You are on page 1of 30
VERTENTES DEMOCRATICAS EM GILBERTO FREYRE E SERGIO BUARQUE VALERIANO MENDES FERREIRA COSTA INTRODUCAO Anténio Candido, relembrando o impacto da publica- cao de Casa Grande e Senzala e Ratzes do Brasil entre os intelec- tuais de meados dos anos 30, enfatizou a "radicalidade" politica e, acrescentaria, 0 empenho ideolégico, com que Gilberto Freyre € Sérgio Buarque de. Holanda se langaram na aventura de produzir uma reinterpreta¢io "democratizante" do processo de formacio da sociedade brasileira. Num esforco classificat6rio, poderiamos situ4-los na linhagem de um Joaquim Nabuco ou um Euclides da Cunha, que articulavam a critica politica e o ensaismo de viés sociol6gico, num apelo dramAtico 4 mobilizagao das elites contra a exclusao social das massas miseréveis de um pais no qual a cidadania constituia antes um privilégio que um direito. Mas, 2 diferenga de Nabuco e Euclides, eles nao clamaram por reformas sociais dirigidas por elites esclarecidas, falaram da sociedade e nao apenas sobre a sociedade, dirigiram-se aos sujeitos que a constituiam € nao aos seus pretensos tutores. Entretanto, € neste mesmo sentido que se pode afirmar que a combinag’o de uma critica radical ao pensamento autoritério e o ensaismo de cunho sociologizante culminam, tanto em Casa Grande e Senzala como em Rafzes do Brasil, em duas concepgdes de democracia social que, nao obstante o impacto "revolucionario" sobre a cultura politica preconceituosa e autori- taria das nossas elites, reforgou a dicotomia entre pafs legal e pats real, central no argumento autoritirio, consolidando uma pemi- 220 LWA NOVA N® 2 ~ 1992 ciosa e duradoura cisio no campo democritico entre liberais, apéstolos de uma concepgao formalista e restrita da democracia "progressistas", de todos os matizes, que viam nas instituigées democraticas alternativamente um instrumento ou um obstdculo as transformacées estruturais que se impunham a sociedade brasileira. Neste sentido, o fracasso do pensamento democritico no momento de consolidagao institucional do movimento revo- lucionario de 1930, estruturado originalmente em torno da luta pelo voto secreto e a criagéo de uma justica eleitoral indepen- dente das oligarquias estaduais, mais do que uma inevitabilidade hist6rica resultou de uma opedo politica de importantes setores intelectuais e forcas politicas nacionais diante da falsa altemativa: democracia politica ou reforma social. A critica dos intelectuais autoritérios ao regime politico vigente até 1930 comungava com a critica democratica 0 empe- nho em "republicanizar a Republica" dominada pelo conflito entre faccdes oligirquicas regionais "sem nenhum sentido de re- presentacio de interesses realmente nacionais". Dai, provavel- mente, 0 sucesso da ampla e heterogénea composi¢io de forcas que se agregou na Alianca Liberal, mas, também, a freqiiéncia dos conflitos internos que permitiram 0 golpe de novembro de 1937. ‘A forca do argumento autoritério residia exatamente na coeréncia e objetividade com que articulavam uma anilise hist6rico— sociol6gica das "nossas origens coloniais" a critica politica do processo de oligarquizagéo do Estado, derivando dai uma proposta de reforma politica e institucional que visava garantir a representacao dos "interesses reais" da sociedade nacional. Uma breve referéncia a dois exemplos concretos, e centrais, da acuidade politica e do "zélo institucional" com que os intelectuais autoritérios construlam seus argumentos, servirio para tornar mais nitido o contraste e o sentido da critica as limitagdes do pensamento democratico brasileiro pés-30. Para o republicano "hist6rico" Alberto Torres, o Brasil era 0 exemplo acabado do pais de “origem colonial", de forma- ¢4o “novissima", como gostava de enfatizar, e, portanto, uma sociedade ainda etnicamente indefinida (critica moderada 4 mesticagem), socialmente amorfa (referéncia 4 baixa densidade demogrifica e a superficial integracdo fisica do territ6rio) e politicamente "oligarquizada" (conseqliéncia dos tragos acima referidos). A partir desse amplo esbogo de anilise sociolégica ele VERTENTES DEMOCRATICAS 221 concluia que a sociedade brasileira era essencialmente "desorga- nizada" e a politica, entendida como competi¢ao entre faccdes pelo controle do governo, era no apenas disfuncional, mas necessariamente perversa, pois, num pais em que "nem a socieda- de e nem o Estado existem" (1978, p. 37), © governo representativo € uma farsa e as faccGes politicas "representam" apenas seus interesses particulares, especialmente aqueles que dizem respeito 4 perpetuagao do cardter oligarquico do Estado. Ora, dado que sociedades como a nossa, de "formacao colonial", dependem do Estado para se desenvolver, o "nd gordio" da nossa crise politica € 0 sistema representativo, pois este no somente "reproduz" o estado amorfo e fragmentado da sociedade como legitima o “assalto" e a "rapina" das oligarquias politicas sobre o Estado indefeso. O diagnéstico claro e contun- dente nao permite davidas: sem uma sociedade civil organizada em torno de interesses "reais" e sem um Estado forte, capaz de fazer valer os interesses "reais" da Nagao, a politica torna-se uma aberragao, sem nenhum limite ético ou controle social. A solugéo €, pois, fundamentalmente politica e a sua forma € necessaria- mente institucional: o Estado autoritério € o Gnico meio de substi- tuir 0 "circulo vicioso" da representagao dos interesses oligér- quicos pelo “circulo virtuoso da representagdo dos interesses nacionais. A critica a natureza disfunctonal e "ultrapassada" dos partidos de base programitica, fundados no modelo liberal de sociedade, onde nao apenas convivem, mas competem, visdes antag6nicas de organizacio da sociedade, vai muito além da tejeigao ao sistema representativo republicano; o que ele pretende € legitimar sua proposta de "reconstrugao" total da sociedade a partir do Estado. Consciente, no entanto, das dificuldades que enfrentaria para legitimar a sua proposta centralizadora e autoritéria de governo, frente a uma elite politica toda ela formada na critica a monarquia unitiria, Torres opera uma distingao conceitual sutil, mas fundamental para a compreengao do sucesso de suas idéias politicas. Ao analisar a crise do federalismo republicano e concluir que no "excesso" de autonomia estadual residia todo o mal, observa quase despreocupadamente que o cumprimento dos “principios constitucionais da Unido" (aqueles que importam efetivamente a realidade e eficiéncia do regime, acrescenta ele) nao sao os que dizem respeito aos poderes politicos e a organiza- 222 LUA NOVA N° 26 — 1992 G40 dos governos, mas os que interessam a vida do povo e dos individuos (1978, pp. 77-78). Toda a argumentacdo pretende justificar a distingao qualitativa entre Hberdade civil (individual) e Kberdade politica (também a individual, mas principalmente a de associagao), atribuindo 4 primeira um car4ter substancial Gdireito sobre a vida, propriedades e ao bem-estar), reduzindo a segunda a mera formalidade juridica. Esta distingdo aparentemente secundiria permite, no entanto, que Alberto Torres sustente, com bastante éxito, o seu modelo de representag4o corporativa, fundada numa pré- configuracao da forma de organizacio politica da sociedade e, portanto, numa pré-distribuicao do poder politico em fungio dessa configura¢do funcional da sociedade, pelos diversos grupos corporativos articulados ao Estado. O modelo de cidadania regulada (Wanderlei Guilherme) aparece integralmente na concepgio politica de Alberto Torres. ‘Aqui temos a oportunidade de