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Sumério ‘As Razdes do Direit: Teorias da Argumentagdo Juridica BN 978-85-309-5100 9 ngs pare Br Copyright © 201 FORENSE UNIVERSITARIA um sclo da NOTA PRELIMINAR. Uma editors inte TTravessa do Ox Sac i) 5080-751 ~fleconesco@grapogen. pogencom br | www BruPo sudlentament reproduz via poerd requeres a aprecnato dos x past sein prjuizo da indenizagao cabive (102 (Capitulo 1: DIREITO E ARGUMENTACAO, 1. Introdugao fo da argumentacdo. ustificagao, 5. Correcdo formal e corresao material dos argumentos 6. Silogismo teérico e silogismo pratico vender, obter 7. Argumentos de Tradusno de cP Bras logacto-na Baitores icas da topica jurispradéncia 3. Consicderacoes criticas, ivimento da topica juridica, Sobre 0 carater descritivo e prese 1eresta da topica juridica? 1. Hermentatica (Direito), 2. Direito- Filosofia. 14.0906 54 |_As Razées do Direito + Manuel Atienza Martino, 1987, p. 140). Em alguns dos seus sentidos, a topica parece apontar precisamente para esse tipo de regras.* De qualquer maneira, e como observasao final, é ne Jo do pensamento da t6- cessario reconhecer que na trad ica juridica inaugurada por Vichweg pode-se encontrar sugestées e estimu yece uma base sélida sobre a qual por si mesma, ela nao fo se possa edificar uma teoria da argumentacao juridica. O hweg nao é ter io uma teoria, e sim ter descoberto um campo para a investigacio, 10 fim e ao cabo, que parece se encaixar perfeitamente a topica mériti 0 era ica" provede de Polya (1966) (Cf, Su 987, p. 9), mas ndo parece descabido pensar que tudo isso deve ter n parentesco com a ars inventandi da tépica, & 0 CAPITULO 3 Perelman ea Tlova Retorica 1. 0 SURGIMENTO DA NOVA RETORICA No capitulo anterior, ao considerar a obra de Viehweg, ja fiz referéncia a recuperacao da tradicao t6pica e da re- a antigas que ocorre a partir da segunda metade do gculo XX. Mas nao me referi ao autor que provavelmente contribuiu em maior grau para esse ressurgimento: Chaim Perelman. Embora seja de origem polonesa, Perelman (nascide em 1912 e morto em 1984) viveu desde crianga na Bi ¢ estudou Direito e Filosofia na Universidade de Br ‘Comecou a dedicar-se a légica form. rante a ocupacao nazista, trabalho sobre a (cf. Perelman, 1945; traducao em es- Perelman, 1964), aplicando a esse campo 0 método sta de Fi ideia de nal, Sua tese fundamental é de que se pode formular uma nogdo valida de justica de carter pu- ramente formal, que ele enuncia assim: “Deve-se tratar do mesmo modo os seres pertencentes a mesma categoria.” Mas, dado 0 carater formal dessa regra, é preciso con- tar com outros critérios materiais de justica que permitam 4 Manuel Atienza 56 | _As Razbes do Di estabelecer quando dois ou mais seres pertencem a m ma categoria. Segundo Perelman, & possivel distinguir os seis critérios seguintes,} que definem outros tantos tipos de sociedade e de ideologia: a cada um 0 mesmo; a cada um segundo atribuido pela lei; a cada um segundo a sua cate- goria; a cada um segundo seus méritos ou sua capacidade; a cada um segundo seu trabalho; a cada um segundo suas necessidades. O problema que surge, entao, € que a intro- ducao desses dltimos critérios implica necessariamente que se assumam juizos de valor, o que leva Perelman a propor a questao de como se raciocina a propésito de valores. A essa tiltima questo, entretanto, ele nao conseguiu dar uma resposta satisfatoria até que anos mais tarde, e de forma relativamente casual ~ “lendo um livro de retérica literaria” (Perelman 1986, p. 4) -, deparou-se com a obra de Aristoteles e, em particular, com os tipos de raciocinios que este, distinguindo-os claramente - como vimos no capitulo anterior ~ dos raciocinios analiticos ou dedutivos (os dos Primeiros e Segundas analiticos), chamou de dialéticos (dos quais trata na Topica, na Retérica enas Refutapdessofsticns). A lescoberta” de Perelman ocorreu em 1950" e se desenvolve a partir de entao, em varias obras; a mais importante de to- 1986, p. 3,0 autor criterias, mas sem espe- ificar quais s4o 0s outros dos. Por ot concepeao da justica servar algumas mudangas de enfoque, 25 quais, fart, 1963. Sobre outros aspect Perelman sobre a Justiga e sobre a argumentagso 2 Sobre a evolucéo de Pere! ‘mostra como julzas de valor ~ em Log! COlbcecht-Tyteca, 1950) — depois como tearia da a La nowvelle rhetorique: Traité de Vargumentati « Olbrecht-Tyteca, 1958) —e finalmente como légica da escotha racio- nement pratique, de 1968 (Perelman, 1968), castes Capitulo 3 & Perelman ¢ a Nova Retérica | 87 das - 0 texto candnico, poderiamos dizer ~ é 0 livro, escrito em colaboracio com Olbrecht-Tyteca, La nowvelle rhetorique: Traité de Vargumentation, cuja primeira edicdo data de 1958 e que, desde entao, teve uma amplissima difusio. A seguir exporei (no item 2) as ideias de Perelman so- bre a retérica em geral, baseandio-me essencialmente no tl: timo livro mencionado. Isso implica prescindir de algumas mudangas de énfase ~ e talvez mais que de énfase ~ que seria necessario observar se fosse considerado também o resto da producdo de Perelman; mas em contrapartida se ganharé ~ espero - em clareza e sistematicidade. Por ou tro lado, convém recordar que, embora com frequéncia se mencione apenas o nome de Perelman, o Tratado é também obra de Olbrecht-Tyteca, que talvez nao tenha contribuido com ideias originais, mas com certeza dotou a obra de uma sistematicidade que esta ausente no restante da producao perelmaniana. Depois (no item 3), me ocuparei, em par- ticular, da l6gica juridica.! Embora, como veremos depois, Perelman considere 0 raciocinio juridico como paradigma do raciocinio pratico (cf. p. ex. Perelman, 1962), essa ordem da exposicao parece justificada, pois, na genese do pensa- mento dese autor, a andlise do raciocinio juridico aparece como uma confirmagao, nao como uma fonte, da sua teoria logica (cf. Gianformaggio, 1973, p. 136). Aliés, 0 proprio Pe- relman, num de seus ultimos trabalhos, de uma retérica geral e de uma reté 1966, e outra para o 4 Para tanto, ut La logique je relman, 1979. Perelman e Olbrecht-Tyteca, 1969, ste um livro de Perelman de 1976: 58 | _ As Razbes do Direito & Manuel Atienza p. 9). Finalmente (no item 4), apresentarei uma avaliacao critica da obra de Perelman. 2. A CONCEPCAO RETORICA DO RACIOCINIO PRATICO. 2.1, Légica e retérica Perelman parte ~ como ja indiquei - da distincao basica de origem aristotélica entre rac icos ou logico- -formais, por um lado, e raciocinios dialéticos ou retéricos, por outro, e situa sua teoria da argumentagao nesse segundo item. Seu objetivo fundamental é ampliar o campo da razao para além dos confins das ciéncias dedutivas e das ciéncias, indutivas ou empiricas, a fim de poder dar conta também jas humanas, no Di- interessa a ele, concretamente, & dos raciocinios que plo, os seus aspectos psicolégicos; com isso, ele pretende seguir um programa semelhante ao de Frege: enquanto este renovou a logica formal ao partir da ideia de que nas dedu- Ges matematicas se encontram os melhores exemplos de 5 lgicos, Perelman parte da ideia de que a andlise racioe dos raciocinios utilizados pelos poll gados (embora no Tratado aparecam sobretudo exemplos de obras literdrias) deve ser o ponto de partida para a cons- truco de uma teoria da argumentacao juridica A logica formal se move no terreno da necessidade. 08, juizes ou advo- 8 as, entdo a ‘onclusdo também ser4, necessariamente. Ao contratio, a argumentacao em sentido estrito se move no terreno do simplesmente plausivel. Os argumentos retoricos nao esta- belecem verdades evidentes, provas demonstrativas, e sim mostram o carter razoavel, plausivel, de uma determinada cao, a referéncia a um auditério ao qual se trata de persi dir. Se Perelman escolhe, para designar a sua teoria, o nome retérica” e nao “dialética”, isso se deve precisamente a im- portancia que ele da a nogao de auditorio, que certamente ¢ ogéio central da sua teoria (cf. Fisher, 1986, p. 86), € a0 fato de que “dialética” Ihe parece um termo mais equivoco, pois ao longo da hist6ria ele foi utilizado com miiltiplos cados: para os estoicos e os autores medievais era sinénimo de logica, em Hegel - e em Marx -, como se sabe, tem um sentido completamente diferente etc.® Por outro lado, Perelman considera a argumentagao como um processo em que todos os seus elementos inte- ragem constantemente, ¢ nisso ela se distingue também da concepcaio dedutiva e unitdria do raciocinio de Descartes ¢ da tradi¢ao racionalista. Descartes via no raciocinio um “en- cadeamento” de ideias, de tal maneira que a cadeia das pro- posicdes nao pode ser mais s6lida do que 0 mais fragil dos basta que se rompa um dos anéis para que a certeza da conclusio se desvaneca. Ao contrario, Perelman conside- ra que a estrutura do discurso argumentativo se assemelha a de um tecido: a solidez deste ¢ muito superior a de cada fio que constitui a trama (Perelman, 1969). Uma consequén- cia disso ¢ a impossibilidade de separar radicalmente cada um dos elementos que compde a argumentacao, Nao obs- tante, para efeitos expositivos, Perelman e Olbrecht-Tyteca, no Tratado, dividem o estudo da teoria da argumentacéo em trés partes: os pressupostos ou limites da argumentacao; 08 pontos ou teses de partida; e as técnicas argumentativas, quer dizer, os argumentos em sentido estrito, Mas, como veremos adiante, a forma de Perelman entender esses raciocinios néo coincide totalmente com 0 modelo arstalico. 