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O UNIVERSALISMO ETICO: KOHLBERG E HABERMAS: GUSTAVO VENTURI Em continuidade a investigagdes no campo da moralidade ini- ciadas pelo epistemélogo suico Jean Piaget (1896-1980), 0 psicdlogo norte-americano Lawrence Kohlberg (1927-1987) dedicou os tltimos trinta anos de sua vida de pesquisador a elaboragdo de uma teoria do de- senvolvimento moral, vista e revista a luz de dezenas de estudos empiticos. Mantendo-se nos marcos do estruturalismo genético e de uma psicologia construtivista centrada na interagdo entre experiéncia e pensa- mento, Kohlberg? defender4 uma teoria da psicogénese do desenvolvi- mento moral em estégios rigidamente estruturados, a qual tem um de seus tracos basicos, talvez o mais polémico, na reivindicagao de sua uni- versalidade. Antes de discuti-lo, porém, convém um breve resumo das conclusoes e fundamentos dahard structure stage theory. A TEORIA DE KOHLBERG Piaget (1977) havia distinguido quatro fases no processo de for- magdo da moralidade: amoralidade, heteronomia, semi-autonomia e auto- 10 texto que segue comesponde a um resumo do capitulo 2 ¢, com pequenas alteragdes, & {ntegra da primeira se¢o do capitulo 3 (intitulada “Universalismo versus relativismo ético") da dissertagao de mestrado Autonomia e heteronomia em moral sexual — meio social, idade e género no desenvolvimento moral, defendida em 17 de abril de 1995, no programa de pés- sgaduagao em Sociologia, da FFLCH-USP. De Piaget ver, basicamente, O julgamento moral na crianga (1977), Seis estudos de psico- logia (1982) Estudos Socioldgicas (1973). 3 De Kohlberg e equipe ver Essays on Moral Development (1981 ¢ 1984), Moral Stages: a Current Formulation and a Response to Critics (1983) € The Measurement of Moral Devel- opment (1987). 68 LUA NOVA N°36—95 nomia. Kohlberg desdobra as trés tiltimas fases em seis estdgios de ra- ciocinio moral, agrupando-os dois a dois em trés niveis de moralidade: os estdgios 1 (orientagao da punigdio e obediéncia) e 2 (relativista instrumental) correspondem ao nivel pré-convencional; os est4gios 3 (concordancia inter- pessoal) e 4 (manutengdo social) ao nfvel convencional; e os estdgios 5 (contrato social) e 6 (principio ético universal) ao nivel pés-convencional. A cada est4gio corresponde uma "“filosofia" moral, um modo distinto de conceber e resolver os conflitos morais, e de operacionalizar a nogio de jus- tiga. Os estdgios de nimero impar constituem as variantes heter6nomas dos niveis de julgamento, no sentido em que neles "predomina a percepcfo da Tegra ou convengo como imposta” (Freitag, 1989, p.33). Os estgios pares constituem as variantes aut6nomas, porque neles prevalece "a dimensdo de independéncia do individuo face Anorma ou regra estabelecida” (idem). Os trés niveis de julgamento moral referem-se a distingdes do nivel de perspectiva sécio-moral, 0 qual constitui "o conceito desenvolvi- mental bésico que subjaz a seqiiéncia de estdgios” (Colby e Kohlberg, 1987, vol.1, pp. 15-16). O nfvel pré-convencional corresponde & perspecti- va s6cio-moral individual concreta, na qual ainda nao hd a percepgdo do cardter convencional das regras, que so, assim, externas ao eu, tidas como naturais ou como caprichos de autoridades. O nfvel convencional corre- sponde & perspectiva membro-da-sociedade, em que 0 eu se identifica com as expectativas dos outros, e na qual hé consciéncia quanto, e respeito, & convencionalidade das regras, j4 internalizadas, vistas como necessérias ¢ decorrentes das relagdes de cooperacdo. Por fim, 0 nivel pés-convencional corresponde & perspectiva precedente-d-sociedade (prior-to-society), em que 0 eu se diferencia das expectativas dos outros e, fazendo abstragao do caréter convencional das regras, pode pens4-las em seu ideal, gerando principios éticos préprios. Baseado em pesquisas longitudinais, intergrupais e transcultu- rais realizadas entre 1958 e 1978, Kohlberg (1981) sustenta, como fatos psicolégicos, as seguintes conclusées a respeito dos estgios: (1) 0 desen- yolvimento cognitivo (pensamento Iégico) é condig&io necesséria, ainda que nio suficiente, para o desenvolvimento moral; (2) a seqiiéncia dos estdgios morais, tal como a dos cognitivos, é hierérquica e invariante; (3) pode-se parar em qualquer est4gio moral, em qualquer idade, ou excepcio- nalmente regredir, mas se se retoma o desenvolvimento, ser necessaria- mente a partir do est4gio ent4o atual, e sem pular ou inverter a ordem dos seguintes; (4) todo ser humano parte do estagio 1 e tem o potencial de atin- gir 0 estagio 6, desde que as condig6es sociais o permitam e nao interrom- pam seu desenvolvimento cognitivo-moral; (5) a ampla variedade de con- dig6es sociais, culturais e religiosas nao interfere na natureza seqiiencial KOHLBERG E HABERMAS 6 dos estagios, apenas na velocidade com que se progride e no ponto méximo que se atinge. Além de contar com evidéncias empiricas abundantes, a tese koblberguiana de que a seqiiéncia dos estagios de desenvolvimento moral é necessariamente hierérquica e invariante, assenta-se no pressuposto construtivista de sua teoria desenvolvimental, herdado, mais uma vez, de Piaget, para quem, "o desenvolvimento mental ¢ uma construgdo continua", em que "cada estdgio € caracterizado pela aparigao de estrutu- ras originais, cuja construgao o distingue das estdgios anteriores. O essen- cial dessas construgées sucessivas permanece no decorrer dos estdgios ul- teriores, como sub-estruturas, sobre as quais se edificam as novas caracteristicas. (...) Cada estégio constitui entéo, pelas estruturas que 0 definem, uma forma particular de equilfbrio, efetuando-se a evolugao mental no sentido de uma equilibragdo sempre mais completa" (1982, pp.12-14). Para Kohlberg, portanto, a seqtiéncia dos estégios morais é hierdrquica enquanto sucessio de estruturas de complexidade crescente, invariante na medida em que cada estdgio constitui o alicerce para o estdgio seguinte, impossibilitando 0 salto ou a inverso na ordem dos estagios. E articulados em uma seqiiéncia invariante, enquanto totalidades estruturadas que expressam "filosofias" e perspectivas s6cio-morais distin- tas, 0s estdgios de moralidade também sio definidos, em principio, inde- pendentemente