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A bom ac e -@ @f @* *-@ @! i ee ee) eet eee 7 Prefacio a edigao brasileira 11 Introdugao 19_Imagens de progresso 43_Os primeiros designers industriais 61_Design e mecanizacao 89 Diferenciagao em design 1a1_Olar 167 Design no escritério 215 Higiene e limpeza 279 A economia de trabalho no lar 801 Design e identidade corporativa 821 Design, designers e a literatura sobre design 881_Bibliografia aa Indice PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA Comecei a escrever este livro quando ainda se falava em “boa forma”, ou gute Form, Embora esse termo jd tenha cafdo em desuso, ainda na década de 1970 uma quantidade surpreendente de pessoas acreditava que o mau design nao era somente um desperdicio de trabalho e materiais, mas também corrompia a moral publica e era um sinal de degenerescéncia cultural. Nés, consumido- res, precis4vamos ser protegidos do mau design. Essa idéia, de que o mau design era nao apenas danoso para aqueles que 0 compravam e usavam, mas ruim para todos, para a cultura como um todo, ti- nha uma longa tradigao que remontava ao Deutsche Werkbund, na Alemanha do comego do século xx, a0 movimento de reforma do design da Inglaterra da metade do século x1x € mesmo antes. Ao chegar aos anos 1970, essa tra- digdo dava seus tiltimos suspiros, embora na época ndo soubéssemos disso. ‘Todas as indicagdes eram de que o “bom design” estava com boa satide. Os professores ainda mandavam os estudantes de design ler Pioneiros do desenho moderno, de Nikolaus Pevsner, e Art and Industry, de Herbert Read, dois livros que promoviam explicitamente a “boa forma”, sem qualquer aviso ou adver- téncia contra as doutrinas que eles estavam prestes a absorver; com efeito, no havia nenhuma critica a que se pudesse recorrer para resistir 4 influéncia desses autores. Lembro dois episédios que me convenceram de como estava disseminada a ortodoxia da “boa forma” e como era dificil pensar historicamente sobre de- sign e sobre 0 campo que agora se costuma descrever como 0 da “cultura ma- terial”. © primeiro ocorreu numa conferéncia, em algum momento dos anos 1970. Eu acabara de dar uma palestra que ilustrara com alguns aspiradores de pé que no poderiam de modo algum ser considerados exemplares da “boa forma”. Apés a palestra, fui levado para um canto por duas pessoas da pla ¢ censurado, primeiro por ter mostrado objetos de design notoriamente ruim ¢, em segundo lugar, por nao ter emitido nenhum julgamento sobre a falta evidente de qualidade deles. Como nao percebia quanto isso estava errado? ‘Ao nao criticar aqueles objetos, ao aparentemente justificé-los, no compreen- dia eu que desfizera cingiienta, cem anos de trabalho de erradicagio do mau design? Certamente deveria saber que o dever dos profissionais do design era proteger o piiblico daquele tipo de coisa, e ali estava eu a fazer propaganda deles. E assim por diante. Nada que eu pudesse dizer para aquelas pessoas poderia absolver-me da ofensa que cometera. Fiquei surpreso com essa reago, porque até entdo no me dera conta de quio apaixonada e dominante ainda era a crenga de alguns na “boa forma”. Aquela altura, jd haviam ocorrido varios fatos que me faziam pensar que as pessoas nfo poderiam mais falar a sério sobre “boa forma”. Na Gra-Breta- nha, o Grupo Independente, de artistas, arquitetos e criticos, promovera no inicio dos anos 1950 uma visio pluralista do design, pondo os produtos co- merciais norte-americanos ao lado do alto design europeu, sem moralizagbes sobre a superioridade ou inferioridade cultural de um ou de outro. Em 1971, o designer Victor Papanek produzira sua critica ambiental e ecolégica do de- sign, substituindo os argumentos morais da “boa forma” por outros baseados em preocupagdes ambientalistas e no hiato entre as culturas do primeiro e do terceiro mundo. E, vindo da Itdlia, o antidesign iconoclasta de designers mi- laneses como Ettore Sottsass jd era bem conhecido internacionalmente, gra- as, em particular, a exposigao de 1972 “Itdlia: a Nova Paisagem Doméstica”, no Museu de Arte Moderna de Nova York. Mas, se eu havia suposto que esses eventos significavam que a ideologia da “boa forma” acabara, estava errado: pelo menos na Inglaterra, ela ainda estava muito viva. segundo episédio confirmou isso ¢ também deixou claro como era difi- cil pensar design como proceso social. Eu costumava freqiientar o seminario semanal do historiador Eric Hobsbawm e, certa semana, o trabalho apresen- tado por um estudante foi sobre o ensino de design na Inglaterra da metade do século xrx. Na discussio que se seguiu, Hobsbawm atacou os objetos ex- postos na Grande Exposigao de 1851, deixando claro que, na sua opinido, o de- sign deles era execravel e que bastava olhé-los para ver que, com efeito, havia de fato necessidade, e das grandes, de implementar uma reforma no ensino do design. Fiquei surpreso — e desapontado — ao ver que um historiador tao perspicaz em tantas outras questes, ao tratar de design, simplesmente re- petia 0s mesmos argumentos desgastados que vinhamos ouvindo havia um século ou mais. Como podia alguém cujo julgamento histdrico era, em geral, to agudo, ter a mente to obscurecida pela nogao de “boa forma”, ao tratar de artefatos materiais? Se cada vez que se quisesse comegar uma discussdo sobre bens manufaturados e seu papel na vida das sociedades modernas, se acabasse tendo uma discussao sobre “boa forma”, que esperanca havia de que a histéria das mercadorias fosse alguma vez levada a sério como um ramo da disciplina histérica? Objetos de desejo foi minha resposta. Olhando o livro em retrospectiva, hd alguns aspectos dele que na época pareciam corretos, mas que agora vejo que poderiam ter sido elaborados de maneira diferente. Em particular, hd em suas paginas forte énfase no design como um aspecto da produgo, como resultado de decisdes tomadas pelos produtores. Embora eu ainda defenda essa perspectiva como um modo de compreender as razdes da aparéncia das mercadorias, nao hé diwvida de que, seas olharmos como um veiculo social, para o que acontece quando comecam acircular no mundo — que é 0 outro tema principal do livro -, os motivos dos designers e fabricantes ¢ as intengdes que tém para seus produtos depois que os consumidores passam a usd-los nao foram, com a freqiéncia devida, le- vados em conta no livro. Escolhi enfatizar as ages dos produtores, em parte porque, na época, se conhecia pouco sobre consumidores e consumo; e, se 0 que eu ia escrever nao deveria ser algo totalmente especulativo, era melhor que me concentrasse na produgio, pois nessa drea havia pistas muito boas para serem seguidas. Porém, mesmo quando eu estava escrevendo o livro, j4 havia um interesse crescente, em particular nos campos da sociologia e dos estudos culturais, pelo consumo. Isso se desenvolveu com rapidez ¢ desde ento houve enorme expansio no estudo do que se poderia chamar de “vida dos objetos”, e agora sabemos muito mais sobre o que acontece depois que eles entram no mundo e comegam a circular. Inspirados, em particular, pelo socidlogo francés Pierre Bourdieu (cuja obra eu ignorava quando escrevi este livro), surgiram muitos estudos dos objetos como veiculos de interagdo ¢ troca social. Um exemplo classico é a andlise que Dick Hebdige fez da lambreta, criada na Itdlia do pds-guerra principalmente para uso das mulheres, mas que foi adotada inesperadamente por uma subcultura masculina da Gra-Bretanha dos anos 1960 chamada mods.’ Se houvesse mais material desse tipo disponivel na época, eu 0 teria incorporado — e com certeza, se 0 livro fosse escrito nova- mente hoje, toda a argumentacio teria de mudar para refletir essa virada dos iiltimos vinte anos na diregio do estudo do consumo. Contudo, livros sobre histéria sao eles mesmos objetos histéricos e, como todos os livros de histéria, este também pertence a determinado momento, AR 1 Dick Hebdige, “Objects Image: the Italian Scooter Cycle”, Block, n. 5, 198t. INTRODUCAO Quase todos os objetos que usamos, a maioria das roupas que vestimos e mui- tos dos nossos alimentos foram desenhados. Uma vez que o design parece fazer parte do cotidiano, justifica-se perguntar 0 que ele é exatamente e como surgiu. Apesar de tudo o que jé foi escrito sobre o tema, nao ¢ ficil encontrar respostas a essas questdes aparentemente simples.‘ A maior parte da literatura dos tiltimos cingilenta anos nos faria supor que o principal objetivo do design étornar os objetos belos, Alguns estudos sugerem que se trata de um método especial de resolver problemas, mas poucos mostraram que o design tem algo que ver com lucro ¢ menos ainda foi apontada sua preocupagio com a trans- missao de idéias. Este livro nasceu da minha percep¢io de que o design é uma atividade mais significativa do que se costuma reconhecer, especialmente em seus aspectos econdmicos ¢ ideolégicos. Em particular na Gri-Bretanha, 0 estudo do design e de sua historia sofre de uma forma de lobotomia cultural que o deixou ligado apenas aos olhos e cortou suas conexGes com 0 cérebro e o bolso. £ comum supor que o design seria conspurcado se fosse associado demais a0 comércio, uma tentativa mal- concebida de higiene intelectual que nao causou nenhum bem. Ela obscureceu © ato de que o design nasceu em um determinado estagio da histéria do capi- talismo e desempenhou papel vital na criago da riqueza industrial. Limit4-lo u a uma atividade puramente artistica fez com que parecesse fiitil e relegou-o & condigdo de mero apéndice cultural. ‘A mesma escassa atengiio foi dada a influéncia do design em nossa forma de pensar. Aqueles que se queixam dos efeitos da televisdo, do jornalismo, da propaganda e da ficco sobre nossa mente esquecem a influéncia similar exer- cida pelo design. Longe de ser uma atividade artistica neutra ¢ inofensiva, 0 design, por sua propria natureza, provoca efeitos muito mais duradouros do que os produtos efémeros da midia porque pode dar formas tangiveis ¢ per- manentes as idéias sobre quem somos e como devemos nos comportar. Uma vez que design é uma palavea que aparece muito neste livro, é melhor definir jé seu significado. Na linguagem cotidiana, ela tem dois significados comuns quando aplicada a artefatos. Em um sentido, refere-se & aparéncia das coisas: dizer “eu gosto do design” envolve usualmente nogdes de beleza, ¢ tais julgamentos sao feitos, em geral, com base nisso. Como ficard claro em seguida, este livro nao trata da estética do design. Seu objetivo nao é discutir se, digamos, o design dos méveis de William Morris era mais bonito do que 08 exibidos na Grande Exposigdo de 1851, mas antes tentar descobrir por que essas diferencas existiram. O segundo e mais exato uso da palavra design refere-se & preparagio de ins- trugdes para a produgio de bens manufaturados, ¢ este ¢ o sentido utilizado quando, por exemplo, alguém diz “estou trabalhando no design de um carro”. Pode ser tentador separar os dois sentidos e traté-los de maneira indepen- dente, mas isso seria um grande equivoco, pois a qualidade especial da pala- vra design é que ela transmite ambos os sentidos, e a conjungio deles em uma tinica palavra expressa o fato de que so insepardveis: a aparéncia das coisas 6, no sentido mais amplo, uma conseqiténcia das condigGes de sua produgio. A historia, tal como a utilizo aqui, esta preocupada com a explicagio da mudanga, e 0 tema deste livro é, portanto, as causas da mudanga no design de bens de fabricacio industrial. Em outros aspectos da existéncia humana que foram estudados por historiadores — politica, sociedade, economia e algumas formas de cultura -, as teorias desenvolvidas para explicar a mudanga pare- cem muito sofisticadas em comparagio com aquelas utilizadas na historia do design. Essa pobreza foi causada, em larga medida, pela confusio do design com a arte ea conseqilente idéia de que artefatos manufaturados sio obras de arte. Essa visio foi estimulada pela colegio e exibigdo de bens manufaturados nos mesmos museus que exibem pinturas ¢ esculturas, e por boa parte do que 12 foi escrito sobre design. Assim, em livro recente, a declaragio de que “o de- sign industrial é a arte do século xx” parece calculada para obscurecer todas. as diferencas entre arte ¢ design.* A distingao crucial é que, nas condigées atuais, os objetos de arte sao em geral concebidos e feitos por (ou sob a diregio de) uma pessoa, 0 artista, enquanto isso nao é verdade para os bens manufaturados. A concepgdo ¢ a fabricagdo de sua obra permitem aos artistas considerdvel autonomia, 0 que levou a crenga comum de que uma das principais fungdes da arte é dar livre expressio a criatividade e a imaginagdo. Seja correta ou nio essa visio da arte, 0 fato é que ela certamente no é verdade para o design. Nas sociedades capi- talistas, o principal objetivo da produgo de artefatos, um processo do qual © design faz parte, é dar lucro para o fabricante. Qualquer que seja o grau de imaginagao artistica esbanjado no design de objetos, ele nao ¢ feito para dar expressio a criatividade e A imaginac&o do designer, mas para tornar os produtos vendaveis e lucrativos. Chamar o design industrial de “arte” sugere que os designers desempenham o principal papel na produgdo, uma concep- cdo errénea, que corta efetivamente a maioria das conexées entre design ¢ os processos da sociedade. Quando se trata de explicar a mudanga, a confusdo de design com arte leva uma teoria causal que é tio comum quanto insatisfatéria. Em muitas histé- rias do design, a mudanca ¢ explicada com referéncias ao cardter e a carreira de artistas e designers - pode-se dizer que o design de méveis de Chippen- dale é diferente do de Sheraton porque Chippendale e Sheraton eram pessoas diferentes, com idéias artisticas diferentes. E quando tentamos identificar os motivos dessas diferencas que encontramos dificuldades, que se tornam mais agudas quando levamos em conta nao apenas a obra de individuos, mas a apa- réncia de classes inteiras de bens que envolvem uma profusao de designers. Por que, por exemplo, o mobilidrio de escritério desenhado no comego do século xx era completamente diferente do produzido na década de 1960? Falar de diferengas de temperamento artistico seria ridiculo. Os historiadores do design tentaram driblar 0 problema atribuindo as mu- dangas a algum tipo de processo evolutivo, como se os bens manufaturados fossem plantas ou animais. As mudangas no design sio descritas como se fossem mutagées no desenvolvimento de produtos, estagios de uma evolugio progressiva na direcdo de sua forma mais perfeita. Mas os artefatos nao tém vida propria e nao hd provas da existéncia de uma lei de selegdo natural ou mecanica que os impulsione na diregdo do progresso. O design de bens ma- nufaturados nao é determinado por uma estrutura genética interna, mas pelas pessoas ¢ as indiistrias que os fazem ¢ pelas relacdes entre essas pessoas ¢ indistrias ¢ a sociedade em que os produtos serio vendidos.? Contudo, embora seja facil dizer que o design est relacionado com a so- ciedade, em raras ocasides 0 modo preciso como essa conexio ocorre foi tra- tado satisfatoriamente pelos historiadores. A maioria das histérias do design e da arte ¢ arquitetura trata seus temas de forma independente das circunstan- cias sociais em que foram produzidos. Nos anos 1980, no entanto, entrou na moda referir-se ao “contexto social”. Por exemplo, Mark Girouard, em Sweet- ness and Light, livro sobre o estilo de arquitetura “Queen Anne” do século x1x, omega descrevendo a recepgio do estilo pelos criticos ¢ continua: O frenesi e a euforia parecem surpreendentes até examinarmos seu contexto, do qual ele emerge como algo préximo da inevitabilidade. O “Queen Anne” floresceu porque satisfazia a todas as mais recentes aspiragies das classes médias inglesas.