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Feminilidade: alteridade e experiéncia MARCIA ARAN: RESUMO Este ensaio tem como objetivo desenvolver a nogio de alteridade na psica- nélise a partir dos conceitos de femninilidade e de experiéncia, Parte de uma critica A centralidade do modelo Edipo / castrago na teoria psicanalitica - modelo este que fundamenta uma forma de subjetivagdo que se faz pelo recalque como defesa ou pela rentincia pulsional — para pensar novas formas de sociabilidade. Inicialmente, procura-se analisar 0 destino da experiéncia alteritéria na modernidade: 0 outro como estranho-familiar. Em seguida, através da andlise de algumas passagens da obra freudiana, procura-se desen- volver a nogao de alteridade no registro da imanéneia, ou seja, como uma abertura para a diferenga. Palavras-chave: Alteridade; feminilidade, novas formas de subjetivagao; psicandlise; cultura, PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002421 Marcia Arin Introdugado A positivagao do conceito de feminilidade realizada por alguns tedricos da psicandlise na atualidade? impés varios deslocamentos no interior da teoria psicanalitica que nos permitem pensar novas formas de subjetivacio. Talvez, um dos principais deslocamentos realizados por esses autores seja aquele que, a partir de uma critica ao modelo tradicional de se pensar a diferenga de sexos, ou seja, o modelo félico-castrado, nos leva a pensar a diferenga como singularidade*, Nao so poucas as conseqiiéncias deste gesto. Uma delas, que atinge o coragio da teoria psicanalitica, é a critica & centralidade do modelo do Edipo / castragao. Sc antes a primazia do pénis-falo era considerada 0 eixo pelo qual se definia o simbdlico, ou mesmo uma trajetéria subjetiva, agora a crise deste fundamento exige novo rearranjo tedrico que possa dar conta do que esta por vir. Porém, longe de querer proclamar o reino do caos, que em Ultima instén- cia faz da experiéncia da crise da modernidade um “salve-se quem puder”, nos interessa aqui desenvolver, na esteira da critica as formas de sociabili- dade organizadas a partir de um universal que se funda na remincia ao particular, novas possibilidades de pensar subjetividades ¢ lagos sociais. Neste sentido, a partir do texto freudiano, procuraremos ressaltar a potencialidade de uma metapsicologia da alteridade, nas entrelinhas, se podemos nos ex- pressar assim, da psicanilise que se tornou oficial. Partimos de um pressuposto: a idéia de feminilidade na psicandlise, que no texto “Andlisis terminable y interminable” (1937) aparece como uma “rocha impossivel de ultrapassar”, indica um impasse da subjetividade mo- derna. Em termos freudianos, a “inveja do pénis” e 0 “protesto viril”, os quais, “apesar da sua diversidade”, representariam uma “desautorizacao da ferninilidade” (Freud, 1994 [1937], v. XXIII, p. 252-253). Este impasse tam- bém revela um limite interno a teoria psicanalitica. Assim, “feminilidade como rocha” condensa em si um actimulo de idéias petrificadas onde o pensamento para. Segundo Benjamin (1994, p. 23), “pensar ndo inclui apenas o movimento das idéias mas também a sua imobilizagao”. E por isso que, para © autor, pensar € se aproximar da experiéncia contida como potencialidade num conceito petrificado. Seguindo sua sugest%o, propomos pensar que 0 concei- to de feminilidade no pensamento freudiano contém em si a potencialidade de uma critica ao modelo do Edipo/ castragao, justamente porque possibilita uma abertura para a alteridade e para a experiéncia. 122 PHYSIS: Rey, Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade: alteridade e experiéncia O Resgate da Experiéncia: pulsio e histéria Porém, inicialmente, é importante considerar que esta relagio entre fe- minilidade e alteridade no pensamento freudiano s6 se torna possivel na medida em que levarmos em conta a radicalidade do conceito de pulsio, conceito que nos permite o resgate, ou mesmo a presentificagiio da expe- riéncia perdida. Referimo-nos aqui & tese de Benjamin, de que a modernidade, principalmente no que se refere ao triunfo da técnica, se constitui a partir da perda da experiéncia sensivel*, E interessante notar como o autor se refere a Baudelaire para dar consisténcia a esta afirmativa. Citando “ gosto do nada”, no Spleen, afirma: “*Perdeu a doce primavera o seu odor’. Neste verso Baudelaire atirma algo extremo com extrema discrigao, ¢ isto o torna inconfundivelmente seu. O desmoronamento da experiéncia que ele um dia havia compartilhado ¢ con- fessado na palavra perdeu. © odor € 0 refiigio inacessivel da ‘memoire involontaire’, Dificitmente ele se associa a uma imagem visual; entre todas as impressbes sensoriais, ele apenas se associard ao mesmo odor. Se, mais do que qualquer outra lembranga, o privilégio de confrontar é préprio do reconhecer um perfume, é talvez porque embota profundamente a conscién- cia do fluxo do tempo, Um odor desfaz anos inteiros no odor que lembra. Isso faz deste verso de Baudelaire um verso insondavelmente inconsolavel. Nao hd nenhum consolo para quem néo pode mais fazer qualquer experién- cia” (Benjamin, 2000, p. 135). Neste sentido, do nosso ponto de vista, s6 se pode falar em pulsio em psicandlise na medida em que contextualizamos historicamente este debate. Ou seja, hé que se levar em conta a tese freudiana do “Mal-estar na civilizagéo” para admitir que € justamente uma sociedade que se sustenta na dominagao da natureza, ou mesmo na exclusio da diferenga’, que faz com que, na melhor das hipéteses, essa