dos contetidos especfficos (acidentais ou culturalmente de- terminados) de decisGes e agdes morais particulares. Isto decorre do pressuposto estruturalista do cognitivismo: "nés acreditamos que os conceitos no so aprendidos ou usados independente- mente uns dos outros, ¢ sim que esto amarrados por tragos estruturais co- muns. Nossa énfase é na forma de pensamento em vez do contetido, porque € a forma que exibe regularidade e generabilidade desenvolvimen- tal internamente e através dos individuos. Mais ainda, no caso dos com- portamentos morais, o significado da crenga moral especifica de um in- dividuo nao pode ser entendido sem que se compreenda a concepgio de mundo moral mais geral ou 0 quadro conceitual no qual aquela crenga esta inserida e do qual ela emerge" (Colby e Kohlberg, 1987, vol.1, p.2). No entanto, se esta independéncia de contetidos especificos € evidente nos julgamentos morais dos niveis pré-convencional e conven- cional, isto j4 nao ocorre nos est4gios do nivel pés-convencional, em que 0s valores e julgamentos do indivfduo convergiriam para princfpios morais basicos. Neste nivel, sustenta Kohlberg, diante de um dilema que envolve, por exemplo, o valor da vida humana, o sujeito j4 distinguiu e desvenci- Thou seus julgamentos, sucessivamente, dos valores de status, isto é, da au- 70 LUA NOVA N°36—95 toridade de quem os enuncia (est4gio 1), da sua instrumentalizagao e uso para outros (estdgio 2), de afetos interpessoais (estdgio 3) e de formalismos legais (estdgio 4), desembocando na defesa da vida e dignidade humanas como valores intrinsecos, e em considerages com o bem-estar geral e out- ros princfpios éticos que, para Kohlberg, esto melhor condensados no princfpio de justiga (que seria o mais abrangente e integrado dos princfpios). E por isto que a teoria desenvolvimental dos estagios morais caracteriza-se, ainda, por um pressuposto universalista que se manifesta em dois momentos articulados: primeiro, quando Kohlberg postula a exis- téncia da seqiiéncia hierérquica e invariante dos estdgios, enquanto tra- jet6ria necessaria da ontogénese da moralidade por meio de estruturas for- mais de raciocfnio: “h4 uma forma universalmente valida do processo de pensamento moral racional, a qual todas as pessoas poderiam se articular, supondo-se condigées sociais e culturais apropriadas para 0 desenvolvi- mento dos estégios cognitivo-morais”; segundo, quando sustenta que esta trajetéria tem como ponto culminante uma moralidade pés-convencional substantiva, cuja expresso mais acabada seria a moralidade do principio ético universal, concebido enquanto justiga: “O desenvolvimento das es- truturas do raciocinio de justiga é um desenvolvimento universal”, sinteti- za Kohlberg, na tiltima formulago do universalismo que reivindica (1983, p.75). O cardter universalmente necessério do desenvolvimento cogni- tivo-moral e 0 alcance do padro formal de raciocinio pés-convencional a que todos 0s seres humanos, em qualquer cultura, estariam, neste sentido, predestinados — desde que as condigées sociais nfo se oponham a essa trajet6ria, retardando-a ou interrompendo-a—, decorrem dos pressupostos anteriores, construtivista e estruturalista, do cognitivismo piagetiano: "toda ag&o — todo movimento, pensamento ou sentimento — corresponde a uma necessidade. (...) Uma necessidade ¢ sempre a manifestagdo de um desequilibrio, (...) A agdo se finda desde que haja satisfagdo das necessi- dades, isto é, to que 0 equilfbrio — entre 0 fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa organizagéio mental, tal como se apresentava anteri- ormente — é restabelecido", diz Piaget (1982, p.14). E conclui: "a tendén- cia mais profunda de toda atividade humana é a marcha para o equilibrio. E a razio — que exprime as formas superiores deste equilibrio — retine nela a inteligéncia e a afetividade" (idem, p.70). Observa-se que diferentes culturas produzem crengas e valores particulares — fumar ou beber é errado, comer carne na Semana Santa ou porco em qualquer época é errado, ou ¢ errado a mulher no casar virgem, o homem e a mulher serem polfgamos, etc. —, mas os prinefpios morais subjacentes a estes valores, produzidos em todas as culturas, seriam sem- KOHLBERG E HABERMAS nm Pre os mesmos, sustenta Kohlberg. O fato de ser comum 0 conflito de princfpios éticos entre pessoas de uma mesma cultura, grupo ou familia, isto é, em situagdes em que a diferenga cultural est4 experimentalmente controlada, demonstra que a questo da moralidade independe da diversi- dade cultural, repousando, na verdade, em diferengas de estdgios e niveis de moralidade. Ou seja, trata-se, antes, de uma questdo de maturidade, de desenvolvimento das estruturas de raciocinio e julgamento. As especifici- dades culturais irdo interferir, de resto como as condigées sociais em geral, apenas no ritmo da progressdo através dos estégios e no ponto maximo de desenvolvimento moral que cada individuo atinge. Enfim, para Kohlberg, a universalidade dos princfpios prescriti- vos p6s-convencionais — em especial a da moralidade da justiga — nao est, naturalmente, em serem eles universalmente observados no conjunto das ages humanas, ou mesmo reconhecidos em discurso; mas em serem universalizdveis, em fungZo da trajetéria universal da psicogénese da mo- ralidade, que teria na razdo ¢ na justiga seus pontos ideais de equilibrio. Para Kohlberg, o prinefpio de justiga, enquanto defesa da vida, dos direitos individuais e do bem comum, é universal, em suma, no como fato social, apenas como possibilidade de ideal moral. Orientar-se por ele seria uma faculdade potencial de todo ser humano, faculdade, em princfpio, to uni- versal quanto a raz UNIVERSALISMO VERSUS RELATIVISMO, Ao afirmar o cardter duplamente universalista de sua teoria da moralidade — por um lado uma seqiiéncia invariante de estdgios formais hierdrquicos, por outro a identificacdo do ponto final do desenvolvimento moral com a internalizago de princfpios universais substantivos —, Kohlberg se opée frontalmente aos defensores do relativismo ético. A estes atribui o exercicio de ao menos uma, entre trés, das seguintes faldcias: a derivacaio da crenga na relatividade ética a partir da correta pre- ocupagdo com a