You are on page 1of 145
mM © ro no nome — rane MM HMM WN © mistésio do Deus Menino, vies [INIA AN UAAMM AN ALT Pocepene: 4 aaa OUTRAS | EDICO) ‘forea déste livro que causar# profunda impressio a todos os leitores, FILOSOFIA DA RELIGIAO — Fulton J. Sheen ste & um dos mais notévels livros: do famosn bispo norte-smerieano, ‘Teblogo, filésoto, ensafsts, homein de imprensa, de rédio e de televisio, conhecido no mundo inteiro pele extraordinaria cultura e pela capecidade de falar ao homem de hoje mums linguagem que, embora io 0 lisonjeie, the 6 perfeltamente. acessivel. COLECAO “MBSTRES ESPIRITUaIS” Cada um déstes pequencs livros é ums obra-prima de seguranca histériea 9 de objetividade, nio sé biografia dos homens que mals marearam a huma- nidade no sentido espiritual, mas sinda, sintese de ava doutrina © eshudo e sua importincia em dada época © através dos séculon. Apreser: gritiea primoross, ineluindo grande numero de ilustracdes lugaoes «obra 8 vida do personagem, Volumes mais recentes da Colecio: — CARLOS DE FOUCAULD 'f A FRATERNIDADE, — SKO BENTO = A VIDA MONASTICA, © PEQUENO PRINCIPE — A, Saint-Exupéry Certamente jé existe esta obra em sua bibliotéea, Se néo, procure ‘dguirir imediatamente éste mazavilhosopequeno livro. QUESTOES ABERTAS — Thomas Merton ‘Um dos livros mais importantes de Merton, com estudos como “O Caso Pasternak”, “O poder © 0 Sentido do Amor", «Cristianlsino ¢ Totslitarismo”™ © multor outros, stes livros podem ser adquiridés na livraria de sua preferéncia ou na Livraria AGIR Editore Ron Bréallo Gomes, 126 ua Mésieo, 9B Ay. Afonso io Inde de Bib un.) git ar ba ere) slat deme 31-20-90 outa Doma t08 Sho" Paulo, 2. “Ganabors ‘Minas Gerais Enderégo ‘elegrético: “AGIRSA” Atendemos pelo Servigo de Reembélsa Postal DO MESMO AUTOR: A DESCOBERTA DO OUTRO (89 TTRES ALQUEIRES E UMA VACA (6 LIGOES DE ABISMO (Romance) (11 DEZ ANOS (2 ed.) CLARO ESCURO (Col. Familia) (2% ed) ea) ed) ed) GUSTAVO CORCAO AS FRONTEIRAS DA TECNICA capa DE HELENA GEBARA DE MACEDO 5 EDICAO 1969 Livraria AGIR Editera RIO DE JANEIRO ARTES GRAFICAS INDUSTRIAS REUNIDAS 8.4. niversidade de Brasilia an Bal Gane (a Indo da Bi Rm) concn Portal 991-000 ENDER#CO TELEGRAFICO: Ao Leitor — 0 Teeniclsmo ¢ suas Origens Tl — 0 Fazer ¢ 0 Agir MI — Politica e Técnica ‘VII — © Valor da vida A Técnica de Deus, sua Arte e seu Amor . Patrlotismo e Naclonalismo ....... ‘A Missio da Mulher | AO LEITOR Os estudos contidos neste volume, inéditos em sua quase totatidade, resultaram da refusio ¢ da condensagéo de wm conjunto de aulas ¢ conferéncias pronunciadas em diferentes ‘grupos que, mal ou bem, através de grandes perplewidades ¢ ‘muitos desacertos, procuram a mesma coisa, o mesmo ideal que para uns é mais revelado e para outros mais escondido. E € ésse vineulo que me permite reunir alguns problemas ‘aparentemente distantes, ¢ que me autoriza a enfeixar na ‘mesma cordialidade a dedicatéria que aqui deixo lavrad aos amigos ¢ alunos do Centro Dom Vital e de Belo Horizon- te, que encontrarao num dos ‘estudos o resumo de nossas aulas; aos leitores da “Tribuna da Imprensa”, que sentirao em muitas passagens as ressonancias de antigas idéias, aos amigos da Resisténcia Democritica, da Unido Demoorética Nacional ¢ do Partido Libertador; aos irméos da fraterni- dade beneditina; ¢ ao leitor desconhecido, cuja sombra me peraeguin nestas péginas, dedico esta colcha de retalhos que pretende servir a uma inconsiitil unidade. 0 AUTOR I O TECNICISMO E SUAS ORIGENS Nao imagine o leitor, s6 pelo titulo déste ensaio, que eu venha aqui propor um racionamento das atividades técnicas; nem que eu pretenda restringir 0 progresso da eletronica ou dos testes psicoldgicos, em nome de um ideal de civilizagéio mais simples e mais humano. Essa rabugem me assalta, as vézes, quando vejo certos programas de televisio ou quando me trazem a0 conhecimento algum resultado esdrixulo co- Ihido nos gabinetes da psicotéenica; mas a razio, que bem ou mal ainda consigo manter acima dos humores, obriga-me a reconhecer que @ insanidade, quando hé, esté no lado do uso, ‘ou do abuso, e nao na coisa em si. # claro que desejo ardentemente um tipo de civilizagio mais humano; mas @ mesma razdo me diz que nfo hé nenhum principio filoséfico pelo qual o humano se oponha ao téenico. ‘Ao contrério, sendo a téenica o exereicio do dominio sobre a natureza das coisas, é e sempre seré uma gloria do homem. Em certas cireunstancias, a promogao do bem comum exigir4 uma regulagio, e até diria uma redugfo de tais ou quais atividades técnicas, mas é insustentavel a idéia de generali zar e de fazer désse racionamento um programa de civili- zagho. Dizer que a técnica ¢ a ciéneia desumanizam o homem equivale a afirmar que 0 homem é mais plenamente humano na selva do que na universidade ou na £4brica, e isto é uma tese do naturismo que 0 bom-senso ea sii filosofia rejeitam. B se nfo 6 a selva o ideal, onde demarcariamos nés o limi- te e com que critério determinariamos nés a barreira que ‘o homem nio deve ultrapassar, na ordem da especulacio © na ordem pratica, para ndo perder o seu teor de humanidade? | 4 AS PRONTEIRAS DA TECNICA Hi uma idéia muito difundida, principalmente em cer- tas revistas de vulgarizacio, pela qual o progresso téenico 6 por si mesmo civilizador e aperfeigoador do homem. Ora, se pretendemos desmontar 0 mito do progresso necessirio, e afirmar o primado da moral — e é nessa perspectiva que se situa o presente trabalho — nfo podemos, sem enfraque- cer todos os nossos argumentos, afirmar a eficdcia contréria da atividade téeniea, No que concerne & civilizagao e & sor- te do homem, a técnica é neutra, Nao traz nem tira a feli- cidade, Pode contribuir hoje para o bem-estar, e assim, de um modo subalterno, trazer uma contribuigao de felicidade; e pode amanhi contribuir para a desgraga dos povos. Em si mesma 6 neutra. Seu valor absoluto sé recebe o sinal al- gébrico, positivo ou negative, quando a vontade do homem determina 0 seu uso, e nfo quando a inteligéncia determina a sua forma. A bomba atémica, nas suas mais perigosas realizagées, com todo o seu portentoso acimulo de energias, obedece a trés ou quatro palavras escritas numa folha de servigo. um leviata décil. Quem nem sempre é décil é 0 homem que assina a ordem de servigo. Certas pessoas tém médo da técnica e da bomba; eu tenho médo do memorandum, Tenho mais médo, por exem- plo, de um coneurso de filosofia do que de um invento fisico; porque é daquele concurso que vai sair 2 data, o enderéco ea aplicagio da bomba de hidrogénio, e nao da prépria bomba. ‘Vou mais longe. Com téda a sua intrinseea neutrali- dade, a técnica tem um certo valor humano, uma certa incli- naco ao bom uso, na medida em que traduz o império do homem sobre as coisas. Torno a dizer que é uma gléria, que 6 uma alta conquista fundada num direito da inteligéneia, ‘So Jofo da Cruz, o doutor da mistica, diz que “um s6 pen- samento do homem vale mais do que o universo inteiro”, por onde se vé que nfio hf exagaro em afirmar que o domt- nio sobre tédas as coisas é um direito da inteligéncia. ® ver- dade que 0 mistico acreseenta: “eis ai por que s6 Deus é AS FRONTEIRAS DA TECNICA 15 digno de nosso pensamento, sendo s6 a Ble devido; e assim todo pensamento do homem que no se dirigir a Deus é um roubo feito A sua Majestade”. Na ordem prética, que aqui nos ocupa, eu também aerescentaria que a técnica #6 é uma auténtica gléria do homem enquanto permanecer na dire- gio da gléria de Deus. Nao se trata pois de restringir a atividade técnica, sim de polarizé-la. Nao se trata de diminuir o nimero de receptores de rédio ou de televiséo, e sim de melhorar o seu uso. Como técnico, nfo tenho culpa nenhuma se os progra- mas do radio chegaram a um grau de espantosa imbecili- dade, Como homem, como cidadao brasileiro, tenho certa- mente uma parte de culpa. Mas seria pueril castigar 0 tée nico pela culpa do homem, fechando as fabricas para dimi- nuir a irradiagio de tolices. Diria até que no mundo moderno, com @ crescente com- plexidade dos problemas humanos, impée-se a necessidade de um certo tipo de técnica que parecer desumano a quem ande a gonhar com um modélo campestre de civilizagéo. Dou um exemplo a eujas aberragbes sou particularmente sensi- vel: os testes psicol6gicos destinados & selecio e & orien- tagio profissional. fsses testes podem tornar-se instru- mentos de injustica e de opresséo; mas quem disser, « priori, que sio iniquos e contrérios A dignidade da pessoa humana, ‘estar de certo modo traindo o estandarte moral que pre- tende defender, por afirmar a impoténcia da ética sbre uma determinada atividade. A téenica que tem por matéria 0 homem é evidentemente mais delicada e mais condicionada do que a técnica que tem por matéria o chumbo ou o uranio; mas nem por isso pode ser sumariamente anatematizada em tarmos de um hipermoralismo, que tangencia o imoralis- mo, porque descré da amplitude do universo moral. Se a questo 6 no deixar que os instrumentos da técnica toquem o homem, devemos comecar por denunciar os dentistas; ou devemos fechar os sal6es de barbeiro. 