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r “O homem cognoscente é simplesmente o guarda da realidade.”’ (W. Luijpen) “CAI NA REAL” “Quem compreende que o mundo e a verdade sobre © mundo sdo radicalmente humanos, esta preparado para conceber que n&o existe um mundo- emsi, mas muitos mundos humanos, de acordo com as atitudes ou pontos da vista do sujeito existente,”” (W, Luijpen} A expresséo que dé nome a este capitulo intro- dutério é uma das tantas que diariamente surgem no uso coloquial da linguagem e que podem ou n&o se incorporar ao acervo de uma lingua. ‘‘Cai_ na real’ é uma gfria brasileira recente, significando um apelo para que nosso interlocutor deixe de sonhar ou de fazer planos mirabolantes e utdpicos e volte a realidade, volte a ter ‘‘os pés no chao’. Interessante esta visdo espacial da questdo: o / ~ ed 8 Joao-Francisco Duarte Junior sonho, a ilusdo, 0 erro esto nas alturas; a reali- dade, no solo. Quando se trata de abandonar 0 irreal, de voltar-se ao mundo sdlido e concreto, cafmos na realidade, colocamos os pés no chao. O_teal.é o:.terreno firme que pisamos.em nosso cotidiano. Realidade. Todos usamos rotineiramente esta palavra nos mais diferentes contextos e dreas de atuacdo e, no entanto, quase nunca paramos para pensar em seu significado, no que encerram estas suas nove letras. E nao paramos porque, assim 4 primeira vista, o conceito nos parece tao dbvio que consideramos desnecessario qualquer questio- : Namento a seu respeito. Todavia, segundo uma te asser¢do que jad se tornou popular, o dbvio é o \ mais dificil de ser percebido. Alias, a este respeito, jé dizia um antigo professor que se o homem ! vivesse no fundo do mar provavelmente a Ultima coisa que ele descobriria seria a agua. Muitas ciéncias — especialmente as chamadas ciéncias humanas — trabalham com o conceito realidade, incorporando-o ao seu jargao caracte- ristico. Na psicologia e ciéncias afins (psicandlise, psiquiatria) talvez seja onde o emprego da palavra é maior e mais decisivo e, paradoxalmente, onde o seu significado é menos pensado e questionado. \ Estudantes e profissionais da psicologia quase sempre embatucam quando se lhes propSe que expliquem o termo realidade que empregam em suas falas e dissertacdes. Em geral tais pessoas O que é Realidade 9 descartam a questo por considerd-la ‘‘dbvia demais”, ou entdéo respondem com frases feitas empregadas pelo senso comum, como: “realidade é como o mundo é”, ou “realidade 6 aquilo como as coisas sdo”’. Express6es que naéo dizem nada nem esclarecem qualquer duvida, pois, afinal, como é€ que o mundo é? Como as coisas sao? E elas serdo sempre de uma mesma forma ou podem variar, de acordo com a maneira como sdo olhadas e apreendidas? Tome-se um quadro a Oleo, por exemplo. Nele se vé uma paisagem composta por algumas plantas em primeiro plano, uma arvore florida cercada por um gramado em segundo plano e tendo ao fundo o horizonte tisnado aqui e ali por fiapos de nuvens esgarcadas. Com certeza nos tomariam por loucos se disséssemos que nele, plantas, arvore, gramado e nuvens sao reais. As plantas do quadro nao possuem a mesma qualidade de existéncia daquelas que vivem ali no jardim e, no entanto, existem, ainda que de maneira diferente. Certamente poder-se-ia dizer que as plantas do jardim sao reais, e aquelas do quadro uma representagdo deste real. Mas isto na&o resolve a questao, pois o quadro apresenta também um segundo “‘nivel” de reali- dade: 6 composto de tintas, tela e madeiras, elementos que podem ser trabalhados de diversas maneiras, criando-se uma_ realidade pictdrica ou ndo. Em outras palavras: existe uma realidade do quadro que capto com a minha sensibilidade 10 Joao-Francisco Duarte Junior ( e emogao, e outra captada de maneira mais ‘‘fisica”’, digamos assim. O quadro para o espectador é diferente do quadro para o carregador de mobilias, e diferente ainda para o cientista que o submete ao raio X e a outros processos a fim de comprovar se ele, na realidade, foi pintado no século XVIII. ‘Diferentes maneiras de se apreender o mesmo objeto: em cada uma delas o quadro possui uma realidade diversa. / Qu ainda a arvore florida, que serviu de modelo ao pintor. Enquanto este a captava em termos de forma, cores, luz e sombras, o jardineiro que cuidava do campo viu nela a possibilidade de um abrigo contra a incleméncia do sol e sentou-se a sua sombra para descansar. E ambos a percebiam de maneira diferente do agrénomo que, neste instante, sugeria ao dono das terras que a arvore nao fosse cortada, a fim de se preservar um certo equilfbrio ecoldgico no local. Mais ao fundo dessa paisagem corre um regato de aguas claras. Para a lavadeira que ali lava as suas roupas a 4gua tem um ser: do diverso de que para 0 caminhante que vé nela 4 chance de matar a sua sede. E o jardineiro, que a ela acorreu quando tratou de apagar um incéndio que irrompia no mato seco, nesse momento a percebia de forma diferente do menino que toda tarde se dirige ao regato para pescar alguns lambaris. E, inquirido, certamente um quimico diria que a d4gua daquele regato nada mais é do que H,O, ou seja, uma 2 que é Realidade substancia cujas moléculas sio compostas de dois atomos de hidrogénio e um de oxigénio. De acordo com estes exemplos nota-se que, na verdade, talvez ndo devéssemos falar de realidade, e sim de realidades, no plural. O mundo se apresenta com uma nova face cada vez que muda- mos a nossa perspectiva sobre ele. Conforme a nossa intencdo ele se revela de um jeito. Em linguagem filosofica dir-se-ia que as coisas adqui- rem estatutos distintos segundo as diferentes maneiras da intencionalid:de humana. Segundo as diferentes formas de « consciéncia se postar frente aos objetos. A agua, para os sujeitos acima, apresenta realidades diversas, que s&0 ainda dife- rentes da realidade da agua para o desportista que nela vence um campeonato de natacdo ou para o incauto que nela se aventura e quase se afoga por ndo saber nadar. Note também que nestes exemplos foram considerados apenas elementos do chamado “mundo ffsico’’: agua, nuvens, arvore, plantas, etc. Quando se trata de fatos humanos, culturais e sociais, a coisa cresce em complexidade. Qual a realidade de uma greve? De um golpe militar? Do ensino pago? De eleicdes diretas ou indiretas? De uma paix&o que leva a escrever poemes e a embriaguez, quando nao correspondida? Qual a realidade dos modos de vida de nossos antepassados das cavernas, que inferimos a partir de uma série de indicios geoldgicos e antropolégicos? Sem il Joaéo-Francisco Duarte Junior divida, aqui os pontos de vista se multiplicam, aumentando, conseqlentemente, o nimero de possibilidades de o real se apresentar. Realidade, portanto, @ um conceito extrema- mente complexo, que merece reflexées filosdéficas aprofundadas. Afinal, toda construggo humana, seja na ciéncia, na arte, na filosofia ou na religiao, trabalham com o real, ou tém nele o seu funda- mento ou ponto de partida {e de chegada). Melhor dizendo, trata-se, em Ultima analise, de se questio- nar o sentido da vida humana, vida que, dotada de uma consciéncia reflexiva, construiu seus conceitos de realidade, a partir dos quais se exerce no mundo e se multiplics, alterando a cada momento a face do planeta. No paragrafo anterior, o grifo no verbo ‘‘cons- truir’’ tem a sua :azdo de ser. Sera fundamental compreender-se que a realidade nao é algo dado, que esta af se oferecendo aos olhos humanos, olhos que simplesmente a registrariam feito um espelho ou camera fotografica. O homem ndo é um ser passivo, que apenas grava aquilo que se apresenta aos seus sentidos. Pelo contrario: o homem é o. construtor do mundo, o edificador~da realidade. Esta é construida, forjada no encontro incessante entre os sujeitos humanos e o mundo onde vivem. Contudo, 0 paradoxo mais. gritante é que, sendo o homem o construtor da realidade, em sua vida cotidiana ele ndo se percebe assim. ‘Wiuito pelo contrario: percebe-se como estando submetido 3 O que é Realidade tealidade, com: sendo conduzido por forcas (naturais ou sociais) sobre as quais ele ndo tem e ndo pode ter controle algum. Feito o monstro do dr. Frankenstein, a criatura volta-se contra o seu criador. Mas como, vocé podera perguntar nesta altura do capitulo (onde se pretende apenas introduzir a problemdatica do tema): quer dizer que a natu- reza, as forcas fisicas, sfo criadas pelo ftomem? Nao, eu the respondo, pedindo-lhe também que tenha paciéncia e acompanhe a evolucao do racio- cfnio nos capftulos subseqiientes. As forcas naturais nfo sdo criadas pelo ser humano, mas a maneira de percebé-las, de interpretd-las e de estabelecer relagdes com elas, sim. Pensemos num exemplo extremo: o peixe que vive no rio percebe-o de maneira radicalmente distinta do pescador que mora em sua margem. SO o homem pode pensar no rio, tomd-lo como objeto de seu raciocinio e interpretacao. A realidade do rio, construida no mundo humano, tdéo-somente se apresenta assim para o homem. Qual seria a realidade do rio para um habitante de outra galaxia que nos visi- tasse? Nao se pode saber. Ja que estamos falando em dgua, retornemos ao regato citado nas paginas anteriores. Foram des- critas ali as varias “‘realidades’’ da dgua, os varios sentidos que ela adquire, de acordo com a inten- cionalidade dos homens que com ela se relacionam. Foi apontado ent&o que, para um cientista (o 13 14 . arn, | Jodo-Francisco Duarte Junior quimico), a agua 6 uma substancia formada de hidrogénio e oxigénio. Nds, habitantes do mundo moderno e com algum grau de _ informacao, tendemos a acreditar que na realidade a agua é aquilo que diz ser a ciéncia. E o cientista quem teria as chaves com que se abrem as portas da realidade Ultima das coisas. A realidade da agua é ser ela formada por hidrogénio e oxigénio ligados na propor¢do de dois para um. Ora, esta é uma crenca perigosa, que coloca nas maos da ciéncia o poder supremo de decidir acerca da realidade do mundo e da vida. Para o pescador, pouco se lhe dé se a agua é formada destes ou daqueles elementos, nesta ou naquela proporcdo. Seus conhecimentos a respeito do rio sio de outra ordem, sua realidade é construfda de forma diversa, e sobre esta realidade ele atua a fim de manter a sua subsisténcia, Alias, as dguas com as quais entramos em contato no nosso cotidiano séo sempre refrescantes ou geladas, sujas ou limpas, turiulentas ou placidas, convidativas ou ameacadoras, nunca uma substan- cia formada por tais e tais elementos quimicos. A realidade desvelada pela ciéncia é uma “‘realidade de segunda “ordém”, ou seja, construida sobre as relagdes do dia-a- dia que o homem mantém. com © mundo. Antes de a quimica afirmar a composi- cdo da agua, trilhSes e trilhdes de seres humanos ja haviam se relacionado com ela, percebido e atuado sobre a sua “‘realidade”’. 9 que é Realidade 15 Toda esta discussio mostra que, contigua a questdo da realidade coloca-se outra: a da verdade. Estes dois conceitos caminham juntos e, de certa forma, discutir um implica discutir o outro. Nao me alongarei neste ponto agora, deixando-o para as paginas finais. Por ora basta notar-se que, de par com os ‘‘niveis’’ de realidade, caminham também os ‘‘niveis’’ de verdade. N3o ha por que se considerar as verdades cientificas como sendo mais “verdadeiras’’ (ou mais seguras) do que as verdades estéticas ou filosdficas, por exemplo. Cada uma delas apresenta o seu grau de valor no seu contexto especifico. Tentando compard-las estamos, como se diz, misturando estacdes. Concluindo: a quest da realidade (e da verdade) passa pela compreensdo das diferentes ‘maneiras de 0 homem se relacionar com o mundo. Ciéncia, filosofia, arte e religido séo quatro formas marcantes e especiais de esse relacionamento se dar. Todavia, em nosso cotidiano, a atitude filosdfica, a cientifica, a artistica ou a religiosa sao espécies de parénteses que abrimos em nossa forma usual, rotineira, de vivermos a vida e cuidarmos de nossa | $obrevivéncia. De certa maneira, a realidade da vida cotidiana se impde a nds com todo o seu fwso. Ali, a agua nao é H,O, nem o arrocho salzrial uma explorac¢do da mais-valia — verdades perti- nentes a esfera da ciéncia e da filosofia. A realidade da vida cotidiana 6, se se pode dizer _assim, a realidade por exceléncia, na qual nos ee Joiio-Francisco Duarte Junior Movemos como o peixe na agua. Sera ela, portanto, que ocupard as nossas reflexSes nos cap/tulos seguintes, citando-se, aqui e ali, estes outros modos especiais de construcdo da realidade (‘‘realidade de segunda ordem’’, como chamamos anterior- mente). Apenas um ultimo capitulo foi reservado para se tratar das realidades e verdades construidas pela ciéncia, por ter ela, nos dias que correm, um papel preponderante nos destinos do planeta (ndo nos esquecamos da ameaca nuclear que paira sobre as nossas cabegas}. Vamos, pois, ‘’cair na real’’. “NO PRINCIPIO ERA A PALAVRA”’ “N&o hé sentido sem palavras nem mundo sem linguagem.”” ({W. Luijpen) “Na palavra, na linguagem, é que sdo primeira- mente as coisas.”” (M, Heidegger) Nas paginas anteriores foi dito que o homem é © construtor da realidade, o construtor do mundo. Que, ao contrdrio do peixe, por exemplo, apenas o ser humano pode tomar o rio como um objeto de seu pensamento, reflexdo e projeto. Somente o homem pode dispor de uma certa “distancia” com relac¢do ao mundo, interpretando-o e dando-lhe sentidos diversos. E preciso agora explicar mais 18 ; se 4 2 eft. Jodo-Francisco Duarte Junio, claramente tais afirmagdes, ja que elas sdo basicas para que se entenda o que éja realidade forjada ‘pela espécie humana em sua existéncia, existéncia esta radicalmente diferente de todas as outras formas de vida que habitam o planeta. O que funda esta diferenca, o que torna o homem humano é, bdsica e decisivamente, a palavra, a linguagem. A consciéncia humana é uma consciéncia reflexiva porque ela pode se voltar sobre si mesma, isto 6, o homem pode pensar em si proprio, tomar-se como objeto de sua reflexdo. E isto sd é possivel gracas a linguagem: sistema simbdlico pelo qual se representa as coisas do mundo, pelo qual este mundo é ordenado e recebe significacdo. Através da palavra o homem péde “desprender- “" de seu meio ambiente imediato, tomando consciéncia de espacos nao acessiveis aos seus sentidos. Ou seja: a palavra traz-me a consciéncia regides nado alcancaveis pelos meus sentidos aqui e agora. Quando digo ‘‘Jap%o’', por exemplo, torno-me consciente de uma regiao do planeta . que no momento me 6 inacessi. el, que ndo pode “ser vista nem tocada por mim. O animal ndo pode fazer isto: esta irremediave!mente preso, aderido aos seus sentidos.? A consciéncia animal nado vai além daquilo que seus Orgdos dos sentidos trazem | até ele. O animal esta indissoluvelmente ligado. ao aqui. Por isso se diz que o anima! possui um meio 2 que é Realidade ambiente, enquanto o homem vive no mundo. S6 pela palavra podemos ter consciéncia, encerrar em nossa mente a totalidade do espaco no qual _vivemos: o planeta Terra. ‘A vida animal, ao’ contrario, esta sempre e apenas ligada ao espaco. que existe em sua volta, 0 seu meio ambiente. Pela palavra o homem criou também o tempo, ou a consciéncia dele. Posso pensar no meu passado, e ndo sé no meu passado, mas no de toda a espécie humana: com a palavra encontro e crio significacdes para aquilo que vivi ontem, anteontem, ou para aquilo que outros homens | viveram trés séculos atrés. Com a palavra posso | ainda planejar o meu futuro, com ela sei que | existe um tempo que vira, um tempo que ainda ndo é. Jd o animal, n@o: esta preso ndo apenas ac aqui, mas também ao agora. O animal vive num presente imutdvel, eterno, fixo; sua vida 6 tao-somente uma sucessdo de instantes: no ha projetus para o futuro nem interpretagdes do passado. Fsta 6 a radical diferenca entre homem e animal: © meio simbélico criado pela linguagem humana, linguagem que capacita o homem a proferir o seu “au. Sim, pois nfo estamos aderidos ao nosso corpo como o animal ao dele. O animal é o seu corpo, corpo através do qual esta ancorado ao aqui e agora. O homem tem um corpo, ou seja, pode “‘descolar-se’’ dele e toma-lo como objeto de suas reflexdes. Somos mais que nosso corpo: somos 19 20 Joiéo-Francisco Duarte Junior também a consciéncia deste corpo, que sabemos finito. Neste sentido é que, em linguagem filoséfica, se fala da transcendéncia humana! o homem trans- cende, vai além da imediatividade do aqui e agora em que esta 0 seu corpo. Vivemos assim, no apenas num universo fisico, mas fundamentalmente simbdlico. Um universo criado pelos significados que a palavra empresta ao mundo. Ha que se mencionar aqui, rapidamente, a questdo do suicfdio, j4 que o homem 6 o Unico ser que, deliberadamente, pode por fim a prdpria Vida. O suicfdio é o exemplo mais extremo de como este universo de significacdes construfdo pelo ser humano chega a ser-lhe mais importante que a dimensdo meramente fisica da vida. Muitas vezes seu corpo esta em perfeitas condi¢des, mas o homem se mata. E se mata porque a vida deixou de fazer sentido, perdeu a sua coeréncia simbdlica: n&o ha mais valores ou significados sustentando a existéncla. NY Existéncia. -Esta, a »alavra chave. As coisas e os animais sdo, enquanto o homem existe. Exis- téncia é justamente a vida (bioldgica) mais o seu sentido. Sentido que advém da linguagem, instau- radora do humano, que advém da palavra, criadora da consciéncia reflexiva e do mundo. ‘‘No princt- pio era a Palavra’’ (Jodo, 1.1), diz o texto biblico. Pela palavra se faz o mundo. Somente com a palavra surge isto a que chamamos mundo. “Um momento” — poderiam objetar — “, as 9 que é Realidade 21 ...a ordenacdo deste aglomerado de seres num esquema significativo, s6 é posstvel ao humem através de sua consciéneia simbolica, lingtitstica, 10 22 Joio-Francisco Duarte Junio. coisas, arvores, rios, pedras, montanhas ja nao estavam ai antes de surgir o homem e sua lingua- gem?’ Sim, mas ainda ndo eram mundo. Mundo é@ apenas e tdo-somente um conceito humano. Mundo é a compreensdo de tudo isto numa totali- dade, 6 a ordenacdo deste aglomerado de seres num esquema significativo, s6 possivel ao homem através de sua consciéncia simbolica, lingUistica. Sem esta consciéncia, sem alguém que dissesse “isto 6 o mundo”, tudo continuaria apenas um; conglomerado de coisas. O mundo — que é um conceito essencialmente humano — apenas surge com o homem e para o homem. Animais e vegetais continuam presos neste aglomerado chamado meio ambiente. SO o ser humano habita o mundo. Mundo e homem surgiram juntos e permanecem indissoluvelmente ligados. Mas afinal, o que é mundo? Numa .férmula simples podemos afirmar: mundo é o que pode ser dito. Mundo é 0 conjunto ordenado de tudo aquilo que tem nome. As coisas existem para mim através da denominacdo que lhes empresto. Que isto fique claro: s6 podemos pensar nas coisas através das palavras que as representam, enten- dendo-se “‘coisas’’ af nado em seu sentido estrita- mente fisico, material. Idéia, sentimentos (os “substantivos abstratos’’), existem para mim, tornam-se objetos de meu refletir, pelos seus nomes. Amor, justica, fraternidade, raiva, demo- cracia sao conceitos que fazem parte do meu O que é Realidade 23 mundo porque criados e reconhecidos por meio da palavra. Definitivamente: o que existe para o homem tem um nome. Aquilo que ndo tem nome nao existe, ndo pode ser pensado. Uma pequena obser- vacéo é pertinente que se faca aqui: algumas “coisas’’, alguns conceitos existem para nds sem serem especificamente nomeados pela linguagem, mas vém a luz através de outros sistemas simbdlicos criados pelo ser humano. A linguagem é o sistema fundamental e primordial de criagdo e significagao do mundo, mas além dela foram desenvolvidos outros, como o da matematica, da quimica, das artes, etc. Dadas estas colocagdes podemos comecar a perceber que, além de se falar em mundo como um dado genérico, também 6 licito falar-se em mundo, significando o acervo de conceitos e conhecimentos que cada individuo possui. Ou seja: quanto mais palavras conheco, quanto mais conceitos posso articular, maior € o meu mundo, maior é 0 alcance e amplitude de minha consciéncia. Tomemos por exemplo a palavra ‘‘zeugo’’. Se vocé, leitor, nac sabe o que ela significa, a ‘‘coisa’’ que ela designa esté ausente de seu mundo, nao faz parte daquilo em que vocé pode pensar. (Uma olhada no dicio- nario Ihe dara o significado e ampliaré o seu mundo. E, por favor, nao fique irritado feito ficou o editor: isto 6 s6 uma pequena brincadeira.) Nao é por outro motivo que na famosa obra de 24 Joio-Francisco Duarte Junior ficco 1984, de George Orwell, a ditadura implan- tada no pais imagindrio de Oceania gradativamente ia diminuindo o vocabuldrio permitido ao povo e tegistrado nos diciondrios. Quanto menos palavras a populacdo soubesse, menor a sua capacidade de raciocinio e menor a sua consciéncia de mundo. Ha coisa de dez anos, aqui mesmo no Brasil, viveu-se uma censura tao ferrenha aos meios de comunicacdo que determinadas palavras e conceitos simplesmente nao podiam neles aparecer. Certos aspectos da realidade n&o podiam ser expressos nem nomeados, sob pena de prisao e processos por atentado contra a ‘‘seguranca nacional’’. Na Ultima frase do pardgrafo anterior foi reintro- duzida a palavra realidade. Depois de todo este raciocinio acerca do conceito de muncio podemos perceber que, se ele é ordenado e significado através da linguagem, conseqtientemente a reali- dade sera também fundamentalmente estabelecida e mantida por ela. A partir da linguagem que um povo emprega {e também a partir de suas condi¢gdes materiais, 6 claro), ele constrdi a sua realidade. A construgéo da realidade passa pelo sistema lingiiistico empregado pela comunidade. A lingua- gem de um povo é o sistema que {the permite organizar e interpretar a realidade, bem como coordenar as suas acdes de modo coerente e integrado. O que é 0 mito biblico da construgdo da Torre de Babel sendo uma (anti)ilustracdo disto que esta 9 que é Realidade .sendo afirmado? Pelo castigo divino os homens que estavam construindo a torre comegaram a falar Iinguas diferentes, o que !hes impossibilitou a comunicacdo e, consequentemente, a interpre- tacéo consensual do mundo e a conjugac¢do da acdo na qual estavam envolvidos. Assim, a torre (a realidade) tornou-se imposstvel de ser erigida. Nossa percepcdo do mundo é, fundamentaimente, derivada da linguagem que empregamos. E esta linguagem esta, dialeticamente, ligada as condicdes materiais de nossa existéncia, especialmente nas sociedades divididas em classes. Porém, o racioci- nio aqui desenvolvido prende-se exclusivamente ao aspecto geral da questdo, qual seja, a demonstracdo de que o sistema lingtifstico de que se vale um povo é condicionante de sua maneira de interpretar o mundo ede nele agir (construindo a sua realidade). Nesta afirmagdo, de que a nossa percepcdo deriva-se da linguagem que utilizamos, o sentido do termo percepcdo vai além de seu significado mais geral de “‘compreensdo”’. Envoive mesmo a percepc¢do entendida como o produto de nossos érgéos dos sentidos. Visdo, audicao, olfagdo, gustacdo e tato so também “‘educados” cultu- ralmente, o que vele dizer linguisticamente, por derivagao. Com ala:ns exemplos isto se tornara mais claro. Certa tribo africana possui, em seu vocabulario, em torno de cinqtenta maneiras diferentes de se afirmar que ‘‘fulano vem (ou esta) andando”. 25 Joio-Francisco Duarte Juni: Cada uma dessas expressdes descreve o jeito de a pessoa andar (balancando os bracos, gingando os quadris, etc.). Desde crianca o individuo tem a sua visio, a sua percepcdo de movimentos, trei- | nada, j4 que precisa empregar corretamente a | expressdo, verbal correspondente aos modos de | seus semelhantes andarem. Consequentemente, eles | conseguem captar nuances e sutilezas do andar ; que nds nao conseguimos, a nao ser através de | um esforco deliberado para tanto. A linguagem que empregam em seu cotidiano os obriga a desen- volver esta percepcdo especifica. ' Um outro exemplo deste condicionamento | lingifstico tem a ver com aquilo que a psicologia -' denomina ‘‘constaéncias da percepc4o"’. Um prato ; sobre uma mesa sempre nos parecera circular, independentemente do nosso Angulo de visdo. | Um avido nos céus nunca sera vi... como algo mindsculo. E uma mac& sempre nos parecera : vermelha, sejam quais forem as condicdes de iluminagdo. Estas sfo as constancias da forma, do tamanho e da cor, respectivamente. Notemos que, no primeiro caso, na verdade o prato chega aos ' nossos olhos como uma elipse (e ndo um circulo); | no segundo o avido atinge as nossas retinas como | um objeto de tamanho fnfimo; e no terceiro, Bode | ser que a macéa se apresente arroxeada, se iluminada i por luzes azuis. . | Todavia, nossos sentidos passaram por toda uma | aprendizagem (estreitamente ligada a linguagem) ———___—’ ) que é Realidade @, ao vermos o prato, logo o conceito “circular” nos vem a mente; ao vermos o avido ja sabemos que ele ndo pode ter o tamanho de uma caixa de fésforos, e ao conceito ‘‘maca”’ imediatamente associa-se 0 conceito “vermelha’’. Quando aprendemos a desenhar e a pintar temos de nos treinar para suspendermos esta nossa linguagem conceitua!, observando as coisas como elas chegam aos nossos olhos. O que os pintores chamados “primitivos”, “ingénuos’’ ou naives nao fazem é justamente esta suspensao: pintam mais através dos conceitos. Pintam o prato numa forma circular, seja qual for a perspectiva considerada. ‘'’De repente os olhos sdo palavras’’, assinala o poeta Pablo Neruda. O ser humano move-se, ent&o, num mundo essencialmente simbdlico, sendo os simbolos linglifsticos os preponderantes e basicos na edifi- cagdo deste mundo, na construcao da realidace. Como afirmou o filésofo Ludwig Wittgens: in, “cs limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo’. Ou seja: o mundo, para mim, circunscreve-se aquilo que pode ser captado por minha consciéncia, e minha consciéncia eoreende as “coisas” a ravés da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. Assim, o real sera sempre um produto da dialética, do jogo existente entre a materialidade do mundo e o sistema de significagao utilizado para organizé-lo. A EDIFICACAO DA REALIDADE “O interesse socioldgico nas quest6es da ‘reali- dade’ e do ‘conhecimento’ justifica-se assim inicial- mente pelo fato de sua retatividade social. O que é ‘reali’ para um monge tibetano pode nado ser ‘real’ para um homem de negécios americano. O ‘conhecimento’ do criminoso é diferente do ‘conhecimento’ do criminalista.”” (P. Berger e T. Luckmann) No primeiro pardgrafo do capitulo introdutdrio foi feita a seguinte afirmagdo: o real é o terreno firme que pisamos em nosso cotidiano. Agora sera preciso que se parta desta assercao, procurando compreendé-la dentro de um contexto mais especifico. Todos temos consciéncia, de uma maneira ou de outra, de que o mundo apresenta realidades O que é Realidade 29 miltiplas, isto é, que ha zonas distintas de signifi- cacao. Freqlentemente passamos de uma a outra dessas realidades e sabemos que cada uma delas exige-nos uma forma especifica de pensamento e agdo, que cada uma deve ser vivida de maneira peculiar. Quando safmos do cinema ou quando acordamos de us: sonho, por exemplo, experimen- tamos a passageni de uma a outra dessas dreas distintas da realidade. O filme (a arte) e o mundo onirico apresentam-nos elementos que nossa consciéncia néo mistura nem confunde com aqueles provenientes da vida cotidiana. Como ja afirmado anteriormente, a vida coti- diana a qual retornamos sempre é considerada por nés a realidade por exceléncia, a realidade predo- minante. Nosso cotidiano é 0 mundo estadvel e ordenado no qual nos movemos desembaraca- damente, devido & sua constancia e a seguranca que 0 conhecimento de que dispomos sobre ele nos da. Porém, mesmo o cotidiano nao consiste num bloco monolitico de realidade: nele ha também zonas mais préximas ou distantes de minha consciéncia. A realidade que me é mais palpavel, aquela na qual tenho maior seguranca, diz respeito ao mundo que se acha ao alcance cle minhas maos: mundo no qual atuo, trabalhando para alterd-lo ou conserva-lo. Aqui subjazem em minha conscién- cia motivos essencialmente pragmaticos, ou seja, minha aten¢do se prende aquilo que estou fazendo, fiz ou pretendo fazer. A interpretacdo da realidade 30 Jodo-Francisco Duarte Junior cotidiana fundamenta-se em propdsitos praticos, propodsitos que, em ultima andlise, tem a ver com a nossa sobrevivéncia. A partir dessa regido mais clara e evidente de nosso dia-a-dia, outras vao se sucedendo e, 4 medida que se afastam de nossa possibilidade de manipulacdo, tornam-se mais obscuras. Por exemplo: uma pessoa todo dia ao dirigir-se para o trabalho, cruza a ponte sobre o rio que corta a cidade. De !4 vé pescadores em suas margens, com os canicos nas mdos. Nunca tendo pescado, desconhece as técnicas da pesca e, mais especifi- camente, desconhece aquele rio em particular: os tipos de peixe que existem ali, os melhores lugares para apanha-los, as iscas que devem ser empregadas, etc. O rio e a pesca fazem parte de seu cotidiano, mas estéo localizados numa area de realidade memos conhecida e manipulavel do que a ocupada pelo seu trabalho no escritério. Da mesma forma o terreiro de umbanda que este mesmo individuo vé as vezes em seus passeios. Ao passar pela sua porta ouve o som ritmado dos rituais, mas desconhece totalmente como eles se processam e o que se passa 4 dentro. Esta 6, para ele, uma zona de realidade ainda mais obscura e distante do que aquela ocupada pelo rio e os pescadores. O setor da realidade que me é mais claro e conhecido. pode ser chamado de “‘ndo-problema- tico”. Ali o meu conhecimento me habilita a viver O que é Realidade 31 de maneira mais ou menos ‘‘mecdanica’’, no sentido de nado serem necessdrios novos conhecimentos ou novas habilidades para resolver as pequenas questdes surgidas. Se, contudo, um problema inusitado aparece neste cotidiano, procuro resolvé-lo a partir do conhecimento ja cristalizado pelo meu dia-a-dia, buscando integrar esta nova realidade problematica aquela ndo-problematica. Diariamente, por exemplo, tomo determinado 6nibus para chegar ao meu local de trabalho. Mas um dia uma greve dos motoristas daquela companhia gera-me um problema que me obriga a sair da rotina a fim de resolvé-lo. Busco entado saber se outras companhias que nado estéo em greve tém linhas que me servem, ou se ha colegas de trabalho na regido onde moro que estejam dispostos a dividir um taxi comigo. O problema me obriga a procurar um novo conhecimento, que se integra entéo ao meu cotidiano ja conhecido. Como a vida cotidiana é dominada pelo espirito pragmatico, a maioria dos conhecimentos de que dispomos para atuar nesta esfera é do tipo “receita’’. Ou seja: conhecimentos que me dizem como devo proceder para alcancar tais e tais propdsitos determinados. Nao se colocam aqui os “porqués’’, mas essencialmente o ‘‘como’’. Sei como utilizar o telefone, mas ndo por que, ao discar um certo mi.mero, meu amigo atende do outro lado da linha. Sei como ligar e sintonizar a TV, mas nao posso explicar o fato de a imagem e 32 Joao-Francisco Duarte Junior o som safrem das estagdes transmissoras e serem captados pelo meu aparelho receptor. Assim, move- mo-nos em nosso dia-a-dia baseados em