defesa dos direitos de grupos e culturas minoritérios; a falécia naturalista, que confunde problemas de fato (no hd padrdes ou critérios de julgamento moral aceitos por todas as pessoas ou povos) com problemas de valor (ndo hé padrdes ou critérios que todos devam aceitar): e, finalmente, a falécia que consiste em confundir relativismo ético com imparcialidade cientifica ou neutralidade de valores (Kohlberg, 1981, pp.106-114). No primeiro caso, 0 da defesa das minorias, trata-se de uma faldcia I6gica, diz Kohlberg, porquanto recorre a uma preocupago que na n LUA NOVA N°36— 95 verdade nega o relativismo que pretende sustentar, na medida em que traz implicito, justamente, um princfpio universal: € preciso garantir a liber- dade e 0 respeito & dignidade a todos os seres humanos, independente- mente de suas crengas religiosas, valores morais, preferéncias sexuais, etc.. J4 0 cardter falacioso que Kohlberg atribui tanto a confusdo entre pro- blemas de fato e problemas de valor, quanto entre, de um lado, relativismo ético e, de outro, a necesséria busca de imparcialidade, ou ainda a impossi- bilidade tltima da neutralidade axiolégica nas investigagées cientfficas, exige clarificagao. Em um primeiro momento, Kohlberg (1981, pp. 131-146, 168- 182) considerou expressdes distintas de uma mesma teoria, a explicagdo psicoldgica de por que uma crianga passa de um estd4gio moral a outro e a justificagio filoséfica de por que um estégio mais alto é mais adequado que um estégio inferior. Com base nas observagdes de que um novo estdgio mo- ral requer operagSes l6gicas ausentes no estdgio anterior, e de que, analoga- mente, hd uma correspondéncia entre, de um lado, os critérios psicolégicos de diferenciagdo e integragdo, presentes no processo de equilfbrio estrutu- tal, e, de outro, os critérios filos6ficos formais da prescritividade e univer- salidade, que caracterizam as teorias éticas normativas, Kohlberg susten- tar4, inicialmente, a existéncia de um isomorfismo entre a psicologia e a filosofia morais. Esta tese da identidade — como Habermas (1989) ird de- nominé-la — é derivada do pressuposto construtivista do cognitivismo piagetiano: Kohlberg deixa implicito que a complexidade crescente das es- truturas de julgamento moral, aliada a racionalidade do principio da justiga, garantiriam, de modo quase inexordvel, que a ontogénese da moralidade atingisse, na justiga, seu ponto eticamente timo e final, enquanto padréo ético para 0 equilibrio ou harmonia social, enquanto base racional possfvel para o didlogo e a convivéncia em sociedade, entre grupos e entre nagées. A constatagdo empitica, revista 6 mais tarde, de que havia plena convergéncia entre alto nivel de raciocinio moral formal e a adogdo do princfpio de justica, reforga a convicgao de Kohlberg, de que uma teoria da moralidade é incompleta se suas implicag6es filos6ficas nao so explicita- das: em complementagao a abordagem psicolégica interacionista, a questo da moralidade deve ser tratada filosoficamente, ainda que na perspectiva de uma filosofia ‘experimental’, isto 6, uma filosofia que, por sua vez, leve em conta os fatos que caracterizam o processo de desenvolvimento psicolégico, tanto cognitivo como moral. "Ainda que a teoria psicoldgica e a teoria ética normativa nao sejam redutiveis uma a outra, as duas constituem empreendi- ‘mentos isom6rficos ou paralelos”, sintetiza Kohlberg (idem, p.180). Ocorre que no principio dos anos 80, a revisdio dos métodos de codificagdo, quase que desaparecendo com o estdgio 6 enquanto fendmeno KOHLBERG E HABERMAS B empfrico, bem como os resultados de novas pesquisas realizadas com 0 préprio instrumental kohlberguiano, colocaram em xeque a inexorabili- dade desta confluéncia entre estruturas complexas de raciocinio e a emer- géncia da moralidade como justia. Isto levaré Kohlberg a reformular sua teoria quanto & relagdio entre psicologia e filosofia moral, sem que ele abra mao, no entanto, do postulado universalista. Para que se compreenda me- Ihor os termos em que Kohlberg recoloca a questo, vejamos, antes, 0 ba- Jango realizado por alguns autores, a respeito desta polémica. Para John Snarey (1985), as conclus6es de Kohlberg a respeito da universalidade das categorias, conceitos e princ{pios morais basicos, e da seqiiéncia invariante de estégios hierarquicos, implicam cinco supo- sigdes empfricas, as quais ele se dispée a testar: (1) a pesquisa de desen- volvimento moral foi feita num espectro suficientemente amplo de am- bientes sécio-culturais; (2) todas as pessoas em todas as culturas colocam- se problemas relativos ao dominio moral, afluindo necessariamente para as mesmas questdes basicas, sendo que (3) qualquer instdncia de raciocinio moral genuino corresponde a um dos estdgios, ainda que de transigo, de- finidos por Kohlberg; (4) a seqiiéncia dos estégios morais & estritamente invariante em todas as culturas, (5) encontrando-se em qualquer uma delas ‘© espectro completo de estdgios. Kohlberg havia sustentado a tese da universalidade do desenvol- vimento moral originalmente com base no resultado de pesquisas empiricas realizadas junto a criangas e adolescentes de cinco grupos culturais: norte- americanos, chineses de Taiwan e mexicanos, tanto de classe média como de familias de trabalhadores urbanos; filhos de camponeses e operdrios tur- cos, e filhos de indfgenas da peninsula de Yucatén (México). Para verificar a validade das hipdteses acima, além das cinco investigag6es iniciais de Kohlberg, Snarey compilou outras 40 pesquisas realizadas até 1985, dentro dos par&metros kohlberguianos. Totalizou assim, 45 estudos em 27 culturas diferentes, sendo 22% com populagées origindrias da Europa Ocidental, 44% com populagées ndo-européias, mas urbanas e ocidentalizadas, e 33% com populagées tribais ou de vilas rurais. Dos 45 estudos, 30% incluiram criangas, adolescentes e adultos, 18% criangas e adolescentes ou adoles- 4 Como “as duas questdes inter-relacionadas que estiveram no centro da evolugdo do modelo de Kohlberg sto a diferenciagdo entre contesidoe estrutura, € a definigao da unidade de andlise (Colby © Kohlberg, 1987, vol.1, p.37), € possivel compreender a extensiio das reformulagGes ‘ocorridas observando a sucesso dos diferentes métodos de codificacdo, responséveis pela cap- tagio (e construgio) dos estdgios morais. Kohlberg destaca trés sistemas principais de codifi- ‘cago, utilizados no perfodo: Sentence and Story Rating (1958-70), Structural Issue Scoring (70-80/81) ¢ Standart Issue Scoring (81 em diante). 