* Essas observagdes so seguidas por umas poucas paginas de generalizagio sobre a sociedade do século x1x, apés 0 que Girouard passa a descrever a obra dos arquitetos “Queen Anne” quase que inteiramente em termos arquitetni- cos. Essas referéncias superficiais a0 contexto social sio como as ervas € os seixos em torno de um peixe empalhado numa caixa de vidro: por mais realis- tas que sejam, so apenas acessérios, e tird-los causaria pouco efeito em nossa percepcio do peixe. O uso do “contexto social” é quase sempre um ornamento que permite que os objetos sejam vistos como se tivessem uma existéncia autd- noma, na qual tudo, exceto as consideragées artisticas, ¢ insignificante. Para os historiadores, a grande atragao do “contexto social” tem sido salv4-los do tra- balho de pensar sobre como os objetos se relacionam com suas circunstdncias hist6ricas, e afirmagdes imprecisas como a de Girouard - “algo préximo da inevitabilidade” — abundam em seus textos. O uso casual do “contexto social” é particularmente deplordvel no estudo do design, que, por sua propria natureza, coloca as idéias e crengas diante das realidades materiais da produgio. Neste livro, portanto, a histéria do design é também a histéria das sociedades: qualquer explicago da mudanga deve apoiar-se em uma com- preensio de como o design afeta os processos das economias modernas e éafetado por eles. 14 Um dos aspectos de compreensao mais dificil nesses processos ¢ 0 papel desempenhado pelas idéias, pelo que as pessoas pensam do mundo em que vivem, Acredito que o design tem papel importante nesse dominio em parti- cular, o qual pode ser esclarecido, embora de um modo um tanto mecanico, tomando como referéncia a teoria estruturalista, Os estruturalistas sustentam que, em todas as sociedades, as contradicdes perturbadoras que surgem entre as crengas das pessoas e suas experiéncias cotidianas so resolvidas pela in- vengao de mitos. Esses conflitos sio tao freqilentes nas sociedades avancadas quanto nas primitivas ¢ os mitos florescem igualmente em ambas. Em nossa cultura, por exemplo, o paradoxo da existéncia de ricos e pobres e da grande desigualdade entre eles em uma sociedade que mantém a crenga no conceito ctistdo de igualdade de todos é superado pela historia da Cinderela que é pro- curada por um principe e se casa com ele, provando que, apesar da pobreza, ela pode ser sua igual. Cinderela é um conto de fadas, ou seja, distante da vida cotidiana, mas hd uma profusao de variantes modernas (por exemplo, a secre- taria que se casa com 0 patrdo) que permitem as pessoas pensar que o para- doxo nao é importante ou nao existe. As historias eram o meio tradicional de transmitir os mitos, mas, no século xx, elas foram suplementadas por filmes, jornalismo, televisao e propaganda. Em seu livro Mitologias, o estruturalista francés Roland Barthes decidiu explicar 0 modo como os mitos funcionam e o poder que tém sobre nosso modo de pensar. Tomando uma variedade de exemplos que vio da linguagem dos guias turisticos as imagens de cozinhas nas revistas femininas e as repor- tagens sobre casamentos na imprensa, Barthes mostrou como essas coisas aparentemente familiares exprimem todos os tipos de idéias sobre o mundo. Ao contrdrio da midia mais ou menos efémera, o design tem a capacidade de moldar os mitos numa forma sélida, tangivel e duradoura, de tal modo que parecem ser a prdpria realidade. Podemos tomar como exemplo a suposi¢o comum de que o trabalho no escritério moderno é mais amistoso, mais diver- tido, mais variado e, em geral, melhor do que o trabalho no escritdrio de “anti- gamente”. O mito serve para reconciliar a experiéncia da maioria das pessoas, de tédio e monotonia no escritdrio, com o desejo de pensar que esse trabalho traz consigo mais status do que alternativas, como o trabalho na fabrica, onde nao hd fingimento em relagio & monotonia. Embora os antincios de emprego em escritérios, as historias em revistas e as séries de televisdo tenham sido res- ponsdveis pela implantagao na mente das pessoas do mito de que o trabalho 16 no escritério é divertido, socidvel e excitante, ele recebe sustentacao e credi- bilidade didria do mobilidrio moderno em cores vivas e formas levemente ale- gres, designs que ajudam o escritério a se equiparar ao mito. Para os empresérios, a utilizagao desses mitos é necessdria para 0 sucesso comercial. Todo produto, para ter éxito, deve incorporar as idéias que o torna- ro comercializdvel, e a tarefa especifica do design é provocar a conjungio entre essas idéias e os meios disponiveis de produgao. O resultado desse processo ¢ que os bens manufaturados encarnam inumerdveis mitos sobre o mundo, mitos que acabam parecendo tio reais quanto os produtos em que esto encarnados. Aextensa influéncia e a natureza complexa do design fazem com que esteja longe de ser facil tratd-lo historicamente. O ntimero de artefatos produzidos pela industria é infinito e até o design que parece mais insignificante pode revelar-se extraordinariamente complicado. Em vez de fazer uma tentativa va de ser abrangente, decidi sugerir como a histéria do design de qualquer artigo manufaturado pode ser abordada, os tipos de questdes que podem ser feitas e as respostas que o estudo de seu design pode oferecer. Embora eu discuta uma grande variedade de objetos neste livro, muitos deles em minticia, minha escolha foi inevitavelmente um pouco arbitrdria e hd muitos casos em que ou- tro objeto teria ilustrado igualmente o mesmo argumento. Assim sendo, seria possivel afirmar que este livro poderia analisar um conjunto diferente de obje- tose, ainda assim, manter seu argumento original. Em vez de discutir todos os aspectos de cada design apresentado, uma abordagem que poderia tornar-se tediosa, escolhi tratar o design numa série de ensaios em que cada capitulo desenvolve um tema, Como nenhum objeto é tratado de forma exaustiva, devo deixar ao leitor que aprofunde os outros temas que surgem de cada objeto e seu design em particular. Embora os capi- tulos devam sustentar-se sozinhos, pretendo que, em conjunto, apresentem a significagao do design em nossa cultura ¢ a dimensio de sua influéncia em nossa vida e mente. 1 Anthony J. Coulson, A Bibliography of Design in Britain 1851-1970, Londres, 1979, dé uma boa indicagdo da amplitude da literatura dispontvel sobre o design britinico. 2S. Bayley, In Good Shape. Style in Industrial Products 1900 to 1960, Londres, 1979, p. 10. 3 P. Steadman, The Evolution of Designs, Cambridge, 1979, discute em detalhe os problemas das analogias com os seres vivos. 4 Mark Girouard, Sweetness and Light, Oxford, 1977, p- 1. 16 DBIRKOS DE DES SO <> <>< <>< <>< >> <>< <--> »Ie)® 18/® (6/2 e/® Je/® 1 939909309909090" 4OVDVOVOVOIV 9999999939090" 9000900900906 998999099990‘ 290909090906 DJDOOOOQOOG0 O° 999999899990 »1e)® 18)® (8/2 8? e/® 1 999099909090 JOVODIVOVOVOV 9999093909090" 990000900900900¢ PELE E PEP ery _—-" =—Cm a CWC N GENTS IDLE ROG RES SU) Apesar de todos os seus beneficios, o progresso pode ser uma experiéncia dolorosa ¢ perturbadora. Nossas reagdes a ele sao freqiientemente ambi- valentes: queremos as melhorias ¢ os confortos que ele proporciona, mas, quando ele nos impde a perda de coisas que valorizamos, compele-nos a mudar nossos pressupostos bisicos e nos obriga a ajustar-nos a0 novo e desconhecido, nossa tendéncia é resistir. © que é descrito como progresso nas sociedades modernas é, na ver- dade, sindnimo, em larga amplitude, de uma série de medidas provocadas pelo capital industrial. Entre os beneficios esto mais alimentos, melhores transportes e maior abundancia de bens. Mas é uma peculiaridade do capi- talismo que cada inovagao benéfica traga também uma seqiiéncia de outras mudangas, nem todas desejadas pela maioria das pessoas, de tal modo que, em nome do progresso, somos obrigados a aceitar uma grande quantidade de novidades a ele relacionadas e possivelmente indesejadas. A maquina a vapor, por exemplo, trouxe maior eficiéncia & inddstria manufatureira e maior velocidade aos transportes, mas sua fabricago ajudou a transformar mestres artestios em trabalhadores assalariados e fez com que as cidades aumentassem em tamanho ¢ insalubridade. A idéia de progresso, no en- tanto, inclui todas as mudangas, tanto desejéveis como indesejéveis. 19 Receptor “Unit System” a Pye, 1922. O5 primeiros rédios néo tinham receio de exibir- se como um conjunto de aparatos técnicos. Radio “Beaufort”, 1932. A maioria dos primeiros aparelhos de ridio adotava a forma ée mobifia tradicional De The Cabinet Maker, 27 de agosto de 1932. 20 (© sucesso do capitalismo sempre dependeu de sua capacidade de ino- var e de vender novos produtos. Nao obstante, de modo paradoxal, a maio- ria das sociedades em que o capitalismo criou rafzes mostrou resisténcia a novidade das coisas, novidades que eram tio evidentes na Inglaterra do século xvi11 quanto so hoje nos paises em desenvolvimento. O que entio fez com que os povos das sociedades ocidentais estivessem preparados para aceitar produtos novos, apesar da ameaga de mudanga que represen- tam? Uma vez que qualquer produto bem-sucedido deve superar a resistén- cia A novidade, parece ser um axioma que os produtos do capital industrial busquem criar aceitagio das mudangas que provocam. Entre as maneiras de obter essa aceitagio, o design, com sua capacidade de fazer com que as coisas parecam diferentes do que sio, foi de extrema importancia. © design altera 0 modo como as pessoas véem as mercadorias. Para dar um exemplo desse process, podemos examinar o design dos primei- ros aparelhos de rédio. Quando as transmiss6es comegaram, na década de 1920, Os receptores eram uma montagem grosseira de resistores, fios e val- vulas. Os fabricantes logo perceberam que se quisessem vender radios para que as pessoas os pusessem na sala precisariam de uma abordagem mais sofisticada do design. No final dos anos 1920 e comego dos 1930, desenvol- veram-se trés tipos de solucio, cada uma das quais apresentava a mesma mercadoria, o radio, de uma maneira totalmente diferente. A primeira era alojar o aparelho em uma caixa que imitava uma mobilia antiga, e assim referia-se ao passado. A segunda era esconder o rédio dentro de uma pega de mobiia que servia para alguma finalidade bem diferente, como uma pol- trona. A terceira, que se tornou mais comum & medida que as pessoas se familiarizavam com o rédio e o achavam menos perturbador, era colocé-lo dentro de um estojo desenhado para sugerir que pertencia a um mundo fu- turo e melhor.‘ Cada um desses designs transformou o rédio original, “pri- mitivo”, de modo a torné-lo irreconhecivel. As trés abordagens evidentes nesses aparelhos de rédio ~ a arcaica, a supressiva ea ut6pica - repetiram- se com tanta freqiiéncia no design industrial que se pode dizer que com- pdem uma gramstica bésica do repertério da imagética do design. Se o design do século xx foi dominado pelas imagens ut6picas, os fa- bricantes do século xvi1t confiavam mais no modelo arcaico em seus es forcos para superar a resisténcia 4 inovagio.* Descrever o design como uma atividade que invariavelmente disfarga ou muda a forma do que supomos sera realidade vai na diregdo oposta de muitos Iugares-comuns sobre o de- sign, em particular a crenga de que a aparéncia de um produto deve ser uma expresso direta da sua finalidade, visdo encarnada no aforismo “a forma segue a fungio”. A légica desse argumento é que todos os objetos com a mesma finalidade deveriam ter a mesma aparéncia, mas é 6bvio que esse no € 0 caso, como mostra, por exemplo, uma olhada de relance na histéria da cerimica: produziram-se xicaras numa variedade infindével de formas. Radio *poltrona”, 1933. Alguas fabricantes partiram para odisfarce direto, incorporando seus aparethos de rédios em outros tipos de iméveis. De The Cabinet Maker, 25 de fevereiro e193, p. 417. > M Mi Design de apareiho de ridio, 1932. A solugio alternativa e que acabou por sera mais popular para. design do aparetho de rédio foi usarformas “modernas", ssugerindo um produto que pertenceria ao futuro. De The Cabinet Maker, 17 de setembro de 1932, p. 522. Se o tinico propésito de uma xicara fosse servir de suporte para liquidos, poderia muito bem haver um tinico design, mas as x{caras tém outros usos: como artigos de comércio, servem para criar riqueza e satisfazer 0 desejo dos consumidores de expressar seu sentimento de individualidade, e é da conjungao desses objetivos que resulta a variedade de designs. Muitos autores sustentaram que é errado dar aos artefatos formas que no pertengam estritamente a eles prdoprios ou ao seu periodo. Tal julga- mento nao constitui uma contribuigdo particularmente til para a historia do design. Certo ou errado, o fato é que, nos artefatos das sociedades in- dustriais, o design foi empregado habitualmente para disfarcar ou mudar sua verdadeira natureza e enganar nosso senso cronologico. Cabe ao his- toriador arrancar os disfarces, compard-los e explicar a escolha de uma aparéncia em detrimento de outra, mas nao descartar o processo. Os bens manufaturados variaram na aparéncia devido nao a imoralidade ou a in- tencionalidade de seus produtores, mas as circunstdncias de sua produgdo seu consumo. A fim de compreender o design, devemos reconhecer que seus poderes de disfarcar, esconder e transformar foram essenciais para 0 progresso das sociedades industriais modernas. NEOCLASSICISMO: UM ANT{DOTO AO PROGRESSO As reacdes ao progresso so mais reveladoras quando uma sociedade experimenta seus efeitos pela primeira vez. Na Gri-Bretanha, 0 desen- volvimento do capital ¢ da indiistria atingiu uma escala significativa no final do século xvrtt. A maioria das pessoas que registraram suas impressdes das mudangas em andamento estava muito envolvida nos eventos e ndo surpreende que, em geral, estivesse entusiasmada e s6 raramente mencionasse seus receios quanto aos efeitos negativos. Cien- tistas como Joseph Priestley, economistas politicos como Adam Smith ¢ empresdrios como Matthew Boulton, James Watt ¢ Josiah Wedgwood compartilhavam a visio de que o progresso era um processo benéfico que continuaria indefinidamente. Porém essas pessoas eram apenas uma parte pequena das classes mé- dia e alta da Inglaterra do século xv11t e seus pontos de vista eram nitida- mente radicais. Hé também provas de fortes posigdes contrérias. Assim, 0 dr, Johnson, reconhecendo que os homens nao eram mais selvagens, ad- mitia que houvera progresso no passado, mas que a humanidade jé havia atingido seu estgio mais avancado e nao via lugar para mais progresso no presente ou no futuro. Nao obstante, dr. Johnson ¢ outros que compartilhavam de suas idéias, mostravam muita curiosidade em relagio as mudangas que ocorriam a0 redor deles, as novas fabricas e os homens que as dirigiam. Os principais, distritos industriais do final do século xvitt - Birmingham, Manchester, as minas de carvao de Coalbrookdale e as olarias de Staffordshire ~ eram visitados regularmente por viajantes, considerados entre as paisagens mais interessantes do pals ¢ freqlentemente retratados por artistas.