conheci- mentos prdticos que nao s#0 questionados nem colocados em dtivida, a menos que um fato novo nao possa ser resolvido nem explicado por eles. Sendo nosso cotidiano considerado a realidade predominante, a linguagem que utilizamos nesta esfera da vida, com seus conceitos e ‘’férmulas’’, tende a ser também o nosso meio lingiifstico Predominante. Nossa intepretacgio do mundo fundamenta-se nesta linguagem: procuramos sem- pre compreender outras esferas da realidade a partir dela. As experiéncias que vivenciamos em outros campos de significacdo delimitados (como a arte e os sonhos) sdo por nos “‘traduzidas’’ para esta linguagem rotineira. Ao proceder assim é inevitavel que ocorra uma certa ‘‘distorc&o’’ dos significados provenientes dessas outras dreas, na medida em que eles somente sao expressos em sua plenitude através dos cédigos que lhes sdo especificos. Isto é facilmente verificdvel, por exemplo, numa exposi¢do de artes plasticas, especialmente em se tratando da chamada “‘arte abstrata’’. O putblico ndo afeito aos cédigos estéticos deste tipo de expressdo fica, em geral, procurando encontrar nas obras formas e contornos que lhes so conhecidos: um animal, um rosto, uma 4rvore, etc. Fica bus- cando traduzir uma realidade um tanto obscura a O que é Realidade naquela que lhe é conhecida e rotineira. Estes outros campos de significacdo, portanto, sdo espécies de parénteses que se abrem dentro da realidade predominante, a da vida cotidiana. Sao “enclaves” que apresentam seus modos prdéprios de significagdo, o que vale dizer, de realidade. E sempre necessdrio um certo ‘‘esforgo” para nos desligarmos da realidade cotidiana e penetrarmos nesses outros setores: é preciso que se abandone a linguagem e a visdo rotineira do mundo. Ante- riormente foram citados como exemplos desses “enclaves’’ a arte e a esfera onirica. Mas é preciso que se note que também as experiéncias religiosas (misticas), assim como o pensamento ‘‘tedrico’’ (a filosofia e a ciéncia), fazem parte desses campos limitados de significacado. A questo cientifica sera abordada no Ultimo capitulo, mas para que este ponto fique claro aqui, basta que se anote dois exemplos. Em sua vida didria o quimico que utiliza a agua para beber, tomar banho, nadar ou regar o seu jardim per- cebe-a como fresca, Iimpida, suja, convidativa, etc. Passa a pensar nela como H, O apenas quando, em seu laboratério, realiza suas experiéncias cientificas. Ou ent#. o cientista social que, em seu escritdrio, estuda os reflexos da ma distri- bui¢gdo de renda na formacdo de uma populacdo marginal. Ao ser roubado por um ‘‘trombadinha’ na rua, reage como qualquer pessoa, independente de sua compreenséo tedrica do fato. 33 34 Joao-Francisco Duarte Junior A realidade preponderante 6 sempre a do dia-a- dia, e ja foi afirmado que mesmo esta realidade possui uma regido que é mais clara e evidente (aquela ao alcance de nossa manipulacdo). A medida que me afasto desta esfera, meus conhecimentos véo se tornando mais obscuros e nebulosos, como se a totalidade do mundo fosse uma regido de penumbra da qual se destaca a zona mais iluminada do cotidiano. Sei que existem os pescadores e suas técnicas logo ali, mas ignoro ‘este conheci- mento que thes é peculiar. Sei que existem terreiros de umbanda, e ignoro ainda mais o seu modo de funcionamento. E sei, num caso extremo, que os norte-americanos chegaram 4 Lua, porém todo 0 processo envolvido nesta viagem me é totalmente ignorado. Percebe-se, desta forma, que existe um cabedal de conhecimentos que é socialmente distribu/ido. Meu saber habilita-me a viver o meu dia-a-dia e, a medida que determinadas zonas da realidade se afastam do meu cotidiano, 0 conhecimento de que disponho sobre elas torna-se mais e mais esquema- tico. Ha esferas do real cujo dominio pertence apenas a pessoas altamente especializadas e que, estando distantes de nossa manipulagao, sdo-nos totalmente obscuras. Se é impossivel conhecermos tudo o que outros conhecem, todavia é importante que saibamos como ’'o conhecimento esta distri- buido pela sociedade, ao menos em linhas gerais. Qu seja: é preciso que tenhamos em mente a O que é Realidade quem devemos recorrer quando um determinado fato nos obriga a buscar um saber especifico. Por exemplo: ndo sei como funciona o meu televisor, mas devo saber a quem tenho de recorrer quando ele apresenta algum defeito. Nao sei como me, curar de uma doenca que me acomete, mas sei como fazer para consultar um médico que podera me tratar. Assim, 0 saber de como o saber esta repartido pelo corpo social onde vivemos é um dos mais importantes conhecimentos de que dispo- mos, possibilitando-nos que penetremos naquelas esferas que estado distantes de nosso cotidiano. Em nossas modernas sociedades, tendo 0 conhe- cimento se especializado em graus altamente especificos, as vezes é necessdrio que recorramos a profissionais que nos indiquem quais outros profissionais podem resolver o nosso problema. Consultamos primeiramente um “‘clinico geral’’, e ele nos encaminha ao médico especialista naquele tipo de enfermidade que nos acomete. Recorremos a um amigo despachante, e ele nos indica os Passos que devemos dar e as reparticdes puiblicas que temos de percorrer para legalizarmos a compre de um imovel. Migrantes que provém do meio rural ou ve pequenos vilarejos, ao se defrontarem com uma metrdépole frequentemente sofrem um sério abalo justamente por penetrarem numa realidade extre- mamente complexa sem disporem de uma visdo de como o conhecimento estd ali distribuido. [: 36 Joao-Francisco Duarte Junior comum ouvir-se deles afirmacdes como: ‘vim para ca a fim de encontrar-me com meu amigo fulano e pensei que, perguntando, todo mundo soubesse onde ele mora”, ou ainda “pensei que bastava ficar na pracinha da igreja no domingo para me encontrar com ele, saindo da missa‘’. O esquema de realidade trazido por eles de seus locais de origem deixa de funcionar nesta nova realidade, torna-se inoperante. A partir do exposto nestas tltimas paginas vocé pode perceber que a realidade nado é simplesmente construida, mas socialmente edificada. A constru- ¢ao da realidade 6 um processo fundamentalmente social: sio comunidades humanas que produzem o conhecimento de que necessitam, distribuem-no entre os seus membros e, assim, edificam a sua realidade. Ao longo das paginas seguintes esse aspecto social da construcdo da realidade ira se tor- nando mais claro. Sigamos com o nosso raciocinio. Como foi visto, a construcdo da realidade depende da maneira como o conhecimento é disposto na sociedade, o que fornece a ela uma certa estrutura. A estrutura social é basicamente construfda sobre a gama de conhecimentos de que se dispde socialmente, entendendo-se conhecimento af ndo apenas em seu sentido ‘‘tedrico’’, mas também “‘pratico’’; 0 acervo de conhecimentos vai desde as férmulas manipuladas pelos cientistas até o saber necessdrio para se assentar as pedras de um calcamento, por exemplo. A distribuicdo do ad O que é Realidade conhecimento é também a distribuicdo do trabalho. Esta estrutura social esta assentada no cotidiano das pessoas sobre um processo denominado tipifi- cacao, processo este que impde padrées de inte- rac&o entre os individuos. Ou seja: percebemos o outro com o qual interagimos sempre a partir de determinadas “‘classificacdes’’, que os colocam dentro de certos ‘‘tipos’’. Assim, vejo meu interlo- cutor, por exemplo, como “‘homem”, ‘‘brasileiro’’, “comerciante”, ‘‘brincalhdo’’, ‘‘casado’’, etc. Apreendemos os outros a partir desses esquemas de tipos existentes em nossa sociedade, esquemas estes que padronizam nossas interacdes, contri- buindo para a estabilidade da realidade cotidiana. Nao apenas o outro é apreendicio como um tipo, mas também as situacdes nas quais interagirnos sao tipificadas. Had por exemplo a relacdo tipica de “compra e venda’’, a de “consulta médica’’, a de “‘professor-aluno”, etc. Em cada uma delas sabe- mos de antemdo quais séo0 os comportamentos adequados ou nao, e o que podemos esperar do outro em termos de atitudes tipicas. Nas interag6es ditus ‘face a face’’, especialmente em contatos mais i(ntimos, esses padrdes tipifi- cadores sao mais fluidos. Junto aqueles que fazem parte de meu “‘circulo {ntimo” ha uma maior liberdade e espontaneidade na minha a¢do, que nao se prende rigidamente as tipificacdes. A medida, porém, que minhas relacSes vdo se afastando do “aqui e agora’ os esquemas tipificadores tornam-se 37 38 Jotéo-Francisco Duarte Junior mais fortes e atuantes. No outro polo deste continuo de relacdes encontram-se aquelas situacdes onde os outros se apresentam como abstracdes inteiramente andnimas. Se escrevo uma carta ao gerente comercial de uma determinada firma solicitando-lhe catalogos e listas de precos de seus produtos, por exemplo, ele se apresenta a mim especificamente como “‘gerente comercial’’: um tipo esqueméatico sem qualquer sinal de indivi- dualidade ou tracos de personalidade. Assim, apreendemos a realidade social da vida cotidiana como um continuo de tipificacdes, que vai desde as situacgdes face a face até aquelas abstratas e andnimas onde o outro é téo-somente um tipo. A estrutura social é a soma dessas tipifi- cacdes e dos padrées de interacdo produzidos por elas. A construcaéo social da realidade depende, pois, fundamentalmente de uma estrutura social estabelecida e conhecida (ao menos em suas linhas gerais) pelos seus membros. E esta estrutura rela- tivamente estavel que permite que os indivfduos se movimentem com desembaraco dentro dé realidade cotidiana. Falando das tipificagdes e da estrutura social delas decorrente estamos nos referindo também a formacdo de habitos, isto é, nossos comporta- mentos e acSes apenas podem tornar-se habituais {e portanto conhecidos e previsiveis) se houver uma certa rotina padronizada. Se a cada passo estivéssemos tateando num meio novo e impre- O que é Realidade vis(vel seria impossivel adquirirmos uma visdo estavel do mundo, seria impossivel a construcdo da realidade: estaria implantado o caos. O real a que nos habituamos na vida cotidiana depende desta ordem ede seus padres de interac¢do humana, © que nos garante a formacdo de habitos e rotinas. Pc :to este conceito de tipificacdo e da estrutura socia: que dele se deriva podemos abordar agora a questéo da institucionalizacdo, ou seja, das instituicdes criadas na e pela sociedade. A institu- cionalizacdo nada mais @ que uma decorréncia da tipificagdo reci(proca entre pessoas em interacdo, de forma que tal tipificac¢do seja percebida por outros de maneira objetiva, ou seja, constituindo papéis que podem ser desempenhados por outras pessoas. Melhor dizendo: na medida em que certas ac6es adquirem um padrao, com base nas tipifi- cacSes, essas acdes podem vir a ser executadas por diversos outros individuos da mesma maneira. A instituicdo significa o estabelecimento de padrdes de comportamento na execucao de deter- minadas tarefas, padrées estes que vado sendo transmitidos a sucessivas geracdes. Imaginemos dois individuos que sofrem um acidente de avido e caem em meio a selva. Esca- pando ilesos, logo iniciam uma série de procedi- mentos que lhes permitam sobreviver e serem localizados pelas equipes de salvamento. O piloto, pelo seu conhecimento de como usar a bussula e outras formas de orientac&o, sai explorando os 4 10 Joao-Francisco Duarte Junior arredores e fazendo sinais nas clareiras proximas. O passageiro, sendo um cacador, incumbe-se de providenciar a alimentagcdo de que necessitam. Toda manhad ambos saem para suas tarefas especi- ficas, e eventualmente observam-se mutuamente a realizd-las. Cada um passa entéo a tipificar o comportamento do outro, isto 6, passa a estabele- cer para si préprio um modelo de como se realiza esta ou aquela tarefa executada pelo companheiro. Cada um aprende a seqtiéncia de procedimentos necessdérios para a orientacdo ou a caca, podendo vir a desempenhar o papel de cacador ou sinali- zador se houver necessidade. O que aconteceu aqui? O mais importante é que os comportamentos de ambos tornaram-se padronizados e, portanto, previsiveis para o outro. O sinalizador sabe que o cacador, depois de armar o lago, deverd cobri-lo com folhas e gravetos, e o cagador por sua vez sabe que o sinalizador, depois de atear fogo em galhos secos, colocaraé folhas verdes na fogueira para produzir fumaca. Neste exemplo ainda ndo existe uma instituigao no sentido exato do termo, mas apenas o gérmen dela. Ndo ha uma instituicdo por ndo liver outros individuos que percebam ‘‘de fora’’ como os dois realizam suas tarefas; por ndo haver quem os perceba como executantes de determinados papéis dentro daquele contexto, e que possam vir a substitui-los naquela “‘organizacdo”. A medida, porém, que esta organizacdo devesse ser transmi- , O que é Realidade tida a novas geracdes, ela se tornaria uma instituicdo. Os aprendizes perceberiam a instituicdo ‘‘caca- sinalizagdo” como algo objetivo, como uma reali- dade dada, ja pronta, que exige tais e tais compor- tamentos de seus membros. Note que os dois sobreviventes construfram juntos o seu mundo, a sua realidade ali na selva. Ela foi estabelecida pela divisdo de tarefas e conse- quente tipificagdo reciproca. Ambos sabem que esta sua incipiente instituicdo foi criada por eles e que pode ser alterada a qualquer momento, se necessdrio. Percebem-se como executantes de papéis cujo script foi elaborado por eles mesmos. Mas imaginemos agora que os dois encontrem por ali duas criancas (Unicas sobreviventes de uma tribo da redondeza — fagamos um pouco de literatura). Essas criances sfo adotadas por eles e tornam-se aprendizes de suas tarefas. Passam a aprender a executar os papéis que os adultos cumprem em sua instituicdo de caca-sinalizacdo. Esta realidade sera entéo apreendida pelos meninos como algo objetivo, algo nado criado por aqueles homens. Se, por exemplo, o sinalizador sempre que acende a sua fogueira faz uma figa com a mao esquerda e olha para o céu, provavelmente seu aprendiz passard, no futuro, a fazer exatamente da mesma forma, pois este comportamento é aprendido como necessério 4 manutencdo da instituicao. Isto sera feito nado por qualquer eficacia dai decorrente, mas porque ‘’é assim que se faz’’, isso 6 ‘’o que a 41 — ~ . he a Jo&o-Francisco Duarte Juni: —— —_ instituicdo exige”’. Este exemplo quase simplista tem a finalidade de colocar um ponto de fundamental importancia na compreenséo de como se edifica socialmente a realidade. As instituigdes tm sempre uma origem | historica, ou seja, surgiram com uma finalidade : especifica, tendo sido criadas desta ou daquela ~ maneira pelos seus iniciadores. Contudo, na medida em que sdo transmitidas as geracdes posteriores elas se “‘cristalizam’’, quer dizer,. passam a ser | percebidas como independentes dos individuos que; as mantém. Os papéis exigidos por elas podem ser preenchidos por qualquer um, ja que est&o estabe- lecidos e n&o podem variar segundo vontades individuais. As instituic6es passam a ser percebidas como estando acima dos homens, passam a ter uma espécie de vida independente. E como se as instituicdes tivessem uma realidade propria, cuja existéncia ndo mais é percebida como criagao humana. Elas adquirem uma objetividade, uma solidez de coisa dada. E extremamente dificil para os individuos perceberem que a estrutura social onde vivem € assim porque os homens a fizeram e a mantém assim. Ela se apresenta a nds sempre como uma coisa objetiva: afinal, estava af antes de nascermos e continuarad depois de nossa morte. Este fendmeno é chamado de re/ficac%o, nome derivado da palavra latina res, que significa ‘‘coisa’’. A realidade, construida socialmente, 6 sempre ———————— ) que é Realidade reificada, ou seja, transformada em coisa: adquire oO mesmo estatuto das coisas naturais, dos objetos fisicos. Neste sentido 6 que a institucionalizacdo, sobre a qual se edifica a realidade, possui em si um controle social: ao ser percebida como algo dado, estabelecido, evita que os indivfduos procu- rem alterd-la. A instituicdo é soberana, os homens devem adaptar-se a ela, cumprindo os papéis ja estabelecidos. Quem jé ndo ouviu uma frase como: “pessoalmente nao queria fazer isso, mas tive de fazé-lo porque a instituicdo o exige’’? Tome-se o casamento, por exemplo, como uma instituig¢do arraigada em nossa cultura. Apesar de ele vir sofrendo questionamentos e alteracdes, e de apresentar pequenas diferencas em alguns outros pafses, sua esséncia se mantém para a grande maioria da populacdo. Em relagdo a ele é bastante frequente ouvirmos afirmacdes como: ‘‘se depen- desse de mim eu nao teria me casado dessa maneira tradicional, em igreja e cartdrio, porém nao tive escolha, era a Unica forma aceita socialmente’’; ou ainda: ‘eu nao escolhi mc casar, tudo jd estava preparado desde o meu nascimento para que eu me casasse’’. A grande maioria da populacao, pelo menos apaientemente, cré que a Unica forma “correta”, ‘‘ética’, ‘‘direita’’, de um relaciona- Mento amoroso entre homem e mulher ocorrer é através dos papéis de marido e de esposa que a instituic&o exige. Todavia, se tomarmos outras culturas, especialmente aquelas ditas ‘‘primitivas’’, ——. 