16 AS FRONTEIRAS DA TACNICA # perfeitamente admissfvel que se faca com mais mé- todo, a partir das conquistas da ciéneia, 0 que sempre se féx, de um modo téenieo também, mas confuso e a-sistemé- tico, mormente quando o grande méimero impede o contato mais humano e mais cordial. O que é preciso saber, no que concerne aos testes psicolégicos, 6 0 seu valor préprio, a sua veracidade e o sen rigor. Nés bem sabemos, com pro- vas multiplicadas, que alguns profissionais exageram 9 va- lor cientifico e o valor prético désses testes. Como também sabemos que essa téeniea, por ser mais imprecisa e por to- car 0 nervo do homem, presta-se as mais inescrupulosas exploragées. Nada disso, porém, nos autoriza a concluir que 08 métodos de selecdo ou de orientagao profissional devem ser condenados, ou sequer desprezados, em nome da dignidade da pessoa humana. Receio que algum leitor, lembrado dos artigos que es- crevi contra as frases latinas e os prinefpios filoséficos de um profissional de renome, imagine que eu sou inimigo pes- soal da psicotéenica. Se penisa, engana-se. Nao sou. Miaha filosofia nfo se opde aos psicotécnicos como néo se opde aos barbeiros; mas opée-se, veementemente, ao eabelo mal cortado e aos testes mal feitos. Como téenico, tenho horror ao malfeito; ¢ sobretudo tenho horror ao malfeito que ostenta falso rigor e que se atavia de pedantismo cientifieo. Brotam-me urticarias quan- do, por exemplo, encontro os resultados numéricos de certas graduagdes qualitativas (que alguns profissionais confun- dem com medidas quantitativas) expressos com trés algaris- mos significativos. Como téenico sou também sensivel aos disparates que sio numerosos em nosso préprio dominio. ‘Ha nos aparelhos de radio e nos automéveis mil coisas, mil detalhes que parasitam a técnica e que provam a falta de ‘bom senso, ¢ até a falsa concepgdo da vida e do homem. Hi, por exemplo, em certas instalagdes de alta tensio, um com- plicado sistema chamado de seguranga, que tem a proprie- |AS FRONTEIRAS DA TECNICA Wa dade de adormecer a vigilancia dos encarregados, sendo as- sim responsavel pela maioria dos acidentes; como também, nos aparelhos domésticos, hé no aquecedor de agua para banho um dispositive automitico que tem sido a causa da maior parte das explosdes e dos envenenamentos. No que concerne ao rédio e & aviagdo, posso dar um exemplo da mesma falta de bom-senso téenico. Todos ga- bam a extensiio das nossas rotas aéreas. Parece que nbs temos uma das maiores rédes aerovidrias do mundo. Ora, @sse modo de encarar o problema dos nossos transportes é insensato, porque a extensio das rotas aéreas no Brasil € um sinal de atraso téenico, ‘Temos uma grande réde de co- municagées pelo ar porque nos faltam estradas no chao. Ora, 6 ffeil mostrar que a rota aérea, sob o ponto-de-vista da civilizagao e do progresso total do pais, 6 muito inferior & estrada de rodagem, porque nio beneficia continuamente © trajeto. © avido dé um salto entre dois pontos, sendo assim 6 recurso ideal para atravessar desertos. Por onde se vé que 0 entusiasmo pela aviagéo (néo digo a aviagio em si) esté aqui, no Brasil, na mesma linha da erosao do solo, isto 6, coopera com a inciria e com outros entusiasmos na tarefa de transformar o Brasil num Sara. (© mesmo diria eu da radiotelefonia. Nés nfo temos rédes, linhas tertestres, ligando as capitais do norte e do extremo sul. Veio 0 rédio, e estabeleceu-se o servico radio- telegréfico e radiotelefonico, que é inferior ao servico pres- tado pelas linhas terrestres e tem os mesmos inconvenientes apontados para a aviagio. Dirdo todos que a radiotelefonia resolveu, entre aquelas localidades, o problema da comuni- cago da palavra como a aviagéo resolveu o do transporte. Som diivida. Mas o insensato entusiasmo pelo recurso mais moderno (e aparentemente mais téenico) desviou verbas enormes e energias que estariam melhor, sob o ponto-de- vista mais geral do bem comum, na extensio gradativa e organica de linhas terrestres. 18 AS FRONTEIRAS DA TECNICA Dou ésses exemplos para mostrar que no interior da propria técnica hé disformidades provenientes da falta de uma regulagio que s6 o bom-senso pode dar, e que o entu- siasmo pelo “mais moderno” pode agravar. Bt Mas no é da regulacdo interna da téenica que vamos ‘tratar aqui; como também, conforme j4 disse, nfo é da res- trigdo de seu dominio préprio ou do racionamento de suas atividades. As fronteiras de nosso titulo sfo outras. S30 fronteiras de esséncia, limites de forma e nao de quantidade fe matéria, O que chamo de teenicismo nfo é 0 exagéro de méquinas ou de aparelhos elétricos; ndo é a expanséio da ‘técnica; e muito menos seré o gosto e a admiracao pelo progresso téenico que sdo perfeitamente razoaveis. Nao 6 também o disparate produzido pela falsa inventividade que atravanea a vida de utensflios intiteis. Nao. O que chamo tecnicismo é a transplantacdo dos métodos, do critério do estilo, que so préprios da técnica, que so a sua coros, para os dominios da vida moral. # a ilusio de resolver os problemas da vida humana como se resolve um problema de linha de transmissdo. Em si mesma, a psicotéenica tem valor préprio, restando determinar, com a objetiva humil- dade dos téenicos verdadeiros, os seus préprios limites. En- carada, porém, como um instrumento que dispense @ res- ponsabilidade, a escolha e 0 exercicio das virtudes, torna-se um teenicismo malsio. Ora, ésse fenémeno existe. Existe em nossa civilizagio uma fadiga moral e um enorme desejo de capitulago. Como 6a técnica, aparentemente, a finica coisa que nio tem enver- gonhado 0 homem; como indubitivelmente funcionam bem os aparelhos de rédio, embora néo funcionem bem os or- ganizadores de programas; acontece o que era de esperar: os homens iro pedir & técnica uma receita de prudéncia e AS FRONTRIRAS DA TECNICA 19 até de felicidade. Iréo procurar em testes, organogramas e Abacos, algo que os liberte da angustiosa opressio da li- berdade. 0 técnico, como téenico, nao tem culpa dessa equivocada valorizagéo de seu oficio. Sendo embora engenheiro, néo me sinto implicado na propaganda que o partido eomunista fé em 1945 para colocar na presidéneia da repablica um enge- nheiro. Darei de bom grado o meu voto a um colega, mas nao pelo fato de ser engenheiro. Todo o mundo sabe que um engenheiro, para ser bom profissional, deve ser um espe- cialista. Ora, eu néo vejo bem qual das especialidades exis- tentes melhor se coaduna com a presidéncia da Repiblica, a menos que, dando valor real metiifora, eseolha a enge- nharia de ‘iguas e esgotos. Nés nao temos culpa da alta cotagiio da safira em de- trimento dos rubis; ou se temos, nao 6 no exercicio da pro- fissio que cla se localiza e sim no exereicio da cidadania. Defendo-me, pois, e defendo os meus colegas de duas espé cies de adversirios: 03 que nos vém implorar um eritério moral em cifras; e os impostores, os maus profissionais que consentem em aviar tao insensata receita. portanto contra a capitulacdo e contra a impostura que escrevo éste ensaio, € néio contra a técnica, ur H4 um problema moderno, ou melhor, um modo mo- derno de abordar um problema de todos os tempos, que re- vela nitidamente o espirito do teenicismo, 1 0 problema da felicidade, Antigamente, quando um méco no conseguia firmar-se no emprégo ou no noivado, dizia-se simplesmente que era infeliz, Se alguém desejava acrescentar ao julgamento uma Pitada de ironia, chamava-o de caipora, Ou entiio, vendo no malogro uma persegui¢fio do destino cruel, classificava-o 20 AS PRONTEIRAS DA TECNICA de azarento, Ou ainda, temperando o mesmo fatalismo com borrifos de galhofa, dizia que 0 méco era pesado; a menos que nfo entrasse na apreciagao algum laivo de supersti¢ao: fe nesse caso 0 pobre rapaz seria vitima de mau-olhado, en- guigo, quebranto ou mandinga. Ora, hoje diz-se que ésse individuo 6 um desajustado. Nao 6 preciso, ereio eu, ser muito perspicaz para dis- cernir a idéia mecinica contida nesse térmo. Desajustado 60 sujeito que funciona mal no mecanismo social como fun- cionam mal a peca errada, 0 parafuso frouxo, o contato de- feitoso no mecanismo fisico. Da imagem passa-se & realt- dade; e do diagnéstico feito nessa base passa-se a te- rapéutica. Se a felicidade do homem depende essencialmente do ajuste de suas constantes psicolégicas com 0 emprégo e com a noiva, como a felicidade do pé depende efetivamente da perfeita ajustagem com o calgado, néo admira que todos procurem angustiosamente o sapateiro das almas. Ora, essa idéia 6 monstruosamente falsa: porque 6 meio verdadeira. © homem tem pés. Precisa pois de uma boa técnica para o calgado, ¢ de uma técnica subsidiéria, a do calista, para compensar, embora tarde, as deficiéncias da primeira. 0 homem tem também certas constantes psicolégicas que me- rrecem atengées e desvelos de profissionais. Na sociedade inquieta e complexa de nossos tempos é admissivel, diria até desejdvel, que as grandes organizagées comerciais ¢ in- dustriais examinem judiciosamente os seus candidatos para beneficio de ambas as partes. © homem se engana facil- mente sobre si mesmo. Pode acontecer que um individuo, fascinado pelo ideal de cantor ou dancarino, nao perceba que The falta a misiea na garganta ou nas pernas. Aplica-se aqui a indicagio fria e objetiva do profissional para corri- gir as incoeréncias dos sonhos. Todo o mundo sabe como é triste tomar um caminho errado que 86 depois de longo percurso revela o extravio. Mais vale prevenir do que re- AS FRONTEIRAS DA TECNICA a1 mediar, diré em detrimento do calista o bom sapateiro; ¢ nés fazemos céro com essa vulgar mas exata sabedoris ‘Até aqui vamos bem. Comeca o érro onde se abre a brecha que deixa transvazar 0 contetido moral dos atos hu- manos, e a monstruosidade cresce na proporgio em que se substitui a prudéncia pela técnica. E ésse fendmeno existe, io na pratica dos testes, mas na filosofia em que a maior parte dos profissionais a envolvem. Num mundo jé bas- tante vido de irresponsabilidade ainda ha os que propagam fa boa noticia de truques que corrigem os desacertos, dis- pensando a conseiéneia moral. ‘A idéia que esté na base désse novo evangelho é a que faz do homem um animal apenas mais aperfeigoado, mas ainda assim, como os inferiores, ordenado a um determinado tipo de operagées. Ora, essa idéia é falsa. O homem, pele forca do espirito, é extraordinariamente adaptivel e capaz de superar moralmente as mais embaragosas desajustagens psicolégicas. O homem nfo é monovalente; néo nasce s- pecialista como 