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Copyright © 2000 by Alberto Manguel “Tiel original Reading Petr A History of Love and Hate Canadian Deportiment of Forel Afoirs and Intemational Trade Capa Jodo Boptista da Costa Agular fncdice remiss: Maria Claudia Carcatho Matos Prepares Casio de Arantes Lette Revie: Batre de Freitas Moreira ‘Ana Maria Berose Drm acm Ba to Mangels enio 3 bene Pred, Roars Baie ch Sn Ce sgont Rocpdoveul Ta manpage 3009 ‘Todos os ditetos desta edigto reservados 3 ua Bandletra Palisa, 702, ¢} 92 ‘04532-002 — Sa0 Paulo — sr ‘Telefone (11) 3707-3500 Fag (11) 8707-3501 swoncompanhiadasletras com be PARA CRAIG STEPHENSON ‘Ah, para onde haveremos de ir quando o grande dia chegar, Com o ressoar das trombetas ¢ 0 ribombar dos tambores? handler Harris, Uncle Remus Joel we Apintura deve desafiar o espectador [...]¢ 0 spectator, surpreen- dido, deve ir a0 encontro dela como se entrasse em wma conversa Roger de Piles, Cours de peinture par principes, 1676 “Mas, sobre obras de arte, pouco se pode dizer Robert Louis Stevenson, Books Which Have Influenced Me, 1882 final, toda imagem é uma histéria de amor e édio quando lida do ‘ingulo corre. Tanpalda Salae-Nianor, Espeja de las artes, 1730 sUMARIO Agradecimentos O espectador comum: A imagem como narrativa Jou Mitchell: A imagen como auseneta Robert Campin: A imagem como enigma ‘Tina Modott: A imagem como testemunho Lavinia Fontana: A imagem como compreensiio Marianna Gartner: A imagem como pesadelo Fildxenos: A imagem como reflexo . one Pablo Picasso: A imagem como violgneia Aleijadinho: A imagem como subversio.. .. . « Claude-Nicolas Ledo imagem como filosofia Peter Eisenman: A imagem como meméria Caravaggio: A imagem como teatro Conclusio Notas Créditos das ilustragies Indice remissivo 287 sil - 317 . 343 349 AGRADECIMENTOS Ha wma travessia pelo norveste remo 20 mundo intelectual. Laurence Sterne, A vida 0 as opinidies do cavalheiro Tristram Shandy Sou um viajante inquisitive ¢ caético, Gosto de descobrir lugares ao acaso, por meio de qualquer imagem que esses locais tenham a ofere- cer: paisagens e prédios, cartdes-postais ¢ monumentos, museus e gale- rias que abrigamn a memoria iconogrfiea de um lugar. Assim como addo- ro ler palavras, adoro le: cxplicita ou secretamente entrelagadas em todos os tipos de obras de arte — sem, contudo, ter de recorrer a vocabulérios areanos ou esotéri- se a partir da necessidade de reivindi idade ¢ 0 gens, ¢ me agrada descobrir as hist6rias cos. Este livro desenvolve para os espectadores eon direito de ler essas imagens Minha ignorncia de culturas mais vastas limitou meus exemplos & arte ocidental, da qual selecionei certo niimero de imagens pintadas, fo- ‘tografudas, eseulpidas e edificadas — que ache1 especialmente assom- brosas ou sug imagens; 0 aeaso, atrativos particulares ¢ a suspeita de uma histéria in- teressante me impeliram a escolher aquelas que agora compdem este li vro, Nao busquei inventar ou descobrir um método sistemitico de ler imagens (como aqueles propostos por grandes historiadores da arte, co- mo Michael Baxandall' ou E. H. Gombrich’). Minha tinica desculpa é «que nio fui guiado por qualquer teoria da arte, mas simplesmente pela curiosidade. Minha propria ¢ frigil habilidade para ler imagens, fora de académicos e de teorias criticas, foi posta & prova em um niimero de instituigdes que gentilmente abriram suas portas para tm amador. En- tre elas, devo agradecer a Lynne Ku Sherry-Ame Chapmaan, no Museu Glenbow em Calgary, Alberta: Ca- ns, como eu mesmo, a respon cessas historias. tivas. Eu poderia ter escolhido um punhado de outras silos nn 12 rol Phillips, no Centro Banff de Artes em Alberta: Kay Rader, na Biblio~ teca Americana, em Paris; Simone Suchet, no Centro Cultural Cana- . Anthea Peppin, Rebecca MeKie, Kathy Adler e Lome Campbell, na Galeria Nacional, em Londres; ¢ a profes Roth, no Mills College, em Oakland, Califémia, Peter Timms aceitou ‘uma primeira versio de meu eapitulo sobre Caravaggio