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Capitulo I ESTRUTURA BASICA E USO DOS ARGUMENTOS 1. Estrutura e fungao dos argumentos A estrutura geral dos argumentos Para estudar as estruturas de que os argumentos se compdem, proponho delimitar; primeiramente de modo bem geral, o sentido de nosso tema central. Argumentos sao estruturas discursivas por meio das quais se justifica uma tese que por si s6 no é evidente. Essas estruturas discursivas sao normalmente utilizadas em contextos sociais nos quais discussdes ou controvérsias se desenrolam. Neste capitulo, vou me li- mitar a clarificag6es basicas acerca dos argumentos enquanto estruturas discursivas e de sua fungao de justificar ou sustentar logicamente teses no evidentes. De inicio, consideremos que os argumentos se compdem de ao menos trés elementos: * Uma conclusio, na qual se veicula a tese defendida. © Uma ou mais premissas, que funcionam como justificativa ou razdo para aceitar a conclusio. © Uma inferéncia, quer dizer, um tipo de passagem légica entre a(s) premissa(s) e a conclusio, que justamente indica que essa tiltima se baseia na(s) primeira(s). Essa descrigdo é tao ampla que permitiria mesmo incluir sequén- cias de imagens como exemplos de argumentos. De fato, os recursos da andlise argumentativa j4 tém sido aplicados em estudos criticos acerca de propagandas enquanto veiculam razdes de grande impacto sensivel (frequentemente visual ou auditivo) a fim de convencer um determinado piblico para a compra ou usufruto dos produtos ou servigos anunciados.' Neste livro, nao explorarei esse tema. Vou me ' Sobre esse tema, cf. SLADE, C. “Reasons to buy: the logic of advertisements”, Argumentation, vol. 16,n. 2, 2002, p. 157-178; SLADE, C. “Seeing reasons: visual argumentation inadvertisements”, Argumentation, vol. 17,n.2,2003, p. 145-160; RIPLEY, M. L. “Argumentation, theorists argue that an ad is an argument”, Argumentation, vol. 22, n. 4, p. 507-519, 2008. ae 16 Introduc’o & anélise argumentativa centrar em explorar os argumentos construidos em linguagem verbal € escrita, ou seja, tomados como conjunto de sentengas, das quais, conforme mencionado, pretende-se que uma delas (a conclusio) seja justificada pelas demais (as premissas), que oferecem razdes para a sua aceitagao. E 0 laco inferencial que realiza a justificagio pode ser ao menos de dois tipos: dedutivo ou indutivo — tema que ser4 explorado no préximo capitulo. Vale notar que hé uma diferenga “ontoldgica”, por assim dizer, entre os componentes dos argumentos. As premissas e a conclusio so sentengas, isto & conjuntos ordenados de palavras reprodutiveis, grafaveis e, assim, percebiveis concretamente. Jé a inferéncia nao é algo concreto no mesmo sentido, que se acrescentaria ao lado das sentencas para a elaboragao dos argumentos. A inferéncia é 0 préprio processo de conectar, pela leitura ou enunciacao, as premissas e a conclusao. Ela nao é, entao, um dado material tal como as sentencas; ela nao se exibe imediatamente como algo percebido no mesmo nivel delas. E preciso realizar a passagem entre as sentencas para'produzi-la. E, verdade que a inferéncia pode ser tematizada como um objeto, ¢ entao analisada em termos dos seus graus de forca ou de suas falhas, mas isso exige outras habilidades que a mera atestacao imediata das sentencas que compdem um argumento. Daf que uma grande parte da andlise argumentativa se dedica a reconhecer e avaliar as inferéncias. Trata-se do elemento nao imediatamente perceptivel dos argumentos, cuja apreensio exige um tipo de compreenso légica que muitas vezes nao é nitida para quem nunca se dedicou a algum tipo de estudo sobre os argumentos. E. pos- sivel se deixar convencer por um argumento sem entender exatamente qual é a forga inferencial ali em acdo e como ela opera, uma vez que o laco légico nem sempre é visivel ou audivel de modo imediato, tal como ocorre com as sentengas. Com efeito, uma das tarefas basicas da andlise argumentativa é tornar explicito o movimento inferencial que constitui o argumento, fixando-o, muitas vezes, de um modo que nao é idéntico aquele como as sentengas estao ordenadas em linguagem natural —o que veremos na préxima se¢ao. A inferéncia é passivel de diferentes tipos de andlise. E legitimo, por exemplo, tentar investigé-la como uma espécie de ato que ocorre no “interior” dos sujeitos que a efetuam. Essa perspectiva psicolégica nao sera desenvolvida neste livro. Pretendo abordar a inferéncia em seu aspecto légico-relacional, por assim dizer, como um certo tipo de conexdo entre as sentengas de um trecho discursivo. Além