0 castor; ndo se diferencia em tipos simples coma as abelhas. Ao contrério, 0 que € preciso ensinar € propagar 6 que 0 homem tem sempre enormes reservas de recuperac&o, e que é na personalidade moral e nfo apenas no desabrochar de suas tendéncias naturais que consiste « sua mais alta realizagao. ‘Nao me lembro quem foi que lamentou os Mozarts assas- sinados, ou melhor, sufocades, econémicamente estrangul: dos, e sepultados nos semivivos que vemos por af nas Tuas, nos baledes, nos guichés. A idéia 6 generosa, mas torts. Bem intencionada, mas mal formulada. Basta pensar nas esquisitas providéncias que deveriamos tomar para desco- brir om tédas as criangas a mtisica escondida, Conseguida ‘essa campanha, teriamos de iniciar logo uma segunda quan- do um cutro escritor generoso aludisse aos Miguelingelos assassinados. Por mais cruel que isto parega a algum espirito romén- tico, nfo é nessa linha que devemos iniciar a procura da 22 AS FRONTEIRAS DA TECNICA perfei¢do de uma estrutura social. As falhas dessa ordem, Por mais lamentaveis que sejam no que toca a cultura, no bastam para inutilizar uma vida ou para entortar os eixos de uma civilizagio. Embora eu goste muito de misiea, ¢ particularmente da miisica de Mozart, nfo 6 aquela idéia que me faz as vézes parar na rua com um calafrio de horror. # outra muito mais simples, em que a vocacio universal de vida integra, moralmente integra, domina tédas as refulgen- tes vocagdes especiais. A grande inigitidade da civilizagso agonizante de nossos dias néo se localiza na falta de oportu- nidades oferecidas a todos para o pleno desabrochar dos ta- lentos ou para a prosperidade econdmica. Nao esté nos mi- sicos abortados. Esté na difieuldade, na quase impossibili- dade em que a maioria dos homens se encontra, de viver como homem, A grandeza essencial do homem consiste na integridade moral e no nos titulos que trazem a fama e a imortalidade das academias. Uma sociedade que resguardasse ésse ni- cleo, que permitisse aos individuos frustrados em certos bens exteriores essa recuperacéo fundamental, ainda mereceria © titulo de humana e civilizada, embora em seu dinamismo nao se pudessem evitar as quebras de mtisicos e poetas. Fa- Ihado o misico, abortado o pintor, ainda sobra o homem se ndo so ofendidos os direitos radicais da pessoa. Ora, a monstruosidade do regime econémico, em que se estrutura © nosso fim de civilizac&o, persegue o homem até ésse dlti- mo reduto, corta-Ihe 0 nervo da recuperacéo moral, dificul- ta a pobreza reta e Itmpida, fabrica a miséria fisica, que s6 no ser miséria moral onde encontrar as virtudes heréi cas dos santos. Em outras palavras, a monstruosidade désse regime de fome geogréfica e universal consiste na exigén- cia de heroismo feita pelo egofsmo e no apélo de santidade feito pelo ddio. ridiculo désse frenesi de reajustamentos psicolégicos reside precisamente neste ponto: uma sociedade em que os homens nao vivem como homens, ¢ alguns, muitos, mal con- AS FRONTEIRAS DA TECNICA 28 seguem viver como ces, pretende recuperar-se pela recu- peragio dos profissionais. fste equivoco, esta falta de hie- rarquizagio dos problemas, j& seria grave se acarretasse apenas a desatenc&o do problema principal. Torna-se gra- vissimo quando a desatencio se torna detrimento. ‘Torno a dizer que nao sou infenso aos métodos de se- lecio e de indicagées vocacionais. Quem nos dera que em cada bairro, em cada quarteirao existisse um bom wabinete de psicotécenica! E aqui devo confessar que nao é s6 a idéia de salvar algum Miguelangelo que me alvoroga. Uma outra esperanca, quase insensata, me acelera 0 coracdo: a de ver duas ou trés diizias de literatos e professdres de filosofia cordialmente reconduzidos pelo psicotéenico aos trabalhos agrarios, a estiva e & avicultura. E uma outra esperanga ainda mais desvairada: a de ver alguns psicotéenicos aban- donarem definitivamente a psicotéenica. Volto a realidade, antes que os bons ou maus humores me arrastem por irremediaveis delfrios. E digo, pelo quarta ou quinta vez, que existe um problema verdadeiro por detris da carieatura que fazem; e que ésse problema verdadeiro, atual, exigente, deve ser abordado com a técnica adequada, desde que nao a envolvam na indtil e falsa filosofia que s6 Serve para corroer a mais decisiva das resisténcias huma- nas, Sem essa condic&o, sem o respeito de suas fronteiras, & técnica transforma-se em tecnicismo e em calamidade piblica. # facil imaginar a sociedade inquieta, versétil, saltitan- te, febril, que a filosofia das ajustagens perfeitas produzi- ria. A cada resisténeia encontrada nos caminhos da vida corresponderia uma nova procura. Trés vézes por semana as pessoas pensardio que escolheram mal 0 offcio ou 0 cén- Juge. 0 divoreismo baseia-se no mesmo postulado: o casal 86 deve manter-se unido enquanto houver perfeita ajusta- gem. Ora, no hé casal nenhum no universo, incluindo os planétas porventura habitados, que nao tenha seus dias dift- ceis, Nao ha também carreira alguma, por mais impetuowa 24 ‘AS FRONTEIRAS DA TECNICA que seja a voeagio, que nfo passe por crises dolorosas. Beethoven apanhava surras do pai para estudar piano; San- ‘Tomés chorava para achar um respondeo. E quem esereve ensaios, embora tenha entrado livremente nesse ingrato ofi- cio, conhece horas de pesado desanimo em que The parece ter nascido para marinheiro ou entomologista. O homem, sendo extraordinariamente adaptavel, é por isso mesmo ex- traordinariamente versitil. Se Ihe faltar aquilo com que recupera o cssencial de si mesmo nas mais graves mutila- cées, transformar-se-4 num ser irrequieto € saltitante, a me- nos que uma psicotéenica federal ou municipal o obrigue a ficar quieto dentro da carreira, ou junto & espésa técnica e oficialmente designada para a sua felicidade. Vv Grave bem o leitor esta idéia: no estou aqui fazendo o libelo da técnica. Nao direi que a maquina escraviza o ho- mem. Nem insinuarei que o Deménio tenha um gosto es- pecial pela engenharia. O homem, quando quer despojar-se de stia incOmoda liberdade, nfo precisa apelar para nenhu- ma receita especial. N&o precisa estudar eletrotéenica, Néo precisa fazer méquinas. Eo Deménio, quando quer ajudar 0 homem nessa fécil operacao, tem recursos mais amplos e mais variados. A técnica é uma gléria do homem. A méquina é um instrumento de libertacéo com o qual o homem, de certo modo, recupera o dominio sobre as coisas, o império.que Ihe foi dado no dia da criacdo. Essa é uma de minhas miais robustas convieges. E devo acrescentar — para que 0 leitor nfo me confunda com ésses burocratas da técnica que sofrem a nostalgia das realidades — que a essa conviegéio racional se deve acrescentar,.no que me diz respeito, um ‘gosto perseverante, um fiel amor pelo cristalino mundo das fOreas fisivas subjugadds:” ‘Metade da minha vida, até hoje, AS FRONTEIRAS DA TECNICA 25 pertence ao papel milimetrado, ao gréfico, as férmulas al- gébricas, e a essa peculiar exultacdo da caga do valor preci- 80, que tem algo de postico e de esportivo. Ha mais de qua- renta anos, e sem nenhum auxilio da psicotécnica, escolhi carreira, essa mesma que até hoje € 0 sustento de minha gente, Eno me arrependo. Quando no meio do caminho me achei eseritor, pareceu-me, nfo o oculto, que houvera des- perdicio nos anos passados entre teodolitos e galvonémetros. Na crise da duplicagao, que fazia de mim uma espécie de monstro, cheguei a lastimar-me em péblico. Vez por outra ‘ainda me entristeco quando inventario o que poderia ter estudado, e 0 que poderia ter gravado com meméria mosa nos verdes anos que dei astronomia e depois & eletrénica. ‘Mas nos momentos de melhor reflexdo vejo a futilidade des ‘sa tristeza, e chego a compreender 0 muito que 0 meu novo oficio deve As atividades passadas nos dominios da ciéncia e da téenica, Pormita-me o leitor algumas embaracosas reflexes que tenho a fazer sobre o que eu mesmo escrevo, ¢ procure ver na utilidade désse depoimento a sua tinica justifieativa. Dis- se que muito devia a técniea do pouco que consegui no oficio de escritor. E 6 verdade. Estou hoje convencido de que 0 melhor de mim mesmo nesta vida nova que comecei aos quarenta anos, vem justamente da soma do experiéncias realizadas longe da literatura. Ja me perguntaram uma ver @ que influéncias literdrias eu devia a minha formacao, ¢ eu no soube responder. Nao foi a Machado de Assis porque, por incrivel que pareca, 86 0 li com verdadeira atencio na mesma época em que comecava a eserever, isto é aos quarenta anos. Nao fiz portanto 0 longo estégio na obra machadiana que Moisés Velhinho,* com muito acérto, recomenda aos escrito- res da‘Iingua ‘portuguésa, quaisquer que sejam as inclina- gdes do seu espirito; mas talvez possa dizer que procure! '* Provinelé de Séo'Pedro, n° 17, 1982, pag. 163. 