observar um dos eixos centrais do pensamento politico de Alberto Torres, com ampla repercussio na ideologia autoritéria brasileira que se consolida nos anos 20 e 30, especialmente com Oliveira Viana, como veremos em seguida, Recusando a “via societal" de organizacio corporativa, que pressupunha uma confianca bastante grande no poder regulador do "mercado politico", ele propde uma "via estatal", centralizada e autoritéria, que se afirma exatamente sobre a desarticulacao das instituigdes politicas que operam a medta- ¢do entre o Estado nacional e a sociedade civil: nao apenas partidos politicos, mas toda e qualquer associagZo com fins nao corporativos e, portanto, profissionais, deveriam ser eliminadas. A ampla reconstituigao hist6rica da nossa formacio s6cio-politica, empreendida por Oliveira Viana desde a década de 20, tinha um objetivo preciso: demonstrar a inviabilidade do governo representativo democritico na sociedade brasileira. A defesa do Estado autoritério em Oliveira Viana sustentava-se em dois argumentos: 1) a democracia € 0 resultado da sedimentacio cultural de praticas tradicionais de self-government desde as comunidades aldeds medievais até os modernos Estados democriticos europeus, especialmente anglo-saxos, e no mero attificio legislativo; 2) a nossa formacao hist6rica seguiu um roteiro totalmente inverso ao das sociedades européias; desde a auséncia absoluta da pratica do auto-governo no nivel municipal até a origem centralizada e ndo-representativa do nosso Estado VERTENTES DEMOCRATICAS 223 nacional, tudo conspirou contra o tdealismo democritico de nossas elites politicas, o mais das vezes preocupadas apenas com a representagao dos seus interesses privados. ’ A diferenga do sistema patriarcal brasileiro, que se desenvolveu simultaneamente a propria ocupagio fisica do imenso territorio colonial, a intricada rede de relagdes sociais em que se sustentava o feudalismo europeu foi erigida sobre a estrutura comunitéria medieval que impedia 0 dominio absoluto do senhor feudal. Aqui, ndo havia nem nunca houve espaco comunitétio onde o "povo:massa" pudesse exercitar-se na arte do auto-governo, nao havia espaco pGblico, nao havia base material para a emergéncia de um sentimento de solidariedade comunal: "... tudo 0 que na Europa, estava dependente de uma decisao de tribunal popular - do povo da aldeia ou do dominio, sefja assembléias ou corte fudicial, sempre de origem eletiva - era aqui, do norte ao sul, por toda parte, ato exclusivo e unilateral, arbitrarto e trrecorrt- vel do senbor da terra ou do senhor do engenbo.” Cinstituicées politicas brasiletras, p. 260). Em termos contemporaneos, a nossa "cultura politica” era autoritéria, nfo apenas porque o povo nao gozava de autonomia em qualquer esfera da vida social, como também porque a elite agréria ignorava a distingdo entre o que era publico (comunal, provincial ou nacional) e o que era privado. Sem experténcia alguma de atividade comunitéria, jf que nada do que fosse concernente ao interesse geral do povo era objeto de deliberagio ou eleic&o, Oliveira Viana nao via qualquer possibilidade de construgio de um Estado nacional com base num sistema representativo com sufragio universal, muito menos em uma estrutura administrativa descentralizada como a da repbblica oligarquica. © niicleo do seu argumento era o seguinte: como nao havia nenhuma estrutura social de tipo democritico e a socie- dade colonial continuava a ser o que sempre fora, *... um con- junto incoordenado e desarticulado, composto por uma infini- dade de otkos fazendeiros, vivendo cada um a sua vida econémi- ca e social auténoma..." (ibid; p. 218), a introdugao do regime democratico em todos os niveis de governo (municipal, provin- 224 LUA NOVA NP 26 ~ 1992 cial e nacional) precipitou uma forma compésita de organizacao politica que Oliveira Viana denominou "cli eleitoral". Produto do “sincretismo" entre uma forma politica democritica e uma estrutura social patriarcal, os clas eleitorais tornaram-se, entio, a celtula mater da nossa vida publica. Aqui, a explicagdo para a forca do privatismo e a "falta de sentido coletivo" na atividade politica: € que estes partidos ou clas eleitorais, "... embora fossem organizados para a vida publica, no tinham, porém, nenhum contetido coletivo ou de interesse ptiblico: eram assoctagGes ou corporagées es- tritamente individualistas - a posse do poder para efettos exclusivamente pessoais, de Kbido dominandi deste ou daquele 'chefe’, sempre senhor de terras. (...) Os clas feudats e parentais afluiam intactos, com sua mentalidade e forma¢do tndividualistas, para os 'par- Hdos' - 0 que fazia com que estes partidos (clas elet- torais) ndo fossem mais do que a soma material destes clas privados. Soma, mas ndo fusdo." (ibid, p. 265). ‘A critica contundente ao sistema politico, especialmente a estrutura partidéria, submetida ao interesse particularista dos "clas parentais e feudais" que dominavam a sociedade colonial, convertidos, ap6s a independéncia, em "clas eleitorais", vinha reforcar, fundamentando em bases ‘cientificas", o diagnéstico sobre a inviabilidade do regime democratico no Brasil, Contestando, porém, a mirabolante proposta de Alberto Torres, de um Poder Coordenador que regulasse minuciosa e centralizadamente todas as relagées de poder politico entre a sociedade e 0 Estado, no que, alias, era coerente com a visao absolutamente negativa da capacidade de auto-governo nao apenas do "povo-massa", mas das proprias elites "privatistas", Oliveira Viana propunha uma medida de cardter "profilatico". A imediata criagdo de uma instituicdo que “... represente um centro de forcas, de natureza essen- cialmente politico; mas, completamente fora de qual- quer atinéncia ou dependéncia com grupos partidarios. ¢..) organizado de manetra tal que pudesse agir direta e espontaneamente e com eficdcta imediata, quando VERTENTES DEMOCRATICAS 225 Se fizesse preciso, sobre os grupos, as facgdes, os clas, neutralizando-lhes a influéncia e a nocividade na vida administrativa do pats.” (1930, p. 45-46). Duas alternativas se apresentavam ao Legislador, no caso de uma "revisao" constitucional: “a) ou investir 0 Poder Judiciario, tornado exclusiva- mente federal, de uma forca e de uma autonomia, es- tendidas até ao maximo das nossas possibilidades; ou b) criar um quarto poder, tal com o antigo Poder Mo- derador, que, sendo fudicidrio também, tenha, entre- tanto, 0 diretto de iniciativa, que o poder judicidrio nao tem." (1930, p. 45). Mas, quais as conseqiiéncias imediatas desta reforma "organica" para a esfera politico-institucional? Simplesmente a invercao total do sentido da representacao. Quem passa a consti- tuir 6 governo e a dirigir o Estado nao & mais aquela sociedade desorganizada e dominada por forcas particularistas, mas o proprio Estado. Como a snica forca politica consciente dos "altos, austeros, fecundos principios, que a nossa condicao de povo em formacao impde como essenciais a integracao definitiva da nacionalidade" (ibid, p. 61), o Estado centralizado e "depura- do" das influéncias desagregadoras das faccdes, deve recorrer a toda sua capacidade de mobilizacio e direcao politicas para con- solidar esses principios de integracio nacional, que sao, a saber: 1°— O principio da unidade politica; 2?