* Contudo, apesar da curiosidade, nem todos se entusiasmavam com o que viam. Um viajante do século xvitt que registrou suas opinides foi o ilustre John Byng, mais tarde visconde de Torrington, que empreendeu uma série de excursdes pela Inglaterra e Pafs de Gales entre 1781 ¢ 1794. Nao era sua intengo que seus didrios, publicados com o titulo de The Torrington Diaries, fossem impressos, e a honestidade de suas opinides os torna muito valio- sos para o historiador. Embora Byng fosse um personagem extremamente conservador e mesmo reacionério, ele se aventurou a visitar 0s novos cen- tros industriais, vendo-os invariavelmente com maus olhos assim que che- gava, Em 1792, escreveu sobre Aysgarth, no vale de Yorkshire: Mas o que completou a destruicdo de todo pensamento rural foi a construgio de uma fabrica de tecidos de algodio em um lado onde, desde entio, paisa~ gem ¢ trangiilidade foram destruidas: falo agora como turista (como policial, cidadio ou homem de Estado, nao entro no assunto); as pessoas, de fato, en- contram-se empregadas; mas esto todas condenadas ao vicio causado pela aglomeracio... Quando nio esto trabalhando na fibrica, saem a invadir a propriedade alheia, pilhar e entregar-se & devassidao ~ Sir Arkwright pode ter ttazido muita riqueza para sua familia ¢ para o pais; mas, como turista, execro seus projetos que, tendo invadido todos os vales pastoris, destruiram 0 curso € a beleza da Natureza; porque temos agora aqui uma grande flbrica deslum- brante, que absorve metade da 4gua das quedas acima da ponte. Com o sino tocando eo clamor da fibrica, todo o vale perturba-se; traigo € sistemas de nivelamento sao o discurso; e a rebelido pode estar préxima.> P.J. de Loutherbourg: detalhe de Coalbrook- dale noite, deo, 180s. ‘As grandes indiistrias, comoas fundies Coalbrookdale, em ‘Shropshire, eram fonte defascinioe admiragio para viajantes e artistas do século xvi, Alguns dias depois, ele ficou satisfeito quando perguntou a um homem se “o negécio do algodao nao beneficiava os pobres” e o homem respondeu: A pior coisa do mundo, em minha opinido, senhor, pois nao nos torna nem ma- ridos robustos, nem mogas recatadas; pois as criangas criadas numa fbrica de algodo nunca tém exercicio ou ar e sio todas desavergonhadas ¢ atrevidas.° Uma vez que Byng achava a inddstria manufatureira tio abomindvel, sé podemos nos perguntar por que ele visitou tantas vezes as cidades indus- triais. Parece que sua curiosidade era tio forte quanto seu desgosto, ati- tude muito comum na época. verdadeiro interesse de Byng eram as antiguidades. Ele viajava pelo pais em busca de reliquias e desejava ter vivido numa época em que o pais no estava coberto por estradas com postos de pedigio e as terras nio eram cercadas. Seu gosto por antiguidades era compartilhado por muitos de seus contemporaneos, mas enquanto Byng, fiel ao seu conservadorismo ¢ patriotismo, preferia antiguidades inglesas, outros cacavam avidamente reliquias gregas e romanas. O interesse pelas antiguidades cldssicas fazia parte do movimento neo- clissico, que se desenvolveu nas décadas de 1750 ¢ 1760 edominou 0 gosto europeu no final do século xvitt. O neoclassicismo pretendia recuperar para a arte e o design a pureza de forma e expresso que julgava faltar no 24 Benjamin West: Eira, 6leo, 1791. pintura dde West da fibrica de Wedgwood transforma numa cena dda Antiguidade. estilo rococé da primeira metade do século xvii e que era identificada naquilo que Grécia e Roma haviam produzido. Boa parte da inspiragao do neoclassicismo veio com a descoberta de Herculano, em 1738, e Pompéia, em 1748, eas excursdes & Itdlia para estudar as reliquias cldssicas ao vivo tornaram-se parte da educago artistica. Também entrou na moda, para 08 aristocratas cultos de toda a Europa, ir a Roma para ver, comprar e, em casos de extremo entusiasmo, participar de escavagdes.” Os objetos procurados podiam ser antiguidades classicas ou inglesas, mas os motivos eram semelhantes. O estudo das ruinas gregas ¢ romanas proporcionava inspiragdo para como deveria ser o presente. O paradoxo do gosto setecentista — uma época tao fascinada pelo progresso e ao mesmo tempo devotada ao estudo do passado distante - expressou-se em todos os produtos artisticos do neoclassicismo. Nao se tratava de reprodugées servis da Antiguidade: eles usavam imagens e formas do passado, mas pretendiam expressar sentimentos modernos. As vezes, os efeitos parecem despropo- sitados e contraditérios. Dr. Johnson descreveu a vida contemporanea em poemas que imitavam de perto o poeta romano Juvenal. Construgdes novas, como as casas de campo do final do século xvt1t, usavam formas e moti- vos da arquitetura antiga, mas tinham planejamento e organizacio internos projetados para servir a propésitos decididamente modernos. Para popu- larizar o conhecimento cientifico da época, 0 médico e cientista Erasmus Darwin nao usou a linguagem da ciéncia, mas escreveu um poema épico classico, The Botanic Garden, publicado em duas partes, em 1789 € 1791, que 25 Aesquerda: osiah pia do 1799. A produgio do biscoito em jaspe preto foi um triunfo técnico, que ‘Wedgwood divulgou reproduzindo 0 famoso ‘camafeu doséculo 1 conhecide como Vaso de Portland, Adireita:ingresso para vera pia de Wedgwood do Vaso de Portland, 1790. Wedgwood transformou sua bem- sucedida reproducio do famoso vaso em um evento social 26 THE PORTLAND VASE poke Met, Soler ‘teres 80 Wok ad § foi um grande sucesso popular. Darwin descrevia deliberadamente a cién- cia com metéforas ¢ imagens classicas: 0 poder da maquina a vapor, por exemplo, era descrito numa longa e elaborada metéfora que o equivalia & forca de Hércules, Hoje, o resultado parece despropositado e artificial, mas a popularidade do poema na época mostra que se tratava de uma maneira aceitavel de comunicar idéias e conhecimentos progressistas. Tao irrealista quanto 0 poema de Darwin é a pintura que Benjamin West fez da fibrica de Josiah Wedgwood em Etruria: mulheres decorado- ras em trajes de matronas romanas, em poses languidas clissicas, tendo ao fundo cenas de trabalho artistico, dificilmente poderiam ser menos re- presentativas das condig6es reais da fibrica, famosa em toda a Europa por seus métodos avangados de manufatura e seu alto grau de divisio entre os diferentes processos. Tanto isso era tipico da abordagem setecentista das novidades que, quando procurou anunciar suas habilidades técnicas de ceramista, Wedgwood decidiu reproduzir 0 vaso Portland, a famosa pega romana de ca- mafeu adquirida pelo duque de Portland em 1786. O objetivo das reproduces no era apenas provar que eram to boas quanto os originais, mas também demonstrara sofisticagdo das técnicas de produgdo correntes ¢ sua superiori- dade em relagdo ao que qualquer design novo e original pudesse fazer. A inquietagio com o progresso e um interesse compulsivo pelo pas- sado eram fendmenos relacionados. Em Declinio ¢ queda do Império Romano (1776-88), Edward Gibbon descreve a Roma do segundo século depois de Cristo, a Idade do Ouro, como um lugar de paz e harmonia perfeitas, per- turbadas depois pela introdugao do cristianismo, vindo de fora. $6 recen- temente os historiadores questionaram esse retrato idealista da Idade do Ouro e argumentaram que, longe de ser estdtica, Roma passava por um periodo de considerdveis mudangas internas, uma visdo que nao teria sido bem recebida no século xvitt, pois teria privado a Antiguidade de uma de suas maiores atragGes. Para as classes ociosas daquele século, boa parte do prazer do estudo da Roma antiga e de colecionar suas reliquias vinha do contato que isso lhes dava com uma civilizagao que fora aparentemente estavel. O desejo de ver prine{pios e designs cldssicos aplicados a vida con- temporanea vinha, em parte, de uma vontade de suprimir da consciéncia a tendéncia perturbadora da mudanga. £ claro que se pode argumentar que, por exemplo, quando Wedgwood introduziu 0 neoclassicismo no design de sua ceramica, ele o fez porque esse estilo estava na moda. Contudo, tal explicacdo ¢ incompleta, no sen- tido de que nao nos diz por que o neoclassicismo, e nao outro estilo, es- tava na moda; para responder a isso ¢ saber por que os consumidores do século xviii preferiam o neoclassicismo a alternativas, precisamos saber 0 que esse estilo significava para eles. Infelizmente, a reconstrugio das preferéncias dos consumidores no passado é uma empreitada histérica cheia de dificuldades e que, em geral, conduz a resultados insatisfatorios. Nao podemos confiar completamente nem mesmo nos relatos dos poucos consumidores que se dignaram a articular e registrar os motivos de suas escolhas, pois talvez nao estivessem plenamente conscientes deles, ou ndo os tenham registrado na totalidade. Além disso, no podemos pressupor que as preferéncias de um consumidor fossem compartilhadas por outros, até mesmo outros da mesma classe, idade ou sexo. Nessas circunstincias, o melhor que podemos fazer ¢ indicar os fatores motivacionais que pode- riam levar os consumidores a agir de uma maneira ou de outra em uma determinada época, Em geral, as melhores provas histéricas sobre prefe- réncias de consumidores vém dos fabricantes, dos quais podemos esperar, afinal, que soubessem avaliar a tendéncia do mercado; desse modo, deve- mos valorizar o testemunho deles acima de qualquer consumidor indivi- dual. As experiéncias de Josiah Wedgwood com o neoclassicismo confir- mam, em larga medida, que, entre outras coisas, era o estilo que fazia as classes média ¢ alta do final do século xvii se sentir mais 4 vontade com 0 progresso. a7 WEDGWOOD: NEOCLASSICISMO NA PRODUGAO INDUSTRIAL Em 1759, quando Josiah Wedgwood terminou a sociedade de cinco anos com o ceramista Thomas Whieldon, em Stoke-on-Trent, no condado de Staffordshire, mudangas considerdveis estavam ocorrendo nas fabricas de cerdmica inglesas. No inicio do século, poucas oficinas empregavam mais do que meia dizia de homens e a maior parte de sua produgio era vendida localmente. Em 1750, alguns ceramistas jé haviam aumentado suas vendas com a ampliagdo de seus mercados para lugares mais distantes do pais empregavam mais homens em suas oficinas. Em 1769, acredita-se que uma faibrica média de Staffordshire jd empregava cerca de vinte homens.* No final de sua sociedade com Whieldon, Wedgwood alugou uma ce- ramica perto de Burslem e comegou uma produsao propria, reconhecendo com perspicdcia as oportunidades de negécio ali abertas. Como escreveu mais tarde, no comego do Livro de Experiéncias que iniciava entio: “Eu via que o campo era espagoso e€ o solo tio bom que prometiam ampla recom- pensa a quem trabalhasse com diligéncia em seu cultivo”.9 Sabemos como Wedgwood desenvolveu esse cultivo gragas 4 excepcio- nal série de cartas que escreveu a seu amigo Thomas Bentley. Essas cartas proporcionam um retrato espetacular da mente de um empresdrio nos pri- meiros estégios da industrializagdo, revelando os problemas que enfren- tava e as solugGes que encontrava.’° Em particular, elas mostram a impor- tancia sem precedentes que o design teria na produio de seus artigos. A demanda por artigos de cerimica aumentou constantemente durante ‘oséculo xvri1, mas nao apenas devido ao crescimento da populagao. A nova popularidade do cha requeria tagas de ceramica (uma vez que nao ¢ possivel beber liquidos quentes com conforto num recipiente de metal), a0 mesmo tempo que a expansio colonial criava mercados no além-mar. Esses desdo- bramentos beneficiaram a industria como um todo e a maioria dos fabrican- tes aumentou seu comércio. Mas Wedgwood foi o mais bem-sucedido. Entre as razdes do seu sucesso incomum estavam a racionalizagao dos métodos de producao em sua fibrica, suas criativas técnicas de marketing ¢, particularmente, sua aten¢do aos produtos. Ele nio somente estava deci- dido a produzir objetos de qualidade muito superior a dos outros ceramistas, ‘como também dava grande importancia a aparéncia de seus artigos. Na década de 1750, os principais produtos de Wedgwood e Whieldon, da mesma foma que os dos outros ceramistas de Staffordshire, eram uma ceramica de alta temperatura e vidrada a sal, uma cerdmica de argila branca vidrada em cores variadas uma ceramica de argila vermelha. Em seu Livro de Experiéncias, Wedgwood descreveu os problemas apresentados por esses produtos da seguinte maneira: Acceramica branca de alta temperatura (vidrada a sal) era o artigo principal de nossa manufatura; mas isso era feito havia muito tempo e os pregos estavam agora to baixos que os ceramistas ndo podiam gastar muito com ela, ou fazé- ato boa em todos os aspectos quanto os artigos que tinham feito até entio; e, em relagZo & elegancia da forma, esse era um tema que recebia pouca atengio. © préximo artigo em importincia depois da ceriimica de alta tempera- tura era uma imitago de casco de tartaruga, mas como no houvera nenhum aperfeigoamento nesse ramo durante varios anos, 0 consumidor estava quase cansado dele; e, embora o prego tivesse baixado de tempos em tempos para au- mentar as vendas, o expediente no adiantou e era preciso alguma coisa nova para dar um pouco de alento ao negécio. Eu jd fizera uma imitagio de dgata, que foi considerada linda e um aperfei- oamento significativo, mas as pessoas estavam fartas dessas varias cores. Es- sas reflexes me induziram a tentar algum aperfeigoamento mais sdlido, tanto nos biscoitos como nos vidrados, nas cores ¢ nas formas dos artigos de nossa manufatura."" Bule de chd, canecae jarra vidrados 2 sal, Staffordshire, . 1750. Produtos tipicos das cerimicas de Stafford- shire na metade do século xv ‘esquerda: bule de cha moldado, vidrado verde, ‘casco de tartaruga, provavelmente Wedgwood, c. 1765. Um bule desse estilo era descrito por Wedgwood como tipico de Staffordshire na metade do séeulo xv Aciveita:jarra de imitaglo de égata em angilavermelha com vidrados marrons, «1750. Exemplo caracteristico do tipo de Utensil de imitagio de ‘gata descrto por Wedgwood. 