26 AS FRONTEIRAS DA TECNICA recuperar o tempo perdido, pondo na leitura do grande mes- tre uma férea de atencio que me compensasse do atraso. Estou com 0 lieido diretor de Provincia de Séo Pedro, que Machado de Assis “deveria constituir uma ligéo permanente no 36 de boa gramética —o que seria de menos — mas sobretudo de dignidade e compenetracio literdria”, Praza a Deus que dessa grande ligdo eu tenha tirado algum pro- veito, Mas no que toca ao estilo, 0 modo personalissimo de expresso, creio que é preciso remontar aos primeiros anos de vida do escritor, ao perfodo de certas fixagdes, ao cres- eimento dos miisculos e dos 08808, ao “mistério do corpo”, em suma, para encontrar a verdadeira explicacio. As influéneias de ordem moral ou especulativa atuam em qualquer tempo e mudam os eixos da vida, como a mim me aconteceu. Mudam-se as idéias com certa rapidez, e em qualquer ponto do itinerério, porque o espirito 6 pronto; mas nio se mudam facilmente os cacoetes, os gestos, 0 es. tilo, a fisionomia da expresso, porque tudo isso se prende & vida dos sentidos e as experiéneias em que entrou o corpo intefro. Tenho para mim que é af, nesse terreno das experién- cias sensiveis, e néo na leitura de outros autores, que o eseritor encontra 0 seu modo peculiar de expresso, 0 seu estilo, A palavra é 0 elo entre 0 mundo do espfrito e o mundo dos sentidos; ¢ assim como tudo o que esta na inte- ligéncia passou pelos sentidos, reciprocamente, s6 voltando 0 sinal sensfvel € que a inteligéncia se exprime. Ora, 03 sentidos interiores, a meméria e a imaginac&o, se alimen- tam dos sentidos exteriores. Além disso cumpre notar que a atividade técnica, retamente exercida, realizada em conta- to com as coisas concretissimas, é também uma espécie de enearnacdo da inteligéneia. De onde se vé que nfo ha ne- mhuma fantasia em atribuir ao exercicio da técnica um for- te valor na formacio dos recursos de expressiio, E isto que agora explico é em mim uma experiéncia sentida. Em ou- tras palavras, quero'dizer que é com a mio que escrevo, com AS FRONTEIRAS DA TECNICA aT @ mesma mao de carne e osso que trinta anos atrds, na es- curidéo fechada da noite mato-grossense, aprendera a on. contrar og parafusos calantes do teodolito: com os mesmos dedos que depois aprenderam a soldar, a limar, e a segurar a ferramenta adunea que no térno iria imprimir uma idéia no tarugo de bronze, E até hoje conservo ésse habito, ésse gosto do concreto, do palpavel, e é nas mAos e nos dedos que sinto o porejar das idéias. Perdoem-me se entro nesses de- talhes da intimidade de meu oficio. Mas ja que estou nes- sas confidéncias, aproveito para dizer que muitas vézes, av eserever, me detenho, deixo a pena, e sdzinho, para espanto de quem me visse pela janela, procuro no ar 0 térmo pré- rio, com as mAos, como anos atrés procurava na bancada a broca exata. E nao 6 86 a mao que fala na silenciosa atividade do técnico, € o corpo inteiro que se Move, que executa posi- cées imprevistas, que danga diante do objeto. Agora in- clinado, logo depois arqueado ou de brugos, 0 corpo todo se comunica, se coloca entre a inteligéncia e a coisa. Em tér- ‘no do teodolito, na noite escura, 0 observador executa um bailado. Porque o corpo é ritmo. Tudo no corpo so rit- mos. E nessa conjugacéo de movimentos Tegrados, coman- dados pelo coracao e pela estréla que corta os fios do ret culo é que o jovem astrénomo, muito antes de ter lido Berg- son, j4 suspeitava que a eurritmia fésse quase todo o se- grédo da expresso, Além disso cumpre notar que o técnico militante na astronomia ou na eletrotécnica tem de levar © seu corpo ao local do problema. E novas atitudes, novissimas experién- cias aparecem no seu itinerdrio de muitas léguas. Aqui me vém 4 meméria, em imagens superpostas e de anarquizada cronologia, as longas cavalgadas por planicies sem fim, os rios atravessados, a carapinha impenetrével dos capoeirées, os pios de aves desconhecidas ao entardecer, ¢ 0 cheiro das resinas, 0 cheiro dos cavalos suadpy,p, i BIBLIOTECA 28 AS FRONTEIRAS DA TECNICA ‘Tudo isto conflui para que a sensibilidade do téenico seja ‘mollis carne, como devia ser, segundo Aristételes, a sensi- ilidade do fil6sofo. Cumpre ainda notar que ésse apuro do téenico néo evolui na direcdo das exasperacdes emotivas de que to inconvenien temente se gabam certas autoras abrasadas, No; a sen- sibilidade do téenico, por apurada que seja, conserva-se sem- pre casta, Servical, humilde, ela se empresta ao espirito sem reivindicar a recompensa das cécegas. E a emocio se es- piritualiza, e passa a ser um cordial calor de humanidade, brando e disereto, a servico da inteligéncia. Mais tarde, quando essa influéncia da sensibilidade disciplinada passar & obra de arte, ela traré o gosto da jus- ta medida ¢ do equilibrio. Em Machado, por exemplo, po- de-se adivinhar 0 mégo compositor, 0 tipégrafo que faziz palavras com as méos, e que assim aprendia a lei da eco- nomia, o respeito ao esforgo, que s6 0 trabalho manual po- de eficazmente transmitir. Ouso dizer que a fraqueza da literatura esta na auséneia de dificuldade material. O pa- pel é paciente, a pena corre, e a expressio tende a desatar- se antes de amadurecer. Por isso, ouso ainda afirmar, é indispensdvel que 0 corpo do escritor traga de outros do- minios os exercieios de ritmo e 0 habito das construgdes ordenadas, que vao ser os elementos constituintes de seu estilo. Falei em construgdes ordenadas, e logo aqui me ocor- re novamente a inestimivel contribuigéo da técnica. Por- que nao basta 0 ritmo para dar & expresso verbal a sua fisionomia prépria e a sua forca. Hé na palavra o encon- tro de tddas as artes, as fugitivas que se ordenam pela lei do ritmo, e as estruturais que se ordenam pela proporedo dos volumes. Combinagdo de misiea e de arquitetura, a ex- pressao verbal depende essencialmente désses dois elemen- tos. # um ritmo e uma construgio, Ora, quem aprenden a montar aparelhos, a colocar cada pecs no seu justo Iu AS FRONTEIRAS DA THCNICA 29 gar, esté impregnado dessa idéia, isto é do inestimavel va- Jor da construedo em que os substantivos ficam bem fixe- dos, e em que os verbos rodam sem atritos em maneais per- feitos, enquanto os rebites e os parafusos, isto 6, as conjun- ges ¢ as preposigdes garantem a bela solidez do conjunto. Quem perdeu dias procurando um determinado parafuso de tamanho e rosea especiais, que se exercitou nessa exigéncia da pega adequada, tera mais tarde o gosto e a paciéncia de procurar a melhor regéneia e a mais exata conjuncao. Néio se apresse a coneluir, leitor ilégico, que eu esteje agui a gabar-me de minhas realizagées verbais. Ao con- trario, publicando as cireunstancias favoraveis da boa es- cola que tive, eu me despojo de excelentes desculpas, e tor- no mais imperdodveis as minhas deficiéncias. Nao é pois ‘0 resultado que estou exaltando; é 0 processo de aprendiza- do que me equilibrou em saudével afastamento das terti- lias, onde a alma do mdco se cresta e envelhece com prodi- giosa rapidez, E tiro dessa declarac&o, que j4 se prolongou demais, um titulo que fago questéo de exibir, para cativar ‘a simpatia do leitor neste livro em que vou criticar o tec- nicismo: o titulo de fiel praticante da técnica. Mas agora deixemos 0s meus titulos e voltemos ao assunto. v Perdio, abro aqui um espacoso paréntese, porque te- nho uma divida a pagar. Digo melhor, duas dividas: uma antiga, com mais de trinta anos, e outra recente, com me- nos de trinta dias. E comeco pela segunda, porque 0 cre- dor da primeira 6 um defuntinho que ficou enterrado jun- to a um tronco de jequitibd, cérca de dez Iéguas, rio acima, do extraordindrio antiteatro de gua e espuma em que se precipita o rio Parand. Os credores vivos e recentes sio os engenheiros que dias atrés me convidaram para dizer algumas palavras 80- 30 AS FRONTEIRAS DA TECNICA bre a ética da profissio, Prometi-lhes gravar em livro as palavras da conversa, e é esta a divida que pretendo amor- tizar. Comego por dizer que nfo existe uma ética profissio- nal no sentido que alguns Ihe atribuem. Em certas cor- poragées militares, por exemplo, parece admitido que to- dos os membros devam ser solidérios com 0 companheiro de armas culpado de ladroagem ou de homicfdio. Essa 6 ca de casta s6 tem um defeito: 6 absolutamente imoral. Ou melhor, tem dois defeitos: aquéle que acabamos de mencio- nar, e um outro, mais pragmatico, que tem escapado as re- feridas corporacdes, e que 6 0 seguinte: essa solidariedade 6 afirmada para prestigiar o companheiro culpado; na rea- lidade s6 serve para desprestigiar téda a corporagiv. ‘Nao seré pois nesse sentido de mundo & parte, de re- gra de coleguismo, ou de espirito de casta, que podemos fa- lar em ética profissional, Sera antes como encargo, e néo como regalia. S6 ha uma ética, mas essa ética tinica ¢ uni. versal tem problemas especiais em cada dominio especial; e 6 nesse sentido, e s6 nese, que podemos falar em moral particular de um grupo ou de uma profissio, ‘A do engenheiro, considerado exclusivamente sob 0 an- gulo do exercicio da profissio, pode reduzir-se a uma regra extremamente simples: a do servico bem feito. © proble- ma moral que envolve 0 problema téenico reduz-se a isto: 0 bom uso das faculdades para a perfeicao da obra. Maior porém é 0 problema moral do homem-engenhei- ro, isto 6 o problema suscitado no homem pela prefissio. Todos os oficios, bem ou mal escolhides, exercidos com entusiasmo ou a contragésto, trazem para a vida do homem encargos morais. O médico, por exemplo, vive diariamente em contato com a carne do homem. 0 advogado se move também no mundo das paixdes. Lidam ambos com infeli- ze, com pessoas que se despem e é fécil imaginar 0 grau de virtude que é preciso ter para agiientar tamanha pres- AS FRONTEIRAS DA TECNICA 31 so. Sob ésse ponto-de-vista a vida do engenheiro ¢ mais facil. Seu oficio é exercido ao ar livre, 6 isento do contato pessoal, 6 objetivo e cristalino. © engenheiro néo recebo clientes a portas fechadas, nfo lida com a dor. Diria até que € Iimpido demais 0 offeio de engenheiro, porque essa transparéneia pode produzir no profissional um certo em- botamento e a conseqiiente tendéncia a mineralizar os pro- blemas humanos, No que concerne & moral individual quase poderiamos reduzir a deontologia do téenico ao sétimo mandamento: nfo furtar; convindo entretanto lembrar 0 que jé disse o padro Vieira das varias flexdes do verbo rapio. 