experiéncia retorne como pulsao. Nao é por menos que também Freud, quando falava do “processo civilizador”, se referia 4 perda do olfato como um dos indicios de quem se afasta da natureza, em uma atitude de “verticalizagao”: “O processo fatidico da civilizagdo ter-se-ia assim estabelecide com adogio pelo homem de uma postura ereta, A partir deste ponto, a cadeia de acontecimentos teria prosseguido, passando pela desvalorizagio dos estimu- los olfativos ¢ 0 isolamento do perfodo menstrual até a época em que os PHYSIS: Rev, Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1}:121-140, 2002128 Marcia Aria estimulos visuais se tornaram predominantes e os drgdos genitais ficaram visiveis, e, dat, para a continuidade da excitagao sexual, a fundagio da familia e, assim, para o limiar da civilizagdo humana” (Freud, 1997a [1930], p. 54). O “recalque orginico” estabeleceria assim uma primazia da experiéncia visual em relagdo as outras formas de sensibilidade, j4 que traz em si a possibilidade do distanciamento, movimento necessério para 0 exercicio da representagdo. Desta maneira, a civilizacdo exigiria uma modificagéio na economia do sensivel. Porém, quando Freud descreve esse ato como sendo um “tabu” em relagdo ao “odor feminino”, como muito bem se pergunta Schneider (2000, p. 84), “em que medida a valorizagao exclusiva do visual nao seria equivalente a uma amputagao que visa & parte feminina”? Da mesma forma, no texto “Moisés e 0 monotefsmo” (1939), Freud se refere a uma espécie de genealogia dos estdgios civilizatérios que teriam uma correspondéncia com a prépria “maturagdo do individuo”. Mas agora, mais do que uma mudanga no regime do sensivel, o proceso civilizador se faz por uma “vitéria da intelectualidade sobre a sensibilidade”. Nas palavras do autor: “(...) Um avango em intelectualidade consiste em decidir contra a peccepcao sens6ria direta, em favor do que é conhecido como processos intelectuais superiores ~ isto 6, lembrangas, reflexdes e inferéncias. Consiste, por exem- plo, em decidir que a paternidade € mais importante que a maternidade, embora ndo possa, como essa tiltima, ser estabelecida pela prova dos sen- tidos, e que, por essa razao, a crianga deve usar o nome do pai ¢ ser herdeira dele” (Freud, 1997b [1939], p. 102). Sendo assim, o triunfo da intelectualidade expresso nesse texto pode ser considerado uma das formas mais acabadas da Aufklariing, que em termos freudianos aparece como sendo uma decisao em favor da paternidade — que em tltima instancia fundamenta uma forma de subjetivagao ancorada na exigéncia da rentincia pulsional. Como sabemos, este modelo se traduz na teoria do Edipo / castragio, onde o recalque como defesa representa uma certa “‘maturag&o da sexua- lidade”, quando, por uma necessidade normativa — 0 que Freud nos “Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), chamava de primado genital ~ tem que se recalcar a sexualidade perverso-polimorfa®, Porém, uma das contradigdes e das riquezas da teoria freudiana é que, ao mesmo tempo em que ela cede, por assim dizer, as “exigéncias civilizat6rias”, nao deixa de 124 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade: atteridade © experiéncia dizer o que ela prépria recalca ou exclui. Isso de certa forma faz com que sua teoria revele, mais do que qualquer outra, 0 terreno movedigo sobre 0 qual se constituiu nosso “pacto” civilizatério. E neste sentido que compreen- demos a formulagiio de Schneider: “O especifico da operagao teérica freudiana consiste, com efeito, em jogar regularmente com varias légicas ao mesmo tempo. Denuncia de modo subterraneo aquilo que ao mesmo tempo promo- ve” (Schneider, 1997, p. 104). Costuma-se dizer que recuperar 0 conceito de pulsio em Freud nada mais do que querer essencializar a experiéncia subjetiva, na medida em que se destaca a nogio de forga e de economia. Porém, se levarmos em conta a proposigao de Benjamin de que a modernidade se constitui a partir da perda da experiéncia sensivel ¢ a hipétese freudiana de que a civilizagio repousa sobre a rentincia pulsional, ao contrétio do que se faz crer, recupe- rar o conceito de pulsdo € um acerto de contas com uma forma de civili- zac¢io especifica — moderna e ocidental — que se constitui a partir da exclu- sio da alteridade’. Assim, 0 outro s6 se faz presente como diferenga na teoria psicanalftica quando traz consigo as nogdes de indeterminagio, contingéncia e estranheza, as quais se apresentam na maior parte das vezes a partir de uma metdfora econémica. Isto porque, tendo sido historicamente excluido desta cultura, onde as formas de subjetivagdo estdo ancoradas no principio de identidade, s6 péde retornar como trauma e neste sentido presentificar o mal-estar constitutivo da sociabilidade moderna, £ este contexto que faz do outro um estranho-familiar. O Estranho: “a inquietagio entorpecida” Benjamin, mais uma vez se referindo a Baudelaire, as Flores do mal, define a alegoria como um objeto que fixa uma experiéncia perdida. Nas suas palavras: “Aquilo que € atingido pela intengdo alegé6rica permanece separado dos nexos da vida; é, ao mesmo tempo, destrufdo e conservado. A alegoria se fixa ds rufnas, Oferece a imagem da inquietag&o entorpecida (...)” Benjamin, 2000, p. 159). O que se destaca nessa passagem é a utilizago de met4foras mérbidas, “cacos, ruinas, podriddo”, para expressar a imagem daquilo que se esfacela ou se decompée (Ganhebin, 1982, p. 30). Freud também utiliza essas imagens para se referir & nog&o de estranho- familiar como