5 Sobre as relagées entre retérica e dialética cf. Maneli, 1979, p. 126: 238, 60 | __ As Razées do Direlto + Manuel Atienza 2.2. Os pressupostos da argumentacao Uma vez que toda argumentacao pede a adesio dos individuos - 0 auditorio a que se dirige -, para que haja ar- gumentacao sdo necessdrias certas condigdes prévias, como a existéncia de uma linguagem comum ou a participacao ideal do interlocutor, que precisa ser mantida ao longo de todo o processo da argumentacao. Na argumentagao pode- -se distinguir trés elementos: o discurso, 0 orador e 0 audi- trio; mas este - como jé indiquei - tem um papel predo- minante e se define como “o conjunto de todos aqueles e quem o orador quer influir com a sua argumentacao" (Pe- relman e Olbrecht-Tyteca, 1989, p. 55). Perelman deixa cla- ro como a distingao classica entre trés generos orat6rios, 0 deliberativo (diante da assembleia), 0 judicial (diante dos juizes) e 0 epiditico (diante dos espectadores que ndo tem de se pronunciar), se faz precisamente do ponto de vista da fungao que em cada um deles desempenha 0 audit6rio. E concede por certo uma consideravel importancia ao genero epiditico (quando o discurso parte da adesao prévia do au- ditério, como ocorre nos panegiricos, nos sermoes religio- S05 ou nos comicios politicos), pois o fim da argumentacao nao é apenas conseguir a adesao do audit6rio, mas também actescenté-la. Contudo, a classificacao mais importante de tipos de argumentacao feita por Perelman se baseia na dis- tingdo entre a argumentacdo que ocorre diante do auditorio universal, a argumentacao diante de um dnico ouvinte (0 didlogo) ¢ a deliberacao consigo mesmo. Nos tiltimos anos, sobretudo, concedeu-se grande im- portancia ao conceito perelmaniano de atiditério universal) que, embora esteja longe de ser um conceito claro, pelo 7 Nessa classificagao ndo esta incluldo, contudo, um tipo de argumen: tagao de evidente interesse e ao qual Perelman — como veremos em seguida faz referéncia em outras partes da Tratado: a argumentagao i ocorre diante de auditérios particuares Capitulo 3 + Perelman ea Nova Retérica | 61 enos no Tratado parece caracterizar-se por estes aspectos: 1) € um conceito limite, no sentido de que a argumentagio diante do auditorio universal € a norma da argumenta- ao objetiva; 2) dirigir-se ao auditério universal 6 0 que ca- racteriza a argumentacao filosGfica; 3) 0 conceito de audits- rio universal ndo é um conceito empirico: 0 acordo de um audit6rio universal “nao é uma questao de fato, e sim de direito” (ibid,, p. 72); 4) 0 auditério universal ¢ ideal no sen- tido de que € formado por todos os seres dotados de razao, mas por outro lado é uma construcao do orador, quer dizer, nao é uma entidade objetiva; 5) isso significa nao apenas que oradorés diferentes constroem auditorios universais diferentes, mas também que auditério universal de um mesmo orador muda. Uma das fungdes que esse conceito desempenha na obra de Perelman é a de permitir distinguir (embora se tra- te de uma distincao imprecisa, como ocorre também_com a distincao entre os diversos auditérios) entre pérsuadi? e convericer) Uma argumentacao persuasiva, para Perelman, 6 aguiela que s6 vale para um auditério particular, ao passo que uma argumentacao convincente é a que se pretende va- lida para todo ser dotado de razao. Enfim, a argumentacao, ao contrério da demonstracao, estd estreitamente ligada a agi. A argumentacao ¢, na reali- dade, uma aco - ou um processo - com a qual se pretende obter um resultado; conseguir a adesio do auditorio, mas s6 por meio da linguagem, quer dizer, prescindindo do uso da ‘violencia fisica ou psicologica, Por outro lado, sua proximida- ide com a pratica faz com que, na argumentagao, nao se possa falar propriamente de objetividade, mas sim de imparcialida- ie: “Ser imparcial nado ¢ ser objetivo, & fazer parte do mesmo 8 “O auditério universal , como os demats, um auditério co se modifica com 0 tempo e com a ideia que dele faz 0 orada ‘man e Olbrecht-Tytece, 1989, p. 742). grupo que aqueles a quem se julga, sem ter antecipadamente tomado partido de nenhum deles.” (ibid,, p. 113) A nogao de imparcialidade> por outro lado, parece estar em contato es- treito com a regra de justica (ser imparcial implica que, em circunsténcias andlogas, se reagiria do mesmo modo) e com a de auditério universal (os critérios seguidos teriam de ser validos para o maior numero possivel e, em tiltima instancia, para o audit6rio universal - of. ibid., p. 115). 2.3. 0 ponto de partida da argumentacao Ao estudar’as premissas de que se parte numa argu: mentagao, pode-se distinguir trés aspectos: 0 acordo, a es colha ¢ a apresentacao das premissas. Para poder desenvolver uma argumentacao ¢ preciso, efetivamente, partir do que se admite no inicio, se bem que © proprio ponto de partida jé constitua um primeiro passo em sua utilizacdo persuasiva. Os “objetos de acordo dem ser relativos ao,real (fatos, verdades ou presungdes) ou 20, ] (valores, hierarquias e lugares do preferivel); os primeiros pretendem ser validos para o auditorio universal, 20 passo que os segundos s6 seriam validos para auditorios particulares. Assim, por exemplo, os fatos (trata-se de fatos de observacao ou de suposic&es convencionais) se caracte- rizam por suscitarem uma tal adesao do auditério univer- sal que seria inttil reforcar. Eles se diferenciam das wera por serem objetos de acordo precisos, limitados, a passo que as verdades sao sistemas mais complexos, unides de fa- tos (p. ex,, teorias cientificas, concepedes filoséficas, religio- Sas etc.). E das presuncdes porque estas sim - diferentemente deles -, podem’ —ou precisam - ser justificadas diante do auditério universal Os.galares sao objetos de acordo relativos ao preferivel na medida em que pressupdem uma atitude sobre a re lidade e nao pretendém valer para 0 auditério universal. Ou, para ser mais preciso, os valores mais gerais (como o Capitulo 3 + Perelman e aNova Retérica | 63, verdadeiro,o_bem,.o belo ou.o justo) s6 valem para 0 au- ditorio universal com a condicao de que seu contedido nao seja especificado; conforme isso ocorra, eles se apresentam como concordes apenas as aspiracdes de certos grupos par: ticulares. Mas o que caracteriza um auditério nao sao tanto 08 valores que ele admite quanto a maneira como os hie- rarquiza. E uma forma de justificar uma hierarquia (ou um valor) € recorrendo a premissas de ordem muito geral, isto 6, a0 lugares-comufis ou tépicas? A tépica consti a teoria de Perelman, um aspecto da retérica ~ Por outro lado, ha tipos de argumentacao que se d senvolvem para um auditorio nao especializada, a0 passo que outros dizem respeito a audit6rios particulares que se caracterizam pelo fato de, neles, valer um determinado tipo de agordos especilices. Por exemplo, no Direito positivo e Te iva um fafo nao tem relacdo com 0 acorda, do auditério universal; um fato é 0 que 0s textos permitem ou exigem tratar como tal. Além disso, uma discussao néo poderia ter lugar se os interlocutores pudessem por em di- vida, sem nenhum limite, os acordos da argumentacdo; quer dizer, se nao estivesse funcionando algo assim como um p , por exemplo, a técnica juridica do precedente e, em geral, a regra formal de justica, “inercia permite contar com o nozmal, o habitual, o,teal, avalié-lo, quer se trate de uma situacdo existente, de uma opiniao admitida ou de um estado de desenvolvi- mento continuo e regular. A mudanea, pelo contrario, deve ser justificada; uma decisdo, uma vez tomada, s6 pode ser modificada por razbes suficientes.” (Perelman e Olbrecht- Tyteca, 1989, p. 178) _ Entretanto, as vezes se pode’Cometer 0 erfo que con- siste em se apoiar em premissas nao admitidas pelo inter- locutor, e, com isso, incorre-se em peticio de principio. isto.é, postula-se o que se quer provar. Mas a peticao de principio nao é um erro de tipo légico (uma deducao logica sempre |. __AS Razdes do Diteito ¢ Manuel Atienza incorreria em petigao de principio, uma vez que a conclusio ja esta contida nas premissas),e sim um erro de argumenta- toda argumentacio é - em sentido amplo= ad hominem, pois depende do que o interlocutor esteja disposto a admitir, mas esse argumento ¢ mal usado quando se supde erroneam te que o interlocutor jé aceitou uma tese que se pretende que ele admita Para que uma argumentagao seja possivel, é necessario pressupor uma infinidade de objetos de acordo. Como é im- possivel apresentar a totalidade desses elementos, a argu- mentacdo serd necessariamente seletiva, e em dois sentidos, pois € preciso escolher tanto os elementos quanio_a forma de apresenté-los. A escolha cumpre, por outro lado, um efeito de atribuir presenca a esses elementos, 0 que constitu um fator essencial na argumentacao. Na escolha do dado ¢ importante estudar o papel da interpretagao, das qualificagdes (qualificativos e classifica- Bes) e do uso das nocées. Aqui Perelman atribui uma gran: de importancia ao uso de nogdes obscuras (na opiniao dele, fora do interior de um sistema formal todas as nogdes sao, em maior ou menor grau, obscuras), que permitem acordos de tipo muito geral. Os valores universais, que sao inistru- menios de persuasao por exceléncia - por exemplo, 0 de juss liga -, so também as nogdes mais confusas (cf. Perelman, 1978, p.3-17) Finalmente, a propésito da apresentacao das premissas, Perelman e Olbrecht-Tyteca mostram o papel desempenha- do pela utilizacao de certas formas verbais, das modalidades de expresstio do pensamento (p. ex., 0 uso de afirmacoes ou negacdes, de assercbes, interrogacdes, prescricées etc.) e das figuras ret6ricas. Estas ndo sao estudadas como figuras de estilé, e sim como figuras argumentativas, e aparecem classificadas em trés grupos: figuras de escolha (a definicao ratoria, a perifrase, a sinédoque ou a metonimia); de pre- = Capitulo 3. Perelman e a Nova Retérica | 65 senga (a onomatopeia, a repeti¢do, a amplificacao, a sinont- mia, © pseudodiscurso direto); e de comunhao (a alusao, a citacdo, a apéstrofe); a classificacdo se da segundo o feito - ou o efeito predominante ~ que elas cumprem no cont de apresentacao dos dados, e que pode ser, respectivamen te: impor ou sugerir uma escolha; aumentar a presenca'dé um determinado elemento; criar ou confirmar a comunhao com 0 auditério. 