disso, deve ficar claro que a relacio inferencial que aqui interessa é aquela por meio da qual se justifica uma sentenga com base em outras sentengas. Essa limitagao do escopo da nocio de inferéncia é importante, j4 que mais Estrutura basica e uso dos argumentos 7 de um tipo de relagdo entre sentengas se faz por meio de inferéncias. Importa elucidar as inferéncias argumentativas; no entanto, como sera discutido no final do capitulo, nem sempre é facil distinguir esse tipo de relacao inferencial da relagdo inferencial explicativa entre sentengas, por exemplo. Uma preciso terminolégica importante acerca das inferéncias deve ser mencionada. Alguns autores distinguem entre relagées de consequéncia légica (em vigor nos argumentos dedutivos) e relagdes de inferéncia (em vigor somente nos argumentos indutivos). Nio seguirei essa distingao neste livro. A explicitacio da relacio entre sentengas em um argumento dedutivo como “consequéncia légica” supée a andlise meramente formal desse ultimo, isto é, andlise de relacdes derivadas da forma proposicional purificada de referéncias a contextos concretos de uso. Nao é esse ponto de vista puramen- te légico-formal que assumirei, assim como nao era aquele de uma investigagao “psicolégica” dos argumentos. Expor as relagdes de consequéncia légica é uma tarefa da légica formal, que se concentra, por assim dizer, na “contraparte abstrata da justificagao ¢ explicacio”, conforme a expressao de David Sherry? Interessa, nesse tipo de andlise formal, estabelecer relagdes validas entre formas proposicionais, o que muitas vezes leva a resultados paradoxais bem distantes das praticas argumentativas em situagdes concretas. Desse ponto de vista, a expli- citacdo das relagdes de consequéncia l6gica nao é identificdvel & andlise das estruturas argumentativas utilizadas para justificar uma conclusio duvidosa em contextos concretos de discussio. Na verdade, a légica formal esté muito mais préxima de um tipo de célculo geral do que de um estudo do uso de argumentos em situagdes concretas. De minha parte, interessa explicitar os componentes dos argumentos enquanto estruturas lingufsticas utilizadas em contextos de discussao racional tendo em vista a sustentagdo de teses nao obvias. Essa abordagem dos argumentos implica examinar tépicos que excedem 0 escopo da légica formal, conforme j4 notado na introdugao deste livro. Dessa maneira, prefiro nomear 0 aspecto relacional das sentengas (mesmo no caso de argumentos dedutivos) de “inferéncia”, e nio de “consequéncia légica”. Sem divida, espero preservar a especificidade das relacdes inferenciais entre as sentencas; mas quero também sugerir que no tipo de andlise aqui em vista esse tema ndo esté completamente apartado de outros que devem compor a compreensao do funcionamento dos argumentos em seus contextos de uso (por exemplo, a aceitabilidade das premissas, ? SHERRY, D. “Formal logic for informal logicians”, art. cit, p. 203. an 18 Introduce a anélise argumentativa 0 uso de definigdes adequadas para a situacdo em vista etc.). Assim, ao tratar da relacdo entre as sentengas, nao tenho em vista uma andlise em termos de pura consequéncia légica. A relagio entre as sentencas é somente #m componente da estrutura argumentativa concreta. Dai a énfase no termo geral “inferéncia” (mesmo no caso dos argumentos dedutivos), com o qual distingo apenas um elemento no interior de um conjunto tematico complexo, o argumento, 0 qual se cumpre analisar em todos os seus aspectos constituintes, nado bastante ter revelado sua forma abstrata. Neste livro, vou me servir da nogao de inferéncia nesse sentido amplo de um componente dos argumentos concretos, € englobarei por meio dela tanto as relacdes de consequéncia dedutivas como as passagens l6gicas indutivas, embora, obviamente, seja preciso qualificar as diferencas entre ambas, tarefa do proximo capitulo. Movimento inferencial e expressao discursiva £ importante acentuar, conforme mencionado hé pouco, a relativa independéncia do movimento inferencial quanto 4 expressao dos discur- sos argumentativos em linguagem natural. Com efeito, uma caracteristica marcante das inferéncias argumentativas é a sua unidirecionalidade, e isso nem sempre se exibe de modo claro nas formulagées dos argumen- tos em linguagem natural. Quanto a essa caracteristica, deve-se notar: o movimento inferencial argumentativo sempre parte das premissas para chegar até a conclusao. Essa é a passagem légica constituinte dos argumentos: as premissas sio assumidas e com base nelas espera-se sustentar racionalmente a conclusao. E somente por