43 44 Joao-Francisco Duarte Junior veremos que este relacionamento ocorre institu- cionalmente cic maneiras as mais variadas: suas realidades sdo construfdas de modos diferentes. Esta é a estranha dialética que rege 0 mundo humano: o homem cria sua realidade através das instituigdes, que Ihe dao uma estrutura social, mas passa entéo a ser “‘condicionado” por tais instituigdes. O poeta Vinicius de Moraes anota esteticamente este ponto ao dizer: ‘Mas ele desconhecia / Este fato extraordinério / Que o operdario faz a coisa / E a coisa faz 0 operario.”” * A realidade, socialmente edificada através da institucionalizacdo, por este jogo dialético da reificaco apresenta-se entéo aos homens como um dado objetivo e coercitivo, que Ihes determina a consciéncia. Em linhas gerais pode-se notar que este processo |3:ssui trés momentos: 1) a conduta humana é tipificada e padronizada em papéis, © que implica o estabelecimento das instituicdes (a realidade social 6 um produto humano); 2) a realidade é objetivada, ou seja, percebida como possuindo vida propria (o produto — a realidade — ‘‘desliga-se’’ de seu produtor — o homem); 3) esta realidade tornada objetiva determina a seguir a consciéncia dos homens, no curso da socializagdo, isto é, no processo de aprendizagem do mundo por que passam as novas geracdes (o homem torna-se produto daquilo que ele proprio produziu). £ preciso que se entenda claramente esta dialética | O que é Realidade que perfaz 0 mundo social humano, em suas trés fases. distintas, a fim de que nio se fique com uma visio simplificada e mecanicista do processo. Nossa consciéncia 6 determinada socialmente, ou seja, as insiituicdes e padrdes de conduta delas decorrentes cxercem sobre nds um efeito ‘’educa- tivo”, condicionando-nos para a vida em sociedade. Porém, sendo tais instituicdes criadas e mantidas por nods, elas sdo passiveis de sofrerem mudancas e alteracSes através de esforcos deliberados neste ‘seritido (se assim ndo fosse n&o haveria a histéria). A palavra “esforco”’, af, é empregada em sua mais ampla acepcdo, pois que, como ja visto, nossa consciéncia requer um certo trabalho para “desligar-se’’ das condicdes que a determinam, pensando-as e procurando compreendé-las ‘‘de fora’. Ao se fazer ciéncia e filosofia, por exemplo, o esforco requerido a4 consciéncia é justamente o de procurar desligar-se o maximo possivel das concepgdes cotidianas da realidade, refletindo sobre as condicdes e processos em que tais con- cepcées sao erigidas. Resta-nos, porém, considerar um dado funda- mental neste mecanismo de construcdo da reali- dade através das instituigdes sociais. Trata-se da acéo do sistema lingiistico, ferramenta basica na cria¢do do mundo humano, como exposto no capitulo anterior. Ao serem estabelecidas, as instituicdes sao sempre acompanhadas de um correspondente esquema explicativo e normativo 45 46 Jodéo-Francisco Duarte Junior que, por meio da linguagem, conceitua-as e deter- mina regras para o seu funcionamento. A isto chama-se de /egitimac%o. As instituicdes sao legitimadas por meio da linguagem: as razdes de sua existéncia so tracadas e transmitidas concei- tualmente (vale dizer, tingiisticamente), bem como as normas para o seu funcionamento. Essas normas, dentro da realidade da vida cotidiana, assumem aquele cardter de ‘‘receita’’ ja referido, ou seja, para penetrarmos e nos movermos dentro de tal instituicdo devemos proceder desta ou daquela forma, segundo os seus preceitos pragmaticos.~’O primeiro conhecimento que temos, relativo 4 ordem institucional, esta situado a nivel pré-tedrico, no sentido de ndo ser um conhecimento elaborado mais abstratamente em torno dos “porqués’’, e sim praticamente com relacg&o ao “como”. Se desejo legalizar a compra de um imével, por exemplo, sei que devo dirigir-me a um cartorio de registro de imdéveis a fim de passar uma escritura — este é 0 conheci- mento pragmdatico de que disponho, num primeiro nivel. © segundo nivel de legitimacdo contéim propo- sigdes tedricas, mas ainda em forma ruc i‘mentar. Aqui estado presentes alguns esquemas explicativos que podem relacionar o conhecimento pragmatico referente a diversas instituicgdes, integrando-os entre si. Se me perguntam por que ao comprar o imdvel devo registra-lo em meu nome, posso O que é Realidade 47 responder que isso assegura perante a lei que sou o seu legitimo dono, e ainda que os poderes ptiblicos necessitam desses registros a fim de cobrar os impostos devidos aos cidadaos. * No terceiro nivel de legitimacdo encontram-se teorias explicitas que legitimam uma instituicdo em termos de um corpo diferenciado de conhe- cimentos, isto 6. conhecimentos especificos e com um nivel maior de abstracdo. Possuem um grau mais elevado de complexidade e estéo entregues a especialistas naquele setor institucional. Para se adquirir este conhecimento faz-se necessdrio um aprendizado formal do assunto. No exemplo anterior da compra do imével, ha todo um conhe- cimento a respeito de leis e normas juridicas que regulam a matéria e que séo de dominio dos donos e funciondrios dos cartérios, bem como de advogados. E a estes especialistas que devenos recorrer no caso de uma questdo referente a regularizagdo desta situagdo que nado pode ser resolvida com o conhecimento pragmatico de que dispomos. 3 O quarto e Litimo nivel de legitimacao da ordem institucional denomina-se wuniverso simbélico. O universo simbélico consiste num corpo tedrico de conhecimentos que busca uma integracdo entre os diferentes setores de uma dada ordem institu- cional num esquema Idgico e consistente. Neste nivel procura-se essencialmente os porqués, sem qualquer vestigio de pragmatismo. Quer dizer: 48 Joao-Francisco Duarte Jt o universo simbdlico compée-se de teorias que justificam e explicam o porqué de uma instituigdo existir e em que se fundamenta o seu funciona- mento, sem nenhuma alusdo aos esquemas praticos de seu dia-a-dia. Também ele estd a cargo de especialistas e depende de um processo formal para a sua aprendizagem. Voitando ao nosso exemplo, encontramos juristas que podem nos explicar teoricamente como se estruturam as leis de uma nag¢do, dentre as quais acham-se aquelas que dispdem sobre a propriedade privada. Além disso um fildsofo poderia discutir as origens de tais propriedades na historia humana, mostrando, por exemplo, como a partir delas surge todo um sistema de dominacdo e exploracdo do trabalho através da luta de classes. Note porém que nenhuma dessas teorias nos fornecem receitas de como devemos proceder para legalizarmos a compra que fizemos: ndo existem alusdes a vida cotidiana no universo simbolico. Antes de serem discutidos alguns outros aspectos com relacdo aos universos simbdlicus convém que se aponte alguns pontos relevantes a respeito da legitimagao institucional. Primeiramente deve-se notar que a lédgica (ou a coeréncia) naéo reside nas instituicdes e em seu funcionamento, mas na maneira como elas sdo tratadas na reflexdo e pensamento dos homens. Quer dizer: as instituicées ganham um sentido e O que é Realidade 49 uma (aparente) coeréncia ao serem legitimadas, vale dizer, ao serem pensadas e explicitadas através da linguagem. Muitas vezes os porqués da existéncia de uma instituicao eo seu modo de funcionamento, tal como sido verbalizados e transmitidos as novas geragdes, so diversos dos motivos reais que a fazem existir e operar. A linguagem cria uma légica e uma explicac&o, imprimindo-as entéo a instituicdo, e nds, pelo processo de reificacdo ja descrito, acredi- tamos que esta legitimacao provenha da organi- zacdo institucional mesma. Este fato, quando ocorre de maneira que a explicagdo lingiiistica seja diferente (ou mesmo radicalmente inversa) dos reais motivos das insti- tuicdes, recebe o nome de ideologia. Dito mais claramente: a ideologia 6 uma explicac&o com respeito a instituicdes e fatos sociais que esconde seus verdadeiros porqués. A ideologia é uma legiti- macdo a qual, mais do que aclarar as motivagdes intrinsecas as instituigdes, procura oculta-las através de um sistema explicativo qualquer. Quase sempre a ideologia serve aos interesses de determinados grupos sociais ao esconder a realidade das institui- cdes e criar-lhes uma outra através da_palavra, mesmo que esses grupos ndo tenham consciéncia disso. Uma discussio mais ampla a respeito desta questao fugiria dos limites deste texto, mas ela fica aqui anotada como um processo importante na construc¢do social da realidade. Como desdobramento deste fato convém notar- ~“ 50 Joéo-Francisco Duarte Junior mos que a legitimacdo ndo sé pode criar explicacdes para a existéncia e funcionamento da ordem institucional como também inventar uma origem historica para ela. Ou seja: ao longo da historia as origens de uma determinada instituicdo podem ser recriadas pelo processo linguistico que a acompanha, gerando tradicdes, lendas e mitos em torno de suas origens. Alguns exemplos deixaréo mais claros estes trés Ultimos pardgrafos. E comum ouvir-se que os pobres sO sdo pobres porque nado se esforcam e nao trabalham o suficiente para progredirem e, assim, ascenderem socialmente. Esta idéia esconde o fato de que nossas sociedades capitalistas sdo estruturadas de maneira a garantir que as classes economicamente inferiorizadas assim permanecam, mantendo-se a divisio de classes; tal assercao (‘os pobres séo preguicosos’’) retira desta divisio de classes (baseada na propriedade privada) a causa da pobreza, colocando-a sobre o ombro dos indivi- duos, isto é: o que é efeito torna-se causa, inver- tendo-se a relacdo através da ic-:ologia. Outro exemplo. Na lgreja catdlica afirma-se que a instituic&o do celibato para religiosos foi criada a fim de que estes pudessem dedicar todo © seu tempo ao trabalho, sem preocupagdes com uma familia. Contudo, sabe-se que o celibato foi institufdo quando a Igreja coiria o risco de ver seu capital dispersar-se, caso os religiosos se casassem e tivessem suas posses transferidas a SY ... @ ideologia é uma explicagao com respeito a instituig6es e fatos sociais que esconde seus verdadeiros porqués. x Jodo-Francisco Duarte Junior ——— herdeiros. O celibato como protec&o do trabalho é uma origem inventada posteriormente. Mas ja 6 tempo de se voltar ao universo simbo- lico — o nfvel mais alto de legitimacaéo —, onde as construgGes tedricas estdo totalmente distantes da realidade pragmatica do cotidiano. A fun¢gao do universo simbdlico consiste em integrar num corpo unico de conhecimentos (numa teoria) todas as experiéncias possiveis dentro de uma instituicao ou de um conjunto de instituicdes (uma sociedade). Através do universo simbdlico pode-se explicar quaisquer fatos ocorridos dentro daquela realidade em termos dos significados que este universo prové. De certa maneira os universos simbdlicos, ou mecanismos conceituais de integragdo e explicacdo da realidade, pertencem a um desses quatro tipos: mitoldégicos, teoldgico:, filosdficos ou cientificos. Ao contrario dos universos simbdlicos mitoldgicos, os outros trés séo de propriedade de elites de especialistas, cujos corpos de conhecimentos estado afastados do conhecimento comum da sociedade. E a eles a quem o “‘le. }0’" deve recorrer no caso de n&o conseguir interpretar e integrar em seu conhecimento cotidiano tima determinada expe- riéncia por ele vivida ou presenciada. Os universos simbélicos (ou teorias) sfo criados para legitimarem, num nivel genérico, as instituicdes sociais ja existentes, encontrando-lhes explicacdes e integrando-as num todo significativo. Porém, o , inverso também pode ser verdadeiro; quer dizer: Lo ae w O que é Realidade instituicdes sociais podem vir a ser modificadas a fim de se conformarem com teorias ja cons- trufdas, tornando-as assim mais “‘legitimas’’. Esta é ent&o a esséncia da dialética que rege as transfor mages sociais, onde alteracdes na pratica cuti- diana das instituicSes obrigam a mudancas nas teorias, mas também mudancas nas teorias levam a alteracdes na pratica institucional. Privilegiar um dos dois sentidos deste fluxo de alteracdes é romper com a compreensdo dialética da historia. Em resumo: transformacées objetivas nas institui- gdes (que alguns diriam, na infra-estrutura social) conduzem a transformacdes no corpo de conhe- cimentos, nas idéias (que alguns diriam, na super- estrutura social), e vice-versa. E preciso notar-se assim o poder realizador das teorias, isto 6, sua capacidade potencial de tornar reais os seus conceitos, no sentidc de fazé-los retornar, do Universo simbdlico onde foram produ- zidos, 4 vida coticiana dos individuos. Isto é particularmente veriiicdvel no 4mbito das ciéncias humanas, especialmente no da psicologia. Por exemplo: depois da psicand!ise de Freud, grande parte de seus conceitos se incorporaram a fingua- gem cotidiana das pessoas, que passaram entado a perceber em si mesmas e nos outros as mani- festacdes de tais conceitos, tornando-os ‘‘reais’’ em seu dia-a-dia. Para concluir este capitulo convém notarmos que em nossas modernas sociedades, ditas plura- 54 Jodo-Francisco Duarte Junior listas, ocorre a existéncia de indmeros universos simbdlicos que coexistem pacificamente ou mesmo se entrechocam. Cada grupo de ‘’especialistas’’ tende a ter uma perspectiva sobre a sociedade {isto 6, sobre a realidade) a partir de seu universo simbélico particular. Isto torna extremamente dificil o estabelecimento de uma cobertura simbo- lica estavel e valida para a sociedade inteira, te! como encontrada nas sociedades “‘primitivas’’. O que parece ocorrer é a existéncia de um universo simbdlico mais alargado e vago sobre o qual todos concordam, e cujas falhas. ou deficiéncias sao supridas pela conceitualizacdo proveniente dos universos parciais mais especializados. Esta situacdo pluralista é, inclusive, o que torna mais rapidas e mais faceis as mudancas: sociais, por ndo haver um Unico universo simbdlico estavel e estabelecido regendo toda e qualquer experiéncia no interior da sociedade. O pluralismo da civiliza- cdo acelerou as transformaces e, de certa forma, obrigou o desenvolvimento de uma _ tolerancia maior entre os grupos que apresentam diferencas em suas visdes da realidade. Como Ultima afirmagdo é interessanie que