6 86 galgan- doo muro a desoras, ou enfiando dedos Ageis na algibeira desatenta que se conjuga ésse irregularfssimo verbo. Qu- tros mil modos existem, e pelo que temos visto iltimamente entre nés, muitos déles pretendem incorporar-se aos costu- mes ¢ tornar-se o que os socidlogos chamam tracos culturais. A comissio na compra do material, a gratificagio recebida para o cumprimento de uma obrigagdo j4 remunerada, 0 emprégo de material inferior ao especificado ou a0 exigido pela natureza do servigo, tudo isto, por mais que procurem um processo seméntico que dé ao vicio nome de virtude, se enquadra dentro do mesmo mandamento, e se chama roubo, Digamos furto. Ladroagem, ladroeira ou ladrofce. Gatu- magem ou gatunice. Varia o voedbulo mas permanece o mesmo fato essencial da apropriagio indébita, Interessa também ao téenico e ao industrial uma for- ma peculiar de roubo que consiste em roubar deixando-se roubar. Refiro-me ao subérno. Sob muitos aspectos 0 su- bémo é pior do que o roubo simples, porque é um encoraja- mento e uma recompensa do vicio. Lesa ¢ prostitui, Todos dirdo, aflitos ou irritados, que hoje é quase im- Possivel evitar o subérno, Bem o sei. JA disse duas ou trés Paginas atrds que dia a dia se torna quase impossivel ser simplesmente honesto. Nossos iiltimos governos desenvolve- Yam, com extraordinaria eficiéneia, a técnica do subérno que 32. ‘As FRONTEIRAS DA TECNICA se vem incorperando aos nossos costumes. © engenheiro ¢ © industrial vivem diariamente achacados por chantagistas oficialmente encorajados, e em tais cireunstancias o proble- ma moral se torna matizado e dificil. Mas 0 cerne da ques- ‘to se mantém. E ao técnico que gosta de térmos claros ¢ objetives eu direi que subornar é roubar ao quadrado, ‘Tirando isso, que aliés nfo é pouco, a moral individual do engenheiro e do técnico em geral 6 mais folgada e menos perigosa que a dos médicos e dos advogados. Hi porém um grande problema moral em que os engenheiros, téenicos ¢ industriais tém um papel muito importante a desempenhart 0 da justiga social. A aes do engenheiro, sob ésse ponto-de-vista, é a de considerar 0 trabalhador como uma pura engrenagem da organizagio. Seu hébito de trabalhar em coisas amorais ¢ jnorganieas o induz a mecanizar a mio do operério. Atento obra, apaixonado pelo resultado, possuido pelo espfrito de eficiéneia, 0 téenico é muitas vézes implacdvel ¢ inacessivel fs afligdes humanas. Adiante o leitor encontraré, mais de~ senvolvida, a andlise da psicologia do técnico sob ésse angu- o; aqui, onde me pediram que resumisse e gravasse as li- has gerais de nossa deontologia, quero arrematar com éste apélo, 0 engenheiro, 0 técnico, 0 industrial esto em con- tato didrio com a injustica, com o mau pagamento, com a eondenagio A miséria da maioria dos homens. Trabelham no pais da fome. # aqui que se articula a segunda parte déste capitulo ‘onde conto pagar uma prestagao da minha primeira divida, eujo credor paciente, representante pequenino e escuro de outro Credor ainda mais paciente, esta & minha espera des- de 0 ano de 1920, Nagquele tempo, com vinte e poucos anos, fui arrolado numa comissio de engenheiros para fazer coordenadas as- AS FRONTEIRAS DA THCNICA 38 tronémicas no extremo sul de Mato Grosso, onde uma em- présa de capitais brasileiros ¢ argentinos explorava a erva- mate. Nosso officio, meu e de meu colega Carlos, consistia em marca pontos que servissem de amarragio aos trabalhos de topogratia, Levévamos teodolitos e diversos cronémetros de preciso porque, no existindo ainda o radio e os sinais horérios, tinhamos de fazer as longitudes com o método bir- baro e trabalhoso do transporte de hora e harmonizagio de crondmetros. Nosso trabalho, como se vé, era noturno e espacado. O que mais tinhamos a fazer era andar. Ah! quem nio ex- perimentou n&o pode ajuizar o que seja andar, em cavalo ruim, oito a dez léguas de deserto por dia. A regiio em que deviamos marear nossos pontos era efetivamente um deser- to na sua maior extensdo. Plana, desguarnecida, eoberta de uma erva dura e séca, tinha as vézes 0 contérno circular dos horizontes de mar. Lembra-me um lugarejo perdido, um boliche, que tirava 0 nome do fato prodigioso de possuir uma érvore. Chamava-se Iberapetein, que em guarani quer dizer Uma Arvore. ‘Menos ainda se poder avaliar, quem a no tenha expe- rimentado, a angiistia que nos acomete ao entardecer quan- do pressentimos, em pleno deserto, que o cavalo esté rom- pido pela marcha. Néo hé espora, no ha chicote que tire do animal um resto de f0rca, O passo fica incerto, a cabe- ga cai como se 0 pescoco estivesse quebrado; e quando tom- ba nio se levanta mais. Duas vézes tive de abandonar 0 bicho no meio da paisagem amarela e desolada, e fui for- gado a perfazer as léguas restantes com os arreios suados nas costas. Além do aspecto humilhante, posso asseverar que no é ameno o exercfcio, mormente quando coincidem as Iéguas e os arreios com uma dor de dentes de periostite aguda, Guardo muitas reminiseéncias coloridas désses tempos de sertdo, alegres umas, tristes outras, mas tédas envolvidas 34 AS FRONTEIRAS DA TECNICA t na neblina da saudade, que poe uma docura nas tristezas uma pungéncia nas alegrias. E é assim, nessa espécie de negative da meméria, que eu revejo nossos acampamentos & noite, entre gatichos e paraguaios, onde sempre apareciam, nao sei como, as morenas cunhis que traziam a danca e a rixa ao nosso rude mundo masculino. Ougo ainda a canti- Jena da Santa Fé, gemida nos acordedes e ritmada pelos pés desealgos que batiam no chio de terra, em térno da fogueira, ‘com um misto de garbo espanhol e de doléncia indigena. Re- memoro as noites de turbuléncia, a algazarra, os tiros, e as reconciliagées marcadas com grandes tragos de cachaga e ainda mais barulhentas do que as brigas. E depois, quase sem transigéo, a hora pesada do sono, o silencio espésso e morno da barraca cheia de corpos prostrados, enquanto li fora se alargava o siléncio da noite alta em paisagem pri- mitiva, Poderia contar, com pormenores, o epis6dio da méca india mordida por cobra, cujo pai nos velo sacudir 0 sono As trés da manha para pedir remédio. Vejo ainda, & luz da Janterna amarelenta, um alpendre com sacos de erva, a ré- de, e 0 corpo de dezesseis anos que se toreia de dor com gemidos e queixumes em guarani. Curada a méca, queria © pai que ficdssemos com ela, e ainda zangou-se quando al- guém tentou demonstrar-lhe que nao nos ficava bem acei- tar aquéle tipo de pagamento por uma injegio de séro anti- ofidico, Respondeu ao sermio dizendo-nos que éramos or- gulhosos e que tinhamos desprézo pelos pobres. E 0 Matos? $6 com éle escreveriamos trezentas pgi- nas de aventuras. Vejo-o agora como o vi naquela tarde maravilhosa em que, depois de oito horas de cavalgada so- litaria, @le me apareceu de repente no alto de um cémodo, estitua egilestre viva e dourada, a me acenar de longe com © enorme chapéu de vaqueiro ¢ a gritar o efémero apelido de sertio que me valeram as barbas crescidas: — Barbacena! AS FRONTEIRAS DA TECNICA 85 Esse Matos, alto e forte, bem plantado nas botas, barba aguda de mosqueteiro que mal disfarcava uma funda ciea- triz, era um personagem que ficaria bem na Tha do Tesou- yo ou nas Minas de Prata, ‘Tinha habilidades de mae e rom- pantes de matamouros. ‘Trés vézes serviu de parteiro e trinta vézes afrontou a faca e 0 tiro, com a sonora bravura dos heréis de Homero, ou dos piratas curtidos de sol e mar. Nenhum de nés 0 excedia no fogdo ou o igualava na mesa. Bebia prodigiosamente, ria de tudo, brigava & toa. Uma noite de algazarra e rixa vi-o castigar um peo insolente, a bofetadas, sem puxar o revélver, e sem dar a menor aten- ‘go pistola que tremia na mao do adversirio, De outra feita, jd em Ponta Pord, Matos declarou guerra ao Para- ‘guai, isto ao lado paraguaio do vilarejo de fronteira. Sd- inho, meteu-se num boliche para arrancar dos bragos do delegado a méga chamada China, que era a perdi¢ao do Iu- gar, e que a autoridade paraguaia pretendia encampar. Cho- via de um modo aterrador quando os companheiros vieram nos chamar, eérea de meia-noite, com a noticia do tumulto e do perigo em que estava metido 0 nosso homem, Lé fomos, ¢ no meio de uma confusao de tiros, palavrées, gritos de mu- Ther e garrafas quebradas, conseguimos libertar o Matos. Pelo caminho de volta, um topégrafo teheco, que era incli- nado & elogiiéncia, £82 um sermfo ao turbulento, dizendo-lhe que era mau companheiro, que perturbava o servigo € 0 s0- no dos amigos mais mogos. Arrependido instantaneamente, como um menino, o ledo chorava no meu ombro, solucando ‘© meu apelido de sertiio: — Barbacena! Barbacena! ‘Mas 0 epis6dio que estou para lembrar é outro. Acon- teceu quando ainda estavam em trajeto os engenhsiros e auxiliares da comissio, deseendo o Parané numa bareaca de rodas chamada “Rio Brilhante.” Certa tarde, apés quatro —— 36 AS FRONTEIRAS DA TECNICA ou cinco dias de viagem, na véspera de chegar a Guaira, ou Sete Quedas, o vaporzinho entrou numa enseada natural e velo encostar na floresta. Estavamos na estagéo das gran- des Aguas. Era o rio engrossado que invadia a mata, mas @ nés nos parecia que eram os troncos, as drvores, empur- yadas umas pelas outras, como ‘se houvera um grande mo- tim na floresta, que se precipitavam no rio, — Que coisa! dizia eu maravilhado. — Safa! murmurava a meu lado um lacénico compa- nheiro que tirara o cachimbo da bdca e considerava aquéle transbordamento vegetal que nunca imaginéramos, Desembarcamos. © vapor precisava de umas repara- s0es nas caldeiras. ‘Tinhamos trés horas de terra, que po- diamos aproveitar para uma excursio nas cercanias, Mu- nidos de biissola e podémetro, armados de faca e revélver, um colega e eu entramos no mato seguindo um fio d’égua que vinha trazer seu modesto tributo de vassalo ao Parand. Ao cabo de alguns minutos de marcha perdemos de vis- ta 0 prateado do rio, 0 fio d’égua, 0 eéu, 0 chao, sim, a ter- ra do chéo, e nos achamos dentro do mundo exelusivamen- te vegetal, cercados de f6thas imidas, de liames, espinhos, cip6s e troncos, como se todo o universo estivesse ali a emer. gir do nada na sua primeira tumultuosa e desordenada