalho particular, e a vida so cial, que se impée por si s6, sem que uma intencionalidade exterior venha construi-la, abre-se a possibilidade de uma fissura, fonte de um mal-estar identitério. A meu ver, € preciso situar-se no interior da defasagem assim constituida, caso se queira superar tanto os argumentos que fazem da cultura uma instancia imaginada e objetivada, com fins titicos, quanto os que pre- ® Em 1986, quando Bernantd Pons era Seeretirio de Estado do Ultramar, todos os documen- tos do Escritério Cultural Kanak foram destruidos no depésito de lixo de Nouméa, 90 Resisténcias e inovagoes culturais kanak gam, cegamente e para além dos fatos, a favor de uma perpetuagio idéntica do mundo kanak, desde tempos imemoriais. No caso do Centro Cultural Tjibaou, a hesitagio em se sentir aprisionado pelo olhar dos nao kanak tomou a forma de um contraprojeto. A “4rea costumeira” € o trago desta resisténcia &ameaga de reificacdo, que toda colocagdo sob forma de imagem e de museu constitui, para um povo hodierno, decidido a dirigir seus proprios destinos. A tensia entre a insrirncionalizagio da cultura e a vida social fora das instituiges esboga, na Nova Caledonia, a emergéncia de uma oposigao mais profunda entre popular ¢ erudito. Nas agéncias € nos escritérios especializa- dos, foi sendo forjada, pouco a pouco, uma concepgio escolistica da “cultura kanak”: vista a distancia e em plena luz, aparece, para os encarregados de se ocupar dela, como um tipo de tesouro de saberes e de saveir-faire, dos quais seria necessario fazer o inventario ¢ organizar “o resgate”. Diversos especia- listas vao, assim, fotografi-la, filmé-la, colocé-la em fichas ¢ em livros, segundo uma lgica bastante grifica, que autoriza todas as especulagdes ¢, até mes- mo, manipulagdes, De sua parte, as populagées-alvo, por nem sempre esta~ rem cm posigiio de construir um olhar distanciado de si mesmas, nfo tém as preocupagies de colecionadores, de estetas ou de teéricos. Por outro lado, 08 kanak que se entregam a formar museus, midiatecas c imagens da “cultura kanak” so também parte integrante de seu mundo imediato ¢ sem midias, que, sem se preocupar com a dimensio “cultural” das coisas, vive suas prati- cas no estado pratico; ou seja, fora de toda preocupagilo de ordem escolistica, de toda transferéncia para uma escrita que favorega as sinteses descontex- tualizadas, as consideragdes sobre a cultura ou a alma de um povo.* Estas trocas reciprocas alimentam a polissemia do termo “cultura”, no momento em que aumenta a diversificagao dos olhares que os kanak, segundo as posi- ges que ocupam num campo econdmico ¢ social em plena mutagao, diri gem para si mesmos, para os seus e para a sociedade caledoniana. E certo que o trabalho de encenacio da cultura faz nascer, assim, sentimentos variados © misturados, que oscilam entre o orgulho ¢ a rejeigao irritada ou radical do olhar estrangeiro. Antes reivindicado pelos kanak do interior, 0 Centro Cultural Tjibaou — como, a seu tempo, o Festival Melanésia 2000 — tornou-se objeto de criticas recorrentes em Nouméa. Grande demais, caro demais, periférico demais, reprova-se-Ihe também, as vezes, estar por demais voltado para a A, Bensa, “De la micro-histoire vers une anthropologic critique”, J. Revel (ed.), Jeu déchelles. La micro-analyse a l'expérience, Paris, Gallimard-Le Seuil (“Hautes Etudes”), pp. 37-70, 1996. ot Dossié imagem. Em resumo, segundo uma atitude freqiiente neste tipo de situa- cdo, nao é raro ouvir dizer que, no fundo, a cultura kanak € muito mais uma maneira de ser do que um conjunto de formas visiveis e mostraveis. A auto- nomia que adquire a representagio de si, via instituigdes, é valorizadora, porque confere mais visibilidade, mas também € contraditéria, na medida em que niio se sobrepée ao que é efetivamente vivido. Mas todo sentimento identitatio nao esta irremediavelmente preso a esta dupla coergio? Assim, de wavy insistir ua “invengao da tradig40”, € grande 0 risco de se escamotear a complexidade das relagées sociais, que, herdadas do passa- do © constantemente reajustadas 4s exigéncias do presente, nfio cessam de pesar sobre as mais contemporaneas situagdes. As diferenciagdes sociais, geradas pelo desenvolvimento econémico € pela administragao estatal, jun- tando-se aos estarutos atualmente existentes, abrem a possibilidade para os kanak de se verem ¢ de se dizerem de outra maneira. Mas nao seria exato, 20 menos na Nova Caledénia, considerar estas remodelagens da relagao consi- go mesmos como puras instrumentalizagdes. A “cultura kanak”, ao longo da sucessio de politicas culturais ¢ de programas partidarios, tornou-se uma aposta politica, sem se transformar em uma simples roupa que se veste, se usa como umumento ou sce joga as urtigas, ao bel-prazer das cstratégias. & recordar, por exemplo, que os kanak envolvidos na re: gio do Centro Tjibaow nunca romperam, em seus cls € chefias, com as obri- gages sociais que os identificam como pertencendo a sua comunidade es- pecifica, no seio do espago politico caledoniano. E possivel ter um discurso mais ou menos distanciado sobre sua propria “cultura” , ao mesmo tempo, participar plenamente do universo social que Ihe serve de referéncia. O caso da “area costumeira” do Centro Cultural Tjibaou ilustra esta ambivaléncia de relagdes consigo mesmos, a partir do momento em que uma sociedade, sob o efeito de diferenciagdes internas ¢ de intervengdes exter- nas, se vé crigida em “cultura”. Instalada como tal no pedestal, que ¢ 0 pré- dio imaginady por Renzo Piano © pela Agéuoia para o Desenvolvimento da Cul- necessirio, aqu tura Kanak, a sociedade kanak reagiu, menos por estratégia que por pudor € reflexo de autopreservagao, afirmando sua vitalidade em face da sua repre- sentagio ¢ do seu funcionamento cotidiano diante da sua exaltagio excep- cional. “Isto nao é mais a gente, mas ainda é a gente”, disse um velho melanésio ao arquiteto responsivel pelo canteiro de obras, apés passar varias horas no local, contemplando as “cabanas” imaginadas por Renzo Piano.

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