2.4. As técnicas argumentativas 2.4.1. Classificagao dos argumentos No Tratado, Perelman e Olbrecht-Tyteca partem de uma classificacao geral das ténicas argumentativas, dos argumentos, em dois grupos, conforme possam ser vistos que pre- tenda seja estruturé-los, seja valord-los positiva ou negati- vamente”) (Perelman e Olbrecht-Tyteca, 1989, p. 299) on.de dissociagto (seu objetivo ¢ “dissociar, separar, dissolidarizar elementos considerados componentes de um todo ou pelo menos de um conjunto solidario no interior de um sistema de pensamento) (ibid., p. 299-300). Por sua vez, os primei- ros se classificam em: argumentos quase l6gicos, cuja forca deriva de sua proximidade ~ mas nao identificacao - em relagdo aos argumentos puramente légicos ou matematicos; argumentos baseados na estrutura do real, quer se trate de unides de sucessao ou de unides de coexisténcia; e argu- mentos que dao a base para a estrutura do real, tomando como fundamento 0 caso particular ou a semelhanca de es- truturas existentes entre elementos pertencentes a dominios distintos (analogia). Para esclarecer um pouco mais as coi- sas desde o princfpio, pode ser titil oferecer o seguinte qua- dro, que contém a maior parte das técnicas argumentativas estudadas no Tratado: 66 | _As Raztes do Direito & Manuel Atienza TECNICAS ARGUMENTATIVAS associasio: smentos quase légicas todo lacao parte-todo de ws jumentos juridicos: te-consequéncia e meio-fim 0 meio-fim dlferencas de grau e de order argumentos que dio a base para a estrutura do real Capitulo 3 Perelmai 2.4.2. Argumentos quase ldgicos Os argumentos quase logicos, que se baseiam em estru: turas | m sentido estrito, podem, por sua vez, fazer feréncia as nog dade. No plano de um discurso nao fo nao sao tanto contrad patibilidades (estas se diferenciam das primeiras por sua existéncia estar em funcao das circunstancias, quer dizer, elas nao,tém um carter abstrato); ao passo que a contradiciio de absurdo) a na afirmacao é ridicula quando entra em conflito, sem justificacao, com uma opiniao ad: sua vez, 0 ridiculo pode ser obtido por meio procedimento que consiste em querer fazer entender 6 con- 1e se diz; 0 uso da ironi ireta, o que equivale ao argumento por m geometria. No que se refere & nocdo de de de seres, aconte se logico quan nem evidente. E possivel distinguir dois procedimentos de identificacao: a identidade completa e a identidade parcial. O procedimento mais caracterfstico de identidade completa 6a definicao, que pode desempenhar um duplo papel na ar- gumentacio, sobretudo quando existem varias definicdes de um termo da linguagem natural: por um lado as definicoes podem ser justificadas com a ajuda de argumentacdes; e por outro lado elas sao em si argumentos, isto é, servem para le, a identificagao 68 | _ As Rezies do Direito + Manuel Atienza fazer avangar o racidciitie. Quanto a identidade parcial, aqui, por sua vez, é preciso distinguir entre a regra de justiga (que permite, p. ex, apresentar como uma argumeniaciio quase légica 0 uso do precedente) e os argumentos de reciprocidade, que levam a aplicar o mesmo tratamento a situagGes que nao sdo idénticas, e sim siméfrica’ (uma relacdo é simétrica quan- do, se vale Rxy, vale também Ryx), com 0 que prinefpio da reciprocidade (em que se baseia uma moral de tipo huma- ista, embora se trate de principios judaico-cristaos do tipo “ndo faca aos outros o que nao queres que facam contigo”, ou entao do imperative categérico kantianoy implica tam- bém - ou justifica ~ a aplicagao da regra de justica. Finalmente, os argumentos que se baseiam na nogao de transitividadé(uma relacao é transitiva quando, se vale Rxy e Ryz, vale também Rxz) sao aplicdveis, sobretudo, quando existem relagdes de solidariedade (“os amigos dos seus amigos s40 meus amigos”) e antagonismo, e quando se ordenam seres ou acontecimentos sobre os quais nao cabe confrontacao direta (se A é melhor do que B e B é melhor do que C, entao A é melhor do que C). A nogao matematica de incluso pode ser entendida no sentido da relacao entre as partes e o todo, da qual surgem varios tipos de argumentos (p. ex., 0 valor da parte é pro- porcional ao que representa em comparacao com o todo), ou, entao, como relacao entre as partes resultantes da visdo de um todo. Este tiltimo, quer dizer, o argumento da divisao, é a base do « (do qual uma das formas consiste em mostrar que, de duas possiveis opgdes que se apresen- tam numa situacao, ambas conduzem a um resultado ina- ceitavel), mas também dos argumentos juridicos a pari (0 que vale para uma espécie vale também para outra espécie do mesmo género) ou a contrario (o que vale para uma nao vale para a outra, porque se entende que esta tltima é uma excegdo a uma regra subentendida referente ao géncro). Nos argumentos de comparac&o (nos quais est subja- cente a ideia de medida, até certo ponto suscetivel de prova), Capitulo 3 ~ Perelman e a Nova Retérica | 69 confrontam-se varios objetos para avalid-los, uns em relagéo aos outros. Um argumento de comparacao frequentemente usado ¢ 0 que se vale do sacrificio que se esté disposto a so- frer para obter algum resultado, e que esté na base de todo sistema de troca econémica (p. ex., na compra e venda), em- bora o argumento nao se limite ao campo econdmico. Os argumentos que se baseiam na nogéo de probabili- dade, enfim, sao caracteristicos da tradigéo utilitarista, e um dos efeitos que seu uso produz é 0 de dotar de um cardter mais empirico o problema que se discute. 2.4.3, Argumentos baseados na estrutura do real (Os argumentos baseados na estrutura do real se servem de unides de io ou de coexisténcia, para estabelecer uma solidariedade entre juizos admitidos e outros que se tenta promover. Os que se aplicam a unides de sucesso “mem um fendmeno a suas consequéncias ou a suas causas” (Perelman ¢ Olbrecht-Tyteca, 1989, p. 404). Aqui se inclui, por exemplo, o argumento pragmtico, que permite apreciar uum ato ou um acontecimento segundo as suas consequén- cias favoraveis ou desfavoraveis. Esse tipo de argumento de- sempenha um papel tao essencial que as vezes se pretendeu reduzir a ele toda argumentacao razoavel” Isso, na opiniaio de Perelman, nao é aceitavel, pois o seu uso implica diversas dificuldades (como a de estabelecer todas as consequéncias de um ato ou a de distinguir as consequéncias favoraveis das desfavoraveis) que s6 podem ser resolvidas recorrendo- se a arguments de outros tipos. Também se servem de uma unio de sucesso os argumentos que consistem em inter- pretar um acontecimento segundo a relagio fto-consequéncia ou entio meio-fim (os fins, diferentemente das consequencias, sao pretendidos, i. e,, em cardter voluntario), Ou, finalmente, 70 As Razbes do Direito $ Manuel Atienza os que se baseiam, em geral, na relacao meio-fim, que so tio importantes na filosofia politica Alem disso, incluem-se também nesse item outros ar- gumentos que se referem a sucesso de dois ou mais acon. tecimentos e que, sem excluir necessariamente a ideia de causalidade, nao a colocam ~ como os anteriores ~ em p meiro plano. Assim ocorre com o argumento do esbanjamento, que consiste em sustentar que - uma vez tendo comecado uma obra e tendo sido aceitos sacrificios que seriam ind- teis caso se renuncie a empresa ~ é preciso prosseguir na mesma direcdo; com 0 argumento di 90, que consiste es- sencialmente na adverténcia contra o uso do procedimento das etapas (se se cede dessa vez sera preciso ceder um po co mais da préxima vez, até chegar...); ou com 0 arguntento da superagio (depassement), que insiste na possibilidade de avancar sempre num sentido determinado, sem que se per- ceba um limite nessa direcdo, e isso com um crescimento continuo de valor. Os argumentos baseados na estrutura do real, empre- gados nas unides de coexisténcia, “associam uma pessoa com seus atos, um grupo com os individuos que o compem €, em geral, uma esséncia com as suas manifestacées (ibid., p. 404). A relacdo ato-pessoa da lugar a diversos tipos de ar- gumentos, pois tanto possivel que os atos influam sobre a concepeao da pessoa quanto que a pessoa influa sobre os, seus alos, ou que ocorram relagdes de interacdo, nas quais nao ¢ possivel dar primazia a nenhum dos dois elementos. Um tipo caracteristico de argumento baseado na rela- do ato-pessoa (e, em particular, no prestigio de uma pessoa ou de um grupo de pessoas) é 0 argumento de autoridade, que se serve dessa relacaio como meio de prova a favor de uma tese. Para Perelman, a legitimidade desse argumento nao pode ser posta em questao de modo geral, pois cumpre um papel muito importante, especialmente quando a argumen- tacao trata de problemas que nao dizem respeito simples- Direito, no qual o precedente judicial se baseia precisamente na nocdo de autoridade. As relagoes entre um grupo e seus membros podem ser analisadas em termos essencialmente semelhantes aos da relacdo ato-pessoa. E 0 mesmo ocorre quando se ligam fenomenos particulares a outros conside- rados como expressao de uma essénc Perelman entende também ser iitil aproximar, das uni- es de coexisténcia, as unides simbélicas que ligam o simbo- Joao que é simbolizado, estabelecendo entre ambos uma re- lacao de participagio: o simbolo se distingue do signo porque a relacdo entre o simbolo e o simbolizado nao ¢ puramente convencional (p. ex., 0 ledo é simbolo do valor, a cruz é sim- bolo do cristianismo etc.). As unides de coexisténcia, por fim, podem servir tam- bém de base para argumentos mais complexos, como 0 ar- gumento de dupla hierarquia: uma hierarquia entre valores se justifica por meio de outra hierarquia; por exemplo, a hierarquia das pessoas acarreta uma gradacao dos senti- mentos, acdes ete. que emanam delas. O outro exemplo de argumentos mais complexos baseados nas unides de coe- xisténcia so os arguimentos relativos as diferencas de ordem e de grau: uma mudanga de grau ou quantitativa pode ori nar uma mudanca de natureza, uma mudanga qualitativa, 0 que dé lugar a diversos tipos de argumentos; por exemplo, a sustentar que ndo se deve adotar uma acao que implique uma mudanca do primeiro tipo, se ha razes para nao dese- wadanca do segundo tipo. jar uma 2.4.4, Argumentos que déo a base para a estrutura do real ‘As unides que dao base para a estrutura do real, recor~ rendo ao caso particular, Jevam essencialmente a trés tipos de argumentos: 0 exemplo, a ilustracao eo modelo. Na argu- mentacio pelo exemplo, o caso particular serve para permitir ‘uma generalizacdo: nas ciéncias se tratard de formular uma 72 |___As Razbes do Direito ¢ Manuel Atienza lei geral, ao passo que, no Direito, a invocacao do precedente equivale a consideri-lo um exemplo que funda uma regra nova (a expressa na ratio decidendi). A diferenca do exemplo, a ilustragao garante (mas nao fundamenta) uma regularidade ja estabelecida: assim, uma determinada disposicao jurfdica sera vista como ilustracdo de um principio geral conforme toma patente o principio; este, entretanto, nao deve sua exis- téncia a ela. Enfim, no modelo, um comportamento particular serve para incitar a uma aco que se inspira nele. Oraciocinio por analogia, tal como o entende Perelman (cf. Atienza, 1986), nao coincide com aquele a que 0s juristas dao esse nome, quer dizer, com o argumento a simili ou a pari, e dai Perelman pensar que ele nao tem grande impor- tancia no Direito. No Tratado a analogia é concebida como uma semelhanca de estruturas, cuja formula geral seria: A/B = C/D (p. ex, 08 casos nao previstos séo, para 0 Direito, 0 que as lagoas sao para a superficie terrestre), e onde se cum- prem as seguintes condigoes: 1) O conjunto dos termos C € D, chamado foro, deve ser mais bem conhecido do que 0 conjunto dos termos A e B, denominado tena; dessa forma, © foro permite esclarecer a estrutura ou estabelecer o valo do tema, 2) Entre o tema e o foro deve haver uma relacdo de assimetria, de tal maneira que de A/B = C/D nao se pode passar a afirmar também C/D = A/B; nisso a analogia se di- ferencia de uma simples proporcao matematica (se 2/3 = 6/9, entao também vale 6/9 = 2/3). 