para publicar na Art Monthly, Melbourne; Karen Mulhallen publicou versoes inictals de meus capittlos sobre Picasso ¢ Marianna Gartner em Descant, To- ronto; muitos anos atras, Barbara Moon public nha primeira visita ao Are-ct-Senans em Saturday Night, Toronto: a to- dos 0s trés, mou agradecimento por sua confianga Tm texto umm pouico diferente sobre o monumento do Holocansto, em Berlim, veio a pibli- revista Sinn und Form, Berlim, gragas aos bons offeios de Joachim Meinert, bem como em Svenska Dagbladet, Estocolmo, gragas a An ders Bjomnsson, e na revista Nexus, da Universidade Tilburg, na Holan- da, a pedido de Rob Riemen e Kirsten Walgreen. O Programa Mark- Flanagan da Universidade de Calgary me ofereceu um ano de apoio financeiro, tempo durante o qual eserevi parte deste livro: por sua ajuda generosa, som sinceran v sensatos, infelizmente nem sempre acatados. Minha cara amiga ¢ edito- ra muito sofrida, Louise Denys, formulou todas as perguntas certas ¢ ime fer, voltar atrs sempre que eu me havia afastado demais do leitor; tninhas editoras, Liz Calder, Marie-Catherine Vacher ¢ Lise Bergevin ine ofereceram comentarios estimulantes ¢ inteligentes; Alison Reid donse, em P: ora Moira tum relato sobre a mi- grate, ios amigos ¢ colegas leram o manuserito ¢ me deram conselhos corrigiu 0 manuscrito com o olho de um miniaturista meticuloso; 0 indi- ce € 0 trabalho manual de Barney Gilmore — a es obrigado; John Sweet Vauthier, cuja andlise ¢ was provas com sugacidade e cuidado; Simone Jarecedora da minha Histéria da leitura reve Jou-se fundamental, foi persuadida a prestar a este novo livro o mest impe destreza através dos dédalos do barroco brasileiro; a professora Stefania Biancani fez.a gentileza de ler meu capitulo sobre Lavinia Fontana: Dieter Icin providenciou para mim informagdes copiosas sobre o de- bate acerca do monumento do Holocausto; Gottwalt ¢ Lucie Pankow :ne proporefonaram, além de hospitalidade amistosa, bibliografia recOn- dita; Deirdre Molina, da Knopf, Canad, mostrou-se inestimivel ao ras- trear os detentores de direitos de reprodugio: a todos eles, meu sineero cl servigo inquisitorial; Lilia Moritz Schwarez.guiou-me com _ obrigado. E, como de habito, minha gratidao para Bruce Westwood e a ipe do Westwood Creat ‘Toronto, para Derek Johns na A. P, Watt, em Londres, ¢ para Michelle Lapautre, em Paris Comecei este livro pensando que escreveria sobre nossas emogdes & como clas afetam (c sto afetadas por) nossa leitura das obras de art. ia imaginado. Laurence Sterne afirmou com tanta propriedade, “acho Parego ter terminadlo longe, muito longe, do alvo que hi Mas, confor que hi nisso uma fatalidacle — raramente chego ao local para onde par- ti", Como escritor (e como leitor), ereio que esse, de algum modo, deve ter sido sempre 0 me ESPECTADOR cCOMUM A imagem como narrativa Toda boa histérta é, estd claro, wnu imayene e uma idéia, € quanto mais elas esti- verem entremeadas melhor terd sido a solucao do problema, Henry James, Guy de Maupassant Vincent van Cogh, Baron ia de Sainte Marit ‘ma das primeiras imagens de que me lembro, com plena e cigneia de ter sido criada sobre a tela e pintada por miio huma- foi um quadro de Vincent v des wh, de bareos de pesca so- bre a pra intes-Maries, Eu tinha nove ou deg a {que eta pintora, me convidara para ir ao seu atelié para conhecer 0 local onde ela trabalhava euma tia, Sra verdio em Buenos Aires, quente e timido. O pe- queno aposento estava frio e tinha um cheiro maravilhoso de terebinti- na e 6leo; as telas armazenadas, apoiadas umas nas outras, me pareciam livros deformados no sonho de alguém que soubesse vagamente 0 que cram livros € os muvesse imaginado enormes, feitos de uma tnica pigi- na, dura e grossa: 0s esbogos ¢ os recortes de jomal que minha tia havia pendurado na parede sugeriam um local de pensamentos particulares, fragmentados ¢ livres. Em uma estante de livros baisa, hs grandes de reprodugies coloridas, a maioria publicada Skir inimo de exceléncia, Minha tia purou o