30 Em seus primeiros anos em Burslem, Wedgwood procurou desenvolver novos produtos para substituir os insatisfatorios existentes. Sua primeira inovagado importante foi um vidrado verde, que inventou. Esse vidrado, combinado com um amarelo, era aplicado 4 ceramica branca com orna- mento moldado, dando resultados vividos em cor e um tanto barrocos na aparéncia. Essa louga foi o produto basico de Wedgwood no comego da década de 1760, ‘Ao mesmo tempo, Wedgwood também aperfeigoava um vidrado creme para as ceramicas brancas. Embora esse tipo de ceramica jd fosse produ- zido em Staffordshire havia algum tempo, Wedgwood estava interessado em fabricar um vidrado que fosse relativamente branco e desse resultados constantes na queima. Ele jd o havia aperfeigoado em 1765 ¢ por volta dessa época comegou a produgio em larga escala da cerimica creme, decorada com esmalte pintado 4 mao ou com esmaltes aplicados sobre decalques impressos — um processo mais rapido desenvolvido por Sadler e Green, firma de Liverpool com quem Wedgwood fazia negécios. Em 1766, a louga creme jd era suficientemente bem-sucedida para que ele interrompesse a producio da louga com vidrado verde. As observagées de Wedgwood em seu Livro de Experiéncias mostram que ele também estava preocupado com a forma de seus artigos, que jul- gava longe de satisfat6ria. Foi somente na metade da década de 1760 que os desenhos comegaram a mudar significativamente. As formas bdsicas da ceramica creme nao eram diferentes das da verde, embora o ornamento moldado fosse reduzido e, por fim, eliminado por inteiro; a mudanga mais notdvel ocorreu na decoracio esmaltada, que podia ser muito intrincada era aplicada 4 mao ou decalque depois que o biscoito era vidrado. Nos dez anos seguintes, até 1774, quando foi produzido o primeiro catélogo de Wedgwood, as formas continuaram a se tornar mais simples, com uma decoragio que ficava cada vez mais neoclissica. A cerimica creme, ou “Queensware”, como Wedgwood rebatizou-a depois que a rai- nha Charlotte encomendou um servigo dessa louga em 1765, tornou-se um enorme sucesso nacional e internacional. Como baixela, ela preen- cheu a lacuna entre a qualidade muito pobre da louga comum, feita em outros paises, e os produtos de alta qualidade muito caros, das fibricas de porcelana real, como Sévres, Meissen e Copenhague. Seu sucesso de- veu-se muito também as qualidades essencialmente neocléssicas de pu- reza e simplicidade de forma. Parece que, de inicio, Wedgwood nao se deu conta disso, mas quando Ihe disseram, em 1769, que a simplicidade era apreciada, ele procurou aperfeigoar sua Queensware nessa diregio. A popularidade da Queensware continuou a crescer até o final da década de 1770, quando parece que o mercado ficou temporariamente saturado. Wedgwood escreveu em 1778 que nio era mais “o artigo seleto que costu- mava ser, pois toda loja, residéncia e casa de campo esté cheia dela”."# Nao obstante, com mais refinamento e aspecto neoclissico mais deliberado, continuou a ser produzida século x1x adentro. A principal fonte de conhecimento de Wedgwood acerca do revival clés- sico era seu colega, amigo e depois sécio Thomas Bentley, negociante de Liverpool que exportava sua louga para as col6nias americanas e as Indias Aesquerda: bule Wedgwood imitando couve-flr, vidrado verde, 6.1759, Esses tenslios exéticos, de da década de 1760. Aadireita:bule de cha Wedgwood com videado creme e ecorado com esmaltes pintados a mao, final da década de 1760. Este é um dos primeros produtos de ceramica creme, aque substituiram os utensfios com vidrado verde Prato Wedgwood com vidradocremee decoracio esmaltada com decalques aplicados, 1.775, Esmaltes pintados & mio tinham produgio lenta ea introdugio dos decalques acelerou muito processo de decoragio. Ocidentais. Bentley era um homem culto, ciente das mudangas artisticas que estavam ocorrendo na Europa e com muitos contatos sociais. Em 1769, ele e Wedgwood se associaram para produzir “artigos ornamentais” (dis- tintos dos produtos da ceramica creme, conhecidos como “louga util”) na nova fabrica de Wedgwood, em Etriiria. Bentley mudou-se para Londres e ficou responsavel pela comercializacdo nessa cidade.'* Ele também levou seu conhecimento de arte para o design dos artigos ornamentais. Foi sob sua influéncia que Wedgwood revisou seus desenhos e comegou a produ- zir objetos ornamentais neoclassicos e a fazer também a louca do dia-a-dia deliberadamente neoclassica. Foi nos desenhos dos objetos ornamentais — vasos, urnas, estatuetas, camafeus e placas de ceramica — que Wedgwood e Bentley foram mais fundo na aplicagdo do neoclassicismo. Quando entraram nesse mercado, a cer’- mica ornamental na Inglaterra ainda era barroca e pesada. A intuig&o cer- teira de Bentley, de que poderia haver um mercado para ceramica ornamen- tal neocldssica, surgiu presumivelmente de seu conhecimento do que estava acontecendo no mobilidrio contemporaneo. O neoclassicismo, entre seus muitos outros efeitos sobre a arquitetura doméstica, introduziu a pratica da decoragio de interiores num estilo unificado, de tal modo que todos os detalhes, frisos, méveis e acessérios de uma sala transmitissem um conjunto coerente de referéncias 4 Antiguidade. Embora esculturas ¢ vasos genuina- mente antigos fossem os ornamentos ideais para um interior neocldssico, esse tipo de artigo era escasso ¢ 0s arquitetos e decoradores precisavam encontrar substitutos. Por exemplo, a decoragao de interiores do arquiteto James Stuart, um dos pioneiros do neoclassicismo na Gra-Bretanha, incor- porava urnas, jarros e tigelas que tinham de ser antiguidades genu(nas ou imitagdes em madeira ou gesso. O arquiteto Robert Adam, consciente da falta de ornamentos adequados para os interiores neocldssicos das casas que projetou na década de 1760, foi mais longe do que Stuart e projetou ele mesmo ornamentos, tais como os do aparador da Kenwood House, que ti- veram de ser todos feitos sob encomenda, as grandes urnas, de madeira pin- tada para parecer pedra ou ceramica, e os objetos menores, de prata. insight mais imaginativo de Bentley foi perceber que a demanda por ‘ornamentos neocléssicos poderia ser satisfeita pelas ceramicas produzidas na fabrica de Wedgwood; ele foi o primeiro a ver que ceramica ¢ neoclas- sicismo, até entio distantes entre si, poderiam associar-se. O casamento, realizado por Wedgwood ¢ Bentley, ndo somente levou a novos desenhos de objetos familiares, como vasos, como também abriu a perspectiva para toda uma nova gama de produtos, tais como urnas, placas ¢ camafeus, apropriados para o embelezamento de interiores neoclassicos. A adesao ao neoclassicismo transformou Wedgwood de ceramista comum, embora bem-sucedido, em lider do gosto de vanguarda. Wedgwood e Bentley preocuparam-se em fortalecer essa posigao associando-se ao movimento ‘Aeesquerda: James Stuart: detalhe de um design de interior, desenho, 1757. Oarquiteto james “Ateniense” Stuart, poneiro do design ‘neoclissico na Inglaterra, pprojetavainteriores ‘mobiliados com ‘omamentos antigos. ‘Umas evasos do tipo que le incorpora teriam de ser antiguidades ‘genuinas ou imitagées ‘em madeira ou gesso. Adireita: catélogo de Queensware de Wedgwood, 1774. AAs formas mostram alguma simplificasio em relasio aos produtos anteriores, mais barrocos, ¢ qualidade das gravacies realca ainda mais cefeito neocldssico 0s produtos. Robert Adam: design para um aparadorem Kenwood, 1768-65 (Osdesigns de interiors de Adam inlulam com freqdéncia omamentos atigos desenhados com precisfo, executados geralmente em madeirae,os menores,em pra ‘Ademanda por ornamentosantigos signifcara uma oportunidade para Wedgwood & dently. De The Worsin rier of) Adam, 1778, ¥.1,.1.2, ‘stampa vi. 34 neocléssico, em parte mediante seus contatos sociais, mas também se apro- veitando da familiaridade com os teéricos do neoclassicismo. Por exemplo, eles adoravam divulgar o fato de o conde Caylus, autor de um bem conhe- cido estudo em seis volumes sobre antiguidades classicas, lamentar que nao houvesse equivalentes modernos dos antigos vasos etruscos, lacuna que — eles podiam agora anunciar — seus produtos preenchiam. Wedgwood e Bentley obtiveram seu conhecimento de design classico em parte de seus contatos com a aristocracia, que lhes mostrava e, as vezes, emprestava pecas de ceramica e esculturas antigas para estudar. Eles pos- suiam uma grande colegio de livros sobre arqueologia cldssica publicados no século xvitt e Wedgwood fez amplo uso deles.'* Ele também pensou em empregar um artista em Roma para estudar as antiguidades originais e comunicar as novas modas do gosto artistico, mas esse plano nio deu em nada, embora tenha mais tarde subsidiado a viagem de John Flaxman a Roma.'? Wedgwood utilizou esse conhecimento de antiguidades e fez com que seus artesdos produzissem cépias exatas, ou entao reinterpretassem os originais cléssicos. Ele descreveu esse método com as seguintes palavras: Pretendo apenas ter tentado copiar as belas formas antigas, mas ndo com ser- vidio absoluta. Tratei de preservar o estilo ¢ 0 espirito ou, se quiser, a simpli- cidade elegante das formas antigas e, ao fazé-lo, introduzir toda a variedade de que era capaz, ¢ isso Sir W, Hamilton me garante que posso me aventurar a fazer, e que é esse o verdadeiro modo de copiar 0 antigo.* © método de Wedgwood, conforme a maneira aprovada pelo neoclas- sicismo, era antes melhorar do que copiar a Antiguidade. O trabalho de design era realizado por seus modeladores em Etriria, ou por artistas especialmente contratados com esse objetivo, sendo o mais famoso John Flaxman. Enquanto os artesos de Wedgwood podiam copiar antiguidades, ovalor de Flaxman estava em sua apreciagiio do espirito do revival cléssico e sua capacidade de dar um ar clssico a produtos novos que nao tinham um equivalente antigo exato."9 Os servigos de Flaxman eram importantes no design de camafeus e bustos de pessoas vivas, e na decoracdo em relevo de vasos ¢ placas, temas que exigiam um conhecimento do classicismo para dar-Ihes uma aparéncia antiga convincente. Ao contrério do que diversos livros sobre design sugerem, o desenvol- vimento de um estilo neoclissico por Wedgwood e Bentley para artigos ornamentais aconteceu gradualmente. Muitos de seus primeiros produtos decorativos eram de estilo barroco, com varios ornamentos e dourados na superficie, e 0 processo de refinamento dos desenhos e da producio de artigos neoclissicos convincentes demorou alguns anos. As mudangas fo- ram resultado de sugestdes de Bentley e de dicas de clientes conhecedores. Por exemplo, o maior antiquério, Sir William Hamilton, aconselhou-os a abandonar a douragio dos produtos. Wedgwood achou dificil aceitar esse conselho e as exigéncias do neoclassicismo, pois eram opostas as suas no- Ges de beleza em cerdmica, e queixou-se a Bentley: Nao acho facil fazer um vaso com a coloragdo tao natural, variado, agradavel diferente de um pote, a forma tao delicada, e fazé-lo ter a aparéncia de que vale muito dinheiro, sem os aderecos adicionais de algas, ornaments e dourados.*® John Flaxman Je: Blind ‘Man's Buff (Nudez dos egos), relevo de cera sobre ardésia, 1782, Um de virios desenhos Amaneira antiga executados por Flaxman para adecoracio das, lousas omamentais de Wedgwood. alcasem Queensware, inicio da década de 1770. Muitos dos produtos de ‘Wedgwood e Bentley cram obviamente mais rococés doque neoclésscos.edesse modo estavam mais préximos doque Wedgwood considerava omamental. A direita: Wedgwood ‘& Bentley: Sacred to Bachus,Sored to Neptune {Consagrado a aco, consagrado a Netuno} pardejarros para vinho © digua, basalto preto, 1775. Umexemplo de artigo ornamental em basalto preto desenvolvido no comego da década de 170. Nao obstante, Wedgwood estava bem consciente da atra¢o que o neoclassi- cismo exercia sobre seus clientes e nao hesitou em modificar seus desenhos conforme o conselho de especialista que recebera. Sua compreensdo da forga da demanda por design neoclassico revelou-se quando escreveu a Bentley sobre uma determinada linha de produtos: “Eles certamente no sio antigos e isso é o suficiente para condend-los aos olhos da maioria de nossos clientes” ** Boa parte do interesse de Wedgwood em cerimica estava nas descober- tas e nas inovagdes técnicas; para torné-las lucrativas, os sécios precisavam encontrar-lhes aplicages comerciais e, nesse sentido, 0 neoclassicismo foi valioso. Durante toda a sua vida, Wedgwood fez muitas experiéncias com vidrados e biscoitos, e era fascinado por tudo o que ia pata 0 forno. Sua reputagio era nao somente a de um fabricante, mas também de um pesquisador experimental, motivo que o levou a ser eleito para a Royal So- ciety. Experimentos ¢ inovagao eram, portanto, tio importantes para ele quanto a atividade empresarial e 0 comércio; 0 que o tornou tao excepcio- nal foi o fato de que era talentoso em tudo isso. Em suas experiéncias, Wedgwood desenvolveu e aperfeigoou dois bis- coitos novos, um negro, nao vidrado, chamado “basalto negro”, e outro branco, fino, levemente transhicido, chamado “jaspe”, que em sua forma nao vidrada tinha uma textura semelhante a do mdrmore. Wedgwood criou também jaspes coloridos e, mais tarde, o “banho de jaspe”, um co- lorido de superficie para jaspe branco. Embora muitos dos primeiros arti- gos ornamentais fossem feitos de barro vitrificado, a partir da metade da década de 1770 uma proporgio crescente foi produzida com esses novos biscoitos. O basalto negro, uma invengio menos notdvel do que o jaspe, era usado principalmente em urnas e estatuetas, enquanto o jaspe foi de- senvolvido originalmente para proporcionar um material adequado a boas reprodugdes de gemas ¢ camafeus antigos. Apés aperfeigod-los, os sécios queriam encontrar outras aplicagées comerciais para eles. A solugio desse problema foi propiciada pelo neoclassicismo. Percebendo que 0 jaspe se parecia com o marmore, Wedgwood e Bentley viram suas possibilidades no crescente mercado para ornamentos neoclissicos. Ele se prestava a urnas, jarros e placas com desenhos moldados em relevo, e Wedgwood passou a fabricar tudo isso em padrdes antigos. No conjunto, os produtos foram um grande sucesso e satisfizeram perfei- tamente a demanda por ornamentos neoclissicos. Entre os poucos produtos que nao se revelaram populares, estavam grandes placas de jaspe em relevo para colocar em frisos e consolos de lareiras. Apesar de sua usual habilidade na comercializagio, Wedgwood e Bentley nao conseguiram vender esses pro- dutos, embora tenham tentado muitas vezes atrair o interesse de arquitetos ¢ designers. Um dos abordados foi o arquiteto e paisagista Capability Brown, que advertiu Wedgwood de que os produtos eram inaceitdveis porque eram feitos de jaspe colorido; ele recomendou fazé-los de jaspe branco puro, de tal modo que se parecessem com mdrmore.” Pelo menos dessa vez a faganha 37 Wedgwood: Aesculapius (Sacrificioa Esculépio), teste de ‘medalhio em jaspe azul ebranco, ¢. 1773. Odesenvolvimenta do jaspe foi uma proeza técnica, resultado de muita experimentaciio, como mostra este teste. Depois de desemvolver ‘material, Wedgwood precisava encontrar aplicacées para ele. A diveita: Josiah Wedgwood: vaso ‘omamental com relevo de Vénusem seu carro puxado por cisnes,jaspe branco com banho pret, «1784. Vasos e umas em formas antigas com motivos da Antiguidade ofereciam ornamentos apropriados para os ineriores neocléssicos. Acima: Wedgwood técnica de Wedgwood — a aplicagio de cor ao jaspe — levou a produtos que {& Bentcy: Bcchanalion Procession (Procssfo.a aco}, placaem jaspeazule conselho de Brown era claro: s6 a semelhanca com verdadeiras antiguidades pe srr scut daria aos artigos alguma possibilidade de sucesso. decoracio de interiores, Com efeito, essa era a base da politica adotada em geral por Wedgwood foram um Facass. eram inusitados demais para serem aceitos pelos homens de bom gosto. 