sendo uma espécie de rufna que traz consigo o sentimento de “inquietante-estranheza”. Numa passada de olhos no texto de 1919, pode- PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):122-140, 2002125 Marcia Aran mos perceber como a experiéncia do retorno do recaleado ou mesmo da compulsio a repeticdo produz sentimentos de angtistia e terror que também se traduzem numa espécie de alegoria: “figuras de cera, bonecas, aut6matos, ataques epilépticos, caddveres, retorno dos mortos, magia, cabega cortada, mio separada do brago etc.”, ou seja, algo que se transforma em “restos de eu”. Sendo assim, com Freud, podemos dizer que o “homem culto”, que na redoma da raz4o instrumental teria superado a mimese, estd sujeito a ser acometido por assombragées € monstros. Isto porque tanto uma suposta realidade fantdstica, superada historicamente, como também a realidade psi- quica, recaleada por uma forma de subjetividade que se constitui por uma operagdo de defesa, trazem consigo a possibilidade sempre presente de o pensamento se converter em alucinagio. E por isso que 0 estranho é tam- bém familiar. Baudelaire, em Quelques caricaturistes étrangers, tece um interessan- te comentirio sobre Os caprichos, de Goya, um dos primeiros a anunciar a nossa modernidade e presentificar 0 espectro que ela carrega consigo: “O grande mérito de Goya consiste em criar monstros verossimeis. Estes monstros nascem vidveis, harménicos. Ninguém ousou mais que ele no sentido do absurdo possivel. Todas as suas contorgées, as faces bestiais, as caretas diabélicas so penetradas de humanidade. Mesmo do ponto de vista particular da histéria natural, seria diffeil condené-los, j4 que hd uma analogia ¢ uma harmonia em todas as partes do seu ser; em uma palavra, a linha de sutura, © ponto de juncio entre o real € 0 fantéstico € impossivel de aprender, é uma fronteira vaga que o analista mais sutil nfo saberia tracar, tanto que a arte é ao mesmo tempo transcendente € natural” (Baudelaire, 1976 [1857-58], v. II, p. 570) Neste sentido, pode-se dizer que o estranho é 0 outro petrificado, sendo que a “inquietagdo entorpecida” seria o destino da experiéncia alteritéria na modernidade. Porém, se, como afirmamos anteriormente, a experiéncia, in- clusive a psicanalitica, pode-se configurar como uma abertura em relagio A alteridade, o conceito de estranho-familiar sugere dois caminhos para a realizagao deste ato, quais sejam, pensar 0 outro como diferente — a reali- dade externa — e pensar 0 outro “dentro de si”. Mesmo que nem sempre seja possivel estabelecer uma distingdo entre um “exterior-irredutfvel” ¢ um “interior-pulsional” para trilhar os caminhos sugeridos. O que importa é a suposigiio de que a alteridade é aquilo que dilui as rigidas fronteiras do que se pretende ev. 126 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade: alteridade ¢ experiéncia Sendo assim, interessa-nos perguntar: o conceito de alteridade na psica- nilise pode ser pensado de forma independente em relagio a teoria do Edipo / castragio? Qual o efeito da formulagio deste conceito no registro da imanéncia, onde se impée a necessidade de um encontro com 0 outro, 0 que nao significa uma completude, mas sim uma abertura para a diferenga? O enunciade desta questo s6 € possivel porque, mesmo considerando que a cultura da crise da modernidade® se caracteriza por esta catastrofe sustentada pelo bindmio indiferenga-terror, onde é quase impossivel uma pratica de si, justamente nessas fissuras do simbélico que podemos per- ceber a anunciagdo de novas formas de subjetivacdo. Estamos cientes do risco de fazer este tipo de proposigao, porém menos do que uma anilise, ou mesmo uma descrigdo rigorosa das subjetividades atuais. Esta afirmagao acaba sendo quase que uma aposta, um salto no escuro, somente sustentada por um sopro de utopia que, como dissemos em outra ocasio, a experiéncia feminina traz consigo (Aran, 2001). Assim, partindo da tese de que talvez um dos tinicos acontecimentos positivos, para usar uma bela imagem de Costa Lima, do “século de ontem”, tenha sido a revolugio feminina naquilo que ela reivindica como novo — ou seja, primeiro, a necessidade do reconhecimento da mulher como sujeito ¢ diferenga; segundo, como conseqiiéncia, a crise da idéia de sujeito e da idéia de diferenga sexual, para aqueles e aquelas que pensam que nao se trata mais de reproduzit 0 mesmo — pode-se inscrever 0 conceito de feminilidade na teoria psicanalitica como uma potencialidade para pensar formas de subjetivagéo que ndo necessitam de um modelo vertical e transcendente para se referir ao outro, De acordo com Birman, “a feminilidade é a reve- lagdo do que existe de erégeno no desamparo, a sua face positiva e criativa, isto é, o que este possibilita ao sujeito nos termos de sua possibilidade de reinventar permanentemente” (Birman 1999, p. 52). N&o estarfamos mais no territ6rio rigido do principio de identidade, que faz da defesa ou da remincia a Gnica possibilidade de lagos sociais. O que se destaca é um mergulho, se podemos nos expressar assim, na experiéncia, que mais do que tudo significaria uma abertura para a diferenga, Da mesma forma, a tessitura conceitual que nos permite construir uma nova teoria que Possa trazer a tona a alteridade excluida ou recalcada deve estar atenta para uma “tenacidade especial” do texto freudiano, quando a densidade da expe- riéncia aparece em uma formulagio tedrica que nos dé acesso a um mundo subterraneo que, parafraseando Benjamin, “anuncia-nos um todo, como o