volume dedicado a van Gogh, acomodou-me em uma poltrona € pos o livro sobre os meus joelhos. A maioria dos meus livros tinha ilustragdes que repetiam ou explica vam a histéria. Algumas, eu sentia, eram melhores do q preferta as reprodugoes de aqquarelas, da minha ediguo ale tos de fada de Grimm, as ilustragdes a nanquim da minha edigio ingle- sa. Greio que, a meu juizo, aquelas ilustragées condi ow ui hugar, ou forneciam ais detalhes para completar minha visio daquilo que a pigina me di- a firma sufga nome que, para ela, era si seguida, deixo outras: eu it dos Con- 1m melhor com a forma como eu imaginava um personage 20 via estar acontecendo, realgando ou corrigindo as palavras. Gustave Flaubert opunha-se de forma intransigente A idéia de ilustragdes acom- panharem as palavras. Ao longo da sua vida, re que na obra sua porque achava que imagens pict6rieas reduziam 0 universal ao singular. “Ninguém jamais. vai me ilustrar enquanto eu estiver vivo", escreven ele, “porque a des ou-se a admit qualquer ilustragio acompanhasse u crigio literria mais bela é devorada_ pelo mais reles desenho. Assim que um personagem ¢ definido pelo lipis, perde seu cariter geral, aquela concordineia com milhares de outros objetos conhecidos que le- vao leitor a dizer: ‘eu ja vi isso’, ou ‘isso deve ser assim ou assado’. Un mmuther desenhada aki portan- tu, cold cncerreda, completa 0, 20 tornamn ind teis, a0 passo qu de mulheres diferentes. Por conseguinte, uma vez que se trata de uma questio de estética, eu formalmente rejeito todo tipo de ilustragio.”* ‘Nunca concordei com essas segre inflexiveis. ‘Mas as imagens que minha ipresentou naquela tarde nfo ilustravam nenhuma historia, Havia um texto: a vida do pintor, fragmen- », que nio Ii senio muito mais tarde, o titulo das pinturas, sua data @ local Mas, em nim sentida muita categhrica, parece uma mulher, ¢ s6 isso. A idé todas as palavras, uma mulher apresentada por ese tos das cartas ao seu irma aqutlas imagens se roan ham isoladas, desafiadoras, me aliciando para uma leitura. Nada havia para eu fazer exceto olhar para aquelas ima- gens: a praia cor de cobre, o barco vermelho, 0 mastro azul. Olhei pa elas demorada e atentamente. Nunca as esqueci. A praia multicolorida de van Gogh vinha 2 tona com freqiléncia na a. Em algum mome século Xvi, 0 as imagens que o mundo dispée diante de nds jf se acham encerradas ‘em nossa meméria desde o naseimenta. “Desse modo, Platao tinha a concepgao”, escreveu ele, “de que todo conhecimento nao passava de recordagao; do mesmo modo, Salomiio proferit toda novidadle ndo passa de esquecimento.”* Se isso for verdade imaginagio da minha infa a conclusao de que estin- mos todos reflet dos de algum modo nas numerosas e distintas images {que nos rodeiam, uma vez. que elas jé sio parte daquilo que somos: ima gens que © gens que emolduramos; imagens que compo- mos fisicamente, & mao, € imagens que se formam espontaneamente na imaginagiio; imagens de rostos, drvores, prédios, nuvens, paisagen trumentos, gua, fogo, e imagens daquelas imagens — pintadas, escu pidas, encenadas, fotografadas, impressas, filmadas. Quer deseubramos nessas imagens circundantes lembrangas desbotadas de uma beleza que, em outros tempos, foi nossa (como sngeriu Plato), quer elas exi- n de nds uma interpretagio nova e original, por meio de todas as pos- ilidades que nossa linguagem tenha x oferecer (como Salomao in- tuiu), somos essencialmente criaturas de imagens, de figuras, \s imagens, assim como as histérias, nos informam.Aristételes su- 9 geriu que todo processo de pensamento requeria imagens, “O concerne & alma pensante, as imagens tomam o lugar das percepgdes diretas; e, quando a alma afirma ou nega que essas imagens sio boas ou mis, ela igualmente as evita ou us persegue.|Bortanto a alma nunca pen- sasem uma imagem mental.”’ Sem diivida, para 0 eego, outras formas de pereepyau, soletuy por eis do som © do tao, suprem a tinagem para aqueles que podem ver, a exist iagens que se desdobra continuamente, ima~ noderadas pelos outros senti- ado (ou suposigao de significado) varia cons- no que mental a ser decifrada, Ma cia se passa em um rolo de gens capturadas pela visio e realgadas ou dos, imagens eujo signif tantemente, configurando 1 Hinguagem feita de imagens traduzidas em palavras ¢ de palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa prépria existéncia [As imagens bolos. sina, mensagens e alegorias. (Ou talvez sejam apenas presengas vazias que comple so desejo, experiéneia, questiona- nto e remorso. Qualquer que seja ‘caso, as imagens, assim como as adj, de A Breton, pts Pail obs palavras, sio a matéria de que somos cal feitos. Mas qualquer imagem pode ser lida? Ou, pelo imagem? nos, podemos leitura para qualquer oie Chaos se for assim, toda ima. see Polc gem encerra uma cifra simples- (ge gt. mente porque ela parece a nés, ona seus espectadores, um sistema an- iente de signos e regras? Qualquer imagem admite tradugiio em uma linguagem compreensivel, reve demos chamar de Narrativa di ‘As sombras na parede da caverna de Plato, os letreiras de néon em to-suf ndo ao espectador aquilo que po- sulo? 22 so \W ‘um pais estrangeiro cuja lingua nao falamos, o formato de uma nuvem que Hamlet ¢ Polonio véem no céu, certa tarde, o letreiro Bois-Char bons que (segundo André Breton) se Ié Police quando visto de determi- nado Angulo, a escrita que os antigos sumérios acreditavam poder ler nas pegadas dos paissaros sobre logicas que os astrénomos gregos identificavam, pontos assinalados por estrelas distantes,jo nome de Ali que o fiel vis- lumbrou num abacate aberto e no lagotipa dos artigos esportivos da Ni ke, a escrita ardente de Deus na parede do pakicio de Baltaz lama do rio Eufrates, 6 figuras mito- ¢ livros que Shakespeare encontrou em pedras ¢ em regatos, as eartas do tard por meio das quais 0 viajante de Calvino lia narrativas universais em Q.castelo dos dlestinas cruzados, paisagens e imagens identificadas por viajantes do séeulo xvin nos veios de pedlras de marmore, o bithete rasgado de um quadro de avisos ¢ realojado emi uma pintura de Tapies, o rio de Heraelito que 6 também o fluxo do tempo, as folhas de ch no a qual os sbios chineses acreditam poder ler nos- fundo de uma xiea sas vidas, 0 vaso estithagado do Sahib Lurgan que quase se reeompoe por inteiro diante dos olhos inerédulos de Kim, a flor de T parede gretacla, os olhos do eo de Neruda nos quais o poeta descrente via Deus, 0 He kohau rongorongo, ou “pau que fala”, da ilha da Pascoa, que sabemos guardar uma mensagem indecifrada até hoje a cidade de Buenos Aires que, para o cego Jorge Luis Borges. era “um mapa de mj- thas iuminagoes ¢ de meus fracassos”, os pontos de costura na roupa ‘de Kisima Kamala, alfainte de Serra Leoa, nos quais ele vin o futuro al- fabeto da escrita mandé, a baleia errante que so Brendan tomou por ‘uma ilha, 0s trés picos das Montanhas Rochosas que delineiam © perfil de Gs irmas contra o e¢u ocidental do Canad, a yeografiafloséfica de uum jardim japonés, os cisnes selvagens em Coole, nos quiais Yeats deci. frou nossa transitoriedadle — tudlo isso oferece ou sugere, ou simples- mente comporta, uma leitura limitada apenas pelas nossas aptiddes. Ce imenso mundo de pruzer, vedado por nossos cinco sentidos?”, indagou William Blake.’ Se a natureza e 0s fiutos do acaso sio pass > em pa que construimos a partir de virios sons e rabiseos, entao talve Jomo saber se ar niio é io, de 1 vis de interpre io absolutamente a trad wwras comuns, no vocab 0s permitam, em troca, a construgao de um acaso ecoado e de uma natureza espethada, um mundo paralelo de palavras ¢ imagens mediante @ qual podemos reconhecer a experiéncia do mundo que cha. on da Mo tunasias de veal, “Pode ser chocante na Lisa como uma autora de um livro inco- mum sobre o si -ado da beleza, “visto serem eles tio desprovidos de ow alguém, ‘edentes, porém 0 mundo recorda o fato de que n A criagio dessas obras e permanece silenciosamente pre- pus qe fa © misters He ohaw ds Ps, a4 reeém-nascido.”