14 LUA NOVA N° 36—95 centes ¢ adultos e 52% apenas um dos grupos de idade; 56% foram feitos com individuos de ambos os sexos. Para comparar os estudos compilados, Snarey fez quatro tipos de padronizagdo: (1) graduou-os quanto & confiabilidade dos resultados, segundo o sistema de pontuacdo e classificago em estdgios utilizado, isto 6, do mais antigo e menos confidvel Sentence and Story Rating, ao tiltimo e mais confidvel Standart Issue Scoring; (2) reestimou os resultados dos estudos que ndo haviam trabalhado com a pontuagio algoritmica mais re- cente, que exige ao menos 25% do raciocfnio de um individuo em um estégio para considerar este estégio em sua pontuagio final; (3) recodifi- cou os antigos estdgios 6 no estdgio 5, j4 que o manual mais recente nfo distingue os dois tiltimos estagios; e (4) recalculou escalas antigas de 5 13 estgios e sub-est4gios na escala atual que contém 9, isto 6, os 5 estagios propriamente ditos, intercalados por 4 ‘estagios' de transigao. Snarey no encontrou problemas em relagdo a trés das cinco su- posigdes verificadas. Primeiro, quanto & amplitude das pesquisas, conclui que o ntimero de grupos e a diversidade de culturas em que o modelo kohl- berguiano foi aplicado sao suficientes para testar a validade universal da te- oria cognitiva-desenvolvimental dos est4gios morais, contando ainda a fa- vor de Kohlberg o fato de que nenhuma outra teoria psicolégica do desenvolvimento dispés de tantos estudos transculturais. Segundo, quanto & identidade universal das questdes, normas e valores basicos, Snarey obser- va que a escolha de um t6pico em detrimento de outro, operada na resolugao dos dilemas propostos, est4 sujeita a variagdes culturais, 0 que indica que a entrevista de Kohlberg nao é culturalmente neutra, mesmo quando devida- mente traduzida e adaptada a referéncias de cada cultura, como ocorreu na maioria dos estudos compilados. No entanto, Snarey conclui que este viés metodoldgico nao chega a comprometer a tese da universalidade, visto que as pesquisas que trabalharam com dilemas completamente novos, com te- mas e contetidos derivados da prépria cultura sob investigagdo, chegaram a resultados semelhantes aos obtidos com os dilemas padres. E terceiro, quanto ao cardter invariante e hierarquico da seqiiéncia de estdgios, Snarey considera que os dados disponfveis apontam para sua validaco: nos sete es- tudos longitudinais realizados (trés deles com durago de nove a vinte anos) niio se reportou nenhum caso de salto de estagio, e as poucas regressdes ob- servadas sao percentualmente inferiores 4 variago de até 19%, encontrada por Kohlberg e seus auxiliares, através da aplicagdo seguida de entrevistas ‘com os mesmos individuos ( test-retest error). Em relagio as duas outras hipéteses, Snarey identifica os se- guintes problemas: quanto a abrangéncia do modelo kohlberguiano, no sentido de dar conta de qualquer instancia de raciocinio moral, observa KOHLBERG E HABERMAS 15 que alguns estudos indicam que hd julgamentos morais singulares nao con- templados na teoria e no manual de pontuagéio de Kohlberg, particular mente raciocinios assentados em princfpios coletivos e comunais. E, final- | mente, no que tange a existéncia do espectro completo de estégios em todas as culturas, Snarey encontra o que considera a drea mais claramente problemética, em termos de suporte empfrico para a universalidade do de- senvolvimento moral pretendida pelo modelo de Kohlberg. De fato, en- quanto 08 estégios de 2 a 4 apareceram nas 27 éreas culturais estudadas, os estégios 1 e 5 surgiram em apenas 67% das amostras. Controlando-se as amostras por idade, pode-se presumir que os est4gios 1 e 1-2 provavel- mente teriam aparecido onde nao foram encontrados, se nesses locais fos- sem entrevistadas criangas mais novas. Jé os estdgios 4-5 e 5, presentes em 100% das amostras urbano-ocidentais e em 91% das urbano-ndo- ocidentais, desaparecem por completo das sociedades tribais ou rurais, se- jam ocidentais ou nao. Para explicar estes resultados, Snarey descarta a hipétese de que as definigdes dos estdgios mais altos sejam culturalmente enviesadas e etno- céntricas, j4 que se 0 raciocinio pés-convencional nao foi encontrado em to- dos os estudos, foi encontrado em muitos, inclusive em sociedades nao- ocidentais. Para Snarey os est4gios pds-convencionais ndo foram encontra- dos em todas as sociedades investigadas por um problema metodolégico da teoria de Kohlberg: lacunas nas defini¢des de estégios e do manual de clas- sificagio. Snarey acredita que os estgios p6s-convencionais podem se tor- nar fenémenos empiricos mais comuns se novos estudos interculturais bus- carem exemplos de outros princfpios formais, presentes em diversas culturas, contribuindo para uma compreensao pluralista da universalidade e variagao do desenvolvimento sécio-moral. a Michael Boyes e Lawrence Walker (1988) detectam problemas semelhantes no balango que fazem entre a teoria e as pesquisas empfricas kohlberguianas, embora cheguem a conclus6es diferentes. Estes autores distinguem trés critérios em que se assentaria a tese da universalidade do modelo de Kohlberg: o da estrutura, o da seqiiéncia e o da hierarquia. Re- lembrando, enquanto estrutura 0 estdégio é uma totalidade, 0 que implica que os individuos sejam consistentes em seu pensamento moral, estando a cada vez em um ou no méximo em dois estégios adjacentes; o critério da seqiiéncia significa que ndo se regride nem se pulam estégios, e o da hie- rarquia implica a diferenciacdo e preferéncia pelos estagios posteriores. Para Boyes ¢ Walker, os estudos transculturais disponiveis sustentam os dois primeiros critérios, enquanto que o da hierarquia, demonstrado em pesquisas junto a norte-americanos, ainda demandaria provas adicionais. ‘Como Snarey, Boyes e Walker observam lacunas no Standart 16 LUA NOVA N° 36—95 Issue Scoring, que se mostrou inapropriado para codificar, por exemplo, a busca de harmonia