0 ¢ Bentley em seu marketing: os desenhos antigos encobriam as inovagdes Abaiso: Wedgwood _técnicas e a novidade do produto era descrita no material de publicidade Bentley: placa dejaspe brancomostrandoascinco ; ote Musas,c 1978 segundos Pals, Wedgwood era surpreendentemente discreto, pelo menos no inicio conselhodeCapability de sua carreira, quanto a suas inovagies técnicas. Somente depois que a Brown, Wedgwood & Bentley ; i ; deoaramde foerplaces de demanda Por seus artigos estava bem estabelecida, no final da década de jaspecolordoe passarama 1780, foi que ele julgou sensato chamar a atengao para as mudangas téc- fazé-las em jaspebranco, simlando marmore € parecendo mais antigas. muito seletivo quanto ao que revelou a seus clientes, em termos mais reservados. Para um dos industriais mais progressistas do nicas ¢ industriais de que seus produtos eram resultado; mesmo entio foi Embora Wedgwood e Bentley se referissem em seus catdlogos ao pro- ‘gresso e aos “constantes aperfeigoamentos”, o objetivo dessas declaracdes parece ter sido chamar a atengao dos clientes para a existéncia de novos produtos. Porém os principais avancos técnicos, o desenvolvimento de novos materiais e processos nunca foram diretamente mencionados nos primeiros catdlogos como inovagées. A maneira usual era descrever algo novo, como a encaustica, pintura com pigmentos e cera tratados a quente sobre lougas de “basalto”, que dava um efeito similar 4 ceramica etrusca, como sendo a “redescoberta” de uma arte esquecida da Antiguidade. Do mesmo modo, em relagdo ao design dos produtos, nao enfatizava sua novidade, mas suas origens antigas. No catélogo de 1779, os camafeus e entalhes eram apresentados com a declaracao: “Estes foram tirados exa- tamente das melhores gemas antigas”.*? Uma vez que inclufam retratos de lorde Chatham, do papa reinante e de George 11, isso nao era possi- vel, mas tinha o efeito de chamar a atengdo para a qualidade cldssica dos desenhos. Antiguidade, e nao novidade, era a qualidade comercializ- vel. Sentimento semelhante orientou a escolha do nome de Etruria para a fabrica de Wedgwood, que estava longe de ser etrusca na aparéncia e na administragdo. Wedgwood e Bentley adotavam esse modo obliquo de anunciar suas inovagdes quando queriam que as pessoas soubessem delas. ‘Mas quando introduziu métodos que nao tinham nenhuma relago com qualquer processo antigo, tal como a substituigao de esmaltes pintados & mao por decalques impressos, Wedgwood preocupou-se em manter em segredo essas novidades, que tiveram importantes efeitos em sua produ- cao e seus lucros.*# A relutancia em divulgar algumas descobertas sugere que ele sabia que seus produtos eram populares porque nao lembravam 08 clientes os aspectos de progresso que seriam inaceitaveis para eles. Algumas das tentativas de Wedgwood e Bentley de convencer seus clientes das qualidades antigas de seus produtos e processos novos pare- cem hoje ingénuas. Mas, se a propaganda era tosca, 0 uso que faziam do design para os mesmos fins era altamente sofisticado, e quanto mais exata era a referéncia que faziam as antiguidades, mais procurados se tornavam seus produtos. O objetivo deles nao era fazer as pessoas acreditar que al- gum de seus artigos era antigo, mas convencé-las de que os produtos, em- bora feitos por processos modernos, eram tao bons ou até melhores do que os da Antiguidade. O valor muito especial atribuido a esse periodo no Josiah Wedgwood: jarra de basalto preto decorada com pintura ‘encaistica,¢. 1770. ‘Anova thenica decorativa de Wedgwood foi descrita ‘como “a redescoberta de uma ane antiga”, nogiio reforgada pela forma etrusca desta jarra Wedgwood & Bentley: retratos em camafeu de George iii eda rainha Charlotte, jaspe azul branco, 1778. ‘Muitos dos retratos em ‘camafeu de Wedgwood & Bentley eram de pessoas vivas, ‘mas representadas A maneira dos camafeus antigos. 40 século xvi1t fez disso um modo muito eficaz de superar as reservas que os clientes poderiam ter em relagio as suas inovacdes. De algum modo, a relagao de Wedgwood e Bentley com o neoclassi- cismo era pragmitica. O estilo nao era essencial em sua produgio, pois podiam e faziam artigos em estilos diferentes. Como observou Hugh Ho- nour, eles usavam as antiguidades com finalidade decorativa e estavam, na verdade, perpetuando o gosto rococé por decoragao sob fantasia antiga.” Nao obstante, se o neoclassicismo foi simplesmente mais um estilo deco- rativo para Wedgwood e Bentley, foi também muito valioso para o sucesso deles, gragas ao poder nico que teve no século xvi1t de tornar moda os métodos modernos de manufatura. NOTAS 1 _Bsses desenvolvimentos sio descritos de forma mais completa em Adrian Forty, “Wireless Style. Symbolic Design and the English Radio Cabinet 1928-1933”, Archi- tectural Association Quarterly, v. 4, n. 2, primavera 1972, pp. 23-31. 2 Algumas idéias sobre o imaginério utdpico foram sugeridas por W. Benjamin em “Paris, the Capital of the Nineteenth Century”, reimpresso em W. Benjamin, Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of High Capitalism, Londres, 1973, pp. 155-77 (W. Ben- jamin, “Paris, capital do século xix”, em Obras esolhidas,v. 3. S40 Paulo: Brasiliense, 1993]. Manfredo Tafuri discutiu a significagdo de utopia no design moderno em Architecture and Utopia, Cambridge, Mass., 1979 (M. Tafuri, Projecto ¢ Utopia. Lisboa: Presenga, 1985], € em seu ensaio “Design and Technological Utopia”, em Italy, The New Domestic Landscape, editado por E. Ambasz, Nova York, 1972, pp. 388-404, € re- feriu-se a0 tema em muitos outros escritos. we aw 10 1 B 4 5 16 y ‘Samuel Johnson (1709-1784), escritor € ensafsta inglés. Autor de poemas, do Dic- tionary of the English Language, de 1755, de uma edigao das obras de Shakespeare, de 1765, entre outras obras. {N..] As reagdes de alguns artistas € escritores do século xvitt 3 industrializagao esto descritas por FD. Klingender em Art and the Industrial Revolution, edigdo revista, Lon- dres, 1968. ‘The Torrington Diaries, editados por C. Bruyn Andrews, Londres, 1934, v.11, pp. 81-82. Ibidem, v. 111, p. 92. Hugh Honour, Neo-Classicism, Harmondsworth, 1968. O relato da histéria da indistria cerimica de Staffordshire baseia-se nas seguintes fontes: J. Thomas, The Rise of the Staffordshire Potteries, Bath, 1971; L. Weatherill, The Pottery Trade and North Staffordshire 1660-1760, Manchester, 1971; Wolf Mankowitz, Wedgwood, Londres, 1953: S. Towner, Creamware, Londres ¢ Boston, 1978; N. McKen- rick, “Josiah Wedgwood: an Eighteenth Century Entrepreneur in Salesmanship and Marketing Techniques”, Economic History Review, 2 série, v. x11, . 3, 1960, pp. 408-33. ‘Ver também N. McKendrick, |. Brewer ¢ J. H. Plumb, The Birth of Consumer Society. The Commerialization of Eighteenth Century England, Londres, 1982. Citado em Mankowitz, p. 27. ‘As cartas jamais foram publicadas em sua totalidade. H4 duas selegdes publicadas: ‘The Letters of Josiah Wedgwood, editadas por K. E. Farrer, 2 vols., 1903 (obra referida a partir de agora como Farrer), com um volume suplementar, Correspondence of Josiah Wedgwood 1781-1704, 1902; segunda é The Selected Letters of Josiah Wedgwood, editadas por A. Finer eG. Savage, Londres, 1965 (referida como Finer e Savage). Citado em Mankowitz, pp. 27-28. Finer e Savage, p. 78. Idem, pp. 220-21. Ver N. MeKendrick, “Josiah Wedgwood and Thomas Bentley: an Inventor-Entre- preneur Partnership in the Industrial Revolution”, Transactions ofthe Royal Historical Society, 52 série, v. x1v, 1964, PP. 1-34. Farrer, ¥.1, pp. 377-78. Idem, p. 358; ¢ Finer e Savage, p. 149, Idem, v. 1, p. 428: € Finer e Savage, p. 114; a8 relagGes de Wedgwood com Flaxman esto discutidas em John Flaxman R. A., catélogo de uma exposicdo na Royal Acade- my of Arts, Londres, 1979. Finer e Savage, p. 317. Farrer, v.1, p-240. Idem, v. 1, p. 456. Idem, v. 1, p. 250. Idem, v.11, pp. 341-42. © catilogo foi reeditado por Mankowitz (1953). Farrer, v.1, pp. 445746. Honour, p. 48. a ~~ <> <> <> <> <> <> <>< <> 4 8/2 (8)? (O° 3/2 8/9 it 99999999999 JOVOYVOIYIOVOVY 99999999999 IDO9O9090990 999999999905 990909090905 DOOOOOOO900¢ 999999999905 OQ9029000200)0 OSFRRUMETR OS: DESTCNER'S) iN RUS Na historia de todas as induistrias, o design torna-se necessdrio como uma atividade separada da producao assim que um tinico artifice deixa de ser responsével por todos os estgios da manufatura, da concepgio & venda. Em muitas industrias, essa mudanca organizacional ocorreu no século XVIII; em poucas atividades se podem ver de modo tio claro o surgimento do designer especialista e a importincia atribuida ao seu trabalho como na produgao da ceramica de Josiah Wedgwood. Embora nao tenha sido o primeiro mestre ceramista a distinguir entre as tarefas de projetar vasos e de fazé-los, ele atribu/a mais valor ao trabalho dos designers do que ou- tros fabricantes. A NECESSIDADE DE UM PRODUTO CONSISTENTE A intengio original de Josiah Wedgwood, como ele declarou de inicio, era ter sucesso nos negécios, obter “ampla recompensa” pelo trabalho dili- gente no que ele considerava um campo promissor. A realizagao dessa am- bicdo simples dependia de ser capaz de fazer mais produtos, vender mais e também, se possfvel, aumentar o lucro unitério. Todas as grandes mudan- 43 Showroom de Wedgwood e Byerley em Londres, 1809. Para no imobilizar capital fem estoque, Wedgwood exibia na loja apenas amostras; os clientes faziam encomendas a partir delas ou de catdlogos. De Rudolph ‘Ackermann, Repository of Arts, v. 1, 1.2, 1809, 4 4 . gas que ele introduziu posteriormente na manufatura e venda de ceramica podem ser remetidas a essas trés condig6es de sucesso. Quando Wedgwood comegou sua produgio prépria, em 1759, os ce- ramistas vendiam suas mercadorias, em geral, mandando lotes de artigos prontos diretamente para mercados ou comerciantes. Embora vendesse parte de suas pegas dessa forma, ele adotou também a técnica nova de vender por encomenda. Em Londres e em outros lugares, montou vitrinas com amostras de seus produtos, mas sem estoque para venda.' Os pedidos dos clientes eram passados para a fabrica, que produzia os artigos ¢ os en- tregava diretamente. Mais tarde, Wedgwood ampliou esse sistema com 0 envio de viajantes com caixas de amostras para todo o pais e ao exterior, ¢ com a publicagio de catélogos dos produtos, que os clientes usavam para fazer suas encomendas. Com esse método de venda, ele nao precisava em- patar capital em estoque no vendido nem corria o risco de fazer grandes quantidades de produtos pelos quais talvez nao houvesse procura. Porém, vender a partir de amostras e catdlogos exigia que os produtos ti- vessem uma qualidade completamente uniforme. O cliente que comparava um servigo de mesa completo com base em umas poucas amostras esperava receber artigos iguais as amostras que vira. Manter uma uniformidade absoluta era um grande problema para a manufatura de cerdmica; as solugdes de Wedgwood para isso estavam na origem de muitos de seus métodos de producao. Nao era possivel confiar na reprodugao da ceramica verde, seu principal produto do comego da década de 1760. A decoragio estava nos vidrados apli- cados sobre o ornamento moldado ¢ 0 resultado dependia tanto das maos do vitvificador como das condigdes do forno, ¢ nenhum deles era particularmente confidvel. Por mais charmosas que pudessem ser as variagSes nos vidrados, elas nao levavam a um produto uniforme e, assim, tornavam a ceramica verde inadequada para o método de vendas que Wedgwood estava adotando. objetivo dos experimentos de Wedgwood com a ceramica creme era encontrar um substituto mais confidvel para a ceramica verde. A ce- ramica de vidrado creme era produzida em Staffordshire desde a década de 1740 e deveria ser bem conhecida de Wedgwood.’ O biscoito de barro branco, que dava resultados constantes sob uma variedade de condigées de queima, servia bem aos seus objetivos. O problema estava no vidrado, que tendia a variar de cor conforme a temperatura do forno, a desbotar, ficar com espessura desigual ¢ rachar a superficie, Wedgwood precisava produzir um vidrado que fosse tao confidvel quanto o biscoito e, em 1765, desenvolveu um que era razoavelmente satisfatorio, embora tendesse a va- riarem core desbotar. Foram necessdrios varios anos para aperfeigoar um vidrado creme que desse um resultado totalmente uniforme. Nao era posstvel confiar na louga verde porque parte da decoracio pos- ‘suiaas cores do vidrado, que variavam de acordo com as condigGes da queima. Para superar esse problema na louga creme, Wedgwood nio usou cores no vidrado, mas vitrificou as pecas sem cor e decorou-as com esmaltes pintados A mio, que eram aplicados depois da queima do vidrado ¢ entio iam ao forno numa temperatura muito mais baixa. A esmaltagem era um processo confid- vel que dava resultados constantes. Nao era novo, pois jé fora usado em por- celana e, em Staffordshire, em uma ceramica de alta temperatura vidrada a sal, ‘mas, como era uma técnica trabalhosa e cara, nao fora usada anteriormente em produtos de ceramica de baixo valor. Grande parte da primeira esmalta- gem de Wedgwood consistia em imagens e decorages a mao livre num estilo atraente, embora um tanto floreado. Esses desenhos, sendo complicados e dificeis de reproduzir com preciso, nao serviam para a produgdo na quanti- dade pretendida por Wedgwood, Para evitar as variagdes ¢ tornar mais barata a esmaltagem, ele experimentou decalques impressos, que eram aplicados 08 potes e cozidos. Com o tempo, a parte pictdrica dos desenhos em esmalte sobre louga creme passou a ser aplicada em geral por decalques ¢ a mao dos pintores entrava apenas nas bordas ¢ padrées repetidos, que eram capazes de reproduzir com exatidio. O tinico fator que ainda dava espago para a variagao nos resultados era a habilidade de seus empregados. 45 ‘cima: Tabuleiro de testes com vidrado creme de Josiah ‘Wedgwood, inicio da década de 1760, Obiscoito de ceramica branca era confidvel, mas foi preciso muita experimentagio para chegara um vidrado consistente e sem falhas. bai, d esquerda Ladritho de amostras cde Queensware de Wedgwood com decoragées esmaltadas ‘a mio ou decalques impressos,c. 1800. Os ladrilhos de amostra ‘eram levados por Viajantes a0s clientes para que pudessem cescolheradecoracio para os artigos que ‘encomendavam a partir de catilogos impressos. Abaixo, &direita Detathe de compoteira de ceramica creme de Wedgwood, metade da década de 1760, ‘Arachadura no vidrado, comum nas. primeiras cerdmicas de ‘Wedgwood, era um dos defeitos que ele estava decidido a superar. 46 aT ‘Acima: Bule de café fem Queensware de Wedgwood, com cesmalte aplicado com decalque, final da década de 1760. Essa técnica de esmaltagem oferecia um modo ripido e confidvel de decorarcerimicas. Centro: Bule de chi vidrado asa, com decoracio esmaltada A mio, Staffordshire, 6.1755. Aesmaltagem erauma técnica aceita para decorabules, mas era um modo trabalhoso © pouco confidvel de produzir qualquer decoragio que no fosse muito simples. Abaixo: Prato vidrado- com cascode tataruga de Whieldon, c. 1760 Exam imprevisheis as variagSes nos vidrados verde ede cascode tartaruga durante a queima ea execugio, isso eraincompativel com um negécio baseado em encomendas por amostras e catdlogos. 