peso da rede anuncia sua presa ao pescador” (Benjamin, 1994, p. 49). B PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-149, 2002127 Marcia Arin com este objetivo que analisaremos pontualmente dois momentos da teorizagio freudiana, quais sejam, “Projeto para uma psicologia cientifica” (1895) e “Além do principio do prazer” (1923). Num territ6rio marcado pela pulsionalidade e pela insuficiéncia, se estabelece um tragado subjetivo que, menos que por uma operagiio de defesa, se faz justamente por uma abertura em relagSo ao outro. A Experiéncia Alteritéria no Registro da Imanéncia A identidade / diferenga na experiéncia de desamparo Uma das primeiras noges de alteridade na obra freudiana se encontra no “Projeto para uma psicologia cientifica”, texto escrito em 1895, mas que somente se tornou conhecido em 1950. Como sabemos, Freud pretendia jesse momento esbogar uma teoria sobre o funcionamento do aparelho psiquico através de uma linguagem neuroldgica. Descreve entaéo uma engre- nagem formada por fibras neurolégicas que se organizam em redes, as quais possibilitam tanto a circulagao de energia como a de representagdes. Muito resumidamente, pode-se dizer que este aparelho se estratura a partir de trés formas de funcionamento: o sistema phi, dotado de uma quantidade fluente de energia e permanentemente em contato com o mundo externo; o sistema psi, formado por uma rede de facilitagdes, as quais permitem uma retengfo de energia dando origem ao eu; € 0 sistema dmega, responsdvel pelo fornecimento de signos de realidade, ou seja, a consciéncia. Porém, a importancia desse texto est menos na sua coeréncia légica do que na apresentag%io do aparelho psiquico a partir de uma metéfora quan- titativa, fundamental para compreendermos a tessitura de que se trata, ou seja, como diz, David-Ménard (2000), apreender o aparelho psiquico como uma engrenagem de prazer, desprazer e anguistia. Destaca-se nesta formulagdo que o aparelho psiquico & aberto em duas extremidades, uma externa, ou seja, tudo aquilo que provém de “fora” como um conjunto de estimulos que inauguram a experiéncia perceptiva, e outra “intema”, que se abre para uma fonte inesgotdvel de energia, a qual ‘se caracteriza por uma forga que produz um impacto de forma constante. Nestes termos, uma e outra extremidade caracterizam uma forma de existéncia que nao se faz sozinha. Pelo contrario, a concepgaio freudiana de aparelho psiquico inclui necessaria- mente o outro. £ sobre esta varidvel que Freud vai descrever um primeiro esbogo do processo de funcionamento primério e secundério. 128 _ PHYSIS; Rev, Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1}:121-140, 2002 Feiminilidade: afteridade ¢ experiéneia No que diz respeito ao processo primério, Freud diz que os primeiros contornos do eu tém origem nas primeiras experiéncias de satisfagdo e dor, as quais permitem o trilhamento de uma passagem de energia em psi. O estado de desejo cria uma atrago tanto em relagiio ao objeto desejado como imagem mnémica correspondente; j4 a experiéncia de dor provoca nao apenas uma repulsdio como também um desinvestimento da imagem a ela associada. Sendo assim, 0 que provoca o funcionamento desta espécie de engrenagem € 0 outro, na medida em que se faz presente. O que faz a diferenga é justamente uma ag&o denominada de especifica, ou seja, uma marca do outro naquilo que se tornar4 provisoriamente um eu. Nas palavras de Freud: “O organismo humano, nos seus estégios precoces, € incapaz de provocar esta acdo especifica que s6 pode ser realizada com ajuda exterior ¢ no momento em que a atuagdo de uma pessoa atenta se volta para o estado da crianga, Esta ultima a alertou a partir da descarga que se produziu sobre a via da alteragao interna (por exemplo, através do grito de uma crianga). A via de descarga adquire assim uma fungdo secundaria de extrema importincia: aquela de compreens4o miitua, O desamparo originario do ser humano torna- se assim a fonte primordial de todos os motives morais” (Freud, 1994 [1895], v. I, p. 362-363). Se concebermos ent%o que no coragio do eu existe o outro, o qual possibilita a experiéncia de satisfagiio ¢ a transforma num estado de desejo, © desamparo origindrio estaria justamente no fato de que se é o outro que proporciona o objeto que satisfaz a pulsdo, ele pode também niio o propor- cionar, Segundo David-Ménard (1995, p. 338), € por isso que a “agao es- pecifica” é interna, mas também externa ao eu, ou seja, depende da presen- ¢a material (e nao mitica) do outro, E importante salientar que, mesmo que esta afirmacao parega dbvia, tanto a formulagao posterior sobre o narcisismo primério como também a hipétese do “principio do prazer” acabam por excluir, ou mesmo encobrir, essa nogdo origindria de alteridade”. © processo secundario, o qual da origem ao pensamento, é descrito nos capitulos que 1¢m como titulo “O rememorar e 0 julgar” ¢ “Pensamento ¢ realidade”, respectivamente. Também ali a nogao de alteridade é fundamen- tal. Talvez essas passagens sejam daquelas mais comentadas pela tradi¢ao psicanalitica. Porém, o texto esta de tal forma contaminado por uma inter- ptetacdo que tem como objetivo compreender o funcionamento da linguagem propriamente dita, que muitas vezes se perde a riqueza de uma idéia bas- PHYSIS: Rev. Snide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002129 Marcia Arin tante simples: para Freud, se o eu quiser realmente atingir essa experiéncia de satisfagao, teré que acumular energia e, neste sentido, pensar. Optamos, ent3o, por