afir- magio de existéncia. A prépria terra desaparecera debai- Xo de um colehéo espésso de folhas sécas, troncos eaidos, detritos, tudo imido, f6fo, a exalar o acre cheiro da morte vegetal, Abrindo caminho a facdo, avangamos palmo a palmo, Penetrando na polpa verde-escura, Eramos talvez os pri. meiros homens, talvez mesmo os primeiros animais de por- te, a desbravar a carapinha intonsurada daquele eapooirdo, Adiante encontramos novamente 0 fio d’égua que andare Sumido entre as raizes trancadas © o sedimento espésso de folhas mortas; ¢ foi af que apareceram as borboletas azuis, Foi uma festa. las vinham as diizias, e esvoacando em - AS PRONTEIRAS DA TEoNTCA 37 térno de nés traziam Aquele sombrio buraco vegetal outra ér, reflexos de uma vida mais autonome e mais leve. Tra- ziam-nos também, um pouco de nossa infaneia. “Ai que sau- dades que eu tenho, da aurora da minha vida”... recitava ‘© meu companheiro. Logo porém se alteraram nossos sen- timentos quando a nuvem de reflexos azuis se avolumou. ‘Jé nfo era poesia, era praga. Tudo ali naquele mundo es- pésso tinha de ser desmedido e brutal. Andévamos agora ‘a sacudir os bracos e a cabeca, soprando e bufando, para ‘que elas nio nos entrassem nos olhos, no nariz e na barba. ‘Num certo momento contei mais de trinta no chapéu do colega, sem falar nas outras ainda mais numerosas que Ihe marchetavam de azul elétrieo a eamisa, as caleas © as botas. Lembrando-me as bandejas e abajures que @ praca Maud oferece aos turistas, deu-me um ataque de riso. O colega, voltando-se, achou em mim o mesmo espeteulo: e fieamos 0s dois a rir naquele buraco verde que de certo ouvia pela primeira vez, um riso de gente. Foi nese momento que o meu colega féz um sinal, chamou-me a atengéio para um som esquisito que vinha do nordeste, Nao, eram dois sons. Um ritmado, “batendo o segundo” como dissemos em térmos astronémicos; e outro escorride, monétono e plangente. Dobramos a esquerda abrindo caminho entre cip6s e espinhos. A floresta torna- va-se mais rala, j6 deixando entrever uma nesga de céu. 0s dois ruidos cresciam: 0 ritmado mantinha o seu sinero- nismo com as péndulas siderais; 0 outro, mais agudo, per- sistia na sua coleante monotonia, fio de som como o fio @égua que ficara para tras, cantilena agridoce De repente achamo-nos numa clareira presidida por um enorme jequitibé, e ali tivemos a explicagio do esquisito dueto: era um homem de eécoras que cavava, uma mulher em pé que gemia, e junto dela, no chao, imével entre revoa- das de borboletas azuis, um corpinho escuro, magro, toreido e coberto de nédoas vermelhas, como uma raiz que tivessem 38 AS FRONTEIRAS DA TECNICA retirado ainda em brasa da fogueira. Q homem olhava pa- ra nés com 6dio e pavor. A mulher, suspendendo a canti- ena e esquecendo a crianga morta, fixava-nos com os olhos vazios, Foi 0 colega que falou primeiro: = Entio? 0 que é que ha? Prorrompeu em gritos a mulher enquanto o homem, sem largar a faca, olhava para a direita e para a esquerda com desespéro sombrio. Aproximamo-nos com gestos cordiais; ¢ gastamos longos minutos até que éles vertessem em lin- gua de gente o pavor que traziam. A crianga estava real. mente morta; era um menino; teria quando muito aho e meio. Alargamos 0 buraco com nossas facas ¢ ajudamos o homem a plantar aquela raiz escura ¢ toreida que voltava a0 hiimus depois de uma breve e malograda excursio pela clara patria dos vivos. Meu colega, com seu extraordinério eanivete de doze laminas, pés-se a cortar e a lavrar duas varas brancas de Piquié-martim, enquanto 0 desconhecido nos contava a sua histéria acompanhada pelo gemido manso da mulher. 0 menino morrera de mosquito. Féra devorado, intoxieado Pelos milhdes de mosquitos que & noite engrossam o ar da. Guelas regides alagadas. Chorara a noite téda. De manha ainda estava com vida, mas na hora do sol alto parara «le chorar. Bles vinham de longe, dos ervais. Tinham “caido no mato.” Iam procurar trabalho em outras terras... Nos Jevamos tempo a entender a hist6ria, 0 sertanejo comega as histOrias pelo meio, mencionando nomes e fatos que éle imagina universalmente conhecidos, Conseguimos afinal pegar o fio da narrag&o que s6 mais tarde, quando chegarmos aos ervais, se tornaré perfeitamen- fe clara para nés. Sim, dentro de poucas semanas sabere. mos que os trabalhadores da emprésa ganham um salério caleulado pela metade do que estritamente precisam para comer. A outra metade sera concedida gencrosamente a titulo de empréstimo, Como porém os homens no podem AS FRONTEIRAS DA TECNICA 39 ordinariamente comer dia sim dia nfo, acontece 0 que os técnicos da emprésa caleularam com rigor matemético: a divida dos trabalhadores cresceré infelivelmente na propor- do do trabalho. Quanto mais trabalharem mais escravos sero, E s6 tém uma possibilidade de libertacio: a noite, a espessura da floresta, e a coragem de enfrentar os capi- ‘iies-de-mato que Ihes saem ao encalco com espingardas, & que nao vacilam em prostrar 0 rebelde devedor em nome da e da justica. Owietés vmon de perto ses exeravs. ntram no mato para extrair a félha, e deixam o trapo de camisa pendurado num galho. Quando perguntamos a razio désse costume, um déles nos raspondeu simplesmente: — A pele costura. sdzinha, Saem do mato sangrando. Esgalham entao a planta, separam as folhas, e fazem fardos de sessenta quilos que carregam nas costas, ao fim do dia, até o armazém, trés, quatro Iéguas, num passo mitido e igual que procura imitar das mulas. Experimentamos o péso e a marcha por uma centena de metros de cho mole, escorregadio e espinhoso: por mim posso garantir que nfo era comodo. Experimen- tamos também o loero, pratarraz de milho bichado com ro- delas de uma gordura equivoca:: posso também asseverar que ndo é agradavel. Mas éles agilentam anos. Creio que a for- ga déles vem da sanfona e do bate-pé-noturno, e das mo- renas cunhas que aparecem com flor no cabelo e charutinho num canto da béca enquanto o outro fica livre para cuspi- nhar com faceirice desdenhosa... De tempos em tempos foge um. As vézes com mulher. As vézes com crianca. Quando o homem terminou sua historia o meu colega terminava também o encaixe das duas varas de piquié-mar- fim. Um cipé prendeu os dois bracos da cruz, na falta de Prego. 0 cipé escuro, torcido, onde s6 faltavam as brasas de sangue, lembrava 0 corpo magro do defuntinho. E entio, 40 AS FRONTEIRAS DA THCNICA enquanto o meu amigo fineava o pau no chao, eu baixei a ca- bega, com vergonha de encarar aquéle casal humano, A noite, deitados no tombadilho da barea, com um céu exageradamente estrelado proposto aos nossos olhos astro- némicos, 0 meu colega e eu fumavainos em siléneio. O na- vio destizava devagar dentro da noite. O jequitibé, comido pelo negrume, absorvido pela demagogia da floresta, ficara para trés, perdido, insignificante. Ainda mais perdida e insignificante era a vara de piquié-marfim cortada em duas pelo canivete de doze laminas que meu amigo possui com mal disfargado garbo. — Horrivel! disse éle entdo, laconieamente. ‘Nao respondi. Diante de mim estava o Centauro eo Cruzeiro do Sul. Muitas vézes, no sertio, deitado ao relento e sem poder dormir, eu revia a rua Haddock Lobo, onde dei- xara minha mie a chorar, e onde minha irmd, no Gltimo quarto de hora de despedida, tocara um prelidio de Cho- pin, Certas noites, nao sabia como, abria-se um clardo no céu escuro e eu via, num recreio ensolarado de colégio, um vestido claro de menina correndo ao meu eneontro. Ou en- ‘to, outras vézes, sem cenirio, isolado como uma belissima borboleta branca, mansa ¢ Giniea, ficava o vestido claro a me acenar do céu. ‘Mas naquela noite eu nfo via em alfa e beta do Cen- tauro as lagrimas de minha mie, nem via as notas de Cho- pin nos luzeiros do céu. O vestido claro também nao veio dangar no limiar de meu sonho, porque o defuntinho escu- ro era uma nuvem que enchia o céu e tapava o brilho das constelacées. Ora, foi nesse momento que eu contrai a di- vida, a primeira de que trata éste capitulo, Lembram-me bem os detalhes, quase as palavras: — Ah! se eu soubesse eserever, se eu tivesse um jor- nal... contaria tudo! Voeé jé pensou numa coisa? Os acio- nistas por estas horas esto acabando de jantar. Vio a0 a AS FRONTEIRAS DA TECNICA a1 teatro, Ou visitam-se e conversam sobre automével e po- litiea. As filhas dos acionistas estéo dormindo. Amanh cedo serfo levadas por babés de touca e uniforme ao colé- gio de freiras. E as bondosas profess6ras das filhas dos acionistas ensinarao que em treze de maio de mil oitocentos © citenta ¢ oito foi abolida a escravidao. VE A hist6ria do tecnicismo e do cientificismo comeca no ponto de inflexio em que o problema da adequacao entre a inteligéncia e 0 ser recebe o impacto do nominalismo. Po- derfamos situé-lo no momento em que Guilherme Oceam (1280-1847), aproveitando um relaxamento da cultura me- dieval, e entrando na vazia algazarra criada pela “querela dos universais”, trouxe a férmula de simplifieacdo que vi- nha cavar uma brecha entre 0 mundo do pensamento e o mundo das coisas, e que iniciava a absorcéo da metafisica pela légica, que mais tarde preparara 0 terreno do positi- vismo, e mais tarde ainda, em nossos tempos, reaparece com grande aparato no neopositivismo e na légica simbélica. ¥ curioso notar aqui, de passagem, que ésses movimen- ‘tos modernos que nos acusam de areafsmo, porque preten- demos continuar a obra de Santo Tomés, néo ocultam a sua origem nominalista e seus antigos patronos. Num livro re- centissimo editado pela modernfssima editéra Macmillan (Blements of Symbolic Logic, Hans Reicherbach) 0 autor nos adverte (pag. 7) que seus prineipios representam “for- mas modernas do principio que teve papel relevante na his- t6ria da filosofia e emergem do nominalismo formulado por Guilherme Occam. ..” A