e unidade dentro da comunidade, a solidariedade social e a piedade filial, valores que surgiram com freqiiéncia, respectivamente, nas pesquisas realizadas entre comunidades tribais do Quénia e da Nova Guiné, entre adolescentes dos kibutzim israelenses e entre chineses de Taiwan. Por um lado, Boyes e Walker também minimizam este problema sob o argu- mento de que a sustentagao empfrica dos critérios de seqiiéncia e estrutura relativizam a insuficiéncia conceitual do manual de codificagaio: do contrério, as lacunas existentes no manual teriam levado a maiores incon- sisténcias — critério da estrutura — e a violagGes da seqiléncia de estdgios entre as amostras no norte-americanas. Por outro lado, no entanto, espe- culam sobre as rafzes desta insuficiéncia, sustentando que é no plano fi- los6fico que a universalidade do desenvolvimento moral, reivindicada por Kohlberg, demanda maiores questionamentos. Distinguindo trés niveis de discurso no dominio moral — 0 empirico-descritivo (em que so coletadas as declarages sobre o que é certo e errado), 0 ético-normativo (que envolve consideragées sobre a nat- ureza do bom e do certo) e o meta-ético (que inclui consideragdes sobre a natureza e 0 escopo da esfera ou dominio moral) —, Boyes e Walker apohtam trés pressupostos em que Kohlberg basearia sua tese da universal- idade, no nivel meta-ético do discurso: a existéncia de uma tinica estrutura moral, capaz de explicar os julgamentos de todos os individuos em todas as culturas; 0 formalismo, jé que a universalidade est4 nas formas subja- centes de raciocinio moral, ndo no contetido aparente dos assuntos consi- derados; e a primazia da justia, que seria a esséncia dos problemas genui- namente morais. Boyes e Walker concluem que as evidéncias transculturais dis- ponfveis sugerem que a teoria de Kohlberg é internamente adequada, ou seja, satisfaz os critérios de adequagdo para uma teoria dos est4gios no que diz respeito as questdes da estrutura, da seqiiéncia e da hierarquia, o que valida os pressupostos meta-éticos estruturalista e formalista. Mas Kohlberg teria fracassado em demonstrar que sua teoria cobre adequada e exaustivamente a esfera da moralidade, o que deixa diividas sobre o pres- suposto da primazia da justia. Se a tese da universalidade se sustenta, di- zem Boyes e Walker, é apenas enquanto decorréncia de uma circularidade entre os pressupostos tedricos e a orientagdo para a andlise dos dados, deri- vada dos mesmos pressupostos — circularidade a que Kohlberg, ao contrario do que imagina, ndo teria escapado: "se se aceita a natureza in- terpretativa, carregada de valores, da condugdo e codificagao das entrevis- tas morais, toma-se muito dificil entender como qualquer posigdo te6rica avaliada usando-se tal abordagem poderia ter uma aplicabilidade que nao KOHLBERG E HABERMAS 11 fosse universal, ou como a afirmagio de sua universalidade poderia ser empiricamente refutada. Se as respostas dos sujeitos séo necessariamente vistas através de uma instancia interpretativa fundamentada em uma ética baseada na justiga, entéo os critérios pelos quais a adequag3o daquela abordagem e a racionalidade dos resultados podem ser avaliados nao sto honestos" (Boyes e Walker, 1988, p.54). Nao € 0 que pensao socidlogo e fildsofo alemio Jiirgen Habermas. Ao discutir o problema da interpretagdo versus a pretensio de objetividade nas ciéncias sociais, Habermas coloca-se entre duas posigdes extremas: de um lado, o hermeneuticismo radical — “cientistas sociais que renunciam tanto a pretensdo de objetividade quanto & pretensdo de um saber explicati- yo"; de outro, 0 reconstrucionismo hermenéutico — "cientistas sociais (que) minimizam as conseqiéncias mais dramaticas do problema da inter- pretacdo retornando a uma espécie de teoria da compreensio fundada na empatia", isto é, "na suposiggo de que poderiamos nos transportar para dentro da consciéncia de uma outra pessoa". Entre um e outro, Habermas defende a possibilidade de um objetivismo hermenéutico, exercido pelos que "estéio prontos, diante do problema da interpretacfio, a deixar cair o postulado convencional da neutralidade axioldgica", e que,. "além disso, deixam de assimilar as ciéncias sociais ao modelo de uma ciéncia rigoro- samente nomolégica, embora sejam favordveis ao desiderato e a possibili- dade de abordagens te6ricas que prometem gerar um saber tanto objetivo quanto teérico” (1989, pp.45-46). E “a fim de abonar a afirmagdo de que as ciéncias sociais podem se tomar conscientes de sua dimensdo herme- néutica, permanecendo fiéis no entanto, & tarefa de produzir um saber teérico", Habermas toma "como exemplo", justamente, “a teria de Lawrence Kohlberg" (idem, p.49). Mas para compreender esta escolha, convém explicitar alguns conceitos. Habermas distingue dois modos de uso da linguagem: "ou bem dizemos 0 que se dé ou o que ndo se dé ou bem dizemos algo para outrem, de tal modo que ele compreenda o que é dito. (...) Dizer como as coisas se comportam nao depende necessariamente de uma espécie de co- municago realmente efetuada ou pelo menos imaginada; nfo é preciso fazer nenhum enunciado, isto é, realizar um ato de fala. (...) Ao contrario, compreender o que é dito a alguém exige a participagao no agir comunica- tivo. (...) Portanto, a0 passo que 0 uso cognitivo, néio-comunicativo, da lin- guagem exige (apenas) o aclaramento da relacao entre a frase e o estado- de-coisas, ... 