seguir o texto freudiano, tentando ressaltar a continuidade exis- tente entre a idéia de uma economia subjetiva, especifica da psicanilise, e a atividade do pensamento. Referindo-se ao processo primério, Freud afir- ma: “Na medida em que os investimentos coincidem, este processo no dé lugar a um trabalho de pensamento, No entanto, os elementos nos quais a coin- cidéncia se compe ‘despertam o interesse’ e podem dar lugar a dois tipos de trabalho de pensamento. Ou bem o fluxo se dirige em diregdo as lembran- ‘cas despertadas € pée em marcha um trabalho mnémico sem meta, suscitado pelas diferengas e niio pelas semelhangas; ou bem permanece nestes elemen- tos perceptivos novos e constitui um trabalho de julgamento, igualmente sem meta” (Freud, 1994[1895], p. 376). Nota-se que sao as semelhangas e diferengas entre os objetos percebidos na realidade, ¢ aqueles objetos que se esperava encontrar, que dao origem a duas formas distintas de funcionamento do aparelho. Pode-se dizer, entéo, que “pensar & elaborar a diferenga entre a lembranca do objeto que se procura e a atengao Aquele que se encontra Ié. Gozar ¢ se deixar ir ao encontro disto que se procura, a identidade da primeira vez” (David-Ménard, 2000, p. 110). Dessa forma, a nogdo de eu é o resultado de um desacordo entre o objeto investido pela lembranga © 0 objeto encontrado, o qual provoca a necessidade da substituigdio de objetos e um adiamento do gozo. Neste sentido, podemos compreender a sogunda idéia de alteridade presente nesse texto, qual seja, a que aparece quando 0 outro se apresenta enquanto tal porque resiste a ser totalmente incluido no que hd de alucinatério no desejo e por isso mesmo — como diferenga - oferece um limite & identidade, Porém, Freud destaca o tempo todo que o interesse em (re)conhecer esta no desejo de novamente realizar uma experiéncia de satisfac¢do nao mitica e sim real, mas que nem sempre € possivel. Dando continuidade a este raciocinio, Freud afirma: “Suponhamos que 0 objeto que fornece a percepgao seja semelhante ao sujeito, seja um préximo (Vebenmensch). O interesse tedrico que cle suscita se explica ainda pelo fato de que tal objeto é simultaneamente 0 primeiro objeto de satisfagio, mas posteriormente o primeito objeto hostil, assim 130 PHYSIS: Rev, Safide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade: alteridade experiéncia como 0 unico poder auxiliador. E ao lado do préximo que o homem aprende a (re)conhecer (...). Assim 0 complexo do préximo se separa em dois elementos no qual um se impGe por uma estrutura constante, permancce unido como coisa (als Ding beixammenbleit), enquanto que 0 outro pode ser compreendido através de um trabalho mnémico, ou seja, pode ser reconduzido a uma informagao (noticia) vinda do préprio corpo. Esta decomposigio do complexo perceptivo se chama (re)conhecimento (erkennen), contém um julgamento (Urteil) © finaliza quando a tltima meta é atingida (Freud, 1994{1895], p. 376)!" A partir dessas palavras, parece-nos possfvel pressupor que nao é toda a realidade que desperta interesse; hd alguma coisa na materialidade do outro que provoca e instiga o desejo de identidade de percepgio, porém, ao mesmo tempo, alguma coisa também nos escapa. E por isso que David- Ménard destaca que 0 objeto para Freud nao é indiferente, j4 que de certa forma é ele que provoca esta atividade de (re)conhecimento””. Assim, das Ding s6 pode ser pensada no interior do processo de julgamento, ou seja, a nogdo de coisa esta mais relacionada & nogiio de mobilidade pulsional do que a uma estrutura constante, inacess{vel por definicdo. E neste contexto que se pode apreender a (Go comentada formulagdo freudiana: “Isto que nés chamamos de coisas, séo os restos que escapam ao julgamento (sobre o outro)", Neste sentido, pressupor uma relacao de continuidade entre o pensar ¢ o gozar significa conceber um processo de subjetivagdo que nao se faz nem por uma ruptura em relagdo a “coisa”, nem mesmo por uma sintese. O que se destaca € uma transformagio da pulséo que permite uma substituigao de objetos. O desaparecimento e 0 retorno no “Além do principio do prazer” No texto “Além do princfpio do prazer” (1920), em que pesem as intime- ras diferengas em relagdo ao “Projeto...”"*, Freud também desenvolve a nogao de alteridade num territério marcado pela pulsionalidade e insuficién- cia. Tendo como objetivo ressaltar a importancia do registro econémico na vida psiquica, o autor discute as primeiras atividades “normais” da infancia, a saber, as brincadeiras das criangas. O que chama atengdo é que esta andlise se faz sobre o pano de fundo da discussio a respeito da neurose traumitica. As idéias do trauma e da compulsio A repetigo passam do PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002131 Mércia Aran exemplo dos pesadelos de guerra para 0 exemplo das brincadeiras infantis. Exemplos estes que poderiam ser considerados completamente distintos, mas ndo o sao. Neste sentido, podemos afirmar que ha algo de traumatico que se apresenta nas brincadeiras infantis. Em outros termos, hé um além do princfpio do prazer na experiéncia do prazer de brincar. Sendo assim, menos do que uma ruptura com uma experiéncia originaria de desamparo, as brincadeiras infantis podem ser consideradas uma mediago, ou ainda uma transformagao da pulsdo, possibilitada por um acontecimento. Freud analisa ent&o a primeira brincadeira de um menino de um ano e meio de idade, inventada por ele préprio. Como sabemos, essa oportunidade surgiu pelo