— O principio da continuidade administrativa; 3°~ O principio da supremacia da autoridade central. Ao definir como prioridade politica a integracio nacional, em detrimento da representagao democratica da sociedade no Estado, Oliveira Viana retoma a distin¢do crucial, elaborada por Alberto Torres, que opde Mberdade politica e Uberdade civil. Mas, coerente com sua anélise sociolégica, ele rejeita o cerne do projeto constitucional do seu mestre,o Poder Coordenador. E isto, nao porque o considerasse excessivamente centralizador, ou abusivamente autoritério, ocorre simplesmente que, da forma como fora estruturado, apresentava-se invidvel e 226 LUA NOVA NP 26 ~ 1992 mesmo contradit6rio com o seu diagnéstico. Afinal de contas, se a sociedade era amorfa e desorganizada, como entregar a seus mais acabados “representantes' o poder de controlar o proprio Estado nacional? . O pragmatismo foi talvez a principal virtude de Oliveira Viana; ele tinha perfeita consciéncia dos limites da vontade politica e, mais do que nenhum outro pensador politico autoritério, soube articular continuidade e mudanga. Por isso, ele nao apenas rejeitava a ruptura institucional proposta por Alberto Torres, como apresentava uma alternativa perfeitamente adaptada ao quadro constitucional vigente, tendo em vista, certamente, a cooptagao da elite politica para 6 seu projeto de reforma. Ao propor o fortalecimento e a autonomizagio do Poder Judiciario ele procurava resgatar um dos principios politicos que inspiraram Rui Barbosa, na elaboragao da Carta de 91, € que consistia exatamente na atribuicdo ao Supremo Tribunal de Justica o papel de corte constitucional, reguladora de todos os conflitos inter- estaduais e nacionais. Por outro lado, ao insistir no fortaleci- mento do Executivo, controlado pelo Judicifrio, em detrimento do Poder Legislativo, que desprezava, Oliveira Viana pretendia operacionalizar o principio politico, caro a0 nosso pensamento autoritério, que distinguia e opunha liberdade politica a liberdade civil, subordinando a existéncia da primeira a realizacao da segunda, consolidando, assim, a concepcao do Estado como "tutor" da soberania popular, de largo uso e "abuso" na historia politica do pais. Que a proposta de Oliveira Viana tenha se concretizado em larga medida no Estado Novo, ndo decorre que a vida estatal fosse uma "necessidade histérica" ou mesmo o caminho mais r4- pido para o desenvolvimento nacional. Mas o fato € que a maior parte da nossa elite politica nio apenas apoiou como se engajou no projeto autoritério do Estado Novo e que esta "escolha" fundamentou-se no diagnéstico de intelectuais como Alberto Tor- res e Oliveira Viana. Mas estes nao foram os anicos intelectuais que investigaram a nossa hist6ria colonial, nossas origens ibéricas ou mesticas, outros também se aventuraram em amplas interpre- tagdes do nosso "carater nacional", mas com "prognésticos" subs- tancialmente diversos sobre as "potencialidades democrticas" da sociedade brasileira. Foram estes, nao obstante sérias hesitagdes e freqiientes recuos frente aos dilemas , politico-institucionais, os VERTENTES DEMOCRATICAS 227 caminhos trilhados por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda os quais iremos analisar em seguida. Esta breve recapitulagio dos argumentos de Alberto Torres e Oliveira Viana nos coloca em condigdes de reconstruir € avaliar a interpretagao "democritica" de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, estabelecendo um didlogo ficticio com a interpretagio “autoritéria". Portanto, e, agora, no registro do suposto debate, a "resposta" da intelectualidade democratica ao argumento autoritério deveria desdobrar-se: 1) numa reinterpreta- ¢40 da “formagao colonial" do pais e suas implicagdes em termos das "potencialidades democriticas" dessa sociedade mestica e desigual; 2) numa proposta de reforma (ou revolugao) politica democratica que articulasse uma nova estrutura institucional para o-Estado a uma composigao de forcas sociais e politicas capaz de garantir estabilidade e operacionalidade ao novo regime. Um pensamento democratico que nao leve em conta essa dupla condi¢ao tende a cair na falécia do "institucionalismo" juridico, tipico do liberalismo -politico, construindo um "pais legal" por sobre e contra o “pais real” ou a gitar em falso num dilema do tipo, "cultura politica autoritéria" versus “cultura politica democratica", em detrimento de uma valorizacio explicita da esfera institucional. O abandono do terreno politico- institucional, reduzindo a democracia a um mero resultado da redugio das desigualdades econémicas, sociais e culturais, nao nos conduziria além de uma contrafaccio do argumento autoritério, 0 que € fatal para as pretensdes de racionalidade e universalidade do pensamento democratico. Vejamos, agora, em que medida Gilberto Freyre ¢ Sérgio Buarque inovaram 0 nosso pensamento democratico, como e onde hesitaram e, finalmente, porque recuaram diante do desafio, ainda surpreendentemente atual, de articular o discurso da reforma social e 0 discurso da reforma politico-institucional, su- perando a esquizofrenia de um discurso politico que opde Estado e sociedade, como se nao fossem ambos a expressdo de um mes- mo processo. de desenvolvimento social, econdmico e politico. 228 LUA NOVA N® 2% ~ 1992 GILBERTO FREYRE O impacto "revolucionério" de Casa Grande e Senzala, especialmente se tivermos em conta 0 momento de sua publica- co (1933), explica-se pela inversio radical operada por Gilberto Freyre tanto na metodologia quanto no sentido politico que dominava a investigacao social no Brasil. Mais sugerida que afirmada, esta sinalizagéo de um "outro" sentido para nossa his- tria foi percebida claramente pelos intelectuais "progressistas" da época (ver, por exemplo, o prefacio de Ant6nio Candido para Raizes do Brasil). Freyre nao apenas partiu de uma perspectiva analitica inovadora, procurando investigar as relagdes sociais segundo uma légica "prpria" as caracteristicas da sociedade brasileira, patriarcal, rural e multiracial, evitando, portanto, subordinar-se a um modelo “externo", como recusou-se decididamente a ver a trama de relagdes que constituiam a sociedade brasileira como simples "matéria bruta" para a interveng’o “racionalizadora" de um Estado poderoso e autoritério. Freyre, mais do que qualquer outro cientista social do periodo, soube valorizar a originalidade e a dinamicidade da sociedade brasileira, até entdo considerada um simples agregado social, desorganizado, amorfo ou an4rquico, um "negativo" do verdadeiro modelo de sociedade. A radicalidade de Casa Grande residia, deste modo, exatamente nos seus aspectos mais "datados", menos atraentes para quem o lé hoje. A critica devastadora ao mito da nossa infe- rioridade racial, em especial ao preconceito de que a miscigena- ¢4%0 produzia tipos ainda mais "degenerados" do que suas "matrizes" raciais, ndo pode ser corretamente valorizada se nio tivermos em mente a centralidade da questao racial para o deba- te politico na Primeira RepOblica. O pessimismo generalizado em nossa elite politica quanto a viabilidade nao apenas politica, mas até mesmo cultural e social do pais, em fim quanto a nossa capacidade de "auto-determinagao" como Nagao, apoigva-se em larga medida num sentimento fatalista de que éramos "geneti- camente inferiores" ou, pelo menos, 0 nosso "carater mesti¢o" constituiria um handicap para o esforco de desenvolvimento nacional. Era sobre esse pano de fundo que se pretendia legitimar a construgio de um Estado centralizado e interventor, anica estrutura politica capaz de mobilizar e organizar essa massa “amorfa" e "passiva" de "mesticos", "negros" e "indios" e conduzi- VERTENTES DEMOCRATICAS 229 la no rumo do desenvolvimento nacional. Gilberto Freyre tam- bém participava desse espirito reformista, vinculando estreita- mente