vocé perceba o que estamos fazendo neste pequeno texto. Na medida em que estamos pensando nos mecanismos de construgdo da realidade, desde as tipificagdes até os universos simbdlicos, estamos elaborando uma teoria sobre as teorias. Melhor dizendo: ao construirmos uma conceituac¢do sobre =P” O que é Realidade o funcionamento das estruturas sociais e os univer- sos simbdlicos delas decorrentes estamos, por assim dizer, construindo uma legitimagdo de segundo grau. Uma legitimagdo que, em Ultima analise, procura explicar o funcionamento do mais alto nfvel de legitimagao da realidade social: o universo simbdlico. Ao refletirmos sobre como a realidade é edificada estamos construindo também uma realidade conceitual que pretende legitimar o processo todo. 55} A MANUTENCAO DA REALIDADE “Sendo produtos histéricos da atividade huma- na, todos os universos socialmente construfdos modificam-se, e a transformacdo é realizada pelas agées concretas dos seres humanos.”” (P, Berger e T, Luckmann) A organizagao da sociedade esta assentada, como vimos, basicamente sobre as instituigdes e as legitimagées dela decorrentes. As_ instituicdes corporificam-se na vida cotidiana dos individuos através dos papéis que estes devem desempenhar para fazer parte delas. Ao participarmos da insti- tuigfo “escola”, por exemplo, ou assumimos o papel de professor, ou o de aluno, ou o de funcio- ndério técnico-administrativo. Cada um deles prescreve-nos modos especificos de comporta- ~~ O que é Realidade 57 mentos e, se porventura passarmos a desempenha- los de forma nao prevista, estaremos subvertendo a ordem institucional, desencadeando entd&o a acdo de certos mecanismos controladores que procurarao “corrigir’ a nossa conduta. O estabelecimento de papéis, isto 6, de modos padronizados de comportamento, j4 é um primeiro i instrumento protetor de que se valem as insti- tuicdes a fim de se preservarem. Para que as insti- tuicdes funcionem ordenadamente, de forma previsivel, faz-se necessdrio este jogo de papéis, que retira das pessoas a possibilidade de condutas baseadas apenas em seus desejos individuais. Neste sentido 6 que foi comentado no capitulo anterior o fato de as instituigdes serem coercitivas e se sobreporem a individualidade de seus membros. E claro que o grau de rigidez e de estereotipia exigido no desempenho dos papéis depende do tipo de instituicao’ em que se esta e do tipo de sistema politico maior que rege a sociedade. Numa univer- sidade, por exemplo, o professor tem maior flexibi- : lidade e uma maior margem de cria¢ao individual i no desempenho de seu papel do que o soldado ' no quartel; e ambos, numa sociedade democratica, ! possuem mais espaco para manifestar sua indivi- dualidade do que numa sociedade totalitdria. Alias, 6 justamente esta margem de individua- lidade dentro dos papéis que possibilita a evolucdo e alteracdo das instituicdes a partir de suas bases, ou seja, da conduta de seus membros. Na medida 58 ~ Jodo-Francisco Duarte Junior em que se vai criando novas formas de desempenho de um papel isto acarreta, conseqtentemente, alteragdes no modo de funcionamento da insti- tui¢ao. No entanto, este processo é lento, pois as instituigdes possuem mecanismos estabilizadores que as protegem de mudancas bruscas ao sabor da vontade de seus membros. Ao nivel das legitimagdes, isto é, das explici- tacdes linglisticas que acompanham as ir: ‘ituigdes, a proposicio de maneiras alternativas de se compreendé-las talvez seja mais facilmente verifi- cavel e até mesmo mais tolerdvel, na medida em que uma “‘teoria” divergente sobre a realidade ndo implica, necessariamente, uma mudanca imediata nesta estrutura. Contudo, visdes divergentes que surjam no interior de um dado universo simbdlico contém em si o gérmen da subversdo, e a ordem institucional procura também se proteger dessas “‘heresias”’. ‘ Um ponto, porém, deve ficar claro: 6 impossivel ao individuo sozinho manter uma concepcdo discordante do universo simbdlico em que estd. Sozinho ninguém constréi uma (nova) realidade. Alternativas a um determinado universo simbélico apenas séo possiveis quando sustentadas por um grupo de individuos divergentes, que mantém e compartilham entre si esta diferente visdo da realidade. Uma tinica pessoa com uma proposi¢ao divergente 6 facilmente classificada como ‘“‘louca’’, “marginal”, ‘“‘imoral”, ‘‘doente’’, etc., e facilmente = O que é Realidade : ... ébuposstyel ao individuo sozinho manter uma concep,..0 discordante do universo simbdlico em que est... Alternativas a um determinado universo simbdlico apenas sfo posstvcis.. . 60 & Jodo-Francisco Duarte Junior isolada do convivio dos demais a fim de ser submetida a processos “‘terapéuticos’’ que pro- curam fazé-la retornar 4 realidade estabelecida pelo universo simbédlico predominante. Todo universo simbdlico, ent&o, contém em si mecanismos conceituais de autoprote¢do destinados a destruir possiveis oposicées que possam surgir no seu interior. Antes de nos determos mais demo- radamente nos tipos e modos de funcionamento desses mecanismos, vejamos uma pequena fabula originédria da Argentina, aqui contada resumida- mente, e que ilustra esses mecanismos protetores das instituigdes e universos simbélicos. Num tempo em que os homens ainda ndo se alimentavam da carne de animais, um incéndio consumiu um bosque onde havia inimeros porcos. Alguém que por ali passava, apés a extincdo das chamas, resolveu experimentar aqueles porcos assados e descobriu que eram palatdveis. Logo a noticia se espalhou e os homens passaram a comer porcos assados, que eram entdo preparados da maneira original, isto 6, reuniam-se os animais num bosque e ateava-se fogo a vegetacéo. Esta instituicdo de cozimento dé porcos foi crescendo e comecaram a surgir especialistas: especialistas em tipos de bosques, em ventos, em atear fogo no setor norte, no setor sul, leste, oeste, especialistas em reflores- tamento, especialistas no ponto da mata em que os animais deveriam ser colocados, etc. Enfim, toda uma parafernalia para fazer progredir e aper- O que é Realidade feicoar a instituicdo foi criada. Realizavam-se entéo congressos anuais onde técnicas e inovagdes dentro de cada especialidade eram apresentadas e discutidas. Até que um dia um individuo procurou o presidente da organizacdo e apresentou-lhe uma proposta que implicaria uma radical mudanca na instituicdo, talvez no seu fim: bastaria que os porcos fossem mortos e colocados numa grelha, sob a qual se acenderia uma pequena fogueira. Imediatamente o presidente fez-Ihe ver o absurdo de sua proposi¢ao, pois que ela geraria o desemprego para milhares de especialistas, além de abalar a confianca que o restante da sociedade manifestava com relacdo ao saber que eles detinham. Mostrou-Ihe ainda que, pensando daquela maneira, revelava-se um perigoso elemento subversivo que poderia levar a sociedade ao caos, ainda mais ao propugnar métodos violentos que implicavam os homens matarem os animais com suas préprias maos. O presidente entao, num rasgo de ‘’generosidade”’, disse ao dissidente que daquela vez ele seria perdoado, mas com a condicado de nunca revelar a ninguém aquela idéia tao herética. E assim os homei:s continuaram a atear fogo nos bosques e a instituicao foi mantida. Os mecanismos de manutencdo dos universos simbdlicos (e das instituigées) sio de dois tipos: terapéuticos e aniquiladores. O presidente da fébula acima empregou o terapéutico, ou seja, fez ver ao membro dissidente que sua visdo era equivo- 61 ~ Jotéo-Francisco Duarte Junior cada, falsa, doentia, fazendo-o entao voltar a ver a realidade da maneira correta, quer dizer, da maneira prescrita pela instituic&o e seu universo simbdlico. A solucdo terapéutica das divergéncias surgidas dentro de um universo simbdlico implica que este universo possua, em seu corpo de conheci- mentos, trés mecanismos especificos: 1) uma teoria da dissidéncia; 2) um aparelho de diagnés- tico e 3) um sistema para a ‘‘cura’’ propriamente dita. A teoria da dissidéncia ja prevé conceitualmente a possibilidade de surgirem desvios naquele universo simbélico e procura construir todo um arcabouco tedrico que explique como e por que individuos se desviam da “‘correta’’ visdo da realidade. Esta teoria funciona como uma espécie de manual de patologia, digamos assim, postulando e conceituando os tipos ‘de “enfermidades’’ que podem acometer os seus membros e as causas de sua ocorréncia. Numa tribo indigena, por exemplo, onde todos devem dividir os produtos da caca, pesca ou lavoura, um individuo que se recuse a assim proceder recebera uma deter- minada “‘etiqueta”’ classificatéria e o seu comporta- mento sera explicado por meio de uma teoria qualquer, como: o seu caso é de possessdo pelo espirito do mal. OQ aparelho diagndostico destina-se a detectar “sintomas’’ nos individuos com propensdo @ divergéncia ou ja imersos nela. Também consiste baad O que é Realidade num mecanismo conceitual que interpreta esses sinais a partir da teoria da dissidéncta, bem como uma série de procedimentos destinados ao exame 63 dos membros suspeitos de divergéncia. O {ndio ” do exemplo acima, ao sair para a caca e por varios dias seguidos nao trazer nada, apresenta um comportamento que pode estar indicando que ele esteja escondendo para si os produtos de sua atividade. Nas ditaduras ferrenhamente antico- munistas, a leitura de determinados autores ou o emprego de determinadas palavras s&o indicadores, para as forcas repressoras, de que o individuo esta contaminado pela ‘‘doenca do comunismo’. O mecanismo de ‘‘cura’’, apds detectado o desviante e classificada a sua ‘‘patologia’’, consiste entéo em fazé-lo retornar ao universo simbdlico que ele abandonou. As técnicas empregadas podem ser as mais variadas possiveis, mas todas dizem respeito a uma ‘‘reeducacdo”, isto é, procuram fazer com que o desviante abandone a visdo disso- nante e recomece a interpretar a realidade a partir do universo simbdlic:: predominante. OQ indio pode ser despojado de todos os seus pertences pessoais e submetido aos inétodos exorcistas do pagé. O comunista pode ser preso e torturado até se tornar confuso e abdicar de suas idéias. Note que todos esses mecam:smos e procedi- mentos sao uma forma de controle social, uma forma de se assegurar que os membros da insti- tuicao ou sociedade em questéo compartilhem da 64 mesma interpretacao da realidade. Do exorcismo a psicanalise, da assisténcia pastoral as policias politicas, todas seguem este mesmo esquema terapéutico. E o mecanismo conceitual para a terapéutica, empregado num determinado universo simbdlico, pode ainda ser extremamente desenvoivido a ponto de conceituar (e assim liqtidar) quaisquer ddvidas que porventura sejam sentidas, pelo desviante ou pelo terapeuta, com relacdo 4 prépria terapéutica. Quer dizer: essas dividas so expli- cadas como um dos sintomas mesmo do desvio. Na _ psicandlise, por exemplo, as dtvidas do paciente sao classificadas como “‘resisténcia’’ (4 terapia), e as do terapeuta como ‘‘contra- transferéncia”’. A terapéutica 6, portanto, um mecanismo destinado a manter os indivfduos divergentes dentro do universo simbélico que interpreta a realidade. Ela é empregada contra os “‘heréticos internos’”’, ou seja, contra aqueles que pertencem a instituigdo ou a sociedade em quest&o e que comecam a apresentar divergéncias quanto a maneira de entender e/ou de agir naquela realidade. - O segundo mecanismo autoprotetor de que se valem os u! .versos simbélicos, a aniquilacéo, nado se destina aos desviantes internos, e sim aos diver- gentes localizados fora de seu 4mbito. Quando uma sociedade defronta-se com outra, cuja historia e modo de vida s8o muito diferentes dos seus, qu Joao-Francisco Duarte Junior | | | | | | O que é Realidade ocorre um confronto entre distintos universos simbdlicos, isto 6, entre diferentes realidades. Isto gera um problema bem mais agudo clo que o criado por dissidentes internos, pois nesse caso ha uma ailternativa entre dois universos simbdlicos fortemente estabelecidos: ambos possuem uma tradic&o ‘‘oficial”. E mais facil um universo ter de tratar com grupos minoritarios de divergentes, cuja postura pode ser definida como “‘ignorancia’’ ou “patologia’’, do que enfrentar outra sociedade que considera este proprio universo como equi- vocado ou patoldgico. Neste embate o que acontece é que um universo procura enfrentar 0 outro munido das melhores razOes possiveis a fim de provar sua propria supe- rioridade e a inferioridade do oponente. Note ainda que o simples aparecimento deste universo opositor constitui-se numa séria ameaca, pois coloca em ‘xeque a definicdo de realidade do primeiro, até entéo considerada a Unica possivel. Os mem! -os da sociedade como que descobrem que ha outras maneiras de se viver e se construir a existéncia, vale dizer, a realidade. A censura imposta ao povo por governos totalitarios nada mais 6 que um mecanismo preventivo, que procura evitar que as pessoas tenham consciéncia de outras realidades possiveis, evitando-se um confronto entre universos simbdlicos. Na aniquilacdéo, entdéo, dois sio os mecanismos utilizados para anulacdo do novo universo. O 65 Jodo-Francisco Duarte Junior primeiro deles, como ja citado, consiste em atribuir um status inferior as suas definicdes, procurando demonstrar-se o quanto elas sdo ‘‘ignorantes’’, “atrasadas’’ ou ‘‘degeneradas”, enfim, impossiveis de serem levadas a sério. O segundo mecanismo é mais ambicioso: pretende explicar as definicdes do universo contraério em termos dos conceitos do universo original, incorporando-as a si e, assim, liqdidando-as, em Ultima andlise. Este processo é uma espécie de. fagocitose, onde as concepcdes alienigenas: so traduzidas em conceitos de nosso universo, procurando demonstrar-se assim que elas ja estavam previstas e consideradas em nossa reatidade, sO que através de outros termos e conceitos. Com esta sutil inversdo aquilo que era antes oposic¢do passa a ser afirmacdo do universo original. _ Pensando no processo de catequese (religiosa ou nado) a que foram submetidos os indfgenas brasileiros pelos portugueses, percebe-se claramente este mecanismo de aniquilacdo: eles eram consi- derados povos “‘incultos”, “barbaros‘’, ‘‘imorais’’, que ndo haviam encontrado ‘‘o verdadeiro Deus’’ e desconheciam a “‘superioridade da civilizacdo européia’”. Ou ainda notemos os embates que as vezes ocorrem entre ‘‘umbandistas’’ e ‘‘espiritua- listas”’ de um lado e psiquiatras e psicdlogos do outro. Estes ultimos procuram explicar a reatidade vivida pelos primeiros, em suas incorporacées e transes, através de seus conceitos, como: “histeria’’, O que é Realidade 67 “sugestao"’, “‘hipnose’’, etc., enquanto os espiri- tualistas pretendem entender as chamadas “doencas mentais’’ valendo-se dos elementos de seu universo simbdlico, a saber, incorporacao de entidades destrutivas, ‘‘despachos’’ feitos por terceiros, etc. E neste confronto é quase inevitavel que os profissionais da psicologia invoquem a seu favor a “‘superioridade da ciéncia’’ na revelacdo das verdades do mundo. Um aspecto central nesta questdo do confronto entre universos simbdlicos ndo pode ser esquecido: ele envolve, necessariamente, o poder. A detinicao da realidade que saira ‘‘vencedora’’ e que se fixara na sociedade como resultado desse conflito, depende sobremaneira da forca (material e fisica) de que dispdem os oponentes, na maioria das vezes até mais do que a engenhosidade dos técnicos legitimadores. Uma realidade 6 quase sempre, na historia do mundo, imposta pela forca e violéncia. Nao foi assim com os povos “‘primitivos’’, coloni- zados pelo europeu “‘civilizado’’? E néo vem sendo assim com o neocolonialismo, onde