fato de Freud passar algumas semanas na casa de sua filha Sophie e ter, deste modo, podido observar as brincadeiras de seu neto Ernest. Nas palavras do autor: “Este ‘bom menino’ tinha 0 hébito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer objetos que pudesse agatrar ¢ os jogar para Tonge, em um canto do quarto, sob a cama etc., de modo que procurar seus brinquedos [Spielzeuges] ¢ junté-los [Zusammensuchen| nfo era na maioria das vezes um trabalho fécil. Enquanto procedia assim, emitia um longo e arrastado ‘0-0-0-6" acom- panhada por expresso de interesse © satisfagio, Sua mac e o autor do presente relato concordavam em achar que isto no constitufa uma simples interjeigdo, mas representava a palavra alema fort” (Freud, 1998 [1920 p. 18)'5, Inicialmente, Freud se refere a uma experiéncia de jogar longe ¢ juntar, Movimento este que nfo pode ser apreendido apenas por um raciocinio linear, baseado na nogo de sujeito-objeto mas, sim, por um jogo caracteri- zado por uma dispersio seguida de uma re-unidio (Schneider, 2000, p. 203- 204). Assim, antes da entrada em cena do to falado jogo do carretel, 0 ato de jogar longe um conjunto de pequenos brinquedos exige, acima de tudo, a presenga daqueles que estdo em torno para junté-los. Segundo Derrida (1980, p. 345), provavelmente este gesto teria sido realizado pelo préprio Freud. De modo que aquele que relata a brincadeira estaria presente na experiéncia que narra. S6 apés 0 esbo¢o deste primeiro territério subjetivo é que acon- tece 0 jogo do fort-da: “Certo dia, fiz uma observaciio que confirmou o meu ponto de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedago de cordio amarrado em volta dele, Nunca ocorrera de puxa-lo pelo chfo atris de si, por exemplo, 132 PHYSIS: Rey. Sadde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade: alteridade © experiéncia ¢ brincar com © carretel como se fosse um carro. © que ele fazia era segurar © carretel pelo cordic e com muita pericia arremessé-lo por sobre a borda de sua caminha encortinada, de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas, 20 mesmo tempo em que o menino proferia seu expressive ‘0-0- 0-6". Puxava entdo o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordio, ¢ saudava o seu reaparecimento com um alegre ‘da’ (Freud, 1998[1920], p. 19). Neste momento, realiza-se o segundo movimento ritmico relatado por Freud, descrito como sendo a brincadeira do desaparecimento e do retorno, fazendo as coisas irem embora (fort) e voltarem (da). Nota-se que neste gesto, o carretel desaparece justamente no interior da caminha, ou seja, 0 momento do fort é aquele onde o carretel encontra um lugar supostamente otiginario. Somente quando reaparece no exterior € que se produz o da. Freud associa esta brincadeira com a encenagio da presenga-auséncia da mie, j4 que observa, numa ocasiao em que a mae permaneceu por um longo periodo afastada do menino, que no momento da sua volta, a crianga teria dito “Bebé 0-0-0-6”. Esta expresso se tornara mais compreensivel quando novamente se percebeu que, durante este perfodo de solidio, este menino brincara de “fazer desaparecer a si mesmo”: ele tinha descoberto seu refle- xo num espelho que nao chegava até o chio, de modo que agachando-se podia fazer sua imagem “ir embora” (Freud, 1998[1920], p. 19). Freud conclui ent&o que esse jogo significaria a “grande realizagao cul- tural” da crianca, qual seja, “deixar a mie ir embora sem protestar” — motivo pelo qual o menino teria passado a encenar o seu préprio desapare- cimento e a volta dos objetos que estavam ao seu aicance. Porém, mesmo que esta hipétese muitas vezes tenha sido interpretada como sendo a rentin- cia pulsional que se estabeleceria a partir da separagao radical da mie’*, para Schneider, justamente o movimento de desaparecimento e retorno re- velaria antes uma curiosa ambigilidade. Com efeito, se ficarmos atentos ao texto freudiano, o momento do “fort”, ou seja, do desaparecimento, é jus- tamente aquele que corresponde ao sumigo do carretel no interior da cami- nha do menino; ao contrario, 0 “da” se expressa quando este objeto rea- parece no exterior, Assim, o gesto do afastamento é também aquele do encontro com um lugar supostamente origindrio, a caminha. Neste sentido, pode-se pressupor que a crianga tenta enviar para o “interior” uma “dele- gagio de si”, mesmo que cla jé se encontre no “exterior”. PHYSIS: Rey. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 $33 Méreia Ardn Nas palavras da autora: “B certo que ‘a coisa’ nao é pura ¢ simplesmente preservada como tal; pela carga simbélica que ela recebe, ela passa efetivamente a um outro nivel, mas a edificacdo de uma tal jogo de delegacdo 86 & possivel sustentada por um movimento pulsional ambivalent, visando tanto a aboligéo como a preser- vagdo de um além’” (Schneider, 2000, p. 208). O que se destaca nesta passagem é que este “além” é alguma coisa & qual se tem acesso ¢ que por isso mesmo permite o que é fundamental em temos de processos subjetivos; uma mobilidade pulsional. Do nosso ponto de vista, esta interpretagdo permite trazer para dentro do psiquismo alguma coisa que é irredutivel ao simbélico, mas em relag&o 4 qual nao se realiza nem uma alienagdo, nem uma ruptura. A simbolizagio seria entaio um pro- cesso de transformagio da pulsdo € nao necessariamente de separagado ou de corte. Schneider propde ainda pensar até que ponto esta imagem do carretel ligado a um fio nao poderia estar relacionada a representagao do nascimen- to, ou seja, a