3) Tema e foro devem pertencer a dominios diferentes; se pertencessem a um mes mo dominio e pudessem se subsumir sob uma estrutura co- mum, estariamos diante de um exemplo ou de uma ilustra- (a0. 4) A relacdo de semelhanca, por tltimo, é uma relacao que se estabelece entre estruturas, ndo entre termos; nao é tanto, por assim dizer, uma relagao de semelhanca quanto uma semelhanca de relacdes. Isso permite diferenciar a ana- Jogia da identidade parcial do argumento a pari e da meté- fora, que Perelman considera uma “analogia condensada” Capitulo 3. Perelman e a Nova Retérica | 73 (cé. Perelman, 19696); a metéfor tamente, 0 resul- tado da fusdo de um elemento do foro com um elemento do tema: assim, partindo do exemplo anterior, utiliza-se metéfora quando se chama de uma lagoa do Direito B) um caso nao previsto (A) 2.4.5. Argumentos de dissociacao Enquanto as técnicas de ruptura de uniges consistem em afirmar que estdo indevidamente associados elementos que deveriam permanecer separados e independentes (¢ por isso sao estudados em relacdo com os diversos argu- mentos de unio ou associacao), “a dissociagao pressupde a unidade primitiva de dois elementos confundidos no inte- rior de uma mesma concepeao, designados por uma mesma nogao" ; coma dissociacao, “ja nao se trata de romper os fios que ligam dois elementos isolados, e sim de modificar a sua propria estrutura” (Perelman e Olbrecht-Tyteca, 1989, p. 628). A dissociacao das nogées consiste assim numa transfor- macao “provocada sempre pelo desejo de suprimir uma in- compatibilidade, nascida da confrontagio de uma tese com outras, quer se trate de normas, fatos ou verdades” (ibid, p. 629). Um exemplo de utilizacao de um argumento de disso- ciacao é a introdugao, por um jurista, de uma distincao, com propésito de conciliar normas que de outra forma, seriam incompativeis (a mesma fung&o que cumpriam os distinguo scoléstica). O protétipo de toda dissociagio € idade aparéncia-realidade, surgida da necessidade de evitar incompatibilidades entre aparéncias que nao podem, ser todas consideradas expressao da realidade, sese parte da hipétese de que todos os aspectos do real sao compativeis entre si; por exemplo, 0 cajado parcialmente submerso na Agua parece estar dobrado quando o olhamos e reto quando © tocamos, mas, na realidade, nao pode estar reto e dobra- do ao mesmo tempo. De igual maneira o homem nao pode ser ao mesmo tempo livre e escravo, o que levou Rousseau 74 | _As Razoes do Direito + Manuel Atienza a distinguir entre 0 estado de sociedade civil (no qual 0 homem aparece preso como consequéncia, sobretudo, da invencao da propriedade privada) e o estado de natureza (no qual o homem é certamente um ser livre). Perelman e Olbrecht-Tyteca chamam de “dualidades filoséficas” essas duplas que resultam (a semelhanca da dualidade aparén- cia-realidade) de uma dissociagao de nogées: por exemplo, meio-fim; consequéncia-fato ou pr y ato-pessoa; relati- vo-absoluto; teoria-pratica; letra-espirito. Essas dualidades sao usadas em todos os niveis e dominios, e desempenham um papel importante como expresso de uma determinada visao do mundo (cf. Olbrecht-Tyteca, 1979). 2.4.6. Interacao e forca dos argumentos A anilise anterior dos argumentos ¢, entretanto, insufi- ciente, Por um lado, porque a classificagao nao é exaustiva e tampouco permite diferenciar classes de argumentos que se excluam mutuamente, Quer dizer, um mesmo argumento real pode ser explicado a partir de diversas técnicas argu- mentativas: 0 precedente - como vimos - seria uma hip. tese de aplicacao da regra de justica, mas também de uso do argumento de autoridade e do argumento a partir de exemplos; e a definicao nao é apenas um instrumento da ar- gumentacdo quase Iégica, mas também um instrumento de dissociacao, se usada para diferenciar o sentido aparente de uma nocao de seu significado verdadeiro (cf. Perelman Olbrecht-Tyteca, 1989, p. 675 e segs). Por outro lado, 0 que importa na argumentacio nao so tanto os elementos isolados - os argumentos - quanto © todo de que eles fazem parte. Como disse antes, todos os elementos da argumentacao estao em constante interacao, 0 que ocorre de varios pontos de vista: entre diver- sos argumentos enunciados, interacao entre estes e 0 con- junto da situacao argumentativa, entre estes e a sua conclu- sa0 e, por tiltimo, interacdo entre os argumentos contidos no discurso ¢ os que tém a este como objeto.” (ibid, p. 699) O orador deveré levar em conta esse complexo fendmeno de nteragao na hora de escolher seus argumentos, assim como ‘a amplitude e a ordem da argumentacdo. Para isso, tera de guiar-se por uma nogao confusa, mas indispensavel, a forca dos argumentos. No Tratado diversos critérios sao sugeridos para ava- liar a forca dos argumentos, mas 0 principio que se consi- dera capital 6 0 da adaptacio ao auditério, No entanto, isso pode ser entendido de duas maneiras, podendo-se pensar que um argumento sélido é um argumento eficaz que de- termina a adesao de um auditério, ou entéo um argumento vélide, quer dizer, um argumento que deveria determinar essa adesao. Segundo Perelman, independentemente de qual seja a importancia do elemento descritivo - a ia = ou do normativo ~ a validade - para a avaliagdo da for- ca dos argumentos, 0 certo é que “na pratica se distingue entre argumentos fortes e argumento fracos” ({bid., p. 705). Embora esse seja um dos pontos mais obscuros do Tratado, Perelman parece sugerir um duplo critério: um que se apli- ca aos argumentos em geral e outro caracteristico de cada um dos campos da argumentacao. “Nossa tese consiste em que se avalia essa forca gracas a regra de justica: 0 que, em certa situacao, pode convencer, parecer convincente numa situacdo semelhante ou andloga. Em cada discipli- na particular a aproximacao entre situagdes sera objeto de um exame e de um refinamento constantes. Toda iniciagaio num campo racionalmente sistematizado nao s6 propor ciona 0 conhecimento dos fatos e das verdades do ramo em questao, de sua terminologia especifica, da maneira como se deverao empregar os instrumentos de que se dis- poe, como também educa sobre a avaliacao do poder dos argumentos utilizados nessa matéria. Assim, a forca dos argumentos depende, em grande parte, de um contex- to tradicional” (ibid., p. 705) 76 | __As Raz6es do Direita + Manuel Atienza 3. ALOGICA JURIDICA COMO ARGUMENTACAO Como jé vimos, Perelman distingue entre uma ret6rica geral e uma retérica aplicada a campos especificos, como é © caso do Direito. Ao estudo das técnicas e raciocinios pré- prios dos juristas, ele chama, entretanto, légica ji a légica juridica nao é, para Perelman, um ramo da logica formal aplicada ao Direita, porque os raciocinios juridicos nao podem absolutamente ser reduzidos a raciocinios 16- gico-formais (¢ dai as suas diferencas com Kalinowski ou Klug), sendo na verdade - como ja disse ~ um ramo da re- torica: a argumentacao juridica é, inclusive, 0 paradigma da argumentacao retorica, Em resumo, trata-se_novamente ‘0s e dialéticos, que re- monta a Aristételes: “O papel da l6gica formal é fazer com que a conclusio seja solidaria com as premissas, mas o da logica juridica € mostrar a aceitabilidade das premissas [. A logica juridica, especialmente a judicial [...] se apresenta, resumindo, ndo como uma l6gica formal, e sim como uma argumentacao que depende da maneira como os legislado- res e 0s juizes concebem a sua missao e da ideia que fazem do Direito do seu funcionamento na sociedade. (Perelman, 1979b, p. 232.e 233) Contudo, Perelman vai além de Aristételes (cf. Alexy, 1978, p. 159), pois ao passo que, para este, a estrutura do raciocinio dialético é a mesma do silogismo (a diferenca residiria exclusivamente na natureza das premissas - no caso do raciocinio dialético sdo apenas plausiveis), Perelman entende que a passagem das premis- sas para a conclusao se produz de forma diferente na ar- gumentacdo: “Enquanto isso no silogismo a passagem das premissas para a conclusdo ¢ necessaria, nao ocorre o mes- mo quando se trata de passar de um argumento para uma decisao. Essa passagem nao pode ser de modo algum neces- saria, pois, se fosse, néio nos encontrariamos, em absolut diante de uma decisao, que supde sempre a possibilidade de decidir de outra maneira ou de nao tomar nenhuma d cisdo.” (Perelman, 1979b, p. 11) Capitulo 3 Perelman e a Nova Retérica | 77 Por outro lado, a especificidade do raciocinio juridico parece consistir no seguinte: ao contrario do que ocorre nas ciéncias (em particular nas ciéncias dedutivas) e semelhan- te ao que ocorre na filosofia e nas ciéncias humanas, na ar- gumentagao juridica é dificil chegar a um acordo entre as partes; quer dizer, a argumentacao tem o caréter de uma controvérsia. Entretanto, consegue-se superar essa dificul- dade mediante a imposicao de uma decisao baseada na au- toridade, ao passo que, na filosofia e nas ciéncias humanas, cada uma das partes permanece em sua posicao. Em parti- cular, a autoridade judicial desempenha, na concepcao de Perelman, um papel central, e dai o fato de se considerar que é no procedimento judicial que “o raciocinio juridico se manifesta por antonomésia” (ibid., p. 201). Uma vez. que a logica juridica esta ligada a ideia que se tem do Direito, Perelman traca uma evolugao historica tanto do conceito de Direito quanto das técnicas do raciocinio jurt- ico em Roma e na Idade Média (esforgando-se por mostrar como 0 Direito é elaborado segundo um modelo dia ou argumentativo), até chegar aos tedricos jus-racionalistas dos séculos XVII e XVIII que se ocuparam em construir uma jurisprudéncia universal, fundada em princfpios racionais e seguindo um modelo de raciocinio dedutivo. A esse