Idade Média, antes da crise nominalista, e por uma convergéncia de causas cuja andlise compete ao historiador, punha o acento de sua cultura em Deus e no Homem, pro- longando a famosa férmula de Santo Agostinho — noverim 2 AS FRONTBIRAS DA TECNICA me, noverim te — e realizando assim o que Etienne Gilson (Lesprit de la philosophie médiévale) chamou de socratismo cristo, Essa atitude do espfrito implicava um certo desinte- résse pelas coisas que se afastavam do homem e que o mesmo autor chamou de antifisicismo medieval, Mas em compensa- go, e apesar dessa atitude cultural, ou, quem sabe, por sua propria forca, a filosofia medieval, ou mais precisamente « filosofia que culminou em Santo Tomés, nfo tinha o centro de gravidade no Eu. Era em torno do Objeto que gravitava © pensamento aristotélico-tomista. Foi mais tarde, a partir sobretudo da Renascenea, que a cultura tomou o carter hi- perfisicista que até hoje conserva e que 0 mundo do pensa- mento, dissociado do mundo das coisas, firmou seu centro no eu, na razio, realizando em Kant 0 que ésse filésofo teve a extravagancia de comparar & revolueio de Copérnico. Digo extravagineia porque, ainda sem entrar no mérito da ques- ‘téo, a imagem em si é chocantemente imprépria, Seria mais exato dizer que, no mundo do pensamento, Kant fazia uma ‘contra-revolucao e passava de Copérnico a Ptolomen. ‘Voltando ao ponto em que podemos situar a origem do moderno empirismo cientifieo e do pragmatismo tecnicolé- gico, é em Francis Bacon (1561-1626) que encontramos 0 primeiro marco. Numa atmosfera rarefeita pelo abandono a tradigéo realista, e viciada pelas jogralidades da deca- dencia filos6fiea, Francis Bacon teve 0 enorme mérito de trazer ao homem o gosto pelo conereto e pela experiéncia Devolvia a cultura a realidade, mas a uma realidade me- nor que iria, no seu desenvolvimento, pretender a usurpagho do trono da metafisica. Bacon iniciava assim, no dominio do conhecimento, & mesma aventura que os grandes navegantes da época rea- lizavam em suas caravelas. Descobria 0 mundo, as coisas, a terra dos homens. Mas infelizmente para nés, que hoje sofremos a paleotéenica compulséria e a pedagogia da no- va escola, a grandeza da obra de Bacon estava envenenada pelo nominalismo, isto 6, pelo divéreio entre a inteligéncia AS FRONTEIRAS DA TECNICA 43 eo ser. E j4 no seu Novum Organum, em nome da ciéncia do concreto ¢ da légica indutiva, o grande investigador in- glés iniciou o processo do aristotelismo que se prolonga até 0s nossos dias. Hoje, nos livros de Russell e nos indigestos artigos filoséficos publicados em suplementos dominicais, diz-se que Aristételes esta morto. Ser entao um estranho defunto cuja morte se anuncia hé quatro séculos, ¢ cujo no- me continua a ser pedra de escndalo em todos os moder- nissimos livros de matemética e de filosofia! Mas faltou a Bacon um elemento capital, um instru- mento de enormes conseqiiéncias: a deseoberta do papel da matematica na suplantagao da metafisiea como ciéneia uni- ‘téria, como regente da nova ordem cultural. Cabe a Des- cartes ésse golpe decisive. E & por isso que podemos loca- lizar em Descartes (1596-1650) 0 ponto de partida do pen- samento moderno. Oceam e Bacon sero apenas precurso- res da revolugdo cartesiana, Genial inventor da geometria analitica, mas disefpulo de uma filosofia decadente, René Descartes nao hesita em se colocar na estaca zero, como se devesse, néo sdmente re- pensar, mas re-fabricar toda a filosofia, A sua divida fi- os6fica 6 mais do que um método: é uma falta de confianga real em téda a tradi¢do; 6 uma auséncia impressionante de respeito, justifieada talvez pela cultura do tempo e pelo prestigio de suas invengdes mateméticas. No Discurso 86- bre 0 Método Gle nao hesita em dizer: “O que os antigos ensinaram é tio pouca coisa, e quase sempre t&o inerfvel, que nao posso ter nenhuma esperanga de me aproximar da verdade a ndo ser que me afaste do caminho que éles se- guiram.” E 6 nessa disposico de espfrito que um génio matemdtico se propée a insensata tarefa de fabricar com as proprias maos todos os novos instrumentos mentais. Sua obra filoséfica, como era de esperar, traz a mar- ca do espirito matemitico, que tem a caracteristica de lidar com a mais pobre e a mais material das eategorias, a quan- tidade, transportada para o cristalino mundo dos entes de 44 AS PRONTEIRAS DA TECNICA razio, A matemética tem em sua estrutura ésse equilibrio em tensio; fundamenta-se no quantitativo, no material, e foge do senstvel, procurando na pureza I6gica esconder sua humilde nascenga. Nio é pois de estranhar que um génio matemitico, co- mo Descartes, tenha trazido a completa disjungio entre o mundo do pensamento, hiperespiritualizado até 0 que Ma- ritain chamou de angelismo, e 0 mundo dos corpos, hiperes- ‘quematizado até o mais brutal mecanicismo. A brecha criada pelo nominalismo toma proporgées de abismo. De um lado o “Cogito” ¢ as referéncias de tddas as realidades & garantia de um deus; de outro lado 0 me- ‘canicismo que explica todo o mundo dos corpos por dois prin- efpios; a matéria homogénea e 0 movimento local. Ora, como o proprio homem realiza o encontro dos dois mundos, sendo espirito e eorpo, resulta que 6 no proprio ho- mem que o cartesianismo opera a disjungio de que sofre a cultura moderna, Anjo e méquina, essencialmente divor- ciado de si mesmo, composto sem unidade, o homem come- ¢a um trégico periodo de sua histéria, que j4 tem a inquic- tante propriedade de sofrer tédas as bifurcacées. A evolugéio do cartesianismo, como era de esperar, é contraditéria. Feita a disjunco entre os dois mundos, j4 nada obriga a tomé-los no equilfbrio preedrio em que os deixou o matemético. E assim a filosofia de Descartes, teis- ta, diria até piedosa, se desdobra pela histéria, produzindo aqui 0 idealismo que culminaré em Kant; e acolé o mate- rialismo de um Hobbes, que foi contemporaneo de Descar- tes e que, para espanto ¢ irritagdo do francés, que se consi- derava um apéstolo do espiritualismo, tirava do préprio Descartes o seu materialismo. Consta que ésses dois filéso- fos se cartearam sem amenidade, o que nfo admira muito, Porque ninguém ignora que os filésofos sfio as vézes irri- tadigos, AS FRONTEIRAS DA THCNICA 45 “Todos os séres so corpéreos”, disse Hobbes. © pro- blema do espirito e a existéncia de Deus sfo afastados. E © agnosticismo, que é talvez uma forma de atefsmo mais in- solente do que a negagéo, nao concede que a inteligéncia ul- trapasse a experiéneia do mundo sensivel, a nica realida- de capaz de conhecimento propriamente cientifico. Comeca assim a histéria do empirismo cujo “impacto na cultura moderna”, como disse Maritain em resposta a Bertrand Russell,* vem produzindo o abastardamento da inteligéncia que se manifesta nas formas larvares de um cientificismo de almanaque e de um tecnicismo que faz do hhomem um boneco de cordas. Através de Hobbes, Locke, ‘Hume, e depois através do evolucionismo do século passado, com Darwin, Haeckel, Spencer, Buchner, Vogt, Le Dantee, © mundo vai-se deixando penetrar, cada dia mais profun- damente, pelas teses essenciais do empirismo, que ora res- tringe ao sensivel o campo da inteligéneia, embora admitindo como Spencer um absoluto incognoscivel, ora identifica es- tritamente as atividades da inteligéneia com as dos sentidos. Desaparece a diferenca essencial entre os sentidos ¢ a inteligéncia; e assim desaparece a diferenca especifica do homem, que seré apenas um macaco histdrieamente bem sucedido. ® curioso notar, de passagem, a singular contradigao que manifestam ésses observadores da natureza. Cortan- do a diferenga especifica, colocando a inteligéncia no nivel da sensibilidade irracional, procurando em suma aproximar 0 mais posstvel o homem do animal, éles provam uma estra- nha incapacidade de observagio, E sobretudo demonstram uma inquietante falta de légica. Realmente, o cientificista se desdobra, se multiplica, se extenua para mostrar que o corpo do homem é semelhante a0 corpo do macaco ou do cavalo, A massa encefélica é 0 Impacto do Empirismo na Cultura Moderna, Jncques Maritain, “A ordem", 46 AS FRONTEIRAS DA TECNICA apenas um pouco maior. A evolugao uterina, como o en- gracacio Haeckel o demonstrou, comparando um embriéo de homem com outro embriao de homem, é extraordinariamen- te parecida com a dos animais superiores, e deixa pensar, co- mo dizia a chamada lei biogenética fundamental, que a his- t6ria do individuo recapitula a hist6ria da espécie. Temos pois ésse resultado que nos traz 0 naturalismo: 0 corpo do homem é extraordinariamente parecido com 0 corpo dos animais, Ora, as atividades dos homens séo extraordina- riamente diferentes das atividades animais. Logo, a con- clusio sensata que se impde é a da presenga de um outro prinefpio que, em matéria tfo semelhante, produz efeitos ‘to colossalmente diversos. EB quanto mais demonstram a semelhanca bioquimica, anatémica e fisiolégiea, mais reful- ge a claridade da conclusao. ‘Nao digo que seja impossfvel um outro tipo de racio- cinio para negar a espiritualidade da alma humana. Ha- vera certamente. © homem tem uma enorme virtuosidade no érro. Mas 0 que aqui assinalo é que 0 raciocinio em que © empirismo materialista se compraz tem ésse aspecto ¢- mico: prova 0 contrério, Na verdade existe, como disse atras, uma prodigiosa, uma refulgente e talvez ofuscante diferenga entre as ativi- dades dos homens e a dos animais. O homem fala, Tédas as tentativas de procurar a origem puramente animal da linguagem — a hipStese da origem onomatopaica por exem- plo — fracassaram completamente, # impossivel pensar num sistema lingiiistico oriundo de puros sinais naturais co- mo o grito ou gemido, Téda a humanidade, com pequenss diferencas, ri, geme e chora do mesmo modo. O francés ndo chora em