48 “PAZENDO DOS HOMENS MAQUINAS" A intengio de Wedgwood de fazer da Queensware um produto consistente uniforme nao poderia ser cumprida enquanto seus trabalhadores tivessem li- berdade para fazer variagdes idiossincraticas nos produtos. Em certa medida, essa liberdade jé fora diminuida com mudangas que haviam acontecido nas olarias muito antes de Josiah Wedgwood entrar no ramo. Embora a ceramica houvesse sido outrora uma industria artesanal, no sentido de que um Unico individuo era responsdvel por todos os estdgios da producao de um artigo, essa forma de produgio jd deixara de existir em Staffordshire antes do co- meco do século xvi1t. A partir da década de 1730, sendo antes, os ceramistas se haviam especializado em uma das etapas do negécio, tais como modelar ou tornear, ou fazer o vidrado e 0 acabamento. Uma olaria tipica da metade do século xviii compunha-se de varias oficinas, cada uma com empregados dedicados a uma tarefa especifica. Na década de 1750, na ceramica de Whiel- don, o trabalho estava dividido em pelo menos sete ocupagies diferentes, € cada operdrio fazia geralmente uma tinica tarefa.} Como varios artifices eram responsdveis pela produgdo de um tinico artigo, nenhum individuo era capaz de fazer alguma mudanga importante no produto. Mesmo assim, os operdrios de cada estgio ainda tinham certo con- trole sobre os resultados finais. Por exemplo: um operdrio empregado na aplicagao de ornamentos moldados ao pote podia fazer pequenas varia- des nos produtos, enquanto um homem trabalhando na vitrificagdo podia causar mudangas maiores. Wedgwood queixava-se com freqiiéncia dessa aparente incapacidade dos operarios de produzir resultados constantes, especialmente nos artigos ornamentais, Certa vez, escreveu a Bentley so- bre seus problemas: [...] a8 misturas e as cores também, depois de toda a atengo que podemos dar a elas, so passiveis de muitos acidentes ¢ alteragbes, causados pela inabilidade falta de idéias dos trabalhadores [...) Por exemplo, quando as argilas esto perfeitamente misturadas para pro- uzir uma vivacidade eextravagancia na pega, se o operirio dé ao bastio um des- vio na dirego da borda, em vez de manté-las planas quando as pde dentro do molde, produz-se uma pequena fibrosidade, que o pote mostra, em vez de uma eva finamente variegada.* Wedgwood jé demonstrara sua preocupagio com a uniformidade alguns anos antes, quando escrevera a Bentley que estava se “preparando para fazer dos homens méquinas que nao possam errar”.’ Para sua louga creme, tanto quanto para seus artigos ornamentais, isso era indispensdvel para seu sucesso. Wedgwood tornou a execuco do trabalho mais confidvel mediante a requalificagao dos homens ou com a divisio do trabalho em mais estégios ainda, que pudessem ser supervisionados mais de perto. Ensinar os ope- rérios a trabalhar conforme padrdes mais altos do que os costumeiros nas ceramicas era lento e impopular. Dividir o processo de produgio em mais estdgios tinha a vantagem de que, para algumas tarefas, ele poderia uti- lizar mio-de-obra menos especializada. A introdugao da esmaltagem na ceramica creme é um exemplo excelente: nessa cerimica, as duas fungdes de vitrificagdo e decoracao foram combinadas em um tinico processo de vitrificagao, mas essas duas etapas eram realizadas por dois grupos total- mente separados de pessoas cujas tarefas eram definidas por conjuntos exatos de instrugées e controladas por supervisores.® Esmatagem e ‘modelagem numa fibrica de porcelana francesa, 177. Adivisto de tarefas ea especializagio dos coperirios em cada amo do trabalho eram caracterstcas reconhecidas das fibricas tégias de porcelana. isso, como na técnica de esmaltagem, Wedgwood estava aplicando a bens mais baratos métodos anteriormente reservados para bens dealta qualidade. De Le Comte de Milly, "vartde Porcelaine”, estampa 8, na Encyclopédie Méthodique des Ants et Miers, ‘Académie des Sciences, Paris, 177%. 49 A divisio do trabalho ina cerdmica em 1827. Estas ilustragbes, que mostram a execucio de moldes, gravacdo para decalques, modelagem ecompressio de moldes, sio de um livro que descrevia 0s dezoito estigios distintos, realizados pordiferentes pessoas, 1a produsio de artigos de cerimica. No comego do século xix, ide aceitava a completa divisio do trabalho na produgio de cerimicas. De ‘ARepresentation of the Manufacture of, Earthenware, publicado por Ambrose Cuddon, Londres, 1827, 50 © VALOR DOS MODELADORES Enquanto a cerimica foi uma indistria artesanal, como era em Stafford- shire até o final do século xv11, a forma de um produto era, com toda pro- babilidade, decidida pelo homem que o faria. Porém, quando a manufa- tura foi dividida em processos realizados por diferentes trabalhadores, foi necessdrio adicionar mais um estdgio, o da preparagdo de instrugdes para 08 virios operdrios: na verdade, um estdgio de design. Otrabalho de projetar, ou modelar, como era conhecido nas ceramicas, tornou-se um estagio distinto e separado na produgiio de artigos de barro, embora fosse provavelmente feito por um artesdo ou pelo mestre oleiro que trabalhava na mesma fabrica. Na década de 1750, a modelagem nio somente foi reconhecida como uma atividade separada, como também havia individuos descritos como modeladores cuja tinica tarefa era fazer protétipos para servir de base aos outros artifices. Por exemplo, William Greatbatch, que depois passou a trabalhar por conta prépria e a fornecer muitos dos biscoitos que Wedgwood queimou com seu vidrado verde, ha- via trabalhado na década de 1750 como modelador para Whieldon.? O sucesso das tentativas de “fazer dos homens maquinas” dependia da exatidao das instrugdes dos modeladores, pois, se no fossem precisas, era impossivel evitar que os trabalhadores introduzissem variagdes no traba- Iho. Os bons modeladores tornavam-se cada vez mais indispensdveis para Wedgwood & medida que se reduzia a liberdade dos artifices de controlar a forma dos produtos. Isso valia sobretudo para a louga creme, cujo enge- tho estava todo voltado para obter uniformidade. O valor do modelador na preparaco de um design exato aumentava com o mimero de artigos feitos a partir dele, porque estava, em certo sentido, assumindo uma fracao do trabalho que costumava ser feito pelos artesdos cada vez que confecciona- vam uma cerdmica. O valor monetério do trabalho do modelador podia ser efetivamente calculado como a soma do valor de todas aquelas fragdes do trabalho dos artesios. Devido & importancia de seus servigos, os modela- dores eram os trabalhadores mais bem pagos das cerimicas. Em 1769, Ar- thur Young registrou que um modelador recebia um salirio de cem libras esterlinas por ano, aproximadamente o dobro de um artesio qualificado, que ganhava entre sete e doze xelins por semana; o escultor John Flaxman, que trabalhava como freelance para Wedgwood, recebia um guinéu [equiva- lente a vinte xelins] por dia para preparar designs.* Apesar desses ganhos aparentemente altos, os saldrios dos modelado- res no correspondiam necessariamente ao valor de seu trabalho. Se este excedesse aos saldrios pagos, a diferenga seria lucro para o empresério. Uma vez que os modeladores recebiam uma taxa fixa e nao royalties por seus designs, a margem do empregador também aumentava com 0 ni- mero de mercadorias produzidas a partir de um mesmo desenho. O uso de modeladores abriu, assim, caminho para maior lucratividade. Nio foi somente a divisio do trabalho nas cerdmicas que tornou os modeladores indispensdveis para Wedgwood. O valor deles ficou ainda mais claro quando comecou a mudar o estilo de seus artigos. Uma vez que o neoclassicismo se originou longe de Staffordshire, nos centros da moda de Londres e do exterior, os modeladores convencionais das ceramicas ti- nham pouca idéia dos tipos de efeitos que se Ihes exigiam, bem como relu- tavam, em geral, em abandonar as idéias tradicionais que lhes haviam sido transmitidas sobre a forma apropriada dos produtos, Wedgwood tinha dificuldades constantes para encontrar modeladores que pudessem criar designs no estilo antigo, tanto para os artigos ornamentais como para os 51 utilitérios. Uma carta de 1767 descreve bem os problemas que ele tinha recorrentemente com seus modeladores: Recebi o modelo ¢ o molde de terrina, cujas imperfeigdes vocé descreveu tio precisamente em sua iltima carta que s6 preciso dizer que sua exposigio sobre clas ndo estava exagerada. Receio que o st, Chubbard nao ser muito itil para ‘nds, o que me deixa ainda mais preacupado, pois ele parece to bem disposto a dar o melhor de si para nés [...] Aterrina, de fato, ¢ notavelmente defeituosa na forma de todos os extremos ¢lados que nao correspondem de modo algum uns aos outros. Ha a mesma falha nos ornamentas, no topo do prato e na cobertura. Os ornamentos grava- dos nao esto terminados, o conjunto mostra uma tal caréncia daquela maestria necessiiria na execugo desses trabalhos que me desestimula bastante pensar em empregié-lo novamente como modelador.? Wedgwood acabou por resolver o problema empregando artistas de fora da indiistria cerimica para fazer a modelagem. Estes compreendiam os principios do neoclassicismo e podiam usd-los para dar aos produtos mo- dernos o carter de antiguidade. De inicio empregou artistas modeladores em suas fabricas, mas concluiu que eles também perturbavam: seu sen- timento de independéncia artistica nao os tornava propensos a seguir a rotina rigida que Wedgwood esperava dos outros trabalhadores e amea- ava a disciplinae os padrdes de trabalho que ele tentava impor. Sobre esse problema, escreveu certa ocasio: Oh, por uma diizia de bons e humildes modeladores em Etriria por um par de meses! Que criagdes, renovagdes e geragdes deveriamos fazer! jem -, licita e calmamente devemos prosseguit com nossas préprias forgas naturais, pois ‘nao terei mais excelentes modeladores aqui; por mais que eu desejasse sua pre- senga, eles corromperiam e arruinariam a nés todos. Fui obrigado a mandar embora Radford. As horas que ele escolhia para trabalhar teriam arruinado homens dez vezes melhores do que ele." As experiéncias de Wedgwood com artistas em sua fibrica 0 convenceram de que nao devia empregé-los dentro das oficinas, mas encomendar ou comprar desenhos deles. Foi nessa base que negociou com John Flaxman, que trabalhava em Londres e mandava seus designs para Etriiria. A ope- ragio de design tornou-se assim nao apenas separada, como geografica- mente distante da manufatura dos artigos de ceramica. Wedgwood compreendeu evidentemente que havia vantagens comer- ciais na utilizagio de artistas para desenhar suas lougas. A medida que es- tabeleciam uma identidade prépria mais forte, as classes médias e altas procuravam se distinguir por gostos exclusivos e da moda. Os artesios provincianos da classe trabalhadora ignoravam essas modas e Wedgwood foi obrigado a achar homens que tivessem contato com a alta sociedade e com o gosto dominante. Em uma carta a Bentley, deixou claro que acre- ditava que os clientes valorizariam mais a obra de académicos do que de executores comuns de moldes de gesso, como o pai de John Flaxman, a0 qual se refere: Eu The escrevi em minha tiltima carta sobre bustos, suponho que aqueles que esto na Academia sdo menos vulgares ¢ melhores em geral do que os que as oficinas de gesso nos podem fornecer; além disso, soard melhor dizer que isso a Academia, tirado de um original da Galeria tal, do que dizer que o recebe- ‘mos de Flaxman.” Embora as demandas do neoclassicismo dessem a Wedgwood um mo- tivo particular para fazer uso de artistas para desenhar seus produtos, a introdugio do design como uma atividade de especialista foi global no de- senvolvimento de todas as manufaturas, andando de mos dadas com a divis2o do trabalho. De outro modo, sem um conjunto de instrugdes para orientar o artestio, a manufatura de qualquer objeto teria toda a imprevisi- bilidade de um jogo, 2 medida que um homem apés 0 outro acrescentasse seu trabalho ao produto. design podia ser preparado por um artestio que trabalhava o resto de seu tempo em outra funcao na fibrica ou projetado por um artista ou designer profissional morando numa cidade distante e enfronhado nas til- timas modas ¢ idéias, mas a natureza do trabalho era a mesma e devia suas origens a mesma causa. Embora o designer profissional pudesse ser capaz de conceber um produto muito mais elegante e vendavel, o fato de que havia trabalho para ele nfo era conseqéncia de seu génio inventivo, mas da divisio do trabalho na fibrica. 53 DESIGN E 0 PROCESSO DO TRABALHO: A ELIMINAGAO DO ACASO ‘Uma vez tendo um design preparado para seus produtos, era natural que © fabricante quisesse reproduzi-lo com a maior exatidao possivel. O desig- ner podia fazer muito para assegurar que seu trabalho fosse de um tipo que 0 artesios, com as habilidades e ferramentas de que dispunham, seriam capazes de reproduzir com precisao e uniformidade. Em quase todas as in- diistrias, uma das primeiras condigdes que um desenho precisava cumprir eraa de dar resultados homogéneos em sua execugio, pois um produto que apresentasse variagSes eventuais seria julgado falho, com razdo. Por- tanto, quase todos os desenhos tinham caracteristicas comuns a fim de usar os meios disponiveis de produgio ~ maquinas ou maos de artifices — de tal modo que o acaso ea variagio fossem eliminados. A maioria das historias do design que discutem a Queensware de Wedgwood enfatiza seu neoclassicismo. Com certeza, ele estava interessado em que seus artigos tivessem uma aparéncia neocléssica, mas esse tipo parti- cular de neoclassicismo estava relacionado com 0 modo como os potes eram feitos e com a organizagio de sua fabrica. Alguns historiadores do design sugeriram que as formas suaves e regulares da Queensware foram resultado dos métodos mecinicos de produgio. Por exemplo, Herwin Schaefer decla- rou em The Roots of Modem Design que a Queensware foi “aperfeigoada e padro- nizada em formas que podiam ser facilmente produzidas por meios mecani- cos”. Por mais obcecados que Schaefer e outros historiadores estivessem_ pela nogdo de que a introdugao de maquinas deve ter sido a causa principal das mudangas no design, nao hd provas de que qualquer revolucdo meca- nica na industria ceramica na época de Wedgwood justifique a descrigzo de Schaefer. As técnicas de modelar na roda, moldar ¢ tornear a Queensware eram exatamente as mesmas usadas para a ceramica verde e, na verdade, as mesmas que vinham sendo usadas na indiistria da ceramica desde pelo me- nos trinta anos antes de Wedgwood entrar no negécio."