ide- al de jurisprudéncia universal se opuseram trés teses: a de Hobbes (0 Direito nao é expresso da razao, e sim da von- tade soberana), a de Montesquieu (as leis sto expressiio da azo, mas relativas a um meio social, a uma época hist6rica etc.) ea de Rousseau (0 Direito ¢ produto da vontade geral da nacao), que confluiram na Revolucao Francesa e deter- minaram a nova concepgao de Direito e do raciocinio juridi surgida entao. Efetivamente, com a Revolucao Francesa (0 subsequente Cédigo Napolednico) ocorre uma série de mudancas fundamentais: o Direito ¢ entendido como 0 con- junto de leis que s4o expresso da soberania nacional, apa- recem sistemas juridicos bem elaborados, 0 papel dos ju 78|__ As Razbes do Direito Manuel Atienza se reduz ao minimo e se estabelece a obrigacao de apresen- taro motivo das sentencas, que passam a ser também objeto de conhecimento pablico. A partir do Cédigo Napolednico, no continente eu- ropeu teriam se sucedido basicamente ~ de acordo com a exposicdo de Perelman - trés teorias relativas ao raciocinio judicial. A primeira delas, a da escola da exegese, teria domi nado 0 conheciment ico continental" até aproximada- mente 1880. Fla se caracteriza por conceber o Direito como um sistema dedutivo e pela configuragéo que faz do racioci- nio judicial, segundo a conhecida teoria do silogismo, Para a de acordo consequén- © juiz s6 6 importante que a sua decisio com 0 Direito, ¢ ele nao co cias ou 0 caréter razoavel ou A segunda concepeao, Perelman a denomina teleolégi- a, funcional e socioldgica, © suas origens estariam na obra de Ihering (0 “segundo Ihering”, para ser mais exato). O direito nao 6 entendido como “um sistema mais ou menos fechado, que 0s juizes devem aplicar, utilizando métodos dedutivas a partir de textos convenientemente interpretados. Ao contré- rio, é um meio de que o ve para alcangar fins ¢ promover determinados valores” (ibid., p. 74). Portanto, 0 idera as possi dela, door se st juiz nao pode se contentar com fazer uma simples deducao logistica, e, sim, deve remontar a “intencao” do legislador, pois 0 que conta, sobretudo, é o fim social perseguido por ele, e daf o juiz se ver obrigado a sair dos esquemas da gica formal e utilizar diversas técnicas “argumentativas” na indagacao da vontade do legislador (argumentos a simtili, a contrario, psicol6gico, teleol6gico etc.) A terceira concepeao, que se pode chamar de concep- ipica do raciocinio juridico, 6 a predominante, segundo ao ido da escola Capitulo 3. Perelman e a Nova Retérice | 79 Perelman, no raciocinio judicial dos paises ocidentai partir de 1945. Depois da experiéncia do regime nacional -socialista, ocorreu, nos paises continentais europeus, uma tendéncia a aumentar os poderes dos juizes na elaboracéo do Direito, com o que se operou também uma aproximacao entre o sistema juridico continental e 0 anglo-saxao e suas correspondentes concepcdes do raciocinio juridico (judicial). A experiéncia nazista supés, para Perelman, a critica defini- tiva ao positivismo juridico e a sua pretensao de eliminar do Direito toda a referéncia a Justica. Resumindo, a nova con- cepcao do Direito se caracterizaria pela importancia atribuf- da aos principios gerais do Direito e aos lugares especificos do Direito (os tépicos juridicos). O raciocinio juridico nao é nem “uma simples deducao silogistica” nem, tampouco, “a mera busca de uma solucao equ mas sim a “busca de uma sintese na qual em conta, a0 mesmo tempo, o valor da solucdo ea sua conformidade com o Direito (i d P. 114). Ou, dito de outra forma, a conciliagao dos valores de equidade e seguranca juridica, a procura de uma solu- (cdo que seja “nao apenas de acordo com a lei como também equitativa, razoavel e aceitavel” (ibid, p. 78). 4. UMA AVALIACAO CRITICA DA TEORIA DE PERELMAN 4.1, Uma teoria da razao pratica A importancia da obra de Perelman - como muitas ve- zes ja se escreveu - reside essencialmente em seu objetivo de reabilitar a raz3o pratica, ou seja, de introduzir algum tipo de racionalidade na discussao de questdes concerner tes a moral, ao Direito, a politica etc., que venha a significar algo assim como uma via intermediaria entre a razao te6ri- ca (a das ciéncias légico-experimentais) e a pura e simples irracionalidade, Além disso, a sua proposta se caracteriza nao sé pela amplitude com que concebe a argumentacao, mas também porque leva em conta 0s raciocinios praticos 80 | __As Razbes do Direito «+ Manuel Atienza tal e como eles ocorrem na realidade. cia concedida ao eixo pragmitico da linguagem (o objetivo da argumentacao ¢ persuadir), ao contexto social e cultural em que se desenvolve a argumentacdo, ao princfpio da uni- versalidade (a regra de justica) ou as nocées de acordo & de auditério (Sobretudo de audit6rio universal) antecipam lementos essenciais de outras teorias da argumentacdo, para as quais converge, hoje, o debate concernente & razaio pratica; como exemplo deste bastard assinalar as analogias existentes entre a nogao de auditério universal e a de comu- nidade ideal de didlogo habermasiana, embora esse nao seja © tinico ponto de coincidéncia entre Perelman e Habermas (cf. Alexy, 1978, p. 156 e segs.) Todos esses elementos contribuiram, sem dtivida, para que a obra de Perelman tenha tido uma amplissima difu- sao e em ambitos muito diferentes, que vao desde a teoria do Direito a teoria da comunicacaio, passando pela ciéncia politica, pela filosofia moral etc."* O que nao est4 tao claro, entretanto, é que sua nova retérica tenha conseguido real- mente assentar as bases de uma teoria argumentagao capaz de cumprir as funcdes - descritivas e prescritivas - que Perelman Ihe atribui; de fato, a recepcdo de sua obra foi, com certa frequéncia, uma recep¢ao critica. Dividirei em trés itens as objecdes que Ihe podem ser dirigidas - e que 0 foram -, conforme se trate de uma critica conceitual, de uma critica ideolégica ou de uma critica relativa a sua concepcao do Direito e do raciocinio juridico. Enfim, a importan- 11 Gk Perelman, 1968, p. 185; também Zyskind, 1979, p. 31 e Amold, 1986, p. 41. Em La ldgica juridica y la nueva ret 1979b) hi também um abundante material de raciocinios juridicos, extraidos fundamentalmente de sentencas de roeses e belgas. 12 Ha trés colegdes de artigos em hiomenagem a Perelman. O leitor po: deré encontrar uma referéncia 2 eles em Manel, 1979, Perelman, 1986, € Van Quickenborne, 1986. Camo exempio da influéncia da obra de Perelman nia dogmtica do Direlto em Espanha, pode-se ver Rodriguez M 1988, Capitulo 3 + Perelman e a Nova Retérica | 81 4.2. Critica conceitual Poder-se-ia dizer que, do ponto de vista te6rico, o peca- do capital de Perelman é a falta de clareza de praticamente todos os conceitos centrais da sua concepgio da retérica. E certo também que o préprio Perelman defendeu a tese de que as nogSes confusas ndo s6 sao inevitaveis, como tam- bém desempenham um papel muito importante na argu- mentacao. Mas isso nao 0 poe a salvo - parece-me - de cri- tica, Em primeiro lugar, porque a obscuridade conceitual sem diivida tem um limite - algo com o que o proprio Perel- man esta de acordo, embora seguramente nao o demonstre sempre -, para que 0 uso nao se converta em abuso. E em egundo lugar, porque uma coisa ¢ argumentar sobre ques- tOes praticas e outra diferente é escrever uma obra tebrica sobre a argumentacao: no primeiro caso se trata ~ deve-se pensar ~ de persuadir, e, para isso, pode ser Ges confusas; mas, no segundo, trata-se, pelo contrario, de explicar, e uma explicagao que se vale ¢ ss confusas € precisamente isso, uma explicacao confusa, e ndo uma boa explicacao. Vejamos alguns exemplos disso. 4.2.1, Sobre a classificagao dos argumentos A classificagao dos argumentos que aparece no Tratado esté Jonge de ser clara e inclusive util. Por um lado, a dis- tincdo entre procedimentos de associagao e de dissociacao parece artificiosa, pois as duas técnicas se enredam uma na outra (cf. Pieretti, 1969, p. 194). Prova dessa artificiosidade é que, no Tratado, considera-se que a técnica do distinguo es- colastico é um exemplo de dissociagao, ao passo que em La légica juridica y la nueva ret6rica (Perelman, 1979b, p. 19) el ligada aos argumentos juridicos a simili, a fortiori e a contra- rio, os quais, no Tratado, faziam parte dos argumentos quase logicos. J4 vimos que Perelman insistia em que a sua clas- sificacdo dos argumentos era, em certo sentido, arbitraria Mas se a arbitrariedade chega a tal extremo que, na hora de As Razbes do Diteito & Manuel Atienza classificar os argumentos, as dtividas sao em maior nim do que as certezas, entéo o que nao se vé ¢ a utilidade de empreender esse esforco classificatorio, Por outro lado, com clacdo a classificacao entre argumentos quase légicos, ar- gumentos que se baseiam na estrutura do real e argumentos que fundamentam a estrutura do real, 0 que nao fica claro € qual seja o critério de classificacao utilizado (cf. Pieretti, 1969, p. 105 e segs.), e, especialmente, em que consiste a dis- tincdo entre os dois tiltimos tipos de argumentos (cf. Alexy, 1978, p. 167). Como consequéncia de tudo isso, um dos grandes esforcos empreendidos por Perelman, o da andlise das diversas técnicas argumentativas, perde em grande par- te seu valor, pois a analise da estrutura de cada argumento nao pode ser considerada satisfatoria quando nao esté claro qual é a moldura em que ela se insere ¢, portanto, como se relacionam entre si as diversas estruturas. 4.2.2. Sobre a forca dos argumentos A nogao de forga de um argumento - obviamente central para qualquer teoria da argumentacao - é também suscetivel de diversos tipos de critica. Deixando de lado 0 problema de até que ponto se trata de uma nogao descritiva ou prescritiva, no Tratado (segundo a reconstrucao que faz Apostel - cf. Apostel, 1979 e também Fisher, 1986, p. 100), a forca de um argumento dependeria de diversos fatores, como a intensidade da aceitacao por um auditorio, a rele- vancia do argumento para os propésitos do orador e do au- ditorio, a possibilidade de ele ser refutado (quer dizer, a que ponto 0 audit6rio aceita certas crencas que permitiriam refutar 0 argumento) e as reacdes de um audit derado hierarquicamente superior (um argumento é mais, forte do que outro se um auditorio cré que esse argumento teria mais forca para um auditério que ele considera hi quicamente superior). oe man ea Nova Retérica | 83 Partindo disso, Apostel condensa a sua critica em cin- co pontos, e os trés primeiras se referem a problemas con- ceituais relativos a definicdo da forca de um argumento e 05 ultimos, aos procedimentos indutivos para descobrir essa forca. Em sintese, 05 pontos seriam: 1) Aos critérios apresentados por Perelman e Olbrecht-Tyteca seria preci- so acrescentar pelo menos mais um, referente a estrutura do argumento, isto é, & relagdo entre as premissas ¢ a con- clusao. 