o "problema social" 4 "questio racial": "Creio que nenbum estudante russo, dos romanticos do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Russia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geracao; da nossa maneira de resolver questdes seculares. E dos problemas brasilet- ros, nenbum que me inqutetasse tanto como o da miscigenacao." (1978, Intr., p. XXIID. A preocupagao absorvente com a nossa forma¢4o racial, com © nosso "carfter mestico", justificava-se pela necessidade de eliminar qualquer vinculo entre raca e cultura, em sentido amplo, discriminando entre "os efeitos de relagdes puramente genéticas e os de influéncias sociais". Com isso, Freyre pretendia demonstrar que a hereditariedade de raga tinha um peso quase nulo na explicagio do nosso "cardter social" e que este derivava em grande medida da “hereditariedade de familia", da familia patriarcal, ndcleo da formagao s6cio-cultural do pais, que se afticulava e se reproduzia em torno de dois fatores determinantes: a monocultura exportadora e a escravidio. "Muito do que se supde, nos estudos ainda tdo flutu- antes de eugenia e de cacogenia, resultado de tracos ou taras hereditarias preponderando sobre outras in- fluéncias, deve-se antes associar a persisténcta, através de geracédes, de condigdes econémicas e sociais, favo- raves ou desfavordvets ao desenvoluimento bumano." Gbid, p. XXIV). Em muitos aspectos a anilise de Freyre sobre as "ori- gens coloniais’ da sociedade brasileira retoma a interpretagio "guloritiria": 0 vazio populacional e o surgimento dos niicleos de colonizacao dispersos, a auséncia de uma sociedade camponesa auténoma e o desenvolvimento de grandes propriedades agrico- las monocultoras, dai a ‘necessidade" de escravos e a inevitdvel miscigenagio; em fim, ele também via uma sociedade semi-feudal onde "uma minoria de brancos e brancardes dominando 230 LUA NOVAN® 26 ~ 1992 Patriarcais, poligamos, do alto das casas grandes de pedra e cal, nao s6 os escravos criados aos magotes nas senzalas, como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha, vassalos das casas grandes em todo o rigor da expressio" (ibid, p. XXV). Todo o argumento de fundo de um Oliveira Viana poderia ser derivado desta caracterizacgao socioldgica, inclusive o conceito central de "complexo de cla", que justifica grande parte do seu diagnéstico “autoritério". E, no entanto, Gilberto Freyre, partindo dos mesmos fundamentos "sociolégicos", nos apresenta uma sociedade dinamica e original. Mais importante, ainda, € que o argumento central de Freyre contrapGe-se radicalmente ao mito da inferioridade social dos "nossos mesticos". Ele investiga a fundo, e pretende demonstrar, nao apenas o valor "adaptativo' da miscigenagao de ragas e culturas para a vida nos tr6picos, como enfatiza quase obsessivamente a emergéncia de uma "civilizacao" original e ariativa, fundada exatamente no seu carter multiracial. £ por isso que o argumento em torno do processo de miscigenacao aparece reiterada e sistematicamente ao longo de toda a obra, assumindo um carater positivo, até entéo inconce- bivel diante da generalizada crenga na inferioridade das racas "primitivas", mas especialmente, dos "mesticos" que constituiam a massa esmagadora da populacao brasileira. Freyre investe deci damente contra 0 preconceito, dominante entre as elites politicas € intelectuais da época, de que essa populacao "nao-branca" seria incapaz de se auto-governar dentro das regras abstratas e "complexas" do regime representativo (Oliveira Viana)..O argu- mento autoritério ndo se apoiava apenas no "fato" primario da incompatibilidade entre uma cultura politica democratica, origi- néria dos povos europeus, e 0 cardter "essencialmente" tribal ou clanico dos povos amerindios e africanos. Em larga medida este € tao somente o pressuposto de onde parte para explicar a forma- ¢ao da sociedade colonial como um processo basicamente ‘artifi- cial", de agregacao de etnias e culturas, desiguais no desenvolvi- mento social, originarias de sociedades inassimilaveis ao sentido individualista e cosmopolita da civilizagdo ocidental. O que Freyre procura entéo demonstrar € que nao se tratava, pelo me- nos no Brasil, de uma simples justaposic¢ao de culturas e racas, e sim de um processo de fusao cultural e desenvolvimento de uma nova civilizacio, partilhando valores de suas culturas "tributarias’, VERTENTES DEMOCRATICAS 231 mas constituindo, ao longo do processo formativo, uma iden- tidade original. Assim & que, os "conquistadores" portugueses so obri- gados a ‘transigic” com indios e africanos quanto as relagdes genéticas e sociais, criando "zonas de confraternizac4o" que, se nao eliminava o car4ter conflituoso e hierarquico das relagdes inter-raciais, "adogava", "amolecia", a dureza da dominagao patriarcal. E isto, no apenas no sentido de mascarar as tensdes sociais produzidas pelo sistema agrario-escravista, mas também no sentido’ de criar um "espago social" de integra¢i0, a0 mesmo tempo étnico e cultural, econémico e social, articulado em torno dos niicleos familiares patriarciais. Segundo Freyre, 0 processo de miscigenagao, mesmo involuntariamente, atuou decisivamente para "corrigir as distancias sociais" entre senhores e escravos, que de outro modo seriam insuper4veis. "O que a monocultura latifundidria e escravocrata realizou no sentido de aristocratizacdo, extremando a Sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambugem de gente livre sandut- chada entre os extremos antagénicos, foi em grande parte contrartado pelos efeitos sociais da miscige- nacao." (ibid, p. XXVD. © que permitiu a Gilberto Freyre produzir uma imagem tao dinamica e original da sociedade brasileira foi sua “intuitiva" concepgio de uma interaco entre forcas sociais nado apenas antagOnicas, mas geradoras de uma nova estrutura social emergente do "amdlgama” que resultava do continuo processo de miscigenacao étnica e cultural. £ importante notar, ainda, que o que Freyre valoriza nao € tanto o "resultado" do processo, um determinado ‘carater nacional brasileiro", que se prestaria facilmente a uma mistificagio nacionalista, mas o processo de miscigenagio em si, no que ele tem de dinamico, "plastico", adaptativo e, especialmente, "democratizante". Esta concepcao radicalmente "social" da democracia (primeiramente étnica e cultural, depois social e econémica, sem uma referéncia explicita ao seu carater eminentemente politico- institucional), entretanto, nao se diferencia claramente da concep¢ao de "democracia social" que permeia o discursso de idedlogos do autoritarismo estatal como Alberto Torres e 232 LUA NOVA N® 26 ~ 1992 Oliveira Viana. Jé foi observado anteriormente, a distingao clara que estes autores operavam entre liberdade civil, individual ou coletiva, "garantida pelo Estado", e liberdade politica, tradicionalmente entendida como uma garantia "contra" os abusos do poder estatal, derivando desta cisio a concepcio corporativista de um Estado assistencialista e autoritério, que incorpora demandas sociais pelo "bem-estar" dos trabalhadores em troca do controle politico das decisées que caberiam, no modelo liberal-democratico, aos cidadaos constituidos em governo. A concepcao de democracia de Gilberto Freyre nao era a liberal cléssica e, muito menos, a marxista, 0 que certamente facilitou a consolidago da sua imagem conservadora. Na auséncia de uma definicao categ6rica de democracia, inclusive porque o cardter hist6rico-antropolégico da obra nao favorecia este tipo de abordagem conceitual, parece-nos mais interessante, e honesto, tentar