tentativa de simbolizagio de uma experiéncia absolutamente origindria, que no texto freudiano muitas vezes foi designada como sendo a angiistia do real: ga nao estaria fabricando © “Imaginando ligar o carretel a umm fio, a equivalente a um cordio umbilical? Por este duto nutritivo ele reproduziria a situagio da gestagdo; porém inventando uma variante que Ihe permitiria se movimentar, 0 menino nfo estaria mais no cercado maternal mas sim no exterior, O gesto pelo qual 0 carretel seria repetidamente langado no interior do leito nao levaria a mettre en scéne uma escansiio feita de penetragio & nascimento?” (Schneider, 2000, p. 208). Nao queremos afirmar com isto que esta tiltima interpretagao do fort-da seja a mais correta ou a mais verdadeira, mas chama-nos atengio a ousadia da autora em propor uma metéfora feminina para pensar a subjetivagao, a qual pode ser vislumbrada tanto como diferenga quanto como uma experi- €ncia mais origindria. De qualquer forma, esta leitura nos parece mais pré- xima do que Freud tenta enunciar nesse texto, quando afirma que essa brincadeira pode ser a.expressdio de um acontecimento primério ¢ indepen- dente do principio do prazer. Isto porque, para Freud, a crianga sé € capaz de repetir esse jogo desagraddvel porque “a repeti¢o traz consigo uma produgdo de um prazer de outro tipo, uma produgdo mais direta” (Freud, 134 PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeito, 12(1}:121-140, 2002 Feminilidade: alteridade ¢ experiéncia 1998[1920], p. 21). Ora, uma produgdo mais direta significa 0 encontro da experiéncia de prazer com o além do principio do prazer, Nao é & toa que o fort-da surge a partir da discussio sobra a neurose traumdtica, ou seja, hd uma superposigao de territérios que, em ultima instancia, permite a rea- lizagdio de uma (auto)critica da idéia de principio do prazer. A radicalidade desta hipétese estd em constatar que a experiéncia alteritdria do prazer s6 € possivel pela introdugdo, ou mesmo a preservagao, de um além. Nao é por menos que Benjamim, justamente para se referir a este regis- tro da experiéncia e da repeti¢ao, elege as histérias infantis: “O conto-de-fadas, que ainda hoje & 0 primeiro conselheiro das criangas, porque foi outrora o primeiro da humanidade, permanece vivo, em segredo, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro € e continua sendo o dos contos- de-fadas. Onde cra dificil obter 0 bom conselho, o conto-de-fadas sabia déi- lo, ¢ onde a afligéo se mostrava extrema, mais proxima estava a sua ajuda (...). © mais aconselhavel — assim © conto-de-fadas ensinou ha tempos & humanidade ¢ assim ainda hoje ensina as criangas ~ € enfrentar os poderes do mundo mitico com asticia e superioridade. Dessa forma o conto-de-fadas polariza a coragem (Mut), ou seja, dialeticamente: na consciéncia de pouca coragem (Untermus), isto &, na asticia, € na petulancia (Ubermut). A magia liberadora de que dispde 0 conto-de-fadas nao pde em jogo, de modo mitico, ‘a natuyeza, mas aponta para sua cumplicidade com © homem liberado. O homem maduro sé sente essa cumplicidade de vez em quando, ou seja: na felicidade; mas ela aparece primeiro a crianga no conto-de-fadas, ¢ a faz feliz” (Benjamim, 1980 [1936], p. 69-70) Sendo assim, mesmo que de forma pontual, nessas passagens Freud se refere a formas de subjetivagéo que nao necessariamente se destacam do territério origindrio do desamparo e do erotismo. Isso significa pressupor que a propria simbolizagdo nfo necessariamente seria a “morte da coisa””. Nestes termos, a alteridade na psicandlise seria antes de tudo esta aber- tura, esta possibilidade de conviver com o que hd de estranho em si e no outro, o que significa sempre um abalo nos limites do eu. Esta € justamente a possibilidade que a experiéncia feminina presentifica na crise da modernidade. Significa pensar que a sexuagdo € alguma coisa que se produz acada momento, pois sempre se faz provisoriamente, a partir do encontro com 0 outro. PHYSIS; Rey. 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I Psicanalista, psicéloga do Serviga de Psicologia Médica e Sade Mental do HUFF / UFRJ; doutora em Satide Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERI. 2 Particularmente Joel Birman, Monique David-Ménard ¢ Monique Schneider, 3 Para uma andlise detathada do trabalho destes autores, ver Arén (2000). 4 Para Benjamin, a experigneia se contrapde 4 vivéncia. Segundo nota do tradutor de “Sobre ‘alguns temas de Baudelaire”, baseada em um comentirio de Leandro Konder: “Este ensaio de Benjamin se baseia na oposigde entre Eifharung © Erlebnis, aqui taduzidos respectiva- mente como ‘experiéneia’ (real ou acumulada, sem a intervengdo da consciéncia) & vivencia (experiéneia vivida, evento assistido pela consciéneia). Erfakrung & 9 conkecimento obtido através de uma experigncia que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem; 0 sujeito integrado numa comunidade dispde de critérios que Ihe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. Erlebnis & a vivéncia do individuo privado, isolado. € a impressio forte, que precisa ser assimilada as pressas, que produz efeitos imediatos”” (Benjamin, 1994, p. 146). 5 Sobre isto, ver Adorno (1978 [1966]). 6 E nesta operagdo que Lacan, a seu modo, vai fundamentar a idéia de uma “passagem para o simbélico”, a partir da nogio de metifora paterna, Ver Lacan (1999 [1957-1958]) 7 Para um aprofundamento do debate em torno da distingdo conceitual entre cultura ¢ civilizagio a obra freudiana, ver Arin (2001, cap. II). Ver também Birman (1999¢) ¢ Menegat (2001). 