* Ao que podemos acrescentar que objeto recém-nascido pode, por sua vez, dar origem a uma mirfade de objetos recém-naseidos — as experiéncias receptivas do espectador ou do leitor — que, todos e cada um deles, também 0 contém. Quando eu tinha catorze ou quinze anos, nosso professor de hi ria, que nos mostrava slides de arte pré-histérica, nos pediu que imagi- ndssemos o seguinte: durante toda a sua vida, um homem vé o sol s pr, cieute de cfelivo de umn deus cujo nome sua tribo ndo pronuncia. Certo dia, pela primeira vez, o homem ergue a ca- bega e, subitamente, com toda a clareza, vé o sol de fato mergulhar em umn lago de chamas. Em resposta (¢ por razjes que ele nao tenta expli- car), o homem afunda as mos na lama vermelha ¢ pressiona a palma das maos de encontro a parede da sua caverna, Apés um tempo, outro homem vé as marcas da palma das mos e se se atemorizado, ou co- movido, ou simplesmente curioso e, em resposta (¢ por razBes que ele nao tenta explicar), se poe a contar uma hist6ria, Em algum local dessa rrativa, niio mer ionado mas presente, encontra-se antes de tudo tes do cair da por-do-sol contemplado o deus que morre todo dia, noite, ¢ 0 sangue desse deus derramado pelo céu ocidental. A imagem dé origem a uma histéria, que, por sua vez, dé origem a uma imagem. *O consolo do diseurso”, disse o melaneélico filésofo Soren Kierkegaard (e poderia ter acrescentado, “e de criar imagens”), “é que ele me traduz para o universal."* istem_no tempo, ¢ as imagens, no es- pago. Durante a Tdade Média, um tinico painel pintado poderia repre sentar uma seqiiéncia narrativa, incorporando o fluxo do tempo nos li- mites de um quadro espacial, co- mo ocorre nas modernas hist6rias em quadrinhos, com 0 mestno per- sonagem aparecendo varias vezes fom uma paisagem unificadorn, § medida que ele avanga pelo enre- do da pintura. Com o desenvalvi- mento da perspectiva, na Renas- cenga, os quadros se congelam em tum instante nico: 0 momento da visio tal como pereebida do ponto de vista do espectador. A n ( entio, passou \ outros meios: medi smo, poses dra ‘Ao contrario das imagens, as palavras escritas fluem constantemente para além dos limites da pigina: a capa e a quarta capa de um livro nao cestabelecem os li mo um todo fisico, mas apenas em fragdes ou resumos. Podemos, com um rapido esforgo do pensamento, evocar um verso de “The Rime of the Ancient Mariner” ou um resumo de vinte palavras de Crime e cast ga. raas nio os livros inteiros: sua existéncia repousa na estével corrente de palavras que os encerra, a qual flui do inf ites de um texto, que nunca existe integralmente co- cio até o fim, da capa até a quarta capa, no tempo que concedemos & leitura desses livros. As imagens, porém, se apresentam 2 nossa consciéneia instantanea- mente, encerradas pela sua moldura — a parede de uma eaverna ou de um muscu — em uma superficie espeeffica. Os botes de pesca de van Gogh, por exemplo, foram para mim, naquela primeira tarde, pronta- mente reais e definitivos {Com o eorrer do tempo, podemos ver 1 ‘menos coisas em uma imagem, sondar mais funo.e descobrir mais de- ir ¢ combinar outras imagens, cmprestar-The palavras para contar o que mesma, uma Image es ‘que ocupa, independente do tempo que reservamos para contempli 6 virios anos mais tarde fui notar que um dos botes tinha 0 nome Ami- 1ié pintado no casco. Mais tarde, também, vim a saber que, em junho de 1888, van Gogh, que estava em Arles, caminhara o longo percurso Marcas préintérics keen wa de sai, pero dle Santer, span até Saintes Maries-de- de toda a Europa ain tes-Maries, ele fez. desenhos de bote cesses desenhos em pinturas. Foi a primeira Tinha 35 anos. Seis meses depois, cortaria sua orelha esquerda para dar de presente, embrulhada em uma folha de jornal, para uma prostituta de um bordel préximo. Para mim, todas essas informagdes vieram mais tarde — os pormenores, os detalhes geograticos, a cronologia, 0 inci- dente da orelha amputada, que, a exemplo do efrculo 2 mio livre traca- do por