* Embora ele tenha introduzido um torno de girar mecanico, muito enfatizado pelos historia- dores, tornear era uma arte tradicional que a maquina nio fez mais do que acelerar."' A fama de Wedgwood como produtor nao se baseia no uso de ma- quinas, mas no modo como ele organizou os trabalhadores em sua fabrica. Portanto, é nas suas inovagdes nessa drea que devemos procurar as conexées entre o design de objetos de ceramica e os métodos de produgao. © que levou Wedgwood a adotar novos desenhos para suas loucas foi a necessidade de encontrar uma maneira de criar variedade, sem au- mentar os custos de producio e sem ter de aceitar irregularidades e in- consisténcias no trabalho. Os seus clientes esperavam opgées de design ¢, com efeito, clamavam constantemente por novos modelos. Seu produto original, a ceramica verde, fora notdvel pelo grande ntimero de designs moldados e pela variedade de efeitos de vitrificagao. Porém a imprevisil dade dos vidrados tornava as lougas inadequadas para venda por amostras, e catdlogos. Além disso, a producao de novos artigos moldados era cara devido ao custo de capital dos moldes exigidos e do tempo perdido pe- los trabalhadores na mudanga de um modelo para outro. Em uma carta a Bentley, escrita quando tentava baixar o coeficiente de trabalho por pega, Wedgwood referiu-se a esses problemas: Tive varias conversas sérias com nossos homens das oficinas ornamentais ulti- mamente sobre o prego de nosso trabalho a necessidade de baixé-lo, especial- mente em vasos para flores, tigelas e bules de ch, e como acho que a principal razo que impede reduzir seus precos ¢ pequena quantidade feita de cada um, ‘que cria problema tanto em afinara viola como em tocar a cangdo, prometi-thes que fario diizias de vasos, bules e tigelas também, com tanta freqiéncia quanto Molde para bule de ché couve-flor”, ¢. 1760, Acnecusio de moldes eracaraeavariedade de bules era limitada 20 niimero dos diferentes moldes. ‘cima: Josiah ‘Wedgwood: ivro de Hak, “ formas de pratos, €.1770. Muitas das formas tinham tracos rocoeés, oque restringia a variedade de padres de SEZ ‘esmaltagem que podiam ser aplicados. 2 Some Aiton ==> ; , educa (a \\ livro de padrBes para ) C \ decoragio em esmalte , para Queensware, SY 7 “= \ €. 1780. Os clientes podiam escolhera partirde ampla gama de decoragies um ‘némero limitado de formas. ‘ousemos nos aventurar em tais quantidades [...] Consegui agora um livro para ‘meu préprio uso ¢ especulagio, com o custo do trabalho empregado em cada produto, ¢ prosseguirei no mesmo caminho em que penso que hd espago para isso, ea conseqiléncia infalivel de baixar o preo do trabalho ser um aumento pro- porcional da quantidade produzida; e se vocé olhar para as colunas de calculo e vir quio grande é a participago de Modelagens ¢ Moldes ¢ as trés colunas seguintes nas despesas da manufatura de nossos bens, ¢ considerar que essas despesas avangam como um relégio e sio muito parecidas, seja grande ou pequena a quantidade de bens produzidos, vocé verd a vasta conseqiiéncia, na maioria das manufaturas, de fazer a maior quantidade possfvel em um tempo dado,"s Nos artigos ornamentais, aos quais se refere essa carta, as quantidades produzidas nao eram nada parecidas com as de loucas utilitérias, nas quais economias ainda maiores poderiam ser feitas com a redugao do mimero de modelos. Para conseguir essa redugdo, ao mesmo tempo que continuava a satisfazer a demanda dos clientes por variedade, Wedgwood decidiu, na Queensware, limitar o nimero de formas, mas oferecer uma gama mais ampla de decoragio esmaltada, que era aplicada nas lougas de- pois da queima, um processo relativamente simples. Quando faziam as encomendas, os clientes tinham grande opgio de motivos decorativos: em 1774, havia 31 diferentes aplicagdes de esmalte em oferta, além dos acabamentos lisos ¢ dourados. Isso significava que Wedgwood nao precisava imobilizar capital com grande estoque de designs diferentes, pois o ornamento esmaltado s6 precisava ser aplicado apés 0 re- cebimento da encomenda, Depois que decidiu concentar todo o trabalho de decoragio na esmaltagem, o custo de decoragio, fosse pelo processo ba- rato de decalques aplicados ou pelo mais caro de pintura 4 mio, nio variava muito se houvesse um design ou cem. A tinica dificuldade era que cada ar- tigo deveria seguir igualmente cada design. Artigos com muitos motivos em relevo deixavam poucas opgées na decoragdo - embora um prato de borda de pluma pudesse ser apropriado para um padrio floral, ele nao acei- taria um padrio geométrico. A fim de tornar os desenhos da Queensware adequados para uma ampla variedade de padrdes esmaltados, faziam-se necessérias formas simples com grandes superficies lisas. E acontece que as formas neoclissicas satisfaziam essa exigéncia muito melhor do que as rococés que Wedgwood e outros fabricantes vinham produzindo. 87 O desenvolvimento de formas apropriadas tanto aos métodos de fabrica- ¢40 como 8 satisfagio dos gostos do mercado foi obra do design. Nao teria sido suficiente que os desenhos simplesmente apelassem para o gosto de me- ados do século e das classes média e alta, ou que se pudesse confiar nos arte- sios para repeti-los com coeréncia; a faganha dos modeladores de Wedgwood foi chegar a formas que fundiam satisfatoriamente as exigéncias tanto da produgdo como do consumo. Nisso, os modeladores estiveram empenhados exatamente na mesma tarefa que todos os designers posteriores. Diz-se com freqiiéncia que o design industrial é uma ocupagio nova, es- pecifica do século xx. Por exemplo, Jeffrey Meikle afirma em Twentieth Century Limited, seu livro sobre o design nos Estados Unidos entre as duas guerras mundiais, que o design industrial nasceu em conseqiiéncia da Depressio: O design industrial nasceu de uma feliz conjungao entre um mercado saturado, que forgou os fabricantes a distinguir seus produtos de outros, € um novo tipo de maquina, que propiciou a ficil aplicagio por designers de motivos reconhe- cidos como “modernos” por um piblico sensibilizado."® E certo que um grupo de designers industriais profissionais surgiu nos Estados Unidos na década de 1920, mas é errado supor (independente do ‘Thomas Baxter Workshop of the Ait Father (Oficina do pai do ata), Gough Square, Londres, aquarela, 1810. Esmaltadores decorando cerdmica, que neste caso no.era Wedgwood, que eles mesmos reivindicaram) que tenham sido os primeiros designers _Aesquerda:compoteira industrias, A atividade a que se dedicavam homens como Raymond Loewy v*e#war Wedgwod, ¢ Henry Dreyfuss existia em certas industrias havia mais de um século € princinrdesans as Ginicas novidades eram as idéias que trouxeram para seu trabalho ¢ 05. ¢* Quceowarde produtos que foram submetidos a0 design, de automéveis a aparelhos de. wate rédio e pontas de caneta retriteis. Em todos os aspectos fundamentais, a _n¢oclssicos. formas 3 Fh, yas comaesta nio se natureza do trabalho deles, ao fundir idéias com técnicas de manufatura, Sreem = aierents era idéntica 4 dos humildes modeladores das cerimicas de Wedgwood, _desenhos decorativos. A direita: Josiah Wedgwood: pratos, NOUR tervna tigelaeprato com tampa decorados com fica ondulada e 1 Farrer, v. 1, p. 150. Ver também McKendrick, 1960. desenhoem grinalda, 2 Towner; Mankowitz, capitulo 2, ee ae ou similares podiam ser 3 Weatherill, p. 60. sarees 4 Farrer, v.11, pp.147-48. aoa e _ “ 5 Finer e Savage, pp. 82-83. 6 N. McKendrick, “Josiah Wedgwood and Factory Discipline”, Historical Journal, v. 1v, 1. 1, 1961, pp. 30°55- 7 Mankowitz, p. 34. 8 A. Young, ASix Months Tour through the North of England, Londres, 1770, v.11, p. 308. Livro de contabilidade de Josiah Wedgwood, arquivos Wedgwood, E2-1339. 9 Farrer, v. 1, pp. 190-91. 10 Idem, v.11, p.171. 11 Wedgwood para Bentley, citado em John Flaxman R. A., catdlogo da exposigio na Royal Academy, Londres, 1979, p. 47- 12. Herwin Schaefer, The Roots of Modern Design, Londres, 1970. 13. Ver}. Thomas. 14. Finer e Savage, pp. 130-31. 15 Mankowitz, p. 57. 16. Jeffrey Meikle, Twentieth Century Limited, Filadélfia, 1979, p. 39. SCOELECEC( QVOQVSOO Sl TO OTS oT eh QVOQVSOO CeLCECEC( T° Je° [SO SIL TTS PRR ES IDIOIIIYIIOVIOII“ eer Ler lp, P) Pl) 9909090909 0¢ lel jo Je D Jo J Je Je a ae DESTGINGE MEGANEZAGAD A MECANIZAGAO FOI RUIM PARA O DESIGN? Ha tempos se convencionou ver 0 design de meados da era vitoriana como degenerado e atribuir a culpa disso introdugdo da mecanizagio. Em Pioneers of Modern Design, provavelmente o livro mais lido sobre design moderno, Nikolaus Pevsner descreveu o estado do design na metade do culo x1x da seguinte maneir O problema da maquina nao est4 somente no fato de ter eliminado 0 gosto nos produtos industriais; por volta de 1850, parece que jd havia envenenado irremediavelmente os artesdos sobreviventes. (...] Por que isso aconteceu? A resposta usual ~ por causa do crescimento industrial e da invengio das maquinas ~ est correta, mas, via de regra, é tomada de modo muito su- perficial. [...] © desenvolvimento dos dispositivos mecanicos simples para as maravilhas modernas da maquinaria foi légico e gradual. Por que a ma- quina se tornou, ao final, tio desastrosa para a arte? A transi¢Zo do estado medieval para 0 moderno nas artes aplicadas foi concluida por volta do fim do século xviii. Pevsner prossegue fazendo uma lista da bem conhecida seqiéncia de in- vengdes mecanicas durante a Revolucio Industrial e nos encorajando a acreditar que elas foram a causa da deterioracao do design. Mas poderiam méquinas inanimadas e burras ter alguma coisa a ver com a qualidade do design e foram elas realmente a causa de todos os males que Ihes so atri- buidos? E 0 processo histérico que Pevsner delineou em seu livro é um relato correto do desenvolvimento do design na indistria? Em sua versio da degeneraco do design vitoriano, Pevsner seguiu de perto as declaracdes de quem viu as mudangas com os proprios olhos. tema foi muito discutido no século x1x, com repetidas referéncias a in- fluéncia maligna das méquinas. Uma observagio Upica, embora surpreen- dentemente precoce (1835), foi feita pelo arquiteto C. R. Cockerell: Creio que a tentativa de substituir o trabalho da mente e da mao por processos mecinicos em nome da economia terd sempre o efeito de degradar e, em tl- tima andlise, arruinar a arte,* Opinides semelhantes foram expressas por muitos outros, entre eles John Ruskin, Richard Redgrave, editor do Journal of Design, publicado entre 1848 € 1852, e William Mortis. Em pouco tempo, a crenga de Cockerell de que as méquinas levavam a um design inferior tornou-se amplamente aceita como verdade incontestvel. Assim, Charles Eastlake péde escrever com absoluta convicgdo em seu livro Hints on Household Taste [Sugestdes sobre 0 gosto no lar}, publicado em 1868: Toda dama reconhece a superioridade da renda artesanal e outros tecidos feitos 4 mo em relagdo aqueles produzidos por meios artificiais. © mesmo eritério de exceléncia pode ser aplicado a quase todos os ramos da arte-manufatura. 0 acabamento perfeito e a uniformidade exata de forma ~ 0 equilibrio correto € igual que distingue os artigos europeus daqueles das nagées orientais, e, em es- pecial, os artigos ingleses dos de outros paises da Europa — indicam graus no somente de civilizagao avangada, mas, inversamente, de declinio do gosto.* Os argumentos apresentados pelos reformadores do design do século XIX e seguidos por Pevsner repousam sobre o pressuposto de que as mé- quinas usurparam o controle do artesio sobre a forma do produto: as méquinas, acreditavam eles, haviam mudado a pratica do design ao se- parar a responsabilidade pela aparéncia do produto da tarefa de fabricé-lo, com uma conseqiente deterioracdo da qualidade do design. Essa idéia era tio forte que um dos principais objetivos da Grande Exposi¢io de 1851 foi demonstrat a sua verdade: a intengdo de Henry Cole, principal organiza- dor da exposigao, era exibir produtos feitos & maquina ao lado dos artigos feitos 4 mao da India e do Oriente, de tal modo que a simplicidade e supe- rioridade do design destes tiltimos estariam ld para todos verem.4 Contudo, apesar da ampla aceitagdo das idéias encarnadas na Grande Exposigao, as maquinas no podiam ser a causa da tio denegrida espe- cializagdo no trabalho de design, que jd estava estabelecida muito antes do desenvolvimento da produgio mecanizada. Em nenhum momento as méquinas tiveram alguma influéncia independente sobre o design. £ a per- sisténcia da incompreensio e dos preconceitos dos escritores vitorianos que, ainda hoje, nos leva de volta ao velho e surrado tema do efeito das mé- quinas sobre o design. As histdrias de trés induistrias britanicas do século xix~estampagem de tecido de algodao, confecgio de roupas e fabricagio de méveis — ilustram particularmente bem a verdadeira relagio entre a apa- réncia dos produtos acabados e as méquinas usadas em sua produgao. £ importante lembrar que o grau de mecanizagio nas indistrias de meados do século x1x era muito menor do que geralmente se supde. Como mostrou Raphael Samuel, a manufatura de varios produtos baseou-se du- rante muito tempo na habilidade manual e na forga dos trabalhadores.’ Mesmo onde foram introduzidas, as mdquinas raramente eram aplicadas a todos 0s estdgios da produgiio e muitos processos continuaram a ser feitos & mo. Por exemplo, no corte e confeccao de roupas, até o final do século, as maquinas s6 eram utilizadas para poucos tipos de costuras. Na metade do século x1x, de todas as indiistrias manufatureiras britanicas, somente a producio téxtil estava amplamente mecanizada. Nas muitas inddstrias que continuaram baseadas no trabalho ma- nual, os produtos ndo eram necessariamente feitos do comego ao fim pelo mesmo artifice; por exemplo, a divisdo do trabalho na indiistria ndo me- canizada da cerimica data do inicio do século xvi1t e apareceu em muitas outras indiistrias por volta da mesma época.* Esse padrio corresponde de perto aos trés estdgios do desenvolvimento da manufatura capitalista des- critos por Karl Marx em O capital.’ Depois da condigao inicial das sociedades a4 pré-capitalistas, em que os artefatos eram feitos por um artesdo traba- Ihando por conta propria, Marx identificou a primeira fase do capitalismo como a simples cooperagio de trabalhadores que poderiam, por exemplo, compartilhar uma oficina, comprar os materiais e vender seus artigos co- letivamente. No segundo estdgio, as diferentes tarefas da manufatura ma- nual foram divididas entre os trabalhadores, sob a dirego de um mestre; o terceiro estgio veio com a introdugo de maquinas e o estabelecimento do sistema fabril. Em muitas industrias britanicas, 0 segundo estégio—a divisao do trabalho na manufatura manual — ocorreu no século xv111; foi quando 0 artesio individual perdeu o controle do processo completo que se tornou necesséria a atividade nova e separada do design. Marx referia-se aesse estdgio quando escreveu: ‘Oconhecimento, julgamento e vontade que, mesmo em pequeno grau, so exer- cidos pelo camponés ou artesio manual independente, da mesma forma como 0 selvagem faz com que toda a arte da guerra consista no exercicio de sua asticia pessoal, sio faculdades exigidas hoje apenas da oficina como um todo.* Marx prossegue citando 0 filésofo escocés Adam Ferguson (1725-1826) sobre as vantagens da ignorancia para as manufaturas bem-sucedidas: A ignorincia é a mie da indiistria, assim como da superstigdo. A reflexio ¢ a imaginagio so sujeitas ao erro, mas o hébito de mover a mio ou o pé € independente de ambas. Desse modo, as manufaturas prosperam mais onde a mente é menos consultada e onde a oficina pode [...] ser considerada uma maquina, cujas engrenagens sao os homens.