2) Necessitam-se de regras ~ que no sao fornecidas ~ sobre como combinar, entre si, os critérios anteriores. 3) Os conceitos utilizados nesses critérios nao sao definidos de uma nica maneira; por exemplo, os diferentes membros de um auditério nao aceitam de modo igual as diferentes premissas; 0 grau de aceitago nao permanece constante durante todo o tempo em que se desenvolve 0 argumento; 0 orador e 0 auditério perseguem propésitos diferentes ete. 4) Para descobrir qual 6 0 grau de aceitacao de um argu- mento, a sua relevancia etc., terfamos antes que descobrir qual & a forca do discurso em cujo contexto se desenvolve ‘© argumento; mas isso é algo consideravelmente complexo de determinar, pois a forca do discurso est em funcdo de um determinado orador, tempo e contexto. 5) Embora fosse possivel resolver o problema anterior, nos defrontarfamos com a dificuldade de passar da fora de um discurso a forca de um argumento: um argumento é usado num determina- do lugar do discurso, ¢ acompanhado de outros ar tos que interagem com ele etc. Resumindo, nao parece que a nova retérica perelmaniana forneca critérios eficientes para distinguir os argumentos fortes dos fracos, se se atribui & nogao de forca de um argumento um significado empirico 4.2.3. 0 auditério universal Entretanto, apesar do anteriormente exposto, poder-se- -ia pensar que, em Perelman, existe efetivamente um modo de distinguir os bons dos maus argumentos, quando essa 84 | __As Razies do Direito & Manuel Atienza nogao ¢ interpretada num sentido mais normativo do que empirico. Um bom argumento (um argumento forte) 6 o que valeria diante do audit6rio universal. Essa ultima no. 40, como ja vimos, desempenha um papel central na cons- trucao perelminiana, mas ha algumas razdes para duvidar da sua solidez. Com bastante frequéncia ja se assinalou que © conceito perelmaniano de auditério universal é ambiguo, mas a ambiguidade nao foi sempre vista do mesmo modo. Aarnio, por exemplo (1987, p. 221), localiza a ambigui- dade exclusivamente no fato de o auditorio universal ter, por um lado, um carater ideal - 0 audit6rio universal seria “a hu- manidade ilustrada” - mas, ao mesmo tempo, estar hist6rica ¢ culturalmente determinado, quer dizer, depender de fatos contingentes. Evidentemente, 6 certo que uma teoria realis- ta da argumentacdo precisa dar conta tanto do postulado da racionalidade quanto da relatividade hist6rica e social da ar- gumentacao (cf. Neumann, 1986, p. 89), mas isso nao se con- segue simplesmente construindo conceitos em que ambas as dimensdes aparecem sem nenhum tipo de articulacdo ou, pelo menos, sem nenhuma articulacao convincente. Alexy, por seu lado, parece aceitar 0 caréter ideal da nocao, mas entende que, em Perelman, encontram-se dois sentidos diferentes de auditorio universal. Por um lado, 0 auditorio universal seria uma construcao orador (daf 0 seu carter ideal), dependendo, portanto, das ideias de indivi- duos particulares e de diferentes culturas. Mas nesse caso um auditorio s6 é um auditorio universal para quem o re- conhece como tal, com o que o papel normative da nogio é seriamente limitado (f. Alexy, 1978a, p. 162). Por outro lado, em Perelman ha outra nogao de auditorio universal, que se inspira no imperativo categorico de Kant e é assim 13 Aleay cit, @ esse respeto, a obra de Perelman Fiinf Volesumgen Uber Gerechtigkeit (Perelman, 1967). Por outro lado, é interessante con siderar (cf. Golden, 1986, p. 287 e Perelman, 1986, p. 14) que, para pean Capitulo 3 + Perelman ea Nova Retérica | 85 formulada: “Vocé deve se comportar como se fosse um juiz cuja ratio decidendi deva proporcionar um principio valido para todos os homens’; o acordo do auditério universal € 0 acordo “de todos os seres racionais” ou simplesmente “de todos". Alexy entende que, a partir disso, 0 auditério universal pode ser determinado como “a totalidade dos homens no estado em que se encontrariam se tivessem de- senvolvido as suas capacidades argumentativas” e que tal estado corresponde a situacao ideal de didlogo habermasia- na (Alexy, 1978a, p. 163; cf. infra, sexto capitulo, item 1.1) Alexy nao descarta a possibilidade de que ambas as deter- minac®es sejam compativeis, mas nesse caso ele duvida de que um conceito tio amplamente formulado possa servir como medida para avaliar os argumentos. Enfim, Gianformaggio vé a ambiguidade da nocao por outra vertente, Também para ela 0 conceito ¢ efetivamen- te suscetivel de duas interpretacdes diferentes. A primeira implica a ideia de que, argumenta diante de um auditorio universal, quem argumenta com seriedade e de boa-fé ¢ est convencido das conclusdes que sustenta e dos proce- dimentos que utiliza; assim interpretada, a nogao nao seria problematica, mas resultaria banal e, evidentemente, nao justificaria o interesse por ela despertado. De acordo com a segunda interpretacao, argumenta diante do auditério uni- versal quem nao argumenta ad hiontinem, quer dizer, quem nao apenas esta convencido da correcao e da lealdade do procedimento que usa, mas também esta convencido da evidéncia das premissas em que se baseia. Essa segunda in- terpretacdo, entretanto, é inconsistente sem a nocao de juizo de valor defendida no Tratado: se de modo consciente se as- sumem juizos de valor como premissas da argumentacdo, 2 formulagio dese conceito, Perelman parece se ter inspirado em So Tomas de Aquino, Aristteles e Kant. Talvez essa diversdade de fon- tes explique, em parte, 2 ambiguidade que se pode encontrar 86 | _As Razdes do Direito + Manuel Atienza entao seria logicamente impossivel se dirigir ao auditorio universal, pois 0s juizos de valor s6 valem diante de audit6- rios particulares (cf. Gianformaggio, 1973, p. 218-219)."* Como conclusao de tudo isso, talvez se pudesse dizer que 0 audit6rio universal perelmaniano é, mais do que um concei- to cuidadosamente elaborado, apenas uma intuigao feliz. 4.3. Critica ideolégica Mas se, do ponto de vista te6rico, o pecado capital de Perelman é a falta de clareza conceitual, do ponto de vis- ta pratico esse pecado ¢ o conservadorismo ideol6gico. Tal conservadorismo, por outro lado, tem muita relacao com a obscuridade das nogdes que configuram 0 aspecto normati- vo da teoria, isto 6, as nogGes que configuram os c: ‘boa argumentacao, mo, razoabilidade ¢ imparcialidade, que, em cia, remetem aos de regra de justica e auditério universal. A filosofia de Perelman 6, claramente, uma filosofia do pluralismo. E essa nocao confusa (cf. Perelman, 1979a, p. 5)" parece significar o seguinte: o pluralismo parte de que a vida social consiste tanto em esforcos de colaboracao quanto em conflitos entre individuos e grupos. Esses conflitos sao inevi- taveis e recon rrtanto, a tinica coisa que se pode fa~ zerécanal jo de instituigdes que tenham o maior respeito possivel pelos individuos e pelos grupos, evitando, assim, 0 uso da violéncia, O pluralismo “renuncia a um dem perfeita, elaborada em funcao de um tinico critério, pois admite a existéncia de um pluralismo de valores incompati- veis. Dai a necessidade de compromissos razoaveis, rest tes de um didlogo permanente, de um confronto de pontos 14 Contudo, num trabalho posterior 20 Tratado (Perelman, 1967 Perelman parece considerar que as questdes referentes a0 preferivel tamisém podem ser discutidas diante do aucitério universal; ct Alexy, 1978a, p. 165. eu mestre Eugene Dupréel eaNovaRetéics | 87 de vista opostos” (Perelman, 1979a, p. 11). Os legisladores, os tribunais e a jurisprudéncia de um Estado pluralista (a forma de Estado que Perelman considera justificada) so as insti- tuicdes encarregadas de estabelecer ¢ manter um equilibrio entre pretensdes contrapostas, porém legitimas. Isso significa que serao necessérias tomadas de decisdes razoaveis; nao 80- lucGes perfeitas, tinicas e definitivas, mas solugoes aceitaveis, modificaveis e aperfeicodveis (cf. ibid., p. 17). Seguramente é desnecessério acrescentar aqui que tam- bem a nocao de razoabilidade 6 confusa. De qualquer modo, com essa ideia" Perelman pretende abrir uma via intermedi- aria entre o racional (quer dizer, as razOes necessarias, cons- tringentes) ¢ o irracional (0 arbitrério); entre uma concepgao unilateralmente racionalista e uma concepcao unilateralmer te voluntarista do Direito (cf. Bobbio, 1986, p. 166). Com rela- (40 a0 discurso juridico, 0 razoavel marca inclusi do juridico (“o que é desarrazoado nao é de Direito” - Pe- relman, 1984, p. 19) e, como ideia reguladora, tem um valor superior até a nogao de justica ou equidade: “O limite assim tracado me parece definir melhor o funcionamento das ins- tituigdes juridicas do que a ideia de justica ou equidade, que se liga a uma certa igualdade ou a uma certa pro dade, pois, como vimos em varios exemplos, o desarrazoado pode resultar do ridfculo ou do nao apropriado, e nao aj do iniquo ou do nao equitativo.” (ibid, p.19) Deixando de lado a questo de se Perelman usa ou nao a nocao com o mesmo sentido em que ela ¢ habitual entre os juristas, e a de se existe un ética — como ele entaio um paralelismo entre o racional e o razoavel no Direito (cf. Laughin, 1986), 0 certo & que ele parece usar esse conceito com uma certa ambiguidade. O razodvel se define ~ e nao poderia ser de outra forma - em funcéio de um auditério, mas esse auditério - por exemplo, no caso do Direito - no é tanto 16 Sobre a razoa lade no Direito cf. Atienza, 1989a, 88 | _As Razdes do Direito Manuel Atienza © audit6rio universal (entendido como os membros esclare dos da sociedade) quanto um auditério particular, cor do pelos especialistas em Direito, os tribunais superiores ou o legislador: “O juiz [...] deverd julgar sem se inspirar em sua visdo subjetiva, e sim tentando refletir tanto a visio comum dos membros esclarecidos da sociedade em que vive quanto as opgies e tradigdes dominantes em seu meio profissional. Com efeito, 0 juiz [.. deve se esforgar por emitir julgamen- tos que sejam aceitos tanto pelos tribunais superiores, pela opiniao publica esclarecida, quanto ~ quando se trata de de- cisdes da Corte de Cassacao ~ pelo legislador, que nao deixa- 1 de reagir se as decisdes da Corte Suprema Ihe parecerem inaceitaveis.” (Perelman, 1979a, p. 12) © problema, naturalmente, reside na questao de equilibrio entre opinides contrapostas, que se associa & nogao de racionabilidade, pode sempre ser conseguido. Evidente- mente, ha muitas razSes para duvidar disso. Os casos dificeis, por definicao, sao aqueles com relagao aos quais a opiniao publica (esclarecida ou nao) esta dividida de maneira t que nao é possfvel tomar uma decisao capaz de satisfazer a uns ¢ a outros. Serve de exemplo a decisio da Suprema Corte dos Estados Unidos (no famoso caso Roe versus Wade, de 1973), reconhecendo um direito ao aborto que se apoia- ria no direito fundamental a privacy. O caso dividiu em duas partes quase iguais nao apenas os membros do tribu- nal, mas também os juristas profissionais e a sociedade em geral..” Qual seria, num caso como esse, a decisdo razoavel? 