Giotto ou do pincel que o rei Carlos v apanhou para Tieiano, fa- in parte da histGria convencional da arte que nos era ensinada na escola de forma graciosa — e clas apoiaram ou questionaram a validade da mi- ‘hu primeira leitura, [Mas no inicio nfo havia nada, exceto a prépria pin tura. E desse ponto fixo no espago que partinos. Historias ¢ comentarios, legendas e catélogos, museus temiiticos © livros de arte tentam guiar-nos através de escolas distintas ¢ de pafses distintos. Mas aquilo que vemos quando percorre- ‘mos as salus de uma galeria, ou quando eontemplamos imagens em uma tela, ou quando seguimos as paginas sucessivas de um volume de repro- dugées, termina por escapar de tais inibigdes. Vemos uma pintura como algo defimdo por scu contexto; podemos saber algo sobre o pintor e so- dreo seu mundo; podemos ter alguma ideia das infnéngias que molda- tam sua visio; se tivermos consciéneia dogthaeronisma.podemos ter 0 cuiidado de niio traduzir essa visio pela nossa — mas, no fim, © que ve- nos ndo é nem a pintura cm seu estado fixo, nem aprisionada nas coordena © que vemos é a pintura traduzida nos termos da nossa propria ex. periéncia. Conforme sugeriu, infelizmente (ou felizmente) 86, juilo que, em algum feitio ou forma, nds je vimos antes, $86 podemos ver as coisas para as quais ji possufmos imagens identifies ‘eis, assim como 86 podemos ler em uma Kingua cuja sintase, gramatica e voeabulirio ja conhecemos. Na primeira vez. em que vi os botes de pesea de van Gogh, coloridos de forma radiante, algo em mim reconhe cou algo espelhado neles. Misteriosamente, toda imagem supe que en aveja Quando lemos imagens — de qualquer tipo, sejam pintadas, escul- pias, fotografadas, edifieadas ou encenadas —, atribuimos a elas 0 ca- riter temporal da narrativa, Ampliamos © que é limitado por uma mol- dura para um antes © um depois e, por meio da arte de narra histéras (sejain de amor ou de div), ev infinita ¢ inesgotivel {André Malraux)que participou tio ativamente da vida cultural e da vida poltica Tra tmancista e ministro da Cultura pioneiro na Franga), argumentou com lucidez.que, ao situarmos uma obra de arte entre as obras de arte criae stintas, de 6pocas ma obra de arte estabelecidas pelo museu para nos guiar. sutdvel wna vida ms A imagen i sa no s6eulo xx (como soldado, ro~ das antes e depois dela, n6s, os espectadores modernos, tornsivamo-nos (5 primeiros a ouvi ‘canto da metamorfo- wquilo que ele chamou se”— quer dizer, o didlogo que uma pintura ou uma escultura trava com ‘outras pinturas e esculturas, de outras eulturas e de outros tempos. No passado, diz Malraux, quem eontemplava o portal esculpido de uma igreja gotica s6 poderia fazer comparacBes com outros portais esculpi- dos, dentro da disposiea imagens de esculturas do mundo inteiro (desde dituas da Suméria aquelas de Elefanta, desde os frisos da Acrépole até os tesouros de mérmore de Florenga) que falam par na drea cultural; n6s, ao contrario, temos 2 nossa conti lingua comum, de feitios e formas, 0 que permite que nossa reagiio ao portal gético seja retomada em mil outras obras esculpidas. A esse pi cioso patriménio de imagens reproduzidas, que esté A nossa disposigio na pagina e na tela, Malraux chamou “museu imaginario” * Enoen into os elementos da nossa resposta, 0 vocabulério que em pregamos para desentranhar a narrativa que uma imagem encerra (: jam os botes de van Gogh ou o portal da Catedral de Chartres), sto de- terminados nio s6 pela iconografia mundial mas também por um amplo cespeetro de cireunstaneias, sociais ou privadas, fortuitas ou obs Gonstruimos nossa narrativa por meio de ecos de outras nar alias por meio da ilusiio do auto-reflexo, por meio do co histérico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da ilu- minagao, dos eseriipulos, da ingenuidade, da compaixao, do engenh fenhiuma narrativa suscitada por uma imagem é definitiva ou exclusiva, edidas para aferir a sua stoza variam segundo as mesmas eir- cunstancias que dio origem & propria narrativa. Ao percorrer um mu= no século 1d.C., 0 amante re itado Encolpius vé as numerosas ima- gens de deuses pintadas pelos grandes artistas do passado — Zeuxis, Protégenes, Apeles —¢ exclama, em sua angistia solitaria mo os deuses nos eéus abalados pelo amor!”