extrair da sua argumentacao um esbo¢o que seja da sua viséo de democracia social. Uma caracteristica evidente na andlise de Freyre € sua recusa sistematica em ver no conflito, politico e social, o fundamento de uma ordem democratica, e neste ponto seu pensamento tangencia outra vez o argumento autoritario. Mas, em oposicdo a estes, Freyre recusa claramente qualquer papel demiirgico ao Estado. O interessante € que nem o Estado, o governo ou a burocracia tem uma presenga marcante em Casa Grande e Senzalae nem mesmo o seu argumento se sustenta na pressuposta “auséncia" do Estado como explicativo da nossa *inorganicidade". Freyre investiga e descobre na propria socie- dade patriarcal brasileira, tal como se constituiu historicamente, ‘os "gérmens" do seu dinamismo e da sua potencialidade como Nagao, socialmente integrada e economicamente mais justa. O nicleo gerador e organizador da sociedade brasileira, desde sua "origem colonial" foi a familia patriarcal e nio o Estado portugués, € isto tanto como unidade colonizadora do imenso territ6rio, como unidade produtora, baseada na monocultura escravista. Em contraste com a anilise de Oliveira Viana que s6 via na organizacao patriarcal, estagnacdo econémica, autoritarismo social, privatismo politico, auséncia de vida “cultural, Gilberto Freyre descobre um microcosmo social em constante transforma¢ao, produzindo uma cultura original e dinamica, adaptada as condigdes geograficas e sociais, forma embrionaria de uma civilizagdo tropical, “VERTENTES DEMOCRATICAS 233 Tal como em Oliveira Viana, o "cl patriarcal" constitui a unidade bisica da sociedade, mas para Freyre as conseqiéncias dessa origem "privada" da: ordem social so opostas. Enquanto para o primeiro o "complexo de cla" se estrutura na “auséncia" da "comunidade de aldeia" e, portanto, da “experiéncia" de solidariedade coletiva, base do Estado democratico, para Freyre a familia patriarcal, em sua forma clanica, constitui o “embrido" de uma nova sociedade, certamente diversa do modelo europeu, mas, de modo algum aquele "aleijio" social da interpretacao autoritéria. O esforgo de fundamentar sociologicamente o cardter original e positivo desse "experimento social nos tr6picos" leva Freyre a investigar detalhadamente a vida cultural da sociedade patriarcal, ressaltando sempre seu cariter “plastico", adaptativo e nao conflitual. ‘Assim, a casa grande, completada pela senzala, constitui © centro de equilibrio e coesio da vida patriarcal e religiosa da sociedade colonial em formagio, o virtual proto-tipo de um novo sistema econOmico, social e politico. O que, se por um lado reforca o poder "feudal" do senhor de engenho, por outro "dissolve" o cardter "duro", aristocratico e autoritério do engenho escravista, na medida. em que desencadeia um processo de miscigenacao racial e cultural, expresso nao apenas nas varias formas de sincretismo religioso, mas na emergéncia de costumes e crengas originais que reduziam o prestigio social da cultura dominante, européia e cat6lica. Contrapondo-se a rigidez da estrutura econémica e social do sistema de monocultura escravista, a ordem patriarcal teria atuado como poderoso agente catalisador de uma nova forma de organizacao social, impossivel se mantidas as condigdes de radical antagonismo em que se sustentava a economia escravista mercantil. A diferenca de Oliveira Viana, para Freyre o privatismo do sistema patriarcal, absorvente e dominador, traz em si 0 "embrido" da sua propria transformacdo: a base familiar e, de certa forma, comunitiria, da organizagio patriarcal contrapde-se a légica mercantil e excludente da economia agrario-escravista, amortecendo-lhe as conseqiiéncias mais disruptivas. A possibi lidade de supera¢o do "abismo" racial, cultural, social e econé- -mico, que de outra forma tornaria insustentavel tal sociedade sem a intervencao de um agente externo (0 Estado autoritério), esté, no entanto, inscrita na propria dinamica da sociedade. Sao estas 234 LUA NOVA N® 26 — 1992 caracteristicas intrinsecas que "“amortecem" os choques, determinando “condigées de confraternizacio e de mobilidade social peculiares ao Brasil." Entre elas, enumera Freyre, estariam: ".. @ miscigenagao, a dispersdo da heranga, facil e freqiente mudanca de profissdo e de residéncia, facil ‘e fregitente acesso a cargos e a elevadas posi¢ées polt- teas e soctais de mesticos e de filbos naturais, cristia- nismo lfrico a portuguesa, a tolerancia moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicacdo entre diferentes zonas do pais." (ibid p. 54). Note-se, por fim, a predominancia de caracteristicas dinamicas que enfatizam a ascensio social via miscigenacao racial, tolerancia e intercomunicabilidade, valores que se contrapdem ao estereétipo da ordem patriarcal, construido pelo pensamento autoritério, com base no qual se explicava a necessidade da intervencdo estatal. ‘A originalidade da abordagem hist6rico-antropolégica de Gilberto Freyre consiste, em primeiro lugar, na valorizagao de aspectos até entio considerados "negativos" na formacao social brasileira: a moral, "pouco rigida’, a intensa mestigagem racial, 0 sincretismo generalizado de nossa cultura. A inverséo de sentido politico ocorre justamente quando esses processos, tomados até entéo como a causa dos "desequilibrios" estruturais da sociedade brasileira, passam a constituir um “proceso de equilibrio de antagonismos" que permitiria "o encontro, a intercomunicagio e até a fusio harmoniosa de tradigdes diversas ou antes antag6nicas de cultura." Isto nao o leva, entretanto, a mistificagao da “cordialidade" brasileira (erradamente atribuida a Sérgio Buarque de Holanda) ou a alguma versio "fascistizante" de nacionalismo. ‘Bem ao contrario, Freyre reconhece que a "integracio harmo- niosa" constitui um horizonte, inscrito na dinamica social como "projeto", constatando, por outro lado, o "vacuo" que ainda persiste entre os ex-senhores e sua cultura "européia" e a "massa" marginalizada, composta de mesticos, negros e indios. "Mas, repete Freyre, "nao se pode acusar de rigido, nem de falta de mobilidade vertical — o regime brast- letro, em varios sentidos sociais um dos mais demo- craticos, flextvets e pldsticos." (ibid, p. 52). VERTENTES DEMOCRATICAS 235 A perturbadora auséncia de um tratamento direto e analitico da "questéo democritica", nos termos em que a discute a ciéncia politica, nio deve ser vista como um "problema", uma “falha" do autor, mas como uma "escolha" decorrente de uma posigdo metodologica e politica. Ao decidir-se por uma abordagem "historico-antropolégica" ele define os limites da sua andlise: descobrir nas entranhas da sociedade os indicios de uma identidade- cultural em que se sustentasse o esforgo de integragao nacional. O que importa acentuar, entio, € que apesar das pressGes do contexto politico anti-liberal e anti-democratico (basta lembrar os regimes de extragao fascista na Europa, e mesmo o New Deal), Freyre se recusa a avaliar as propostas autoritario-estatais que circulavam nos meios intelectuais da Primeira Reptblica. Conseqiiéncia desta posigio politica, o empenho de Gilberto Freyre em articular o projeto de construgio nacional ao “proceso de equilibrio de antagonismos" nao pode ser desvinculado de uma concepgio democritica que se expressa tanto num minimo de identidade cultural e homogeneidade social como numa perspectiva de mobilidade vertical e participagao politica. ‘A tentativa de fundamentar a capacidade de autonomia cultural, social e politica do pais numa anilise hist6rico- antropologica assume uma importancia