as nagdes poderosas, ecerdmica e militarmente, vém se impondo as du Terceiro Mundo? Os mc'hores argumentos que a humanidade tem encontrado para eleger uma definic&o de realidade como “melhor” esto 10 empunhar armas. Retornando aos “heréticos internos’’ de.emos observar entre eles uma classe muito especial, que nem sempre é considerada abertamente divergente ‘ Joio-Francisco Duarte Junior e nem ‘sempre sofre os processos terapéuticos, principalmente nas sociedades pluralistas e demo- créticas. Trata-se dos intelectuais. Entenda-se por intelectuais aqueles individuos cujo trabalho consiste precisamente em manipular universos simbélicos, em geral buscando neles falhas e .brechas por onde possam ser introduzidas novas e alternativas concepgdes da realidade. Enquanto na sociedade existem os ‘‘legitimadores oficiais’’, ou seja, pessoas que laboram no sentido de manter e arraigar profundamente aquelas concepcées tidas e havidas como a Unica realidade possivel, o trabalho do intelectual realiza-se no sentido inverso: questionar essas concep¢des. O legitimador oficial tem a seu favor toda a infra-estrutura das instituigdes, j4 implantada e que serve de base concreta 4 sua legitimacdo tedrica, ao passo que o projeto do intelectual se desenvolve num vacuo institucional. Neste sentido é que se pode falar em utopia, tomando-se © termo no seu sentido literal, derivado do grego: utopia = lugar nenhum. As construgdes tedricas dos intelectuais, que ndo se derivam das institui- ges, sdo utopias no sentido de ainda nado existirem concretamente, com todo um arcabouco de vida pratica sustentando-as. Como afirmado anteriormente, ninguém sustenta sozinho uma concepcdo divergente de realidade, e isto é valido também para os intelectuais. Se lhes _ falta o respaldo da sociedade maior, todavia eles 7 O que é Realidade encontram-no entre si mesmos, ou seja, na sub- sociedade de intelectuais que eles constituem. Suas concepcées dissidentes sdo sistematicamente negadas pela praxis mesma da sociedade, mas subjetivamente eles podem manté-las porque na subsociedade a que pertencem seus compani.eiros consideram-nas como realidade. Daf o horror intrinseco que ditaduras de qual- quer matiz nutrem contra os intelectuais e seus programas de estudo e pesquisas: eles acabam apontando sempre na direcéo de transformacdes no que existe, rumo a uma sociedade diferente, distinta da que os poderosos pretendem conservar a fim de manter seus privilégios. Os intelectuais tém ainda a opcdo da revolucdo que, historicamente, @ bastante importante. Por ela, eles se dispdem a tornar concreto o seu projeto, ou seja, transformar a sociedade (a realidade) para que se adeqlie as suas concepcdes, até entdo somente tedricas. Esta opcdo, contudo, tem de contar com o respaldo concreto, institucional, de outros grupos dentro da sociedade. Nao ha revolucSes apenas tedricas, nado ha revolucdes sem 'mudangas na infra-estrutura sucial, a nivel da vida concretamente vivida pelas pessoas. Quanto mais as revoluciondrias « dissidentes concepcdes dos intelectuais se espalham e tomam corpo entre outros grupos da sociedade, mais vai se solidificando a realidade alternativa proposta. Uma revoluc&o se realiza (torna-se real) quando, 69 70 Jodo-Francisco Duarte Junioi pelo movimento da maioria da sociedade, as transformac6es nas instituig¢des edificam uma nova realidade. Realizada a revolucdo, isto é, tornadas reais aquelas concepcdes até entdo tidas como utdpicas e divergentes, é freqlente ver-se o intelectual assumir o.papel inverso, qual seja, o de legitimador oficial. Agora ele pode passar de opositor a propa- gandista da nova realidade, contribuindo para que ela seja aprendida e assimilada pelos grupos sociais. E pode assumir também, como complemento, o papel de ‘‘terapeuta’’, procurando reeducar os mais renitentes, os contra-revolucionaérios que insistem em manter suas antigas concepcdes e minar a nova realidade no sentido de um retorno a antiga. Ou ainda o intelectual, apds a revolucdo, pode entender que ela se afastou daquelas con- cepcdes que a nortearam, que ‘nado era bem isso oO que se pretendia’’, retornando ao seu papel de critico e opositor, trabalhando para que mais uma vez a realidade seja alterada. E é@ sempre bom frisar que este seu trabalho so é possivel na medida em que haja uma tolerancia democratica ao plura- lismo de concepcées. + Até aqui nossas consideragdes acerca da manu- tencdo da realidade disseram respeito a um nivel coletivo, social, em termos de instituigdes e _universos simbdlicos. Porém, é preciso que se verifique como a realidade é conservada co:n relagdo aos individuos, na vida cotidiana. Neste O que é Realidade 71 n{vel pode-se distinguir entre dois tipos gerais de conservacdo da realidade: uma rotineira e outra critica. — A rotineira destina-sse a manter a realidade interiorizada pelos individuos na vida do dia-a-dia, ou seja, assegura que nos movimenteinos num meio conhecido e previsivel, sem mudancas bruscas, seja a nfvel subjetivo, seja a nivel objetivo. Em primeiro lugar isto é conseguido através dos ha! itos e rotinas, que sdo a esséncia da institucionalizeydo. Enquanto minha realidade cotidiana se desenvolve de forma rotineira, isto é, de maneira ja conhecida, esto suspensas quaisquer duvidas e questionamen- tos que me obrigariam a pensar sobre a minha identidade (quem sou?) e a identidade das coisas @ pessoas que me cercam. O mundo continua af como eu o conheco: no meu percurso até o trabalho tomo o mesmo Onibus, que segue o trajeto habitual, as pessoas sobem e descem dele da maneira usual, as casas e edificios continuam os mesmos, meus horarios sd0 mentidos, etc. — tudo isso me reafirma continuamenre a solidez da realidade e me da a seguranca de que necessito para desenvolver minhas atividades. Em segundo lugar a conservacdo rotineira é conseguida através de nossa interac4o com os outros. Estes, podem ser ‘‘outros significatios’’ (aqueles com quem mantemos relacdes pessoais mais (ntimas), ou menos importantes: ambos os tipos ajudam na conservacao de realidade. Qué ido ! 72) Joao-Francisco Duarte Junio: paro Oo meu carro, por exemplo, e pergunto ao guarda de transito se posso estacionar ali, este é um encontro ocasional, mas que, implicitamente, reassegura a realidade: ele me reafirma que sou proprietario do vefculo tal, que moro nesta cidade, que as regras de transito continuam a existir, que os policiais estao fazendo o seu trabalho, etc. [ Nota-se ent&o que o meio mais importante na i manutencao da realidade é a conversa, ou seja, : através dela o mundo é incessantemente reafirmado. , N&o nos esquegamos daquilo que foi discutido | No segundo capitulo: pela linguagem o mundo | ganha sentido, significagdo. Na maioria dos didlo- / gos que mantemos, a realidade esta assegurada, ao ; menos de forma implicita: falamos num mesmo | idioma e de coisas conhecidas, que compdem a ' nossa realidade. Um simples ‘‘bom-dia’’ do porteiro | de meu edificio me informa que as coisas conti- " nuam como sempre. Os didlogos que mantemos com os ‘‘outros significativos’”’ so ainda mais importantes neste processo, na medida em que neles had uma carga adicional de afetividade, contribuindo com maior peso para assegurar a nossa realidade subjetiva. As opinides emitidas por aqueles que me sao significantes tém maior forca para edificar e manter a minha identidade e a das coisas (e, é claro, tem também maior forga para alterar essas identidades). Pela conversa a realidade nado so é mantida mas ainda vai sofrendo modificacGes: O que é Realidadc 73 certos temas, num dado momento, tornam-se mais discutidos e, portanto, mais relevantes (mais reais), enquanto outros vao sendo esquecidos e perdendo a :ua realidade no centro de nossa atencdo. Algo que nunca é falado possui para nds uma realidade subjetiva vacilante e fraca, em oposicao 4 solidez daquilo que nos preocupa e de que falamos o dia inteiro. Assim, a conversa mantém continuamente a certeza na realidade cotidiana, mas pode acontecer de esta certeza ser abalada por um fato qualquer. Por exemplo: minha mulher (um outro altamente significativo) me diz de uma hora para outra que vai me deixar porque sou um fracassado e ela nado mais me ama. Este 6 um momento critico, que faz o meu mundo estremecer. Sua opinido e seu comportamenio roubam de mim a certeza que tinha quanto 4 minha realidade subjetiva, 4 minha identidade ‘(serei realmente um _ fracassado?), além de abalar a realidade objetiva (que mundo é este onde podemos ficar sozinhos de repente? Como se faz para se viver sozinho?). E necessdério entdo que sejam acionados os mecanismos de conservacdo critica da realidade, mecanismos estes que entram em cena nessas situacdes em que o real comeca a desmoronar para os individuos. Tais mecanismos séo os mesmos empregados na conservacdo rotineira, exceto que agora a confirmacdo da realidade deve se tornar explicita e intensa. Vou, por exemplo, conversar 74 Jodo-Francisco Duarte Junior com meus amigos e parentes a fim de saber se eles créem que eu seja realmente um fracassado, e arranjo rapidamente uma namorada, 0 que me confirma que é possivel me amarem e que sou .capaz de viver ‘a dois’’. Esses procedimentos ‘ajudam-me a :eestruturar e a manter a realidade que me era conhecida e que foi abalada. Nessas situacdes criticas também pode ser posta em jogo uma série de técnicas que a socie- dade prové justamente para tais casos. Dentro do mesmo exemplo, posso procurar um psicdlogo para um aconselhamento ou uma psicoterapia, que me ajudem a reafirmar’a minha identidade; ou mesmo buscar palavras de apoio junto ao pastor de minha igreja, no hordrio reservado para o atendimento dos fiéis. Esses colapsos que a realidade pode sofrer nado se dao apenas a nivel individual, mas ainda coletivo, como em caso de catdstrofes, revoltas por parte de determinados grupos, etc., quando também sao acionados mecanismos de manutenc&o do real. Ao ser convocada uma passeat# de desempregados e na iminéncia de ocorrerem saques e depredacées, por exemplo, o governador ou o prefeito podem ir aos meios de comunicacdo e declararem que a policia estaré nas ruas para goventir a ordem e a normalidade (vale dizer, a realidade). Tais processos de afirmacdo do real, evidentemente, tém a sua intensidade e forca de aplicacdo aumen- tadas proporcionalmente a seriedade com que a O que é Realidade 75 ameagca a desintegracdo € percebida. Ameacas mais sérias exigem uma multiplicacdo dos mecanismos e rituais de conservac¢do critica da realidade. Como ja observado paginas atras, no caso da revolucdo a realidade pode sofrer, em termos de coletividade, uma ruptura e um rearranjo sob uma nova forma (uma nova ordem institucional). Este fato pode ocorrer também com os individuos, quando por qualquer motivo seus paraémetros subjetivos do real séo desestruturados e novamente organizados a partir de outros prismas. A conversdo religiosa é, de certa maneira, o prototipo deste tipo de fendmeno, onde o individuo repensa e reestrutura sua maneira de viver, sentir e pensar de acordo com os novos vatores. fornecidos pelo novo universo simbolico. No caso exemplificado anteriormente, quando minha mulher me deixa e coloca em divida o meu sucesso, pode ser que eu venha a descobrir que ela esteja certa, e entéo mude radicalmente a minha vida: vendo os meus pertences, abandono © meu emprego, arranjo uma casinha na praia e passo a fazer artesanato para ganhar dinheiro. Terei ent&o de passar por uma reaprendizagem da realidade, ou seja, devo aprender a me orientar neste meu novo mundo, com relacionamentos diferentes, outros tipos de amizades e valores distintos daqueles cultivados anteriormente. Esse processo de reconstrucdo da realidade subjetiva, que implica um aprendizado, ganhara rr 76 Joao-Francisco Duarte Junior contornos mais nftidos ao se tratar, no capitulo seguinte, das maneiras como a realidade é ensinada as novas geragdes e reensinada aqueles que a tiveram desestruturada. A APRENDIZAGEM DA REALIDADE “Sendo a sociedade uma realidade ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, qualquer adequada compreensao tedrica relativa a ela deve abranger ambos estes aspectos.”” (P. Berger e T, Luckmann) O fendmeno da reificacdo, isto 6, a apreensdo da realidade como se fosse algo dado, indempendente dos homens (e nao, construfda socialmente), é uma constante verificada em qualquer cultura, “civilizada” ou “primitiva’’. Perceber a realidade de forma desreificada, ou seja, como produto da acg3o humana, exige um certo esforco da cons- ciéncia, e isto s6 pode ser conseguido apos o real jA ter sido introjetado. Apenas depois de a reali- 78 Jodo-Francisco Duarte Junior dade ter sido aprendida como algo exterior e coercitivo, apenas depois de o individuo ter-se integrado nela 6 que este pode conseguir uma certa “‘distancia’’ que lhe permita percebé-la “de fora”. O processo de aprendizagem da realidade é denominado socializac%o. Por ele tornamo-nos humanos, aprendemos a ver o mundo como o véem nossos semelhantes e a manipuld-lo pratica e conceitualmente através dos instrumentos e cddi- gos empregados em nossa cultura. A socializacdo pode ser dividida em duas fases: a primaria e a secundaria. Na socializac¢do primdria, que ocorre essencial- mente no interior da famflia, de par coma evolucdo neurofisiolégica vamos adquirindo a consciéncia que a linguagem nos permite e que nos “hominiza’’. Individuos criados longe de seus semelhantes, como comprovam os casos de criancas deixadas nas selvas ainda bebés e ‘‘adotadas’’ por animais, ndo se tornam humanos. Essas criancas, encon- tradas quando ja beiravam a adolescéncia, nado eram mais do que pequenos animais que cacavam, grunhiam e andavam ‘‘de quatro”; tentada a sua “hominizagdo’", a sua integracdo na sociedade, bem pouco conseguiram aprender e acabaram sucumbindo. E inevitdvel: « que conhecemos como ‘“‘o humano’’ so é possivel se produzido socialmente. A socializacdo primaria é basica e fundamental, _, O que é Realidade 79 pois toda e qualquer aprendizagem subseqiiente terd de se apoiar nesses alicerces construfdos na primeira infancia. Neste processo estdo envolvidos nao apenas aspectos cognitivos e racionais, mas essencialmente fatores emocionais. E a emocdo que liga a crianca aos primeiros “outros signifi- cativos’’: os seus pais. Fsi: figagdo afetiva é condic¢do necessdria para que a socializacdo se realize a bom termo, e sem ela seria extremamente ._ dificil, quando nao impossivel, este primeiro aprendizado do murido. O contetido e o instrumento mais importante da socializacdo primaria, sem dtvida, éa linguagem. Por ela e com ela a realidade vai sendo apresentada a crianca: o mundo vai se vestindo de significacdes, vai sendo montado através das palavras que o organizam e o edificam para o homem. Assim é que a realidade, ou seja, a sociedade e a identidade do individuo, vaéo sendo cristalizados em sua consciéncia no mesmo processo de interiorizacao. Caminha-se progressivamente no sentido de uma abstragdo de significados e de papéis, desde o mundo familiar até o mundo como um todo. A primeira identificagaéo da crianga se da com os membros de sua familia. Na medida em que ela progride em seu aprendizado, os papéis e signifi- cados desempenhados e_ transmitidos pelos familiares vao sendo percebidos como caracteris- ticos também de outras pessoas. Desta forma, na socializacdo primé:ia parte-se dos outros sigri!fica- Joiio-Francisco Duarte Junior tivos e se atinge o que se denomina ‘‘outro generalizado”. A formacdo deste conceito de outro generalizado na consciéncia do individuo significa que ele agora nao se identifica apenas com os outros concretos que estdo a4 sua volta, mas