.* Encolpius reconhece nas cenas mitoldgicas que 0 cercam, e que represe amorosas do Olimpo, reflexos das suas préprias emogdes. As pinturas 0 ‘comovem porque parecem, metaforicamente, falar dele. As pinturas sio emolduradas pela sua apreensio ¢ pelas circunstanetas; elas agora exis tem no tempo de Encolpius ¢ compartilham o passado, o presente e 0 As obras tornaram-se antobiogritficas, 1m seu relato de uma visita a Florenga em 1817, desere- 0s efeitos do seu encontro com a arte italiana em termos que, mais fam as aventuras tornaram-se sintomiticos de uma doenga psicossomatica ) ticdvel, “Ao sair da igreja de Santa Croce”, escreveu ele, “senti pitagio no coragio. A vida se esvaia de mim enquanto eu eam tive medo de cain." A chamada sindsome de Stendhal afeta visitantes (sobretudo de paises da Amenca do Norte ¢ da Europa, exceto a Iuilis) que véem as obras-primas da Renascenga pela primeira ver." Algo nes- sas obras de arte colossais as assombra, ¢ a experiéncia estética, em In gar de ser uma experiéneia de revelagio e de conhecimento, torna-s¢ norteante, a autobiografia como pesadelo., A imagem de uma obra de arte este em algum Tocal entre percep- (Ses: entre aquela que o pintor imaginou e aquela que o pintor pés na. tela; entra aquela que podemos nomear e aquela que 0s contempori- neos do pintor podiam nomear; entre aquilo que lembramos e aquilo ¢gitica e simplest {que aprendemos; entre 0 vocabulirie camnm, adqnirido, de um mundo social, ¢ um vocabukirio mais profundo, de simbolos ancestrais e s tos. Quando tentamos ler uma pintura, ela pode nos parecer perdida em um abismo de incompreensio ou, se preferirmos, em um vasto abis- ‘mo que é uma terra de ninguém, feito de interpretagdes miiltiplas. O ceritico pode resgatar uma obra de arte até o ponto da re artista pode repudiar uma obra de arte ate o ponto da destruigao, Au- guste Renoir conta como, por ocasiio do seu regresso da Italia, em companhia de um amigo, foi visitar Paul Cézanne, que trabalhava no Midi. O amigo de Renoir teve um violento ataque de diarréia e pediv algumnas folhas para se limpar. Cézanne lhe oferecew uma folha de pa- pel. “Era uma das aquarelas mais perfeitas de Cézanne; ele a havia jo- gado no n vo, durante vinte sessdes.” magio; © das pedras depois de ter trabalhado nela como um esera- Leituras erfticas acompanham imagens desde o inicio dos tempos, ras nunea efeti Nao explicamos as imagens”, comentou com sagacidade o historiador daarte Michael Baxandall, “explieamos comentarios a respeito de ima- gens.” Se o mundo revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do ambito dessa obra, « ula de arte permanece sempre fora do ambito da sua apreci representacdes, 6 aquilo que ela em nds: apenas um artificio para co- ‘municar idéias, sensagées, uma vasta poesia, Toda imagem 6 um mun mente copiam, substituem ou assimilam as imagens. o critica, “A forma”, escreve Balzac, “em suas de luz, facultada por uma voz interior, posta a nu por um dedo celestial {que aponta, no passado de uma vida inteira, para as préprias fontes da expressio.”" Nossas imagens mais antigas sfo simples linhas e cores borradas. Antes das fignras de antflopes de mamutes, de homens a correr e de mulh das miios nas paredes di res férteis, riscamos tragos ou estampamos a palma nossas cavernas para assinalar nossa prese er um espago vazio, para comunicar uma meméria ou um para preet aviso, para sermos humanos pela primeira vez Por “mais antigas”, € claro, queremos dizer is novas”: aqnilo que fo visto pela primeira vez, no alvorecer mais remoto em nossa memn6- ria, quando essas imagens surgiram para nossos ancestrais puras © por= tentosa Jincia da eritica. Ou, talvez, nfo completamente livr Rudyard Kipling contaminadas pelo habito ou pela