estratégica no combate ao pensamento autoritéatio que via no Estado centralizado e autoritério a unica via de “regenerar" a sociedade. Enquanto estes procuram uma solugao externa a sociedade, Freyre tenta mostrar como esta sociedade contém, nas suas estruturas mais profundas, os germens da propria transformacdo num sentido de maior igualdade social e liberdade politica. Nos termos do paradigma do nosso pensamento politico autoritérios que se fundamenta numa cisio radical entre Estado e sociedade, Gilberto Freyre reconhece-o na exata medida em que admite um "vacuo" entre os dois extremos da sociedade. Mas, neste caso, a dicotomia basica é constitutiva da propria sociedade, esté no ceme mesmo do processo de "equilibrio de antagonismos" e sustenta a possibilidade de superacdo desse "abismo social": a possibilidade esta inscrita na emergéncia de um solo comum de valores culturais, sociais e politicos que se configuram num processo de constru¢ao de identidade nacional. Ao fazer um op¢io "radical" pela sociedade, ainda que nao 236 LUA NOVA NP 26 — 1992 contra o Estado, Freyre pretende ndo apenas inverter os termos do argumento autoritério, que vé a sociedade como um "corpo enfermo" carente de um "remédio forte e eficaz", mas estabelecer um novo paradigma de anilise. Para Gilberto Freyre a sociedade era um organismo complexo, dinamico, até mesmo antagénico, mas nunca um mero agregado social, sem. autonomia e dinamismo, como na metifora do "cérebro dirigente" e do "corpo doente e passivo", to recorrente nos textos dos idedlogos do autoritarismo estatal. A busca da integracao, da harmonia, do equilibrio social sao certamente elementos centrais no pensamento de Gilberto Freyre, mas sio também processos compreensiveis apenas nos termos de uma l6gica de "auto- constituigao" da sociedade e apontam, quer concordemos ou nao com seus contetdos, no sentido da autonomia do social em relagdo ao politico, entendido, este, numa acepgao estreita, como a acdo do Estado sobre a sociedade, e nfo como o campo privilegiado para a acdo transformadora, racional e consensual, da sociedade sobre ela mesma. Neste sentido, a "desconfianca" com relacdo as instituigdes e ao Estado, recorrente na obra de Gilberto Freyre, sinaliza nao a superagio mas o aprofundamento da distingéo conceitual entre democracia social e democracia politica. SERGIO BUARQUE DE HOLANDA Enquanto Gilberto Freyre mergulha nas "entranhas" da sociedade a procura de nossa identidade cultural, 0 solo comum de valores que nos permitiria pensar na possibilidade de uma sociedade nacional, integrada, homogénea, harmOnica, Sérgio Buarque prescinde do pressuposto de uma identidade cultural de base para operar 0 que Ant6énio Candido chamou de "metodologia dos contrarios". Um jogo "dialético" entre forcas sociais que se suscitam e se interpenetram, produzindo uma visio dinamica e multifacetada da realidade social: "trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo" sio pares dinamicos que Sérgio Buarque abstrai do complexo social para apresentar como 0 nosso "modo-de-ser", procurando derivar VERTENTES DEMOCRATICAS 237 dessa anélise "contrapontistica" as perspectivas democraticas da sociedade brasileira. Ao contrario de Casa Grande e Senzala, em que se procura descrever os fundamentos s6cio-culturais da nossa identidade nacional, em Rafzes do Brasil Sérgio Buarque investe contra as visdes tradicionalistas que viam em nossas "“origens turais e ibéricas" um obstdculo intransponivel as tentativas de construir uma sociedade democratica no pais. Sérgio pretende com sua "metodologia dos contrérios" mostrar que os processos que condicionaram nossa formacio social sio histéricos e, Portanto, sujeitos a transformagées. Por isso esses tracos marcantes do nosso cardter nacional aparecem e se afirmam num confronto incessante e cujos resultados so, a cada momento, 0 produto de uma relagao tensa e instavel. E interessante como Sérgio Buarque "inverte" 0 ponto de partida da andlise com relacdo a Gilberto Freyre. Enquanto este enfatiza o carater "adaptativo" do processo de colonizacio portugués, Sérgio ressalta a tensao que se instala no processo mesmo da ocupagao territorial. "A tentativa de implantacdo da cultura européia em extenso territ6rio, dotado de condigées naturais, se ndo adversas, largamente estranhas a sua tradicdo milenar, 6, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequéncias. (...) 0 certo € que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa pre- guica parece participar de um sistema de evolucdo pro- prio de outro clima e de outra paisagem." (1978, p. 3). Longe, no entanto, de se limitar 4 constatagao da "artifi- cialidade" da sociedade colonial (o que o aproximaria perigo- samente do argumento autoritério), Sérgio Buarque redireciona o foco para as tensdes das proprias sociedades ibéricas, "territories ponte" entre a Europa e os "outros mundos" (Africa e Asia). Portanto, os "desequilibrios" sociais derivados da colonizagao poderiam ter uma origem anterior aos descobrimentos e fazer parte do "carter ibérico" marcado, este também, pelo esforgo de reconquista dos territorios ocupados pelos mouros. Ele constréi seus argumentos nesse estilo "contrapontistico" em que a cada afirmagdo se contrapde um fator que modifica ou relativiza as suas conseqiiéncias. 238 LUA NOVA N® 26 ~ 1992 Assim, também com 0 nosso "personalismo", ainda aqui uma caracteristica "herdada" dos povos ibéricos, que aparece tanto como a principal explicagao para a "tibieza das formas de organizagao, de todas associa¢des que impliquem solidariedade e ordenagao", que constitui um obstéculo ao desenvolvimento social, como para a rejeic¢do sistematica a toda forma de hierarquia que se funda necessariamente em privilégios ou que sem divida nos aproxima da "mentalidade moderna" igualitarista. Os "desequilibrios de personalidade" herdados dos povos ibéricos nao se apresentam, portanto, como fatores definitérios do "carater nacional", esterilizados numa categoria univoca e estatica, mas compdem-se num jogo de forcas opostas e em constante realinhamento. Nao pode ser entendida de outra forma a inversio que Sérgio opera no argumento inicial da "artificialidade" do processo colonizador (ibid, p. 12). Aqui, Sérgio Buarque se aproxima do argumento central de Gilberto Freyre, a0 desqualificar o "mito de origem" que atribui a artificialidade da nossa formagao colonial grande parte dos problemas nacionais. A exploragéo € ocupacio do nosso territ6rio, feita "a0 acaso", e apesar mesmo da auséncia de uma *vontade construtora e enérgica", no teria sido possivel, segundo Sérgio, sem o "aventureiro", individualista, desorganizado e auda- cioso que se espalhou pelo sertio em busca de riqueza e prestigio. A eles devemos nao apenas nossa unidade territorial, mas a propria existéncia de um nicleo comum de valores culturais. A viso historica de Sérgio tornava-o extremamente sensivel ao cardter mutivel dos processos sociais; dai o recurso constante as inversdes de perspectiva que abrem "brechas" no tecido da Historia e nos mostram como os "fatos hist6ricos" nao s%o mais do que o resultado de decisées humanas, conscientes ou nao, que se cristalizam em determinados padrées de compor- tamento. Num trecho fundamental de seu ensaio, procurando contestar 0 preconceito que atribuia ao tipo "aventureiro" o nosso carter "indolente" e "ganancioso", Sérgio invoca surpreen- dentemente o exemplo inglés, por entéo o modelo acabado do "povo superior’, industrioso e disciplinado, para demonstrar sua tese de que as nossas "raizes" eram