7A Ordem dos Advogados americana, que congrega as associagoes de advogados, adotou, a certa altura, uma posture favordvel & despena -agao do aborto, mas logo passou para uma atitude de “neutraida- de". Quando, em fins de 1990, teve de nomear um novo membro do o debate se este seria ou no partidario de manter a doutrina estabelecida no caso Roe versus Wade. Capitulo 3 # Perelman ea Nova Retérica | 89 Segundo Perelman, 0 conceito de decisdo razoavel va- ria nao s6 hist6rica ¢ socialmente (quer dizer, 0 que é ra- zoavel numa determinada sociedade e em determinado momento pode deixar de sé-lo em outro meio ou em outra época), pois num mesmo momento histérico e meio social pode haver uma pluralidade de decisdes possiveis, de de- cisdes razoaveis (of. Haerscher, 1986, p. 225; Wroblewski, 1986, p. 184; Alexy, 1978, p. 170). Mas entao que deci deve tomar? Estariam todas elas - no caso, a penalizacaoe a despenalizacaio do aborto ~ igualmente justificadas? Talvez a tinica resposta que Perelman poderia dar a essa pergunta seguiria esta linha: seu ponto de partida seria, evidentemente, reconhecer que hé ocasiGes em que pode ser aceitével mais de uma decisao; Perelman se ali- nha, claro, do lado de quem pensa nao haver uma tinica resposta correta para cada caso. Quem decide, por outro lado, deve se comportar de modo imparcial (a imparciali- dade nao se aplica como critério para a resolucao apenas das questdes juridicas, mas sim para as questdes praticas em geral), e deve respeitar a regra da justiga (ou seja, nao deve tratar de modo desigual casos semelhantes) ¢ o prin- cipio da inércia (56 se deve justificar a mudanea, e sempre © apenas, sobre a base de valores precedentemente admi- tidos ~ cf. Gianformaggio, 1973, p. 226; Perelman, 1969a) Mas esses critérios, além de serem claramente insuficien- tes, tém um sabor ideolégico sem diwvida conservador. Ser imparcial, por exemplo, exigiria aceitar sempre as regras, a ordem estabelecida. “Quem recusa a imparcialidade - con: clui Gianformaggio - quer dizer, quem quer mudar as re- gras, quem nao esté contente com a universalidade das regras numa determinada estrutura de relagdes, mas ques- tiona a propria estrutura, esse individuo por definigio nao argumenta; ele se deixa levar pelos interesses e paixdes, e emprega a violéncia. E entao “por que se indignar com 0 fato de que os defensores da ordem estabelecida oponham 90 |__As Razdes do Direita “ Manuel Atienza a forca a forca?”."* Perelman 86 pode ratificar a mudanga 4 posteriori. Enguanto uma nova ordem, diferente, ndo a tiver substituido, ele s6 pode en philosophe tomar posicao pela ordem estabelecida. Essa posicao deriva necessaria- mente da sua concepeao da filosofia” (Gianformaggio, 1973, p. 226). Acconsequéncia de tudo isso poderia ser: quando se tra- ta de tomar decisdes diante de casos dificeis (uridicos ou nao), Perelman nao pode proporcionar critérios adequados, uma vez que, no fundo, ele carece de uma nogio consisten- te do que seja decisao racional (ou razoavel); mas, por outro lado, na medida em que oferece algum critério, este tem uma conotacao inequivocamente conservadora. 4.4. Critica da concepeao de Direito e do raciocinio juridico ‘Vejamos agora algumas criticas mais especificas que se referem a concepeao perelmaniana do Direito e do racioci- nio juridico. 4.4.1. O conceito de positivimo juridico A primeira critica afeta a concepcao do Direito e do ra- ciocinio juridico, que Perelman considera predominante no raciocinio judicial dos paises ocidentais depois de 1945, ¢ que - como vimos ~ se caracterizaria pela rejeigao do po. sitivismo juridico e pela adocdo de um modelo tépico de raciocinio juridico. Mas a nocao de positivismo juridico que Perelman uti- iza 6, além de pouco clara (cf. Atienza, 1979, nota 9, p. 144), simplesmente insustentavel. Uma concepcio positivista do 18 A citagdo esta em Per 19° Alguns autores. ent 236), entendem que a retdrica de Perelman é contréria a todo tipo de conservado- no: tanto 0 conservadorismo do status quo real quanto o das necessidades e ideais alegados. 3+ Perelman ea Nova Retérica | 91 Direito, segundo Perelman, se caracteriza por: 1) eliminar do Direito toda referéncia a Justica; 2) entender que o Direi to € a expressao arbitréria da vontade do soberano, enfati- zando assim o elemento de coacdo e esquecendo o fato de que “para funcionar eficazmente, 0 Direito deve ser aceito, nao apenas imposto por meio da coacao” (Perelman, 1979b, p. 231); € 3) atribuir ao juiz um papel muito limitado, jé que nao leva em conta os principios gerais do Direito nem os t6picos juridicos, apenas 0 texto escrito da lei (ou, em todo caso, a “intencao do legislador’). Mas essas caracteristicas, que talvez possam ser certas com relacéo a um determinado juspositivismo do século XIX, siio manifestamente falsas quando referidas ao posi- tivismo juridico atual. Se tomamos Hart como protétipo de positivista juridico (e de fato a critica mais conhecida ao positivismo juridico dos tiltimos tempos - a de Dworkin (1977) - tem Hart como objetivo central), ¢ muito facil mos- trar que nenhuma das trés caracteristicas se aplica. 1) Hart, por um lado, nao pretende excluir do Direito toda referén- cia a Justica, e sim apenas sustentar que possivel ~ e que se deve - separarconceitualmente o Direito ea moral, o que € 0 que deve ser Direito (cf. Hart, 1962). 2) Por outro lado, a sua insisténcia na “aceitagao interna das normas” como um elemento essencial para compreender e explicar o Direi to (Hart, 1963) deixa bem evidente que, para ele, o Direito nao pode reduzir a coacao. 3) E, finalmente, o proprio Hart (e Dworkin, que faz disso um dos pontos centrais de sua critica) considera uma caracteristica do positivismo juridico a “tese da disc lidade judicial”, quer dizer, a tese de que, nos casos duvidosos ou nao previstos que aparecem em todo 0 Direito, 0 juiz cria Direito, embora ao mesmo tempo esteja submetido a uma série de condigoes juridicas que limitam a sua escolha. E mais: a partir do positivismo idico de Hart (que € 0 positivismo “de hoje"), no ha- veria, em prinefpio, nenhum inconveniente para 0 uso dos 92 | __ As Razdes do Direito Manuel Atienza principios gerais do Direito e dos t6picos juridicos pelo juiz; bastaria que ele admitisse a regra de reconhecimento do sistema em questao.” Como alternativa ao positivismo juridico, Perelman - seguindo Foriers (cf. Bobbio, 1986, p. 171) - propée a ideia de um “Direito natural positivo”, segundo a qual para inte- grar, corrigir ou satisfazer as regras estabelecidas por meio da autoridade (seja pela autoridade do legislador ou pela do costume), sao invocados e se aplicam principios nao con- tidos no conjunto das normas juridicas de um ordenamento positive. Mas, por um lado, embora os coroldrios e pres- supostos filos6ficos da légica da argumentagao de Perel- man parecam ser jusnaturalistas (cf. Gianformaggio, 1973, P. 162), sua concepeao do “Direito natural positivo” nao im- plicaria ~ segundo Bobbio ~ uma contradigao com o positi- vismo juridico entendido, por exemplo, a maneira de Kelsen, Por outro lado ~ e isso é © mais importante -, Bobbio opi- na que a teoria do Direito natural positivo mais propoe do que resolve problemas, ao menos por dois motivos: “Nao se entende bem qual seja a necessidade de chamar de Di- reito natural a principios de conduta que sao manifestacoes correntes da moral social; e nao se entende que necessida- de haja de cortigir 0 positivismo juridico unicamente pelo fato de este reconhecer a validade de regras nao escritas, um reconhecimento que nenhuma teoria do Direito positive jamais contestou.” (Bobbio, 1986, p. 172) 20 préprio Hart em relagao com os itos de caréter moral ou po: ico) postulados por Dworkin, A diferenca entre esses dois autores ios ndo so relevantes vigore, e sim apei iodo contingente, conforme a fe reconhecimenta do sistema o autorize ou nao. Ct. sobre 80 Atienza, 1979, nota 18; MacCormick, 1981 Capitulo 3 + Perelman ea Nova Retérica | 93, 4.4.2. A concepeao t6pica do raciocinia juridico No que se refere a adesio de Perelman ao modelo t6- pico de raciocinio juridico, as criticas que vimos a propésito da concepeao de Viehweg poder-se-ia, agora, acrescentar dado o processo de formacao - necessariamente lento ~ dos topicos e sua caracterizacao como opinides compartilhadas, ha boas raz6es para pensar que o papel destes é comparat vamente maior nos ramos juridicos mais tradicionais e/ou naqueles em que o ritmo de mudanga ¢ relativamente lento (€ sintomatico que a maioria dos partidarios da topica se encontre entre 05 civilistas) do que nos setores de formacéo ‘mais recente ou naqueles em que o Direito deve se adaptar a.um ritmo de mudanca mais intenso. Em outras palavras, © uso dos t6picos no Direito moderno precisa ser limitado, a ndo ser que, com a sua utilizacao, pretenda-se, simples- mente, a conservacao e consolidacao de um certo status quo social e ideolégico (cf. Santos, 1980, p. 96) 4.4.3. Direito e retérica Finalmente, o fato de Perelman situar 0 centro de gravi- dade do discurso juridico no discurso judicial e, em particu- lar, no discurso dos juizes das instancias superiores, supde a adogao de uma perspectiva que distorce 0 fenémeno do Direito modermo (se se