com uma generalidade de outros, ou seja, com uma sociedade. —-& E é@ neste ponto que termina a socializagaéo primaria: quando a crianca percebe que a realidade transcende as fronteiras de sua casa e se espalha por todo um mundo social. Alias, algumas crises podem ocorrer neste momento exatamente pela descoberta de que o mundo dos pais nado é o Gnico existente, e sim uma pequena parte de algo infinitamente complexo e até assustador. Tais crises podem inclusive serem agravadas se ela percebe que, por qualquer motivo, o mundo dos pais € mesmo ridicularizado em outros grupos sociais. Este é um fendmeno que tem ocupado a atencao de intimeros educadores com relacdo as crianc¢as que provém do meio rural ou de favelas e periferias e que, numa escola elitizada, véem seus valores e formas de express4o — vale dizer, a sua realidade — serem menosprezados pelos colegas e professores. Ja a socializag¥o secundaria diz respeito a qualquer processo subseqlente a primdria que vise a introduzir o individuo em novos setores do mundo objetivo de seu meio social. Quer dizer: pela socializacdo = secundaria _interiorizamos O que é Realidade 81 “submundos” institucionais (ou baseados nas instituic6es) que compéem a nossa sociedade. Por este processo vamos sendo introduzidos nas instituicdes sociais e assimilando as teorias que as legitimam. Isto significa a aquisic&o de conhe- cimento de fungdes e de papéis especificos, direta ou indiretamente decorrentes da diviséo do traba- Iho e do conhecimento. Enquanto a socializagdo primdaria vem plasmada de alta dose de afetividade, a secundaria dispensa esta carga de emocdes e se da de maneira mais racional e planificada, onde o conhecimento é apresentado em seqléncias ldgicas e pedagdgicas. Este processo de aprendizagem em geral é tarefa de instrutores especializados, como os professores por exemplo. Como o conhecimento assimilado na_ sociali- zacdo secundaria @ menos marcado afetivamente, ele pode mais facilmente ser colocado entre parénteses, isto 6, esquecido ou deixado de lado. Justamente pela emoc&o que o acompanhou é que o “mundo basico” interiorizado na sociali- za¢do primdria se mentém sdlido e com pouquis- simas possibilidades de ser abalado. Muitas teorias psicolégicas ressaltam o fato de os fundamentos de nossa personalidade acharem-se nas experiéncias vividas na primeira infancia, quando esté 1m curso a socializacdo primdria. A mateméatice, a historia e a geografia, por exemplo, podem ser esquecidas e postas de lado pela crianca ao sair 82 Joao-Francisco Duarte Junior da escola, mas o mundo dos pais é inevitavel: ela vive nele, quer queira ou nado. A realidade interiorizada no processo secun- dério é, assim, mais fragil e fugaz, podendo sofrer desestruturacSes e novas montagens. E é impor- tante notar-se também que a realidade subjetiva (o acervo de conhecimentos interiorizados} e a realidade objetiva (o conjunto de instituigdes ¢ legitimacSes da sociedade) nunca mantém entre si uma relacdo simétrica. Ou seja: é impossivel conhecer-se tudo o que existe na sociedade, conhecer-se a totalidade do real (mesmo nas culturas mais ‘‘primitivas’’), nem tudo o que existe em nossa consciéncia 6 proveniente das objetivacdes sociais, como a consciéncia do pro- prio corpo, por exemplo. A realidade subjetiva e a objetiva sdo co-extensivas, porém nunca simétricas. Quando no capitulo anterior tratamos da conservacdo da realidade, foi abordada a questdéo dos individuos que, por qualquer motivo, tém a sua realidade subjetiva abalada ou. mesmo :!eses- truturada. Ali afirmou-se que nesses casos é desen- volvido todo um trabalho no sentido de, ou conservar a realidade ameacada, ou reconstruir a demolida. E preciso agora que se observe mais de perto essa tarefa de reconstrucdo, ja que ela nada mais 6 do que uma reeducacdo, ou melhor, uma re-socializacao. Se o contetido da consciéncia que foi adquirido O que é Realidade 83 na socializac4o secundaria sofre abalos ou se desestrutura, tal fato nao provoca choques muito sérios no individuo, pois que trata-se de conheci- mentos (tedricos) pouco coloridos emocionalmente e que podem ser facilmente substituidos por outros. Trocar uma visdo tedrica por outra, um sistema de pensamento por outro, quando a realidade basica (emocional) continua estruturada, nao é tarefa muito complicada. Contudo, a coisa se complica quando os abalos e desestruturagSes atingem os valores e a visdo de mundo adquirida ao longo da socializacdo primaria. Neste nfvel esto envolvidos aspectos fortemente emocionais, e abalos nessas dimensdes sdo sentidos pelo individuo como fissuras em sua propria identidade. E evidente que uma desestru- turacdo total da realidade subjetiva jamais sera possivel, pois que, em Ultima andalise, o individuo continuaré a ter o mesmo corpo e a habitar o mesmo universo fisico. (Os casos de desestru- turacSes acompanhadas de mutila¢des corporais so, realmente, os mais sérios. E este é, muitas vezes, o drama daqueles que foram submetidos a torturas e sevicias.) As alteracdes mais profundas operadas na realidade subjetiva (aquelas que atingem o mundo basico da socializagéo primadria) recebem a deno- minacdo particular de a/ternagdes e, como ja citado,- 0 caso da conversdo religiosa serve de prototipo explicativo deste processo. 84 Jodo-Francisco Duarte Junior Para que .corra efetivamente, uma alternacdo exige 0 concurso de terceiros, pois estando deses- truturados aqueles fundamentos adquiridos na infancia o individuo necessita passar por uma re-socializagdo semelhante a primdria. Foi dito semelhante e nao igual porque esta re-socializacdo n&o comeca do nada, como acontece com a socia- lizagao primdria, onde o bebé sequer estd “‘pronto”’ em termos neurofisioldgicos. As semelhancas que ambos os processos mantém entre si dizem respeito 4 carga emocional necessdria para a estru- turagdo da realidade subjetiva (e da prdpria identidade). Ao passar por uma alternacdo o individuo precisa de um forte grau de identificag¢ao emocional com o pessoa! socializante, como o que © ligava aos pais. O mais di cil na alternac&o é sempre a: :anu- tengao da nova realidade, j4 que a tendéi.cia a retornar ao mundo arraigado na primeira infancia é elevada. Fazer com que o individuo abandone de vez a antiga visdo e passe a interpretar a reali- dade da nova maneira exige uma série de procedi- mentos e cuidados especiais. E preciso que este deixe para traz o mundo que antes habitava, e o ideal para tanto consiste na segregacdo fisica durante a re-socializagdo. Daf a necessidade de claustros, conventos, retiros, etc., mo caso da converséo religiosa: locais onde os contatos se d&o apenas com aqueles que possuem a visdo de realidade a ser assimilada. Observe, por exemplo, O que é Realidade que os conhecidos “‘cursilhos’’ realizados pela Igreja catdlica em busca de novos adeptos pro- curam trabalhai com estes dois aspectos funda- mentais: um forte grau de emocdo e um isola- mento (tempordrio) dos iniciados. Esta segregacdo no processo de alternacdo nao deve ser apenas fisica, mas também estender-se de maneira conceitual, isto 6, os antigos compa- nheiros que o individuo deixou, portadores daquela que era também a sua visdo de realidade, devem ser redefinidos a partir do novo universo simbdlico adquirido. Esses antigos companheiros e tudo aquilo que eles representam passam entdo a ser tipificados como “‘impuros’’, ‘‘pecadores’’, “infiéis’’, etc., o que nada mais é do que um processo de aniquilaco que visa a garantir a superioridade do novo universo simbdlico em detrimento do antigo, tornado assim inferior e desprezivel. A alternac&o implica, desta forma, uma reinter- pretacdo do prdprio passado do individuo a luz do novo universo simbélico por ele assimilado. Tudo o que foi vivido :ieve agora ser repensado para harmonizar-se com sua nova viséo de mundo. E bastante freqtiente, nesses casos, que o ‘‘conver- tido”” chegue mesmo a inventar fatos e aconteci- mentos em sua biografia pregressa, a fim de tornd-la mais plausivel dentro de seu novo sistema de referéncia. Historicamente 6 muito comum a falsificac#o e a invencdo de documentos reliaiasns 85 86 Jodo-Francisco Duarte Junior © que parece ser decorrente justamente dessa necessidade de coeréncia entre o passado e 0 presente daqueles que sofreram conversGes. Se na socializagdo secundaria, que se apdia na priméaria, 0 passado deve ser retomado a fim de que o presente seja interpretado numa sequéncia harmé- nica, na re-socializagdo ocorre o inverso. Isto é: © passado deve ser redefinido e mesmo alterado em fungdo do presente. Reservemos agora estas Ultimas linhas do capitulo para citar e conceituar a ocorréncia de socializagdes malsucedidas. Este problema, evidentemente, reveste-se de gravidade quando a socializagdo que nao foi bem-sucedida 6 a priméria. E entende- se que a socializacdo tenha sido malsucedida quando existe um alto grau de assimetria entre a realidade subjetiva e a objetiva, ou seja, a visdo de mundo assimilada pelo individuo é bastante discrepante do mundo tal como objetivamente definido pela sociedade em que ele vive. Tais casos «correm principzimente devido ao fato de existirem acentuadas divergéncias entre as vis6es de mundo do pessoal socializador. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando a crian¢2 passa grande parte de seu tempo sob os cuidados de uma empregada ou baba que provém de um grupo social ou cultura radicalmente diversa da dos pais. Desta maneira o individuo estardé, em sua primeira infancia, sofrendo a mediac&o do mundo através de outros significativos cujas realidades subjetivas O que é Realidace 87 A dificuldade do esquizofrénico em erigir para si mesmo ma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “‘eus”’.. . 88 Joéo-Francisco Duarte Junior sio discrepantes, acarretando-lhe uma dificuldade em erigir para si uma realidade subjetiva mais harménica e coerente com a objetiva. Pode-se inclusive analisar 0 ‘‘distdrbio mental” classificado pela psicologia como “‘esquizofrenia’’, sob este aspecto. A dificuldade do esquizofrénico em erigir para si mesmo uma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “eus’’, tem sido encarada pelas modernas teorias psicoldgicas como resultante do choque entre realidades contraditorias durante a sua infancia. Sob este ponto de vista, tal individuo é resultante de um processo malsucedido de_ socializag¢ado primdria, onde nunca conseguiu obter uma extensdo coerente e integrada entre a sua realidade subjetiva ea objetiva. E mais: si:a propria realidade subjetiva nao foi coerentemente edificada, constituindo partes desconectadas entre si e com o mundo a sua volta. Assim, o esquizofrénico vive sob os escombros da realidade que, por ter-lhe sido construfda sobre alicerces desarticulados, acabou desmoronando em peda¢os soltos. A REALIDADE CIENTIFICA “Visto que se acham contidas na existéncia muitas atitudes, hd também muitos mundos, e nado um mundo-em-si. No existe, por conseguinte, um mundo-em-si_ cientifico. Em principio ha tantos mundos cientfficos especificamente dis- tintos, quantas sfo as atitudes especificamente diversas de perguntar.”’ (W. Luijpen) Reservou-se este Ultimo capitulo especifica- mente para se tratar da ciéncia e da realidade por ela construfda por um motivo especial: a posicdo que suas verdades e construgdes vém ocupando no mundo moderno. Atualmente tendemos a acreditar apenas naqueles fatos que sejam cientificamente provados, mesmo que nao entendamos nada do que vem a ser ciéncia. Parece que a palavra ciéncia 90 Jodo-Francisco Duarte Junior tem adquirido entre nds um cardter quase magico, apesar do paradoxo aparente que possa estar contido nesta afirmacdo. Tendo ela colocado o seu aval sobre qualquer fato, este ganha aos nossos olhos um alto grau de credibilidade, por mais absurdo que nos pareca. Sem duvida nao sera forgar muito o raciocfnio se dissermos que a ciéncia (ou pelo menos o mito que se construiu em torno dela) ocupa na moderna civilizagdo o lugar outrora ocupado pela teologia. Até o advento da modernidade as escrituras sagradas tinham para o homem o cardater de lei na interpre- tacdo das verdades do mundo: a palavra final cabia, em Ultima andlise, aos legitimadores e peritos em textos sagrados. Nao foi o que aconte- ceu com Galileu, caracteristicamente o pioneiro no método experimental cientifico? Os religiosos simplesmente se recusaram a olhar pelo seu teles- copio porque suas afirmacées eram contraditadas por todas as escrituras e a tradigdo judaico-crista. Nao havia o que discutir: a realidade se dava de acordo com os textos sagrados, e qualquer desvio nao era outra coisa sendo heresia. Mas agora a quest&o se inverteu: tudo aquilo que nao seja cientificamente comprovado nao devi merecer oO nosso respeito, j4 que se trata tdo- somente de “‘filosofia’’, ‘poesia’ ou simples supersticfo ou misticismo. E evidente que e:ts posic¢do central da ciéncia adveio das trahsfor- maces, que através dela (e da tecnologia, sua O que é Realidade 91 filha direta) conseguiram imprimir-se ao mundo. O poder da ciéncia na definicdo da realidade deriva-se de seu enorme poder para transformar © mundo e até reduzi-lo a po. E irénico: seu poder _ de definicgo do real advém, em Ultima andalise, de sua capacidade de destru(-lo. Faz-se urgente e necessdrio, portanto, que se desmistifique um puco esta coisa quase magica chamada ciéncia, relativizando-a até que se com- preenda que ela 6 apenas uma das formas de se construir e entender a realidade. Pois que esta, como vimos, nasce de um jogo dialético entre o homem e o mundo fisico, entre a consciéncia eo trabalho humanos e a materialidade das coisas. Dependendo da pergunta que langamos ao mundo obteremos um tipo de resposta. O que significa esta afirmagdo? Basicamente que as coisas se apresentam a nds de acordo com o nosso ponto de vista sobre elas. Recordemos o que foi dito num capitulo anterior. A agua sO aparecera a mim como H,O se meu questionamento a ela se realizar no 4mbi'o da qufmica. Para a lavadeira da margem do rio : realidade da dgua é estar limpida ou barrenta, propicia ou ndo ao seu propésito de lavar as roupas. Por estas assercdes pode-se compreender que néo hé um mundo-em-si, uma realidade fechada em si mesma, mas que o mundo é sempre e necessa- riamente um mundo-para-o-homem. Mundo é aquilo que o homem conceitua, organiza e trans- Joao-Francisco Duarte Junior forma, ja o dissemos anteriormente. A ciéncia é a revelagdo de certos aspectos do mundo tais como eles se apresentam ao ser humano, quando este lanca-lhe determinadas questdes. E como funciona a ciéncia? Fundamentalmente através de modelos. Uma teoria cientifica @ um modelo construfdo para representar determinado aspecto da realidade, dentro de seu campo espec(fico de significagéo. O cientista observa determinados fatos, organiza-os de modo a cons- tituir um modelo coerente e submete este seu modelo 4 comprovacdo empirica. Se as coisas se passarem tal como previstas no seu modelo, isto significa que ele tem valor explicativo e funciona como esquema de compreens&o e manipulacdo daquele aspecto do real. Caso contrério, o modelo é rejeitado como falso e deixado de lado. Isto nos -oloca a questdo da verdade, nado sé no campo cientifico como de maneira geral. Pode-se afirmar (e isto pode chocar alguns) que verdade é aquilo que funciona, que serve aos nossos propdsitos. Se um dado modelo cientffico funciona, isto 6, permite que por ele determinados aspectos do mundo possam ser manipulados, ento ele é considerado verdadeiro, ao menos até que novos fatos surjam, que ndo possam mais sei explicados c.: manipulados por ele. E af torna-se necessdria a construcéo de um novo modelo. O dtomo, por exemplo, era originalmente conce- bido como a menor particula da matéria, uma O que é Realidade 93 particula indivisivel (daf o nome: dtomo, em grego = sem partes). Depois, devido 4 observacdo de varios fenémenos, construiu-se um modelo para o dtomo em que ele apresentava dois tipos de partfculas nucleares e outro tipo de particula que girava em torno deste nucleo, feito um | sistema solar. Assim, os modelos da ciéncia sio maneiras de se construir o real dentro de seu 4mbito particular (e note que dissemos construir, ao invés de descobrir 0 real). Tais modelos vao sendo, ao longo da histéria, substitu(dos por outros mais abran- gentes e explicativos e, portanto, a realidade que a ciéncia constrdi vai sendo transformada paulati- namente. A questdo da verdade, por este motivo, deve ser também relativizada temporalmente. Aquilo.que hoje é tc:.iado como verdadeiro (aquele modelo que hoje funciona) amanhd podera deixar de sé-lo (deixard de funcionar). Até ha algum tempo era verdade que o dtomo era formado apenas de prétons, néutrons e elétrons; com o desenvolvimento da fisica quantica isto ndo mais 6 verdadeiro: no seu interior ha centenas de outros tipes de particulas subatémicas. O modelo atual afirma que a maior parte das partfculas conhecidas se forma por diversas combinacdes de trés entidades ou particulas elementares deno- minadas “quarks’’, que seriam entdo as menores constituintes da matéria. Porém, mesmo este modelo jd esta sendo contestado na direcdo da 94 Joaéo-Francisco Duarte Junior existéncia de unidades ainda menores, que forma- riam os ‘‘quarks’’. A quest&o da verdade depende ent&o de dois fatores: sua localizacdo na historia do conheci- mento e sua validade num determinado setor da realidade. Este Ultimo fator significa que as verda- des construfdas pelo homem ao manter uma determinada postura frente ao mundo (a cientifica, por exemplo), ndo se sobrepdem nem invalidam outras verdades construfdas a partir de posturas diferentes (a artistica e a religiosa, por exemplo). Verdades cientificas so validas no ambito da ciéncia,. verdades estéticas no Ambito das artes, e assim por diante.