0 uso comunicativo da linguagem coloca-nos diante do pro- blema de como essa relagdo est vinculada as duas outras relagdes, que consistem em 'ser expressio de alguma coisa’ e em ‘compartir alguma coi- sa com alguém”. Ao primeiro destes usos da linguagem, corresponde uma a LWA NOVA N° 36 —95 atitude objetivante de quem fala ou pensa; ao segundo corresponde uma atitude performativa, a qual “permite uma orientago muitua por pre- tensdes de validade (verdade, corregdo normativa, sinceridade) que o fa- lante ergue na expectativa de uma tomada de posigdo por sim/nao da parte do ouvinte" (idem, pp. 40-42). A epistemologia, diz Habermas,"s6 se ocupa desta tiltima relagao entre ¢ realidade e a linguagem, ao passo que a hermenéutica tem de se ocu- par, ao mesmo tempo, da triplice relacio de um enunciado que serve (a) como expresso da intengdo de um falante, (b) como expresso para 0 es- tabelecimento de uma relagio interpessoal entre falante e ouvinte e (c) como expresso sobre algo no mundo. (...) A hermenéutica considera a lin- guagem, por assim dizer, em agdo, a saber, da maneira como é empregada pelos participantes com 0 objetivo de chegar & compreensdo conjunta de uma coisa ou a uma maneira de ver comum' (idem, pp.40-41). E acrescen- ta: "toda cigncia que admite as objetivagdes de significado como parte de seu dominio de objetos tem de se ocupar das conseqiéncias metodolégicas do papel de participante assumido pelo intérprete... Essas conseqiiéncias ameagam justamente aquela independéncia do contexto e aquela neutrali- dade axiol6gica que parecem ser necessdrias para a objetividade do saber te6rico" (idem, p.44). No entanto, argumenta Habermas, se de um lado "os intérpretes perdem, & verdade, em virtude de seu engajamento inevitdvel no proceso do entendimento miituo, o privilégio do observador nao- participante ou da terceira pessoa, (de outro lado) pela mesma razéo, dispdem dos meios para manter de pé, desde dentro, uma posigao de im- parcialidade negociada", enquanto participantes de uma agéio comunicati- va, que, no processo de averiguagdo das razdes implicitas aos enunciados, busca compreender por que o interlocutor "se sentia com direito a avangar determinadas assergGes (como verdadeiras), a reconhecer determinados valores e normas (como corretos) e a exprimir determinadas vivéncias (como sinceras)" (idem, p.46). Isto esclarecido, Habermas afirma que, diferentemente das cién- cias empfricas, "disciplinas como a légica e a meta-matematica, a teoria do conhecimento e a epistemologia, a lingiifstica e a filosofia da linguagem, a ética e a teoria da agao, a estética, a teoria da argumentagao, etc. ...tém em comum 0 objetivo de dar conta do saber pré-tedrico e do dominio intuitive de sistemas de regras que estdo na base da geragdo e avaliagdo de enuncia- dos ¢ operages simb6licos", constituindo-se, assim, em reconstrugGes ra- cionais. Mas "é importante ver que todas as reconstrugGes racionais, assim como os demais tipos de saber sé tém um status hipotético", alerta Habermas, “pois sempre € possfvel que elas se apdiem numa escolha err6nea de exemplos; elas podem obscurecer e distorcer intuigdes corretas KOHLBERG E HABERMAS 19 e, 0 que é mais frequente ainda, generalizar excessivamente casos particu- lares. Por isso, precisam de confirmagGes adicionais"; é preciso "testé-las indiretamente, utilizando-as como inputs em teorias empfricas". E € aqui onde entra a teoria kohlberguiana dos estdgios: "a teoria de Kohlberg é um exemplo para uma divisio de trabalho bem peculiar entre a reconstrugZo racional de intuig6es morais (filosofia) e a andlise empfrica do desenvolvi- mento moral (psicologia)” (idem, pp.48-49). Para Habermas, "o ponto de partida de Kohlberg difere do ponto de partida de Piaget", porque para defender o universalismo moral e a supe- rioridade de sua "ética formalista, ligada a Kant”, "as reconstrug6es racio- nais em que Kohlberg tem que se apoiar pertencem a um tipo de teoria nor- mativa que se pode chamar ‘normativa' sob dois pontos de vista: uma teoria moral cognitivista é, de iri{cio, normativa no sentido de explicar as con- dices de uma determinada espécie de pretenses de validez — nesse re- speito, as teorias do jufzo moral nao se distinguem das reconstrugdes da- quilo que Piaget denomina ‘pensamento formal-operacional’. Mas toda teoria moral também é 'normativa’, visto que nao se esgota em conside- ragdes meta-éticas, no sentido de apelar, no que concerne & validade de seus préprios enunciados, a critérios de correc4o normativa e ndo de ver- dade proposicional" (idem, pp.52-53). Habermas acredita que Piaget resvala para uma faldcia natura- lista quando "tende a assimilar sua abordagem & teoria dos sistemas", em Biologia e conhecimento (publicado em 1967): "pode-se tentar combinar 0 modelo estruturalista e 0 modelo da teoria dos sistemas... mas combiné- los nao significa assimilar um modelo ao outro, Toda tentativa de interpre- tar de uma maneira exclusivamente funcional a superioridade das o- peracdes de um estégio superior, as quais se medem pela validade das ten- tativas de solugio de problemas, poe em risco a operacdo caracteristica da teoria cognitivista do desenvolvimento. Pois nao precisarfamos de nenhu- ma reconstrugdo racional se fosse certo que o verdadeiro ou o moralmente correto pudessém ser suficientemente analisados no quadro daquilo que é exigido para a manutengao dos limites do sistema” (idem, pp.50-51). A tese kohlberguiana do isomorfismo entre a psicologia do de- senvolvimento moral e a filosofia normativa padece da mesma am- bigiiidade, sustenta Habermas, correndo também 0 risco de cair na falacia naturalista—no que Kohlberg se igualaria a parte dos relativistas que criti- ca. E apenas quando defende a superioridade de sua ética formalista apelan- do para critérios de racionalidade procedimental, como o véu da ignorancia de Rawls e afins, que Kohlberg afasta esse perigo, acredita Habermas, abrindo mao de validar a universalidade de sua teoria com base em verdades proposicionais, sustentadas em evidéncias empfricas. 80 LUA NOVA N? 36—95 Com efeito, diante das criticas e polémicas acima, entre outras, € das evidéncias empiricas de estudos que apontaram a insuficiéncia concei- tual de seu sistema de classificagio, Kohlberg (1983) revé sua teoria em dois pontos: de um lado, volta atrés na afirmagdo de que o principio de justiga é suficiente para ordenar uma explicago universal do desenvolvimento mo- ral, admitindo a possibilidade de que existam outros principios bésicos; de outro, abandona a tese da identidade entre o ser (teoria psicolégica cogniti- vista) ¢ 0 deve ser (filosofia moral), reforgando, em contrapartida, a tese da complementaridade entre ambas as esferas, j4 esbocada antes. As evidéncias empfricas no podem provar a validade de princfpios universais, admite Kohlberg, apenas podem se mostrar consistentes com eles. Uma teoria psi- colégica adequada do desenvolvimento moral d4 suporte empfrico a teoria normativa, que por sua vez necesséria a teoria psicolégica para