8 Para uma melhor definigdo deste conceito, ver Mencgat (2001). 9 A titulo de ilustragio, vale a pena destacar uma nota de pé de pégina do texto “Formulacdes sobre 0s dois principios do acontecer psiquico” (1911). Quando Freud descreve 0 principio do prazer como sendo uma atividade que regula o aparelho psiquico, visando a “um estado de repouso”, ele parece perceber um certo cquivoco nesta teoria, fazendo entdo a seguinte ressalva: “Tentarei completar com algunas observagiies a esquemitica exposigéio do texto. Com razio se objetard que uma organizagio assim, escrava do principio do prazer ¢ que descuida da realidade objetiva do mundo exterior, ndo poderia manter-se em vida nem por uum instante, de modo que nem sequer poderia ter sido gerado. No entanto, 0 uso de uma fiego desta indole se justifica pela observagio de que o lactente, contanto que the agreguemos 0 cuidado matemo, realiza quase esse sistema psiquico” (Freud, 1994, v. XIL, p. 224-225). O 138 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rie de Janeiro, 12(1):121-140, 2002 Feminilidade; alteridade © experiéncia “cuidado matemno”, que teria sido esquecido ou recaleado, remete a estas primeiras formu lagées sobre a alteridade a que nos referimos avima. 10 Tradugio modificada conforme sugestio de David-Ménard (mimeo), I] Tradug’ioo modificada conforme sugestio de David-Ménard (mimeo). 12 E importante destacar que @ autora se contraptie aqui a interpretagdo realizada por Lacan do texto “Pulsdes ¢ os seus destinos” (1915). Lacan 1 Froud da seguinte forma “I isto que nos diz Freud. Peguem o texto — Para 0 que é do objeto da pulsio, que bem se saiba que ele nio tem, falando propriamente, nenhuma importéneia, Ele ¢ totalmente indiferente” (Lacan, 1993 [1964}, p. 159). Ora, seguindo sua sugestiio, ndo ¢ exatamente isto que diz Freud no texto das “Pulsdes...", como podemos perceber: “O objeto da pulsdo € aquile pelo qual a pulsfio pode atingir sua meta, E o elemento mais varidvel da pulsdo; nao esta enlagado originalmente nela, € sim, s6 é ligado a ela, pela sua capacidade propria de tornar possivel a satisfagiio” (Freud, 1994 [1915], v. XIV, p. 118). David-Ménard dediea um longo comen- tétio a esta Jeitura bem especifica do texto freudiano realizada por Lacan. Ela diz que Lacan “substitui a idéia [freudiana] de que o objeto pode mudar tio freqiientemente quanto se qu para esta outra idgia segundo a qual o objeto ndo tem nenhurna importincia” (Davis- Ménard, 1997, p. 10). A autora destaca que também se pode ler Freud enfatizando que © circuito pulsional, pensado a partir da idéia da substituicao de objetos, abre caminho para pensar {rajetérins singulares que levem em conta a prépria realidade particular do objeto © aio a sua indiferenga. Pois, na medida em que o objeto sé é pensado como indiferente, s6 tendo por referéncia a propria esteutura interna do desejo, desconsidera-se a existéncia material do objeto como uma varidvel independente. 13 David-Ménard. Semindio Identificutions, Sexuation et Scenes Discussives. Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse. Université Paris 7 - Denis Diderot, feve~ reizo de 1999, 14 Sobre isto, ver Cavaleanti (1998). 15 Tradugao modificada segundo sugestio de Derrida (1980, p. 330), 16 Lacan, por exemplo.referindo-se a¢ momento em que o “desejo se humaniza”, a partir da aguisigo da linguagem, interpreta o furt-da destacando a agio de destruigso do objeto: "Nés podemos agora apreender que 0 sujeito neste momento no apenas domina a sua privagi assumindo-a, mas que ele eleva o seu desejo a uma poténcia segunda, Porque sua ago destedi © objeto que ele faz aparecer e desaparecer na provocagio antecipante da sua auséncia ¢ da sua presenga. Ele negativiza assim o campo de forcas do descjo para so tomar cle mesmo sett proprio objeto. E este objeto se torna imediatamente corpo em uma copula simbdlica de duas jaculagoes elementares, antincio no sujeito da integragio dincrénica dos fendmenos, tna qual a finguagem existente oferece estrutura sincrSnica sua assimilagdio; assim a crianga comega a se engajar em um sistema de discurse concreto da ambiéncia, reproduzindo mais ‘ov menos aproximadamente no seu ‘Fort’! e no seu "Da"! os voedbulos que ela recebe™ (Lacan, 1966 [1953], p. 319) 17 Referimo-nos aqui & tese Tacaniana de que “o simbolo se manifesta inicialmente como morte da coisa” (Lacan, 1966 [1953], p. 319). PHYSIS: Rev, Suide Coletiva, Rio de Janeiro, 12():121-140, 2002139) Marcia Arin ABSTRACT 140 Femininity: alterity and experience ‘The objective of this essay is to elaborate on the notion of alterity in psychoanalysis based on the concepts of femininity and experience. The point of departure is a critique of the centrality of the Oedipean/eastration model in psychoanalytical theory (a model underlying a form of subjectivation resulting from repression or denial of drive) in order to conceive new forms of sociability. The article begins by analyzing the fate of the alterity experience in modernity: the other as strange/familiar, Next, by analyzing key passages from Freud's work, the author seeks to develop the notion of alterity in the context of immanence, that is, as an openness to difference. Keywords: Alterity; femininity; new forms of subjectivation; psychoanalysis; culture Recebido em: 17/12/2001 Aprovado em: 29/01/2002 PHYSIS; Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 12(1):121-140, 2002

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