*Cada uma delas constitui aspectos diversos da realidade construfda pelos homens, e é indevido compard-las pretendendo-se a superioridade de uma em detrimento das outras. A realidade construida pela ciéncia 6, se assim podemos chamar, uma “‘realidade de segunda ordem”: uma realidade «ue se apdia naquela em que nos movemos em nosso dia-a-dia. Melhor dizendo: as construgdes cientificas partem, inevi- tavelmente, de nossa (humana) percepcdo da realidade. E somente porque nosso sistema visual nos permite a percepgdo das cores que a ciéncia pdde estudd-las e concluir que se tratam de ondas luminosas de diferentes comprimentos. Se, como certos animais, percebéssemos o mundo em preto -@ branco, n&o poderiamos falar das cores e a ciéncia provavelmente ndo se disporia a estuda-las O que é Realidade 95 (j4 que elas ndo existiriam para nds). O mundo que o cientista constréi, em Ultima analise, é derivado do mundo em que ele vive. Até aqui falamos em ciéncia de maneira genérica, mas é preciso que se efetue uma importante divisio no seu interior, separando-a em ciéncias naturais e humanas. As naturais ocupam-se, é claro, da natureza, e mesmo af podemos dividi-las nova- mente naquelas que tratam do mundo fisico, inanimado (fisica, quimica, etc.), e naquelas que trabalham com a vida (biologia, subdividida em botanica, Zoologia, etc.). As ciéncias naturais do mundo inanimado tém na matematica, ou seja, na quantificagdo, o seu principal instrumento de conhecimento. A reali- dade, neste dmbito, 6 traduzida em termos de ndmeros e relacdes numéricas. Sdo chamadas de “exatas’’ porque apresentam elevado grau de exatiddo e previsibilidade. Esta Ultima caracter/s- tica é importante e merece a nossa atencdo, ja que nela reside a diferenca fundamental entre tais ciéncias e as humanas. O objeto de estudo das ciéncias fisico-naturais, ou seja, o mundo fisico com suas forcas ¢ pro- cessos, apresenta uma constancia e uma regularidade inexordveis. A natureza apresenta a_ infinita paciéncia de se repetir sempre, em qualquer lugar, mantendo seus sistemas de interacdo entre os elementos. A égua, por exemplo, aquecida sob.a pressio de uma atmosfera entraré em ebulicdo a Jotéo-Francisco Duarte Junio 100°C, aqui ou na Patagénia; um acido misturado a uma base produzira um sal mais dgua, seja onde ‘for. O que se esta tentando dizer é que a natureza opera segundo determinadas leis e normas que ndo se alteram ao sabor do acaso, e o trabalho do cientista 6 justamente construir modelos que representem esta ordem oculta. E é por isso que as ciéncias fisicas detém elevado grau de previsibilidade: encontrada esta ordem natural torna-se simples prever o que aconteceraé sob tais e tais condicdes, dada a imutabilidade das leis que regem a natureza. Desta forma, essas ciéncias sio exatas e permitem a previsdo nao devido ao método que empregam (baseado na quantificacdo), mas porque secu objeto de estudos é regular e repetitivo. Dentre as ciéncias naturais, aquelas que se ecupam da vida (entendida biologicamente) também possuem uma corisiderdvel margem de exatiddo, que |hes permite o controle e uma certa previsdo. A vida n&o é té& mondétona quanto o mundo fisico, mas ainda assim as estruturas e processos dos organismos vivos se mantém bas- tante regulares. Caes sempre procriaram e pro- criargéo c&es, e a funcdo do estémago @, em qualquer organismo que o possua, digerir alimentos, assim como as arvores se alimentam dos nutrientes absorvidos pelas rafzes em qualquer lugar do mundo. O objeto de estudos das ciéncias bioldgicas, a vida, mantém entdéo uma certa regularidade que ee O que é Realidade 97 também [hes permite um bom saldo de exatiddo, certeza e previsibilidade. Contudo, ao ingressarmos no reino do humano a coisa se complica. O homem possui uma estrutura biolégica regular, mas suas construgdes e compor- tamentos nado se derivam diretamente de seu organismo. Por exemplo: passaros voam porque tém asas, mas o homem ndo as possui e criou formas de se elevar nos céus; peixes vivem na agua respirando através das guelras, atributo nado pertinente ao homem que, no entanto, inventou formas de descer e permanecer muito tempo sob as aguas. Assim, o ser humano nao esta deter- minado pelo seu organismo, como os animais. O homem se agrupa ainda em culturas diversas, e em cada uma desenvolve maneiras diferentes de viver e compreender a vida. O iraniano se veste de determinada maneira, tem os seus valores, o seu deus, etc. Elk vive de forma diferente, por exemplo, do brasileiro, que cultua outros valores, veste-se de outra forma, etc. E ambos s&0 muito diferentes dos esquimdéds, que apresentam seu jeito peculiar de construir a realidade, Desta forma, n&o sendo o homem determinado biologicamente, ele inventa a sua maneira de viver, cria a sua realidade culturalriente. E ainda mais: dentro de uma mesma cultura coexistem grupos distintos e, mesmo dentro de tais grupos, os indivfduos apresentam caracteristicas exclusivamente suas, personal isticas. Em suma: o homem apresenta uma 98) Joao-Francisco Duarte Junior liberdade que é irredutfvel ao meramente fisico, ao puramente bioldgico. Disso decorre a impossibilidade de as ciéncias humanas serem exatas e previsiveis. Ha dimensdes fundamentais no humano que nao permitem quaisquer previsdes ou quantifica¢des. N&o se pode aplicar ao estudo do homem os mesmos métodos utilizados nas ciéncias ffsico-naturais, e ainda mais porque, em tais ciéncias, o objeto de estudus é diferente do sujeito que o investiga (o homem), enquanto nas humanas o prdéprio objeto é um, outro sujeito. Toda esta disting&o que fizemcs entre as dife- rentes ciéncias foi necessdria para que o mito da quantificacdo como critério Ultimo para oestabe- | lecimento da verdade seja posto de lado ou, ao menos, relativizado. Porque muitos ainda créem que a verdade seja mais “verdadeira’’ quando expressa em nimeros, e muitos cientistas procu- raram estudar o homem valendo-se dos métodos | das ciéncias ffsico-naturais, esperando assim obter maior veracidade em seus trabalhos. Ora, 0 ser humano pede métodos especificos de estudo, e a quantificagdo sé deve ser critério de verdade dentro de um delimitado setor da_ realidade: © mundo natural. \_ Ha ent&o zonas de realidade, cada qual coberta por ciéncias especificas, que se valem de métodos particulares. As construcé.s de cada uma delas s8o verdadeiras e tém o seu dmbito restrito aquela ee O que é Realidade 99 area determinada do real. Uma ciéncia é esta ciéncia e nao outra, pelo fato de dirigir 4 realidade esta pergunta especifica e n&@o outra qualquer. Os cientistas vo, assim, construindo a realidade cientifica compartimentadamente, isto 6, dentro de seus campos delimitados de atuacdo, e tais campos nado podem simplesmente ser somados ou justapostos uns aos outros. Melhor dizendo: é impossivel a construcdo de uma ciéncia.una, que abranja a realidade como um todo e estabeleca leis e teorias para tudo aquilo que existe. E a tendéncia tem sido justamente a inversa: cada vez mais as ciéncias se fragmentam e se especializam,. restringindo gradativamente o seu interesse a parcelas menores do real. A medicina, por exemplo, que originariamente estudava o funcionamento e afeccdes do organismo humano em sua totalidade, fragmentou-se tanto que hoje cada Orgdo deste organismo 6 estudado por um especialista. A realidade como um todo jamais podera ser objeto de estudos de uma Unica ciéncia, pois que nado ha uma realidade una e indiv «el, e sim tantas quantas sao as ciéncias que as « wnstroem. A definicaéo do real, ou iielhor, do conceito humano de realidade ndo é tarefa para ciéncias especificas, e sim para a filosofia. Ao cientista cabe manipular setores cterminados da realidade, construindo-!hes modelos repiusentativos e expli- cativos, enquanto o filésofo se ocupa da com- preensdo de como o homem percebe e compreende 100 Jotio-Francisco Duarte Junior © mundo, instaurando a sua realidade {dentro da qual esté a propria ciéncia). E evidente que um didlogo entre a filosofia e as ciéncias s6 pode ser fecundo para ambas, mas os cientistas em geral tém, miopemente, se recusado a ouvir os fildsofos, movidos muitos deles pela velha crenca ::a verdade suprema da ciéncia (e da quantificagdoj. Por sua vez a filosofia, ao tentar compreender o que é realidade, depende bastante do conhecimento advindo das ciéncias, especialmente o das humanas {mais particularmente dos dados fornecidos peta antropologia, sociologia e psicologia). E finalmente cabe ao fildsofo manter também uma_ posicdo de humildade no que concerne a seu conhecimento sobre o conhecimento humano que constrdi a realidade: humildade para reconhecer que ha regides do real inacess(veis ao pensamento pura- mente ldgico e racional. DimensGes essas a que se chega através de outras construcdes humanas, como a arte e a religido, por exemplo. Como Ultimas palevras faz-se necessdria uma pequena adverténcia dqueles que se dedicam.a estudar ciéncias humanas e que frequentemente utilizam-se do termo realidade nas suas construcdes tedricas: é preciso compreender todo o mecanismo social e cultural que a palavra tem atrdés de si, a fim de se evitar erros grosseiros e, o que é pior, violéncias. contra o préprio homem. Porque o psicdlogo ou psiquiatra, por exemplo, pode subme- ter seu cliente a um vasto repertorio de testes e O que é Realidade investigacdes com o intuito de descobrir se ele se encontra orientado na realidade. Isto 6 ldgico: nossa condic3o de sanidade pede-nos uma orien- taco minima e necessdéria na realidade em que vivemos. Contudo, a sutil e profunda questdo a ser feita 6: orientado em que realidade? Porque, como se espera ter ficado claro nas paginas prece- dentes, a realidade que habitamos tem a sua definigdo ditada pelos grupos sociais e culturais a que pertencemos, e uma orientac4o numa dada realidade pode parecer ilogica e mesmo insana se vista a partir de outra. ¥ * * P.S, — Se vocé nao tem diciondrio, ou se esqueceu de nele procurar o significado da palavra ‘‘zeugo"’, ndo serd por isso que ficara privado deste conceito. Zeugo é um instrumento musical da Grécia antiga composto de duas flautas reunidas. 101 INDICACOES PARA LEITURA Este pequeno texto tem a sua principal inspiragdo e a sua espinha dorsal na obra A Construgaéo Social da Reali- dade, de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, publicada em Petrdpolis pela Editora Vozes. Trata-se de um livro fundamental para quem pretenda seguir adiante nos racio- cfnios aqui expostos, e que disponha de algum conheci- mento filosdfico e socioldgico. Especialmente os conceitos apresentados no terceiro, quarto e quinto capitulos deste texto foram retirados do trabalho de Berger e Luckmann. Ali se encontram tais conceitos aprofundadus e fartamente exemplificados, acrescidos de outros que nado caberiam aqui, pela exigliidade de espaco. Certamente a obra dos dois autores é obrigatoria para todos os estudantes de filosofia e ciéncias humanas. Outra obra basica para a compreensao da estruturacdo da realidade, de um ponto de vista mais abrangente e filoséfico (onde inclusive a discussao da ciéncia e da lingua- gem estdo presentes), é /ntrodugdo 4 Fenomenologia _ Existencial, de W. Luijpen, publicada em Sao Paulo pela Editora Pedagégica e Universitaria (EPU). Trata-se de um —_-/ O que é Realidade trabalho mais denso, ao qual convém se achegar com alguns conhecimentos prévios de filosofia, apesar de ele ter sido escrito com intensGes claramente didaticas. Quanto 4 questéo da ciéncia e da realidade por ela construida é imprescindivel a leitura de Filosofia da Ciéncia: Introdu¢do ao Jogo e Suas Regras, de Rubem Alves, publi- cado em Sdo Paulo pela Editora Brasiliense. De leitura acessivel e agradavel, o texto procura demonstrar que a ciéncia nada mais 6 do que um jogo de montar, um jogo onde vai-se construindo modelos representativos da realidade. Para tanto, o autor vale-se também de um proce- dimento Itidico: ao longo do livro uma série de jogos e quebra-cabecas vai sendo apresentada ao leitor, que, ao se empenhar em suas solucGes, descobre praticamente os mecanismos operatorios da ciéncia. Ainda dentro do ambito da ciéncia seria indicada a leitura de O Que é Teoria, de Otaviano Ramos, publicado em Sdo Paulo pela Editora :irasiliense, nesta mesma colegdo “Primeiros Passos’’. Ali o autor procura demonstrar como surgem as teorias e como se dao suas articulacdes com a pratica, no 4mbito das ciéncias ffsico-naturais e das humanas. Finalmente, para os que se disponham a entender melhor a questao das legitimagdes e teorias que invertem a ordem pratica das coisas e acabam ocultando, mais do que explicando, a vida concretamente vivida, o indicado seria O Que é /deologia, de Marilena Chaur, desta mesma Editora e Colecao. A autora procura, em seu texto, expli- citar como surgers e como operam as ideologias, defi- nindo-as numa linha de pensamento que tem os seus par&metros estabelecidos na obra do fildsofo Karl Marx. 4B @ Mm a Colegdo Primeiros Passos ap Uma Enciclopédia Critica GD Frequentemente ouvimos dizer “‘caia na real”; a expressdo convida o interlocutor a deixar de sonhar, voliar a-tealidade, colocar os pés no chao. “Isto significa que ele estava “déesligado”, vivendo o irreal. Sea primeira vista o conceito de realiciade parece Obvio, o autor lembra que éxdtamente por isso ele é mais dificil de ser percebido. Quem determina onde comega e termina o real?. Como ’ @arealidade auténtica? Aréa de Interesse: Filosofia

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