explicar 0 desenvolvimento dos estégios, no que concerne & construgdo das razées fi- los6ficas de por que um estdgio é me-Ihor que seu precedente, Desde logo, esta também é a posigdo de Rawls, de cuja filosofia politica (conforme mencionado na primeira seg%o do capftulo anterior), Kohlberg empresta sua concepgaio ética deontol6gica, organizada em torno do principio da justiga como equidade: "é verdade que argumento pela su- perioridade da teoria da justica, e elaboro a teoria psicolégica nesta hipétese; mas essa superioridade é uma questo filos6fica e nao pode, acre- dito, ser demonstrada s6 pela teoria psicolégica do desenvolvimento” (Rawls, 1973, pp.461-462, nota 8). Mas se 0 abandono da premissa do isomorfismo, por parte de Kohlberg, evita a falécia naturalista, a dogo da tese da complementaridade nao é isenta de conseqiiéncias: "Muito embora todas as ciéncias devam, nat- uralmente, se ocupar no plano metatedrico de problemas de interpretagao..., 86 aquelas que mostram uma dimensdo de pesquisa hermenéutica tém que enfrentar problemas de interpretagdo jé ao nivel da produgdo de dados", ob- serva Habermas (1989, nota 8, p.59). Isto significa que é preciso reconhecer que “a utilizagao de uma teoria normativa também tem, por sua vez, um im- pacto sobre a dimensdo hermenéutica da pesquisa. A geraciio de dados est mais fortemente ‘dirigida pela teoria’ do que as interpretages normais", ad- verte Habermas. E comentando a adaptagio do dilema de Heinz para outras culturas, conclui: "o fato de que as historias relevantes para a teoria podem ser traduzidas de um contexto para o outro é algo que resulta da propria te- oria — e € a teoria que dé uma orientacdo de como fazé-lo. Se essa tarefa no puder ser levada a cabo sem violéncia e sem distorgdes, entao o fracas- so da aplicagtio hermenéutica é justamente um indicio de que as dimensées postuladas foram impostas desde fora - e ndo o resultado de uma recon- strucdio desde dentro” (idem, pp.56-57). KOHLBERG E HABERMAS. 8 Nem por isto deve-se concluir, acredita Habermas (idem, p.53), que a teoria de Kohlberg "é de certa maneira envenenada pelo status norma- tivo da espécie particular de reconstrugées racionais nela contidas", consti- tuindo-se, desta forma, numa teoria pseudo-empirica — ou comprometida em sua validade, enquanto produgdo de saber, como parecem sugerir Boyes e Walker (1988) —, em fungao de sua relativa circularidade. “A teoria empfrica pressupée a validade da teoria moral que ela utiliza; nfo obstante, sua validade torna-se duvidosa tao pronto as reconstrugées filoséficas se re- velem imprest4veis no contexto da utilizagao da teoria empfrica", observa Habermas (1989, p.56, sem se referir ao texto de Boyes e Walker, que € pos- terior). Ou seja, psicologia e filosofia, neste caso, influenciam-se mu- tuamente, sem, no entanto, garantias prévias de sua validade. A afirmagao de que os individuos preferem os est4gios mais altos de raciocinio moral que eles compreendem, diz Kohlberg, "deriva da afirmagao filoséfica de que um est4gio posterior é ‘objetivamente' preferivel ou mais adequado se- gundo certos critérios morais. Esta afirmagao filos6fica, porém, seria ques- tionada por nés se os fatos da progress moral fossem inconsistentes com suas implicagdes psicolégicas” (1981, p.194). Em suma, "a relagdo de ajuste reciproco" entre a psicologia moral kohlberguiana e as intuigdes morais a que se remete, apenas indica os limites, digamos, da objetividade da teoria de Kohlberg, enquanto re- construgao racional — limites conscientes, que resultam dos problemas interpretativos que enfrenta, por conta da abordagem hermenéutica que assume. Certamente, diz Habermas, "a confirmagéo empfrica de uma teoria Te que pressupée a validade de suposigées bésicas de uma teoria normativa Tn nao pode ser considerada como uma confirmagio indepen- dente de Tn. Mas... as teorias Tel, Te2 tampouco podem ser avaliadas independentemente dos paradigmas de que provém seus conceitos bsicos, (...) As ciéncias reconstrutivas que visam entender competéncias universais rompem, é verdade, o cfrculo hermenéutico em que ficam pre- sas as ciéncias do espfrito bem como as ciéncias sociais baseadas na compreensdo do sentido; mas até mesmo para um estruturalismo genético que persegue ambiciosas problemdticas universalistas, ...0 cfrculo herme- néutico se fecha no plano metateérico, Aqui, a busca de ‘evidéncias inde- pendentes' revela-se como desprovida de sentido; trata-se apenas de saber se as descrigdes, que se podem reunir a luz de varios faréis tedricos, po- dem ser compiladas de modo a compor um mapa mais ou menos con- fidvel” (1989, pp.144-145). Isto posto, pode-se retomar a discuss&o das falacias que Kohlberg, esgrimindo 0 universalismo de sua teoria, atribui aos relativistas. Ainda que no possa demonstrar empiricamente a superioridade da moralidade da jus- 82 LUA NOVA N°36—95 tiga, como as descobertas psicol6gicas relativas aos estdgios de desenvolvi- mento moral nao contradizem os fundamentos normativos subjacentes a sua formulagdo, Kohlberg mantém o postulado de que a inexisténcia de uma mo- ralidade universal, enquanto fato psicol6gico, ndo impede que se possa (ou até se deva) perseguir, te6rica e praticamente, uma moralidade universa- lizével —respondendo, assim, & confusdo entre problemas de fato e proble- mas de valor, que considera uma falécia naturalista. Em relagdo & confusao entre relativismo ético, imparcialidade cientffica e neutralidade axioldgica, a critica de Kohlberg é diretamente di- rigida a Max Weber, que trabalharia com uma separagao rigida das esferas cientffica e moral, admitindo critérios de adequago para os princfpios cientificos mas ndo para os principios morais. Com efeito, de um lado, Weber critica a crenga do positivismo classico na objetividade cientffica, descartando a possibilidade de se captar o real tal e qual, em fungiio de que nas ciéncias sociais a elaboragdo de conhecimento sobre qualquer objeto carrega, necessariamente, (1) 0 interesse do pesquisador no recorte desse objeto, em meio ao fluxo de um “devir incomensurdvel" e, em si, cadtico; (2) um significado que € atribufdo a esse objeto, ao localiz4-lo em uma seqiiéncia de relagGes causais, que ndo estd