francés; 0 chinés nfo geme em chinés. Os sinais naturais no se diferenciam como a palavra, sinal essencial- mente convencional, se diferenciou. # impossivel pensar que 0 vocdbulo “outrossim” tenha origem num grunhido. © homem filosofa, ainda que frequentemente filosofe mal. A existéncia do empirismo prova contra 0 empirismo, AS FRONTEIRAS DA TECNICA 47 Se as teses do empirismo fossem verdadeiras, no existiria oempirismo, Se o materialismo fosse verdadeiro, o homem seguiria seu caminho sem se deter para apregoar o mate- rialismo. A iinica filosofia que se pode apregoar com légi- ca 6 aquela que permite filosofar. Em resumo, o homem s6 pode negar a vida do espfrito, embora com veemente falta de ldgies, porque 6 espiritual; 86 pode negar a liberdade e a lei moral porque é livre. Outra contradigéo do empirismo (que se tem prestigia- do & custa dos resultados da ciéneia, sem que a ciéncia aeja responsével por isso) esté na sua significagao histérica, ‘Muitos pensadores j4 tém apresentado a Renaseenga como uma emancipacio do homem, e isto é verdade numa certa perspectiva. Hé um antropocentrismo no espirito da Re- nascenga, um smpeto de afirmacio e de independéncia. Por outro lado, € curioso notar que, nesse movimento, 0 ho- mem foge de si mesmo, de sua condi¢ao, e procura clamar 0s céus e aos ventos a sua estrita animalidade, stranho manifesto de independéncia! Na verdade, a Renascenga tem dois espiritos. Por suas motivacées psicolégicas e por suas manifestagdes histéricas € uma emancipagio, um ereseimento, uma conquista. Mas 6 ao mesmo tempo, por sua orientagio filoséfica, uma ren- digo incondicional de vencidos. O homem esqueceu que 86 pode viver plenamente a sua liberdade se for servo de Deus € das Suas verdades. Negada essa submissio que liberta, © homem s6 tem duas solugées: ou se torna exclusivamente servidor de si mesmo, e enlouquece; ou se entrega de maos € pés atados ao mundo dos fendmenos, a0 jégo das forgas fisicas, ¢ entdo, como diz o Fil6sofo, 6 “devorado pelo Mi- notauro da Histéria”, + Mais tarde, como bem sabernos, 0 mundo vai trazer para a histéria, para o coneretissimo fato histérico, as abstra- * Jacques Maritain, La significetion de Panthéisme contemporai Deselée de Brouwer, 48 AS FRONTEIRAS DA TECNICA tas algemas de sua filosofia; mas aqui cumpre assinalar um fendmeno digno de nota: nao é o empirismo cientificista (que deu seus mais abundantes frutos na cultura anglo-saxdnica) que se coneretizaré politieamente em escravidio, & no mundo servido pela outra metade de Descartes, que evoluiu na linha do idealismo kantiano, que iremos encontrar os maiores desvarios politicos, Histdricamente, o liberalismo cultural e econdmico do empirismo suscita o seu contrério, ou melhor, a sua contraparte, ¢ produz no mundo as formas da politica totalitéria. B aqui temos dois itinerdrios distin- tos. Num déles, 0 que teve em Nietzsche o mais virulento apéstolo, o homem é chamado a liberdade por superacio, 0 homem é convidado violentamente a sair de si mesmo, fisi- camente, especificamente. Poderiamos aceitar a formula de superagio, poderfamos mesmo aceitar o térmo “super- homem”, que aliés foi usado por 8. Gregério muitos séculos antes, se por tal superagio entendéssemos as exigéncias pré- prias da vida do espfrito. O homem, por sua prépria natu- reza, espiritual, explosiva, 6 chamado a uma constante supe- ragio e s6 pode equilibrar-se no dinamismo que tem sempre algo de heréico. Sua vertical seria um sinal anatémico désse tropismo espiritual. E sua tumultuosa hist6ria, com suas descaidas, com suas crises, evidencia ésse movimento ascen- sional do homem, ‘Na vida da Graga, com mais forte razio, poderiamos falar em superagio, em dépassement, desde que notssemos que af jé néo vem da natureza do homem energia ascen- sional. ‘Mas em Nietasche a revolugio anunciada nfo é a revo- lugio moral de Péguy: é a revolucéo fisica, baseada numa ‘transavaliagio de tédas as tabuas de valores, e com 0 acento posto na violenta vontade de poder. 0 sentimento que trans- parece nitidamente, e chega a ser confessado, 6 0 da nausea pela condicéo humana, que mais tarde ge tornaré tema ve zio do existencialismo pedante, AS FRONTEIRAS DA TECNICA 49 Todos nés ainda temos na meméria a viva recordagio dos fatos histéricos produzidos por essa vulcdnica filosofia, © desejo de reforma nietzscheana, tomando corpo politico, encarnando-se na histéria, vai produzir o racismo com tédas as suas abominagées, ¢ 0 fascismo com todo o seu ridiculo. 0 poema de Nietzsche iré terminar nos vagées de gases, nos campos de concentrac&o, e nos judeus transformados em barras de sabao, Por outro lado, seguindo a mesma linha do idealismo, ‘vamos chegar ao delirio racionalista de Hegel, e daf, por uma espetacular cambalhota historiea, passamos ao marxismo, provineia do pensamento que limita ao norte com Hegel ¢ Kant, e ao sul com Hobbes, Hume, Spencer. Idealista na estrutura, superespiritualista na sua origem, 6 materialista na substineia; e assim realiza a mais bizarra reconstitui- Go do hibridismo cartesiano. Notemos aqui um fato que aproxima o drama marxista do drama cartesiano, Houve em ambos os casos uma infi- delidade de vocagao, e conseguintemente, em ambas as ocor- réncias, a filosofia foi maltratada, aqui por um soci6logo, 1G por um matemético, Poderiamos dizer que o érro ealami- toso désses e de muitos pensadores modernos é 0 desejo de se servir da verdade, colocado muito mais alto do que o de- sejo de servir a verdade, Foi uma pressa de utilidade, de aplieagéo, que é mortal para a verdadeira especulacéo. O matemético estava impaciente por imprimir na cultura a marea de seu génio criador; 0 sociélogo, o observador dos fatos econémicos, o reformador, tinha uma pressa, j& ma- quiavélica, embora talvez inconsciente, de aprontar os uten- sflios mentais de sua revolugio. ‘A filosofia, que tivera na Idade Média 0 nobre titulo de serva da teologia, ganhando nessa subordinagio a sua ver- dadeira independéncia — como também o homem s6 é livre quando 6 servo de Deus — tornov-se agora uma criada de agéncia para todo o servigo. © homem procura um sistema de idéias depois de ter fixado um desejo e um programa. E 50 AS FRONTEIRAS DA TECNICA sob @sse ponto-de-vista seria legitimo dizer que todos os de vios contemporincos sio antiintelectuais, mesmo onde im- pera o mais desabrido racionalismo. Porque todos éles sio feitos para outra coisa, para servir uma inclinagio ou um ideal pritico, Estamos aqui na fronteira do pragmatismo ou da filoso- fia de ago, que se opée ao positivismo, mas que é uma con- seqiiéneia histérica, nascida no profundo desgésto criado pela secura cartesiana, Agora, em William James, triunfa alegremente a derrota da inteligéncia. Otimista na Amé- riea, onde se tempera de empirismo positivista, dando um resultado neutro que tem tédas as céres e todos os gostos, © pragmatismo é efnico no seu limite a leste com a Rissia, onde as préprias ciéneias se subordinam ao que éles chamam de utilidade pablica. A esséncia do pragmatismo é 0 agnos- ticismo absoluto. A inteligéncia é totalmente incapaz de conhecer 0 real, e o valor das concepgées filoséfieas se me- diré pela aplicagio imediata na vida pratica. © real é 0 bom resultado, VII Pois bem, é dessa conjuncao ou dessa interagho do prag- ttismo e do empirismo que nasceram os subprodutos que aqui chamamos de tecnicismo e de cientificismo. Sedimento enor- me das dejegées de homens que foram grandes nos seus err0s, € que trouxeram alguma eontribuicdo positiva, o empirismo larvar do cientificismo dos medioeres, e o pragmatismo as- tucioso dos eagadores de emprégo constituem o mais baixo e mais tolo depésito que a humanidade jamais conheceu. & © alimento ideal da mediocridade que ocupa posigies. B 0 suco com que se condimentam tédas as meias verdades que andam por af vestidas de catedrética gravidade. Coprofagia filos6fica, o empirismo degradado do cientificismo barato se AS FRONTEIRAS DA TECNICA 51 alegra com o gésto que sente, #6 o enfeite da estupidez; é a escapatéria da vacuidade mental. Seria extremamente salutar para um Bertrand Russell e para seus discipulos 0 inquérito das gradagées vertiginosa- mente descendentes de sua filosofia. Em duas ou trés di- namizagées chegamos a0 hombeiro hidréulico que anda so- nhando com o moto-continuo, ou até atingimos 0 psicélogo que vé no exame pré-nupeial, ou no teste psicognémico, a garantia da fidelidade conjugal. Ou entdo chegamos a ésse amoralismo que poe todos os roubos e assassinatos na conta da satide. Nao ha culpas. “Ninguém tem culpa” ouvi eu, contem, numa cena de rédio-teatro que néo consegui sufocar ‘a tempo. O homem, no melhor dos mundos conquistados pela ciéneia, descobre uma sub-inocéneia enterrada nas se- culares dejegdes do empirismo filoséfico. E ninguém tendo culpa, ser Deus 0 Gnico culpado, se tiver a audiicia de existir! vit Nao era preciso ser muito sagaz para adivinhar que o fisicismo do pensamento moderno cedo ou tarde chegaria a0 amoralismo, A negacio da transcendéncia da sorte do hhomem deixa-o entregue ao fluxo dos acontecimentos sem saber o que faca dos ditames da consciéneia que passaram a categoria de epifenémenos. E por outro lado o idealismo Kantiano, quebrando 0 nexo entre a raaio pritica ¢ as rea- Tidades extramentais que polarizam a conseiéneia, deixa a0 homem uma biissola que néo pode ser aferida pelos astros. Nesta ou naquela tendéncia nascida no espirito eartesiano perde-se o fundamento da moral. Durante algum tempo a cultura empiricista, idealista ou positivista viveré de uma moral inanimada para espanto do Sr. Sartre que acusa o século passado de haver matado Deus (no que andou muito bem), mas de no ter conseguido a remogéio do seu cadaver. Mais eoerente na sua total e siste-

You might also like