experincia, livres da vigh es, como suger ‘Quando 0 nubor de um sol nascente cain pela primeira vez no verte le mo dourado do Eden, Nosso pat Addo sentow-se sob a Arvore e, com um graveto, rscou (na argita E 0 primeino ¢tosco desenho que 0 mamdo vtu fot um jibilo para o [eoracao vigoroso desse homer, Até 0 Diabo cochichar, por trés da folhagem: “E bonito, mas sera (arte? Para o bem ou para o mal, toda obra de arte € acompanhada por sua apreciagio criti riticas, Algumas destas transformam. por seus proprios méritos: a interpretagio que Stephen Sondheim fez da pintura 1a Grande yaate, de Georges Senrat, os comentarios de Saricl Beckett sobre a Divina coméidia, de Dante, os comentarios musi Mussorgsky sobre as pinturas de Viktor Gartman, as leituras piet6 que Henry Fuseli fez de Shakespeare, as tradugies que Marianne Moo- re fez de La Fontaine, a versio de Thomas Mann da oewore snusical de Gustav Mabler. O romaneista argentino Adolfo Bioy Casares sugerin, certa vez, uma cadeia infinita de obras de arte e de comegar por um tnico poema do século xv, do poeta espanhol Jonge Mannique. Boy su agai de aan este pata» cone cde uma sinfonia baseada em uma pega sugerida pelo retrato de um tr dutor dos “Disticos sobre a morte de seu pai”, de Manrique. Cada obra «qual, por sua vez, dé origem a outras apreciagBes e, elas mesmas, em obras de arte, is comentarios, a ae de arte se expande mediante incontéveis camadas de leituras, ¢ cada lei- tor remove essas eamadas a fim de ter acesso A obra nos termos do pré- prio leitor. Nessa iiltima (¢ primeira) leitura, nés estamos s6s Ser capaz (e ter disposigio) de ler uma obra de arte € cructal, Em 1864, o eritico de arte inglés John Ruskin, reagindo com ira esclarecida contra 0 conformismo da sua época, proferiu uma palestra no Rushol- aplatéia por 10 dar bastante valor 4 arte e atribuir demasiada importincia ao di- nheiro. O propésito da palestra era convencer as pessoas eminentes de Rusholme da necessidace de uma boa biblioteca piiblica, coisa que me Town Hall, perto de Manchester, na qual repreend Ruskin considerava um servigo piblico essencial em qualquer cidade digna, no Keino Unido, Mas, no decorrer da sua argumentagio, Kuskin ficou cada vex mais inflamado e censurou violentamente as pessoas ilus- tres do local por haverem “desprezado a Ciéncia”, “desprezado a Arte”, “desprezado a Natureza”. “Eu afirmo que os senhores desprezara Arte! ‘Como, os senhores vio me retrucar. ‘Pois nao temos exposigdes de arte com milhas de extensio? E no pagamos milhares de libras por simples pinturas? E néo temos escolas de Arte o instituigées artsticas, ‘mais do que qualquer nagio jamais teve® Sim, 6 verdade, mas tudo isso existe em proveito do comércio, Os senhores se contentariam em ven- der quadros assim como vendem carvio, e porcelana assim como ferro; 6 senhores tomariam o pio da boca de todas as nag como niio podem fazé-lo, seu ideal de vida é postar-se nas avenidas, co- mo aprendizes de Ludgate, e herrar para todos os passantes: (O que The falta?" E como eles nao davam a minima para as obras da humanida- de e atribufam todo o valor ao lucro financeiro e ao estimulo da ganiin- s, se pudessem; cia, Ruskin thes disse que haviam se transformado em eriaturas que “desprezam a compaixio’, broncos ineapazes de se importar com os se- ‘melhantes. Como eram incapazes de ler as imagens que a arte tinha a hes oferecer, ele acusou seus contemporiineos de serem também mo- ralmente analfabetos. Ruskin nutria esperangas elevadas quanto 2 utili- dade da art. io sei se é possivel algo como um sistema coerente para ler as ima- gens, similar Aquele que eriamos para ler a escrita (um sistema implicito no proprio e6digo que estamos decifrando). Talvez, em eontraste com ‘um texto escrito no qual o significado dos signos deve ser estabelecido antes que eles possam ser gravados na argila, ou no papel, on atras de uma tela cletrOnica, 0 cédigo que nos habilita a ler uma imagem, con-

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