em sua natureza, (3) e um sen- tido que s6 se explica no marco de uma cultura que reconhece na ciéncia um valor. Como diz Weber, "a validade objetiva de todo saber empfrico baseia-se tinica e exclusivamente na ordenagao da realidade dada segundo categorias que sdo subjetivas no sentido espectfico de representarem 0 pressuposto do nosso conhe-cimento ¢ de se ligarem ao pressuposto de que 4 valiosa aquela verdade que s6 0 conhecimento empfrico nos pode proporcionar” (1982, pp.125-126). AO mesmo tempo, no entanto, entre os objetos que podem ser estudados com esta objetividade possivel, Weber néo inclui as questes morais, pois considera que "as diversas esferas de valor do mundo encon- tram-se em conflito irreconcilidvel" (1972, p.182), descartando no s6 a possibilidade de se estabelecer critérios vélidos de hierarquizagio dos va- lores, tarefa que caberia exclusivamente a filosofia, como também de justi- ficagao dos valores, o que caberia a politica, E, para Weber, 0 espago da politica "é um espago dessacralizado, secularizado, em que domina 0 po- litefsmo dos valores", como diz Freitag, onde "nao hé nenhum critério ra- cional, nenhum principio moral ou ético capaz de legitimar a escolha de um valor" (1992, p.103). Kohlberg, como foi visto, considera refutdvel este postulado de que no hé critérios racionais possfveis para a hierarquizacao e justificagao de valores, Isto estaria demonstrado tanto empiricamente, pelos estdgios morais, quanto teoricamente, pelos filésofos da moralidade: “os filésofos KOHLBERG E HABERMAS 83 morais podem definir critérios metodol6gicos de julgamento e argumen- taco moral aproximadamente com o mesmo grau de concordancia e clare- za com que os fildsofos da ciéncia podem definir critérios metodolégicos de julgamento e argumentacdo cientifica” (1981, p.114). Em suma, se por um lado, contra Weber, admite-se a possibili- dade de estabelecer critérios racionais para o estudo da moralidade, por outro lado, com Weber, € preciso levar em conta que os “conceitos e jutzos" a que se pode chegar, neste campo como em qualquer outro das ciéncias sociais, "ndo constituem a realidade empirica nem podem repro- duzi-la", apenas “permitem ordend-la pelo pensamento de modo valido” (Weber, 1982, p.126). B o que admitem Kohlberg e colaboradores, entre outras conclusdes, ao finalizarem sua réplica as crfticas de autores (Schweder, 1982; Simpson, 1974; Sullivan; 1977) que consideram sua teoria etnocéntrica, cultural ou ideologicamente enviesada: “"Nés nao acreditamos que eles [os criticos} tenham descoberto que o trabalho de Kohlberg € enviesado no sentido forte da palavra, mas que seu trabalho e qualquer outra investigagao social cientifica pode e estar enviesada se os pesquisadores no tomarem conhecimento dos pressupostos normativos e meta-éticos que empregam. Ademais, acreditamos, junto com Weber, Habermas e outros, que a objeti-vidade 6 um momento da pesquisa cientifica; que a esséncia ou valor 'verdadeiro' da objetividade no reside em uma qualidade reificada, permanente ou factual, inerente a0 objeto da pesquisa, mas deve, antes, ser encontrado em, e entendido como, um processo de compreensdo do relacionamento cambiante entre o investiga- dor e 0 que ele observa" (1983, p.166). Pode-se dizer, enfim, parafraseando Habermas ao referir-se a sua ética do discurso, que em relagdo a validade universal que reivindica para sua teoria, Kohlberg defende uma tese muito forte, mas reivindica para essa tese um status relativamente fraco. Para a hermenéutica, "no plano metateérico ou intertedrico, 0 tnico princfpio que rege ¢ 0 principio da coeréncia", diz Habermas; "as coisas se passam como na composiggo de um quebra-cabega — temos que procurar ver quais os elementos que se ajustam" (1989, pp.144-145). Diante do encaixe do cognitivismo piagetia- no e da teoria dos estégios de Kohlberg com os princfpios normativos for- malistas de Kant e Rawls, e com a teoria discursiva da ética, de Habermas, € imperativo que se reconhega, na disputa contra os relativistas, os pontos que tém sido obtidos pelos defensores do universalismo. GUSTAVO VENTURI € mestre em Sociologia pela USP e Diretor Operacional do Instituto Datafolha. 84 LUA NOVAN*36—95 REFERENCIAS Boyes, Michael & Walker, Lawrence. (1988), “Implications Of Cultural Diversity For The Universality Claims Of Koblberg’s Theory Of Moral Reasoning”, Human De- velopment, No.31/44-59. Colby, Anne & Kohlberg, L. (1987), The Measurement Of Moral Judgement. Theoretical Foundations And Research Validation (Vol.1), Standart Issue Scoring Manual (Vol.2). Cambridge, Cambridge University. Colby, A., Kohlberg, L., Gibbs, John & Lieberman, Marcus. (1983), “A Longitudinal Study Of Moral Judgement”. Monographs Of The Society For Research In Child De- velopment, Vol.48 Nos.1-2/1-125. Freitag, Barbara, (1989), “A questo da moralidade: da razdo prética de kant a ética discursi- va de Habermas”. Tempo Social, Vol.1 No.2/1-44, (1992), linerdrios de Antigona - a questdo da moralidade. Campinas, Papirus. Habermas, Jirgen. (1983), Para a reconstrugdo do materialismo histérico (Bd. 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RESUMOS/ABSTRACTS 199 O UNIVERSALISMO ETICO: KOHLBERG E HABERMAS GUSTAVO VENTURI Examina-se a concepgdio de universalismo ético a que Lawrence Kohlberg chegou em suas pesquisas sobre 0 desenvolvimento do pensa- mento moral, sobretudo a idéia de que esse desenvolvimento, em todos os seres humanos, culmina em uma moralidade “pés-convencional” concebi- da em termos de principios de justiga. Discutem-se algumas das tentativas que foram feitas de submeter essa concepgao a verificagéo empfrica e a apreciagdo critica que dela fez Jiirgen Habermas. THE ETHICAL UNIVERSALISM: KOHLBERG AND HABERMAS GUSTAVOVENTURI The concept of ethical universalim at which Kohlberg arrived in his researches on the development of moral reasoning is examined chiefly regarding the idea that this development culminates , in all human beings, in a “post-conventional” morality conceived in terms of principles of jus- tice. Some attempts to submit this conception to empirical verification as well as Haberma’s reactions to it are discussed.

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