® Escrevendo em 1767, Ferguson antecipou de perto as observagdes de Josiah Wedgwood sobre “fazer dos homens méquinas”. Foi no segundo estégio manual da industria que o design, enquanto estabelecimento de instrugdes, se tornou necessério a fim de orientar a ignorancia dos trabalhadores. A in- trodugio de maquinas, explica Marx, provocou outras mudangas nos tipos de mao-de-obra usada (mulheres e criangas, em vez de artesdos especia- lizados) e no modo como era usada (para cuidar e regular as maquinas, em vez da habilidade na produgio), mas ndo teve efeito sobre as caracteristicas essenciais do processo do qual o design jé fazia parte. De acordo com Marx: A produgdo meciinica leva a divisdo social do trabalho a um estégio mais avan- ado do que a manufatura, ¢ eleva a produtividade das induistrias a um grau muito mais alto." Em outro lugar, ele escreveu: A separacio das faculdades intelectuais do processo de produgdo do trabalho manual ¢ a transformagio daquelas faculdades em poderes exercidos pelo ca- pital sobre o trabalho (...] completam-se finalmente pela industria de grande escala erguida sobre os alicerces da maquinaria." Essa excursdo pela teoria pode ser bem ilustrada e substanciada por even- tos na historia da estampagem de tecido, uma indiistria em que o design foi de grande importancia, uma vez que 0 sucesso comercial do algodio estampado dependia quase inteiramente do apelo dos seus motivos deco- rativos. Como perguntou um fabricante: Lu] o que é que faz 0 negécio no fim das contas? Nao é 0 desenho sobre 0 tecido, e a cor sobre ele, e a invengao de arte que é posta sobre ele? Se puser todas essas coisas mais e melhor, vocé terd mais comércio.* Saree a sd > Pat Pee 27 ee 65 Blocos de madeira para gravar usados na ‘estampagem de tecidos na Franga do século xu, Este era ‘0 método original deestampar tecidos. De “Ants et Métiers Méchaniques”, Encyclopédie Méthodique des Ans et Meiers, 5. d., v.8, estampa Foi por causa de a industria téxtil ser tio importante na Grd-Bretanha do século xix que o design de tecidos de algodio estampado recebeu grande dose de atengao por volta da metade do século. A técnica de estampar algodio com blocos de madeira gravados foi de- senvolvida no final do século xv11."* Na década de 1750, criou-se uma nova técnica, com a utilizagio de placas de cobre, que eram maiores do que os blocos de madeira e comportavam mais detalhes. Qualquer que fosse 0 método usado, a impressio era feita 4 mio: o tecido era esticado numa mesa comprida e o estampador, trabalhando ao longo dela, pressionava 0 bloco ow a placa sobre o tecido aplicando a tinta em cada impressio. Uma habilidade consideravel era necessdria na aplicagdo da quantidade correta de tinta, no registro correto do bloco e na aplicagio da pressio certa. O processo era lento: dizia-se que um estampador nio conseguia estampar mais do que seis pecas de tecido por dia (uma pega tinha 28 jardas — cerca de 25,5 metros). Em 1809, tanto o desenho das estampas como 0 corte € gravagio dos blocos jé eram ocupagées totalmente separadas da estam- pagem e cada atividade tinha seu aprendizado préprio. Em 1804, infor- mou-se que em Church Bank, Lancashire, 58 oficiais cortadores de blocos ¢ 23 desenhistas de estampas haviam entrado no negécio nos tiltimos 23 anos.'* Mesmo quando a estampagem ainda era feita 8 mio, 0 desenho dos motivos decorativos jd se tornara uma ocupagao separada, Embora a introdugio das placas de cobre gravadas tenha feito alguma diferenga na aparéncia das estampas, a0 possibilitar mais detalhes e de- semhos maiores em cada impressio, isso nio fez nenhuma diferenga na organizagio do trabalho nas fbricas. Porém, em 1796, surgiu outro desen- volvimento técnico: as placas gravadas foram transformadas em cilindros e se tormou possivel imprimir todo 0 comprimento da pega de algodo con- tinuamente, em um tinico processo mecinico. As primeiras maquinas de estampagem rotativas eram movidas a 4gua, mas nao demorou para que a introdugo do vapor tornasse possivel um ritmo muito mais répido de produgio. Onde era poss(vel estampar somente seis pecas por dia numa tinica mesa, uma mAquina movida a vapor podia estampar até quinhentas pegas por dia. Entre 1796 e 1840, em conseqiiéncia da introdugao dessas méquinas, a produgdo anual de tecidos estampados no Reino Unido au- mentou de 1 milhdo para 16 milhOes de pecas. A estampagem manual com blocos e placas continuou e ainda sobrevive, mas somente para trabalhos ‘Acima, Aesquerda: ‘estampando algodio ‘com um bloco de madeira gravado, ‘comego do século xix. Um proceso lento.e ‘que exigia pericia De Book of English Trades, publicado por Phillips, 1823. Acima,& dirt: estampagem de algodio com uma placa sgravada numa prensa plana, inicio do século xix, Aldm de permitr ‘uso de mais detalhes na gravagdo, as placas ‘ram maiores do que os blocose, portanto, produgio‘era mais ripida. De G. Dodd, The Tele Manufectures of Great Britain, Londres, 1844, p. 66. Abaixo: desenho para tecido estampado de Vivian Kilburn, Inglaterra, c. 1790. Desenhos com tantos detalhes eram reproduziveis somente por meio de placas gravadas e impressio or prensa. especializados ¢ altamente detalhados. Em 1840, havia 435 maquinas de estampar no pais ¢ 8.234 mesas de estampagem; dez anos depois, havia apenas 3.939 mesas, enquanto o niimero de méquinas subira para 604." Enquanto a estampagem manual declinava, causando considerdveis dificuldades para os artesdos, 0 grande aumento da produgio de tecidos de algodao estampado propiciava uma demanda crescente por novos de- signs, e a ocupagio de desenhar estampas, jd bem estabelecida no perfodo manual da industria, continuou a florescer. Em 1841, estimou-se que ape- Prensacilinrica para nas em Manchester havia quinhentas pessoas trabalhando como estilistas eleckepry em tecidos estampados. Alguns eram empregados fixos, outros trabalha- iniiodoséculoxx vam como freelance e vendiam seus desenhos aos estampadores."* Uns pou- Aimpressiocom cos designers, em geral artistas que passaram a desenhar estampas, eram enomementeapradugio -‘mantidos pelos fabricantes com um saldrio anual, mas era mais comum da estampagem Odsere- a simpicdaded aie weniocuceaas —gados da estampagem de tecidos que recebiam os salirios mais altos. Em ‘sendo estampados. De 1850, em uma fabrica, o saldrio mais alto para um designer era de 60 xelins E. Baines, History of the Cotton Manufecturein Great POT Sana, enquanto na segunda fungdo mais bem paga, a gravacdo, 0 Britain, Londres, 1835. _saldrio nfo passava de 50 xelins."7 que os estilistas fossem contratados com saldrio semanal. Eram os empre- A pritica dos empregadores das estamparias era ter um grande nimero de designs preparados, mas gravar e estampar somente uns poucos. Um grande fabricante de Manchester disse que, em 1838, seus desenhistas de padrdes haviam preparado entre 2 € 3 mil desenhos, dos quais somente quinhentos haviam sido gravados e estampados.* Esse aparente desperdi- cio e extravagncia era possivel porque os desenhos custavam muito pouco em comparagao com o preco da gravacio dos cilindros e da estampagem dos tecidos. No Relatério da Comissao Especial sobre Design, de 1840, di- ferentes fabricantes deram estimativas da proporgio do custo do design no montante total da producio. Varios deles estimaram o pagamento pelo preparo um design entre 5 e 15 libras esterlinas. Um grande fabricante re- conheceu que o design Ihe custava entre 1/2 péni e 3/4 de péni por pega, enquanto outro disse que representava 1/192 (0,52%) do custo do tecido ¢ 11352 (0,28%) do preco de venda.” Vale a pena observar que, apesar desses custos infinitesimais, 0 valor do design para o fabricante era muito alto. © lucro dos donos das estam- parias dependia do volume de vendas dos desenhos estampados por mi- quinas individuais e 0 sucesso ou fracasso comercial de uma determinada estampa dependia quase inteiramente da popularidade do desenho, Um fa- bricante estimou que um tinico desenho de sucesso valera entre 200 € 300 libras esterlinas em receitas geradas.*° Sobre uma despesa inicial de ndo mais do que 15 libras, era um belo lucro. Como a estampagem & maquina aumentou muito a quantidade de tecido que podia ser impresso com um \inico padrio, um desenho de sucesso tornou-se muito mais valioso para 0s fabricantes do que jamais teria sido com a estampagem manual. Nao surpreende que tenha sido nas décadas de 1830 e 1840, quando a estam- pagem 4 maquina comegou a se expandir rapidamente, que os fabricantes se preocuparam pela primeira vez em proteger a propriedade de seus de- signs. No comego da década de 1830, os principais donos de estamparias comegaram uma campanha para que as leis de protegao aos direitos auto- rais fossem estendidas para cobrir os desenhos dos tecidos estampados; apesar de outras justificativas, como 0 argumento de que isso levaria a um design melhor, o principal objetivo dos fabricantes era estabelecer seus direitos de propriedade sobre designs como uma fonte de riqueza. Os debates sobre protecao legal dos produtos deram origem a muita discussio sobre outros aspectos do design. Porém, a nova atengo que se Design de estampa paraalgodio, aquarela sobre papel, com uma amostra do tecido estampado, Inglaterra, inicio do século xIx. Os designs eram realizadosem grande escala paraa sgravacio. Os fabricantes faziam com que centenas de designs fossem produzidos, mas poucos eram gravados ‘eestampados de fato. 70 dava ao design nio significava que se tratasse de uma atividade nova ou mesmo que sua natureza essencial tivesse mudado recentemente devido 3 introdugo das maquinas. Nao obstante, ocorreram algumas manifes- tagdes de que os tecidos estampados manualmente das primeiras décadas do século eram superiores aos desenhos reproduzidos por rotativas das décadas de 1830 e 1840. Richard Redgrave apresentou dois motivos, no relat6rio oficial sobre design na Grande Exposicao de 1851, para dar conta do que considerava uma deterioragio da qualidade. A primeira razio era: Sempre que o ornamento ¢ feito totalmente pela maquina, é certamente o mais, degradado em estilo € execugio; e o melhor trabalho eo melhor gosto encon- tram-se naquelas manufaturas e tecidos em que o trabalho manual é inteira ou parcialmente 0 meio de produzir 0 ornamento Redgrave gostava de produtos em que o artesio influenciara no design ou conseguira introduzir variedade; contudo, se isso alguma vez aconteceu na estampagem de tecido, foi muito antes do século x1x e certamente no era verdade para os padrdes da década de 1820, que ele tanto admirava. © segundo motivo de Redgrave para a inferioridade da estampagem por maquina dizia respeito a introdugdo do processo rotativo por cilindr uso restrito de meios foi com freqiiéncia referido [...} nos velhos e simples métodos de estampagem do algodio, quando os recursos eram poucos € os meios limitados, o estilo era, sob certos aspectos, melhor do que o atual [...] ‘Assim, a estampagem manual com blocos exigia formas e tintas uniformes re- petidas regularmente sobre a superficie, e alguma flor ou folha simples usada para isso tinha um efeito agradavel e justo [...] Porém, no lugar dos antigos meios limitados, a estampagem com cilindros de metal pds ao alcance do de- signer todos aqueles poderes da mais perfeita imitagdo gozados pelo gravador ¢, em ver de usd-los como deveriam ser, coerentemente com as exigéncias da ‘manufatura e os prinefpios da arte ornamental, eles foram desperdigados na imitagdo de flores, folhagens e arbustos, bem fora do caréter ornamental e em oposigio a principios justos.”* De novo, a andlise de Redgrave estava errada, pois a “restrigdo” que ele associava 4 estampagem com bloco fora substituida nao pelo cilindro, mas pela invengio anterior da estampagem com placa de cobre, que fora introduzida no estdgio manual da industria. Longe de oferecer uma “imi- tagdo mais perfeita”, a estampagem com cilindro, se alguma alteragio representava, era para menos, pois os problemas de registro a tornavam inapropriada para desenhos com muitas cores. O que mostravam os livros Algodio estampado, Inglaterra, 1850. Este desenho complexo e ilusionista, do tipo critcado por Redgrave, teria sido estampado com cilindro para as reas uniformes decor com placa para os detalhes. n Acima: amostras de cestampas de algodiio no lvro de registros de H.Fieldlong & Bros., datadas de 12.de fevereiro de 1824, Este liveo registra receitas de tinturas e processos de estampagem. Estes padres simples.e repetidos, do tipo admirado por Redgrave, eram impressos com cilindro. Abaixo: amostras de cestampas de algodiio no livro de registros de H.Fieldlong & Bros., datadas de 12 de fevereiro de 1824. Aesquerda: um desenho impresso com cilindro (para as grandes éreas uuniformes) e bloco (para os detalhes), Adireta: uma das cestampas mais ‘complexas feita inteiramente com bloco, processo manual que Redgrave erroneamente acreditava que produzia simplicidade no design, 2 " para costurar determinada quantidade de pecas de roupa. Por sua vez, 0 sweater repassava o trabalho para costureiras e alfaiates por uma remunera- do muito abaixo da prevista pelo log. As vezes, a tarefa era feita na prépria casa do trabalhador, mas progressivamente passou a ser realizada em ofi- cinas providenciadas pelo sweater, Mayhew cita a descrigdo que um alfaiate sweated fez do sistema: patrio (...] recebe o trabalho da confecgio aos pregos antes mencionados; ele o repassa para nés a0 mesmo prego e nos paga quando recebe o dinheiro. Jamais somos vistos na fabrica. Dos pregos, o patrio deduz 4 xelins por cabega para nossa taca de café ou cha de manhd, o ch da noite e nossa cama.* Nesse caso, 0 sweater aparentemente nao lucrava com a costura, mas ape- nas com as dedugées para alimentagio ¢ alojamento. Porém a maioria deles repassava uma remuneragio menor do que aquela que recebia pelas merca- dorias completas; dizia-se que sua taxa normal de lucro era de 2 xelins para cada libra recebida por pegas de roupas.* Os sweaters eram efetivamente pe- quenos capitalistas que ganhavam dinheiro explorando a forga de trabalho dos alfaiates e costureiras que produziam para eles. Seu capital consistia da garantia, em geral de pelo menos § libras, que precisavam dar 4s confeccdes ou aos estabelecimentos de atacado ao receber 0 tecido.”” Era a falta dessa pequena quantia de capital que impedia a maioria dos profissionais do ramo de obter trabalho diretamente dos fabricantes ¢ os obrigava a trabalhar para os sweaters. Estima-se que, em 1849, seis em cada sete trabalhadores do setor de vestudrio de Londres estavam empregados no segmento “vulgar”, como informais ou sweated, fazendo camisas prontas e sobretudos para grandes lojas de roupas masculinas, além de uniformes e fardas.** A introdugo da m4quina de costura no provocou nenhuma mudanga fundamental na indtistria. Elas foram comercializadas pela primeira vez em 1851 ¢ os aperfeigoamentos técnicos dos anos seguintes as tornaram relativamente eficientes no final da década. 0 relatério da Comissdo Real sobre Emprego Infantil de 1864 mostra que o uso dessas maquinas jé es- tava ento disseminado.”* A maioria era comprada por sweaters ¢ instalada em suas oficinas, pois poucos trabalhadores podiam arcar sozinhos com seu custo. Uma vez que a méquina de costura aumentava em muito a pro- dugo de quem trabalhava com agulha, era vantajoso procurar trabalho ®@2@e ee @ecee: ee ee ee ee ee 068eoeeee a i Pd ee ee ee on ee ee ee ee pea et ero oy eer TERT Ie rare Y et et eet eet Seer Pa] er er ae ea Viv iviriy iy del hn! A hd Boh kc Le) ahaa ie @6eeee-. ee ee ee eo @86@8@ @ | F+4+++4++4-4) ) }

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