meio dessa ordem que os argumentos operam; as inferéncias sempre sio langadas a partir das premissas para a conclusao em vista. Ocorre que nem sempre as formulacSes argumentativas em linguagem natural respeitam essa ordem légica. Consideremos alguns exemplos para exibir essa disparidade: © fi claro que no vai chover hoje. Hé poucas nuvens no céu. FE nenhuma previsio meteoroldgica considerou essa possibilidade. Nesse caso, a primeira sentenga é defendida com base naquilo que é yeiculado nas outras duas. A conclusio é, dessa maneira, apresentada ja de inicio, antes mesmo que as razdes para sustenté-la sejam formuladas, © que é bastante comum nos discursos argumentativos cotidianos. No entanto, é somente por meio dessas razSes que a conclusio se estabelece de modo legitimo. Assim, quanto ao movimento inferencial, esse argu- mento opera de forma invertida a sua formulagao discursiva. Estrutura basica e uso dos argumentos 19 oe Vejamos outro exemplo: * Vocé tem poeira vermelha nos sapatos. Quer dizer ento que voc? foi aos Correios agora pela manhi, pois eles estio reconstruindo a calgada em frente & agéncia e a poeira resultante da reforma é bem avermelhada. Nao hf obviamente nenhum outro lugar em reforma préximo daqui ao qual voc? possa ter ido. Nesse exemplo, a conclusio (“vocé foi aos Correios agora pela manh&”) nao est4 nem no inicio nem no fim do discurso. Ela se encontra entre outras sentencas que funcionam como premissas para sustenté-la. Como se vé, nos discursos argumentativos em linguagem natural, nem sempre ha uma sequéncia dbyia entre premissas e conclusio, 0 que Por vezes torna confusa a compreensio das relagdes Idgicas ali vigentes. Esse é um dos motivos basilares para se dedicar ao estudo da anilise argumentativa. E comum que a ordenagio das sentengas em linguagem natural no exprima a sequéneia inferencial ali operante, e, para com- preender ¢ avaliar com cuidado essa tiltima, alguns recursos técnicos se fazem imprescindiveis. Fungio geral dos argumentos Nesta se¢io, proponho explorar minimamente o Ambito de uso dos argumentos, uma vez, que a compreensio de suas fungdes permitira langar nova luz.aos seus elementos estruturais. Notemos que o principal papel desempenhado pelos argumentos é oferecer sustentacio racional para uma tese. Essa simples formulagao ja permite vislumbrar algumas caracteristicas marcantes dos componentes dos argumentos. As teses que figuram como conclusées, se justamente carecem de justificativa para serem veiculadas como aceitaveis, nao sto antoevidentes, quer dizer, elas ndo se atestam por si prdprias de modo imediato. Conforme o exemplo acima, se simplesmente se anuncia que nao choverd hoje, sem nada se acrescentar a essa afirmacio, ela soa como uma previso temerdria. A meteorologia geralmente envolve situagdes muito incertas, e qualquer afirmagio nao Sbvia exige o apelo aalgum tipo de dado ou evidéncia que ofereca justificativa para o que se quer defender, © ambito das previsdes meteorolégicas é, assim, exemplar para caracterizar um aspecto estrutu- ralmente constituinte dos argumentos. A sua construgio e veiculacio se aplica a contextos em que hé dtivida, incerteza, ou em que as opinides e crengas sustentadas so passiveis de aperfeicoamento mediante discus sio ou a consideragao de novos dados. Em suma, é preciso argumentar quando uma tese nao se impée de modo imediato e incontestavel, seja an 20 Introducdo a anélise argumentativa Porque nao se sabe exatamente qual é a situagSo que se confronta, seja porque nio se aceita de modo pacifico certo entendimento da situacao em pauta. Assim, as teses que atuam como conclusées em argumentos exprimem opinides, crengas, sugestdes, hipdteses que nao sio, ao menos no contexto de discussio em vista, imediatamente evidentes. Aquilo que € passivel de figurar como conclusio de um argumento, e que chamo aqui genericamente de tese, nao se impde de modo pacifico como certo ou seguro, mas exige algum tipo de sustentagio que garanta a sua aceita~ bilidade. A argumentacio nao é sendo um meio de oferecer sustentag3o para teses nao imediatamente evidentes. Essa caracterizacio inicial do uso da justificagio racional deve nos levar a reconhecer que muitos contextos cotidianos ndo estdo abertos, senao excepcionalmente, 4 argumentacio. Os relatos de percepgao imediata, as normas bésicas da linguagem, os fatos histéricos ampla- mente reconhecidos, certas regras de convivio social tradicionalmente praticadas, nada disso aparece, na maior parte das vezes, como duvidoso ou nio evidente. Pelo contrario, nossa vida comum se desenrola sobre