essencialmente hist6ricas e, portanto, em constante transformagéo. Acompanhemos sua interessante argumentagio: VERTENTES DEMOCRATICAS 239 "O surto industrial poderoso que atingiu a nacdo britanica no decurso do século passado, criou uma idéia que esta longe de corresponder a realidade, com relacdo ao povo inglés (...). A verdade & que o inglés Hipico nao & industrioso, nem possut em grau extremo © senso da economia, caracteristico de seus vizinhos continentats mais préximos. Tende, muito ao contra- rio, para a indoléncia e para a prodigalidade, e estima acima de tudo, a boa vida." (ibid, p. 14). Argumentos comparativos eram recorrentes no pensamento politico autoritério da Primeira Reptblica sé que em sentido oposto ao de Sérgio; dai o seu papel estratégico no esforco de desqualificacdo das "teses" a respeito da inferioridade nio apenas racial, mas social, econ6mica e politica dos "nossos mestigos". Afinal de contas, se a falta de um "espirito industrioso” inato, ndo obstou o desenvolvimento econémico da sociedade inglesa do século XIX, por que constituiria um fator negativo aqui, em terras desertas e hostis, tao necessitadas de gente que as ocupassem? O fato € que, conclui Sérgio, nao havia povo mais "adequado" 4 empreitada colonizadora do que o portugués, e o que de inicio parecia "defeito", 0 gosto pela aventura, o ganho facil e a averséo pelo trabalho sistematico, converte-se em qualidade. "Num conjunto de fatores tao diversos, como as racas que aqui se chocaram, os costumes e padroes de exts- téncia que nos trouxeram, as condi¢ées mesoldgicas e clmatéricas que exigiam longo processo de adapta- ¢Go, fot o elemento orquestrador por exceléncia. Fa- vorecendo a mobilidade social, estimulou os homens, além disso, a enfrentar com denodo as asperezas ou resisténcias da natureza e criou-thes condicées ade- quadas a tal empresa." (ibid, p.16). No seu estilo "contrapontistico" Sérgio aproxima-se outra vez de Gilberto Freyre, retomando quase que inteiro o argu- mento a favor da colonizagao portuguesa e do processo de miscigenag3o que dela resultou. Assim, também para ele, o *aventureiro" portugués foi obrigado a "adaptar-se" as imposigdes da economia agrfrio-escravista, baseada no latinfindio mono- 240 LUA NOVA N® 26 ~ 1992 cultor, dando origem a uma peculiar sociedade rural, pouco apegada 4 terra, interessada apenas nos seus frutos imediatos; dai a nenhuma preocupagdo com o desenvolvimento técnico da lavoura ou com a preservacao do solo. Dai também que desse confronto inusitado entre o colonizador "ganancioso e indo- lente", pouco afeito a exploracao sistematica e racional do trabalho, e a economia agricola e escravista, resultasse um domi- nio portugués "brando e mole, menos obediente a regras: ¢ dispositivos do que a Lei da natureza." (ibid, p. 22). Ao invés da tensdo racial e do conflito econémico, a vida social parece "ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonancias sociais, raciais e morais." Tal como em Gilberto Freyre, a miscigenago, a tolerancia racial, € positivamente valorizada, especialmente por seus efeitos no sentido da maior integragao cultural e social e pela diminuigao do sentimento de distancia entre os dominadores e a massa trabalhadora, constituida por homens de cor (ibid, p. 24). Nestes indicios de identificagio entre senhor e escravo reside a possibilidade de construgdo de uma sociedade integrada culturalmente e capaz de se mobilizar em torno de um projeto nacional, Por isso Sérgio desloca a andlise do preconceito, da separacao pré-social (entre racas e culturas) para a tensao intra- social (entre classes econdmicas). O preconceito, portanto, se orientou muito mais no sentido de discriminar os individuos em fung’o da sua posigio no mundo do trabalho (manual ou intelectual, qualificado ou desqualificado, etc.) do que em fungao de caracteristicas raciais. Dai valorizar a “flexibilidade" e a mobilidade social vertical da sociedade brasileira em detrimento dos atributos negativos como a "desorganizagéo" do trabalho ou a tendéncia a exploragao predatoria de nossas riquezas, recurso muito utilizado pelos idedlogos autoritérios para justificar a intervencao estatal na sociedade. Mas Sérgio Buarque nao se limitou a constatar a "viabilidade” cultural e social do pais. O grande mérito de Raizes do Brasil foi apontar também para a possibilidade de transformagées politicas sem 0 recurso a um Estado autoritério. Portanto, ndo éramos apenas uma sociedade relativamente mais integrada do ponto de vista cultural e social do que supunham nossos sociélogos "autoritarios', mas essa sociedade mestica e atrasada apresentava indicios de uma dinamica politica propria. Empenhado em revelar nossa "potencialidade democratica’, Sér- VERTENTES DEMOCRATICAS 241 gio procura, em todos os niveis da sociedade, sinais de transfor- mac&o social e politica quer no sentido de maior igualdade de direitos civis, politicos e sociais, quer no da "modernizacio" econémica e social. ‘A revalorizagio da Abolicio, como sinal de uma transformagao estrutural da sociedade, constitui um dos pontos chave da interpretacao de Sérgio Buarque. Seu argumento era simples, mas implicava numa consistente revisdéo de teses corren- tes no pensamento social da época, que enfatizavam a persisténcia de uma ordem rural, patriarcal, autoritéria e carente de dinamicidade, apesar da emancipacao dos escravos. Concordando em que nossas "raizes ibéricas", profundamente fincadas na estrutura rural, constituiam um consideravel obstéculo ao desenvolvimento social, econédmico e politico do pais, Sérgio Buarque argumenta, no entanto, que nao se deveria esperar transformacées "cataclismicas", ao modo das revolugées politicas, em que caudilhos € generais se revezavam no poder sem operar nenhuma mudanga de fundo na sociedade. A "grande revolucdo brasileira", esta sim profundamente vinculada as estruturas da sociedade, ndo era "um fato que se registrasse em um instante preciso", era um processo demorado e que vinha durando pelo menos ha trés séculos (ibid, p. 127). Situada estrategicamente no vértice desse sistema econ6mico arcaico, toda e qualquer alteracio nos estatutos juridicos da escravidao refletir-se-ia diretamente nas estruturas sOcio-econémicas que se sustentavam nesse regime de trabalho. £ por isso que a Abolicdo configura, nas palavras de Sérgio, "marco divis6rio entre duas €pocas" (p.-41), pois com ela tinham "cessado de funcionar alguns dos freios tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas, que s6 entdo se faz inevitavel." Gibid p. 127). Investindo contra a "tese autoritéria" que procurava desvincular os fundamentos da estrutura agraria e patriarcal da sociedade das transformagdes econémicas e sociais, j4 evidentes nas regides mais desenvolvidas do pais, Sérgio Buarque procurou demonstrar como esse processo de modemiza¢ao nao apenas se explicava em larga medida pela eliminagio do trabalho escravo, como estava invadindo impiedosamente e desagregando as estruturas econémicas daquele mundo rural em que se sustentavam nossas “raizes ibéricas" (ibid, p. 128). 