prefere, do Direito dos Estados plu- ralistas, quer dizer, dos Estados capitalistas democraticos), na medida em que atribui ao elemento retérico - ao aspecto argumentativo - um peso maior do que ele realmente tem. Boaventura de Sousa Santos tem razdo ao sustentar que 0 fator topico-retérico nao constitui uma esséncia fixa nem ca- racteriza exclusivamente o discurso juridico. O espago ret6- rico existe em outros espacos: 0 espaco sistémico (digamos, © discurso burocratico) e 0 espaco da violéncia (cf. Santos, 11980, p. 84). Além disso, em comparacao com outros tipos de Direito (Santos estuda o de uma populacao favelada do Rio de Janeiro: o Direito de Pasargada), 0 Direito do Esta- 94 | As Razées do Direito Manuel Atienza do moderno se caracteriza por tender a apresentar um nivel mais elevado de institucionalizacao da funcao juridica e ins- trumentos de coacao mais poderosos, com 0 que o discurso jaridico ocupa, em suma, um espaco retorico menor (cf. ibid, P. 58). E certo, por outro lado, a favor da informalizacao da justica implicam um eventual aumento da ret6rica juridica, mas isso pode ser a contrapar- tida de um aumento da burocracia e da violéncia em outras areas mais centrais do sistema juridico (cf. ibid, p. 91), ue Os recentes movimentos 4.4.4. A ret6rica geral e a retérica juridica Algo que nao esta bem resolvido na obra de Perelman €a relacao entre o plano da retérica geral e 0 da retorica ou logica juridica. Por um lado, nao esta nada claro se 0 cri- tério do auditério universal se aplica também ao discurso juridico, quer se do discurso do juiz ou do legislador, Ha siGes em que Perelman parece dar a entender que o juiz € 0 legislador (diferentemente do filsofo) devem orientar as suas decisdes de acordo com os desejos ¢ conviccses da comunidade que os instituiu ou escolheu (cf. Alexy, 1978a, P. 161, nota 523, e Perelman, 1967a); nos ultimos escritos, entretanto, ele parece ter se inclinado a pensar que 0 at. ditério universal se aplica também ao discurso nao filos6- fico (cf Golden, 1986, p. 297). Por outro, nao esté tampouco claro de que maneira se aplica ~ e se se aplica - ao campo do aciocinio juridico a sua classificacao dos argumentos em técnicas de unido e de dissociagao etc, Particularmente em La logica juridica y la nueva retérica, Perelman parece aceitar = pelo menos em parte ~ a classificagao que Tarello faz (cf. Perelman, 1979b, p. 77 e segs.) dos argumentos juriclicos, © que nao parece ter muita relacdo com a proposta no Tra. ado. O autor italiano, com efeito, distingue treze tipos de rgumentos: 4 conirario, a simili ow analogico, a fortiori, a completudine, a coherentia, psicologico, histérico, apagégico, teleolégico, econdmico, ab exemy (cf. ibid, p. 77 e segs.) Capitulo 3. Per Finalmente - e como ja indiquei antes ~ Perelman re- pete, com certa frequéncia, que o raciocinio juridico tem em sua obra um valor paradigmatic. Mas 0 que isso de fato significa? Perelman nao foi, evidentemente, o anico autor do século XX a tomar o raciocinio juridico como modelo da logica ou do método racional. Trés exemplos notéveis dessa atitude sAo os casos de Dewey, Polanyi e, sobretudo, Toul- min, cuja concepsao sera estudada no préximo capitulo, De acordo com Gianformaggio (1973, p. 175 e segs), a diferen- ca esta em que, enquanto esses trés autores utilizam 0 ra- ciocinio juridico como um modelo para contrapor a concep- 40 neopositivista da razao (i.e, 0 raciocinio juridico - ou algum aspecto dele - serve como modelo para o raciocinio em geral), em Perelman o raciocinio juridico 6 0 modelo de um tipo particular de raciocinio, ao qual ele inicialmente denomina racioci “pratico”. Mas o problema é que a distingao entre rac te6rico e raciocinio pratico (que em Perelman a pois do Tratado) nao coincide totalmente ~ sempre segundo Gianformaggio - com a distingao entre demonstracao e ar- gumentacao. Essa tiltima distingao - como 0 leitor deve se lembrar ~ se referia ao tipo de prova ou aos modelos de ana- lise do discurso, mas nao era uma distincao centrada no obje- to, Nenhum discurso é, em si mesmo, considerado abstrata: mente, demonstrativo ou argumentativo; basta acrescentar uma premissa para que a argumentacao se converta numa demonstracao. Entretanto, a distingdo que Perelman traca entre raciocinio pratico e raciocinio tedrico tem por objeto 0 discurso: 0 raciocinio pratico ¢ o raciocinio do jurista, do moralista, do politico; e 0 raciocinio tebrico € 0 raciocinio do cientista. Mas se assim é, isso quer dizer que Perelman acaba por sustentar um dualismo entre raza0 dialética (ra~ ciocinio pratico) e razao cientifica (raciocinio tebrico), pouco compativel com a sua ideia de que na ciéncia do Direito nao se pode separar nitidamente avaliacao e conheciment 96 | __As Razdes do Diteito Manuel Ati que, na aplicacdo do Direito, tampouco se pode separar os juizos de valor dos juizos de fato (cf. Gianformaggio, 1973, Pp. 1886-198). 4.4.5 Dedugao e argumentacao Uma tltima critica que se pode dirigit a Perelman se relaciona precisamente com a distingio entre o raciocinio cientifico - dedutivo ou indutivo -, por um lado, e o racioci- nio dialético - argumentativo ou pratico -, por outro. Como vimos, Perelman entende a l6gica juridica como uma argu- mentacdo, nao como légica formal ou dedutiva. Além disso, ele sustenta que a distincao entre ambas as légicas ndo se refere apenas @ natureza das premissas, mas também a pas- sagem das premissas a conclusao. Mas aqui o discurso de Perelman ¢ algo mais que equivoco. Por um lado, se tivesse Ievado em conta a distincao usual entre justificacao interna tificacdo externa, exposta no primeiro capitulo (cf. Wro- blewski, 1979, p. 277-298), ele teria podido fixar claramente © papel da légica formal ou dedutiva no raciocinio juridico, sem precisar contrapor, desnecesséria e confusamente, acon. cepgao dedutivista ou formalista do raciocinio juridico a concepcao argumentativa ou ret6rica. E, por outro ~ e isso € realmente mais grave -, a pretensio de Perelman de que a Passagem das premissas 4 conclusao ocorre de modo dife- rente numa argumentacio e numa deducao, porque, no pr meiro caso, a passagem de um argumento para uma decis4o nao pode ter carater necessario, baseia-se ~ parece-me - num erro, O erro consiste em ele nao se dar conta de que a l6gica - dedutiva ou nao - se move no terreno das proposicdes ¢ nao no dos fatos; ou, por outras palavras, em nao ter levado em conta a distingéo (que também foi introduzida no primeiro capitulo) entre a conclusao de uma inferéncia e determina- dos estados de coisas, decisdes etc. que estao ligados a ela, mas nao de moclo légico. No caso do silogismo pratico -con- cretamente, do silogismo judicial ~, uma coisa é a conclusao Capitulo 3% Perelman e a Nova Retérica__| 97 e estabelece, por pena Y) e outra é a necessariamente desse silogismo (uma norma individ exemplo, que o juiz deve condenar X decisao pratica que, é claro, nao se se ~ dedutivamente - daquela conclusdo (a decisao do juiz.con- denando X a pena Y). 4.5. Conclusao Aconclusao geral extraida de todasas criticas anteriores poderia muito bem ser esta: por um lado, Perelman nao ofe- rece nenhum esquema que permita uma andlise adequada dos argumentos juridicos ~ dos diversos tipos de argumen- tos juridicos ~ nem do processo da argumentacao, embora, evidentemente, em sua obra aparecam sugestoes de interesse inquestionavel. O modelo analitico de Toulmin - que sera apresentado no proximo capitulo ~ me parece preferivel a esse respeito.” Perelman considera que Toulmin, em seu li: vro de 1958, The uses or argument, ignora completamente 0 papel do auditorio e 0 do raciocinio sobre valores, que € © centro do pensamento juridico (cf. Fisher, 1986, p. 87, € Perelman, 1984a), mas, pelo menos quanto ao primeiro, nao me parece que isso seja em absoluto certo: 0 “tribunal da razio” de Toulmin tem - como o leitor podera compro- var em seguida ~ muita relacdo com 0 auditério univer- sal de Perelman (cf. Dearin, 1986, p. 183, nota 80). Por outro lado, a concepgao do Direito ¢ da socie dade, utilizada por Perelman, é de cunho nitidamente conservador,” e a sua teoria da argumentaco parece pen- sada para satisfazer as necessidades de quem aborda o Di toe a sociedade com essa perspectiva, mas nao para quem nota 20 ep. 42, que afirma ‘az30, 8 minha opinigo ~ que Perelman toma descritiveis 3s res de pensamento que realmente uilizamos ao persuade. 22 Ct. Atienza, 1979, obra em que se mostram algumas conexdes entre as concepgées de Pereiman e as de Luhmann. 21 Ct, entretanto, Amold, 1986, p. 98 | _As Razdes do Direito ¢ Manuel conflitualista desses fend- menos, Caso se aceite a tese de que a sociedade as vezes gera conflitos que colocam interesses irreconcilidveis, e que nao odem ser resolvidos pelas instancias juridicas simples- mente com um critério de imparcialidade, sem se colocar a modificacao da propria ordem juridica, entao provavel- mente se tera de pensar também que, com relacao a eles, a ret6rica ~ pelo menos como a entende Perelman - cumpre, antes de mais nada, uma fungio a de justificacao do Direito positivo: precisamente apresentando, como impar- ciais e aceitaveis, decisdes que na realidade nao o sao. adota uma concepgao critica CAPITULO 4 A Teoria da Algumentacéo de Toulmin 1. UMA NOVA CONCEPCAO DA LOGICA a que vou me referir neste capitu- man ~ uma tir de um mo- Imin nao busca As ideias de Tot lo constituem - como as de Viehweg e as de Pe tentativa de dar conta da argumentagao a pi delo que nao € 0 da logica dedutiva. Mas a sua inspiragao numa recuperacdo da tradigao torica. Ele parte da ideia de que a légica ¢ algo que tem rela- cdo com a maneira como os homens pensam, argumentam e efetivamente inferem, e constata, ao mesmo tempo, que a ci- éncia da logica se apresenta ~ e se apresentou historicamente, desde Arist6teles ~ como uma disciplin preocupaciio com a pratica. Toulmin nao pretende dizer, apenas, que o modelo da légica formal dedutiva nao pode ser transferido para 0 campo do que se costuma chamar de razao p é entendida - nao permite dar conta, tampouco, da maior parte dos argumentos que se articulam em qualquer outro Ambito, inclusive o da ciéncia. Na realidade, o tinico campo adequada a concepcao da pica ou re- ‘autOnoma” e s versoscamposda ilosofia,comoodateoriaética(cf.Toulmin,

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