um amplo horizonte de obviedades nao questionadas, sobre as quais construimos nossos projetos pessoais e coletivos. Normalmente esse horizonte de sentido nio é problematizado, e sim pressuposto para interagSes sociais complexas, entre as quais se destacam as discussdes argumentativas, no interior das quais, por exemplo, discutem-se acon- tecimentos inesperados, ocorrem disputas sobre crencas incompativeis, apresentam-se propostas de agdes com riscos dos mais diferentes tipos, possibilidades de decisao sio sopesadas etc. As ocasides para argumentar nao precisam ser esporddicas ou desconexas. Em muitas sociedades, instituem-se praticas comunicativas especializadas em argumentos, as quais requerem uma formacao especi- fica. Assim, por exemplo, os sistemas juridicos preveem que defensores e acusadores tentem estabelecer racionalmente a aceitabilidade de suas teses acerca dos casos julgados. Articulistas de jornais tentam exprimir opinides fundamentadas acerca dos t6picos analisados etc. Vale notar que em alguns contextos especializados de discussio argumentativa, tais como aqueles filos6ficos ¢ cientificos, é cabivel problematizar o proprio horizonte habitualmente tomado como dbvio na maior parte das situ- agées vividas. Nesses contextos de discussio, aquilo que comumente nao é tema para a argumentac&o cotidiana e sim pressuposto para 0 seu funcionamento’ pode ser questionado e tornar-se entio passivel de * Por exemplo, que a percepeio nos apresenta o mundo, que as outras pessoas existem da mesma forma como eu existo, que nos comunicamos sem problemas incontorniveis por meio da linguagem etc. Estrutura basica e uso dos argumentos. 21 oe discussdes argumentativas bem especificas. Mesmo nesses casos, para discutir a aceitabilidade de certo componente do horizonte de sentido de nossa inser¢3o no mundo, deve-se ainda assim assumir outros com- ponentes como nao problemiticos. Parece improvavel que se possa por em diivida simultaneamente todos os elementos do horizonte de sentido do nosso viver (a percep¢ao, a linguagem, as relagGes sociais etc.). Afinal, se no ha uma base minimamente aceitavel da qual as consideracdes devem partir, entdo nao ha nem mesmo critérios para distinguir 0 certo do duvidoso, 0 aceitavel do criticavel. Nio cabe aqui discutir as questdes céticas e possiveis respostas envolvidas nesses casos extremos, mas salientar que cabe argumentar somente acerca de temas que sao apresentados como duvidosos, nao imediatamente aceitiveis como dbvios. Ademais, para que a argumen- taco opere corretamente, é preciso pressupor um ponto de partida de dados nao discutidos, tomados, ainda que apenas contextualmente, como certos ou ao menos aceitdveis. Esse tépico nos permite qualificar outro elemento estrutural dos argumentos, as premissas. Vimos que as conclu- sdes sio normalmente sentengas que exprimem um contetido duvidoso ou ao menos nao evidente e nao estabelecido de modo definitivo. Ora, no caso das premissas, 0 que se espera é praticamente o contrério. As premissas, a0 menos as bésicas, operam como os pontos de partida dos argumentos e devem, para tanto, ser consideradas como verdadeiras ou ao menos aceitaveis para aqueles envolvidos na situacao argumentativa em questao. Em suma, as premissas devem exprimir dados seguros, que nao estejam sujeitos a discussao, ao menos naquele contexto particular. Comumente esses dados referem-se aquilo que factualmente compde o mundo conhecido, ou as crengas gerais consideradas aceitaveis sobre 0 tema discutido, bem como aquelas que exprimem os critérios de ava- liagdo para o dominio da discussio em curso. Por isso eu insisti em que argumentar é uma interacao social complexa que supée um horizonte de “certezas” nio problematizadas. E a partir desse horizonte composto por diferentes camadas tematicas que a argumenta¢ao progride. As pre- missas devem ser tomadas como minimamente seguras para que, a partir delas, seja possivel sustentar racionalmente aquilo que figura como nao evidente, a saber, a conclusio em vista. E importante precisar que, no sentido apresentado acima, 0 horizonte de sentido é nao s6 um conjunto de teses, mas também de certas capacida- des subjetivas assumidas pelos participantes de uma discussao racional (0 uso correto da linguagem, as normas légicas de construgao de argumentos etc.). No geral, esse conjunto tematico de que o horizonte de sentido se compée vigora como pressuposto partilhado pelos participantes de uma discussio. Somente quando hd dtivida acerca de até onde se estende esse

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