242 LUA NOVA NP 26 - 1992 Assim, ndo apenas estivamos caminhando a passos firmes para uma sociedade predominantemente urbana, como a propria lavoura, ainda a nossa principal atividade econdmica, sofria transformagées importantes. Comparadas as “baronias" autérquicas e aristocraticas, que se formavam em torno dos engenhos de agicar, as fazendas de café do oeste paulista poderiam ser consideradas "centros de exploragao industrial". Neste contexto de transforma¢ées estruturais, a proclamacdo da Repdblica, por exemplo, nao seria mais do que uma conseqiiéncia da perda de vitalidade dos velhos proprietérios rurais que constituiram a elite politica do Império. A critica 4 Repdblica oligirquica, comum nos autores "autoritérios", aparece em Sérgio Buarque articulada a uma andlise mais ampla das transformagées sociais que destruiram as bases materiais do Estado imperial sem, no entanto, substitui-lo por estruturas politicas "modernas". A crise politica da repiblica € assim explicada como um dos aspectos da crise geral do Estado, na transiga@o da sociedade agrario-patriarcal para a sociedade urbano-industrial. Atento aos problemas da nossa organizacio politica e consciente da centralidade do Estado no processo de constru¢ao da Nacdo, Sérgio Buarque propde uma formula politica que compatibilize autoridade e tolerancia, respeitando os nossos tragos culturais basicos sem que o Estado veja diminuida sua capacidade de intervengdo. Vejamos como ele esboga este modelo de "Estado de compromisso" baseando-se na experiéncia monérquica. “O Estado entre n6s, ndo precisa e ndo deve ser despo- Hco — 0 despotismo condiz mal com a docura do nosso génio —- mas necessita de pujanga e compostura, de grandeza e solicitude, ao mesmo tempo, se quiser adquirir alguma forca e também essa respeitabilidade que oS nossos paises ibéricos nos ensinaram a Considerar a virtude suprema entre todas. Ele ainda pode conqutstar por esse meio uma forca verdadeira- ‘mente assombrosa em todos os departamentos da vida nacional. Mas € indispensdvel que as pecas de seu mecantsmo funcionem com certa harmonta e garbo. O Império realizou isso em grande parte. A auréola que ainda o cinge, apesar de tudo, para os nossos VERTENTES DEMOCRATICAS 243 contempordneos, resulta quase exclusivamente do fato de ter encarnado um pouco esse ideal." (ibid, p. 131). Esse modelo "imperial", mas benevolente, de Estado emerge como resultado da contraposicao que Sérgio Buarque opera entre © liberalismo constitucional que "erra" ao “acreditar que a letra morta pode influir por si s6 e de modo enérgico sobre © destino de um povo" (ibid, p. 133) e as varias versées do "caudilhismo" autoritério que vé na substituicéo "revolucionéria" dos detentores do poder, a solugo para os problemas estruturais da sociedade. A critica de Sérgio Buarque a organizacao politica republicana, ainda presa a antitese liberalismo-caudilhismo, se nao se resolve num apelo as medidas saneadoras de um Estado autoritério, recua, no entanto, diante da tarefa que se impde ao pensamento coerentemente democratico: a delimitacdo inequi- voca do universo da cidadania, isto 6, quem participa e decide, e as formas correspondentes de representacéo dos cidadaos no governo, ou seja, através de que instituigées se exerce um governo efetivamente democratico. Antes de qualquer observacio, € preciso ressaltar a fragilidade dos argumentos de Sérgio Buarque em favor da demo- cracia, especialmente quando se trata de definir os instrumentos juridicos e a forma institucional sobre os quais deveria sustentar- se 0 regime representativo no Brasil. Mas esta "timidez" e até inseguranca na discussio do "nosso" modelo institucional de democracia no constitui uma exce¢ao na Primeira Republica e, ao contrério do que se possa imaginar, se a posigio de Sérgio Buarque discrepa da opiniao comum da elite politica e intelectual da época é pela audaciosa defesa da democracia como modelo politico, certamente, mas principalmente, como modelo de sociedade. E isto ndo € pouco para um momento em que o regi- me representativo (especialmente o liberal-democratico) encontrava-se sob cerrado "bombardeio ideolégico", tanto dos grupos autoritérios e fascistas, como da esquerda revolucionaria, Nao quero com isso justificar a auséncia de uma discussao mais consistente a respeito dos aspectos institucionais da democracia, critica que pode ser generalizada para todos os intelectuais de perfil mais democritico 4 €poca. O que me parece, ficou claro com a leitura de obras como Casa Grande e Senzala e Raizes do Brasil, & que a fragilidade do debate democritico derivava mais de limitagées estruturais da sociedade brasileira, do 244 LUA NOVA N® 26 - 1992 que da auséncia de uma intelligentsia efetivamente democratica, A inexisténcia de uma grande populacdo urbana que compensasse 0 controle que as oligarquias regionais exerciam sobre as massas rurais e, portanto, a baixissima capacidade de mobilizaco dos partidos politicos, sindicatos e associacdes civis sobre esta “rala" opinido pablica, atuou decisivamente para isolar os intelectuais democraticos da a¢do politica direta (os casos de Rui Barbosa e Alberto Torres) e do préprio debate institucional sobre a democracia (Gilberto Freyre e Sérgio Buarque). ‘Assim, enquanto Sérgio € incisivo no ataque ao persona- lismo politico e as oligarquias partidérias simulacro de uma ordem institucional que apenas encobre o “atbitrio" e a "anar- quia" predominantes em nossa vida publica, parece "timido" e, por isso mesmo, tendente a generalizagdo, quando trata de precisar nao apenas © perfil politico-institucional do nosso regime democratico, mas as proprias condigdes sécio-econd- micas que nos assegurariam um minimo de "compatibilidade" com os ideais democraticos que ele propunha para a sociedade brasileira. £ assim quando procura destacar entre os fenémenos decorrentes das condigdes da nossa formagio nacional, "trés fatores que teriam particularmente militado" a favor da demo- cracia: "1. a repulsa dos povos americanos, descendentes dos colonizadores e da populacado indigena, por toda bierarquia ractonal, por qualquer composigao da so- cledade que se tornasse obstdculo grave 4 autonomia do individuo; 2. a impossibilidade de uma resistencia eficaz a certas influéncias novas (por exemplo, do primado da vida urbana, do cosmopolitismo), que, pelo menos até re- centemente, foram aliadas naturais das idéias demo- cratico-berais; 3. @ relativa inconsisténcia dos preconceitos de raca e de cor.” (ibid, p. 139). Aqui Sérgio Buarque praticamente reafirma as teses de Gilberto Freyre, que, como vimos, limita-se a constatar a nossa "viabilidade" como Nacio, integrada culturalmente e socialmente VERTENTES DEMOCRATICAS 245 mais homogénea, isto €, os pressupostos da identidade nacional que sustentam a "possibilidade" de uma sociedade democratica, por auséncia de obstéculos de ordem estrutural, mas que de forma alguma apontam caminhos para a construgéo de uma ordem politico-institucional democratica nacional. A inconsisténcia desses "fundamentos éticos" da nossa inclinagao democratica parece evidente até mesmo ao autor. Nao surpreende, pois, que Sérgio, logo em seguida procure relativizar © argumento de que a "bondade natural" do povo brasileiro, expressa, equivocadamente, na figura do *homem cordial", seria suficiente garantia para 0 sucesso do regime democritico: "..@ propria coincidéncia notada entre os ideais que ele apregoa e 0 comportamento social que se tentou definir como tradicionalmente peculiar ao nosso povo é, no fundo, mais aparente do que real. Todo o pensamento liberal-democratico pode resumir-se na ‘frase célebre de Bentham: 'A maior felicidade para o maior ntimero'. Nao é dificil perceber que essa idéla esté em contraste direto com qualquer forma de convivio humano baseada nos valores cordiais. Todo afeto entre os homens funda-se forg¢osamente em breferéncias. Amar alguém € amd-lo mais do que a outros. Hd aqui uma unilateralidade que entra em franéa oposig@o com o ponto de vista furidico e neutro em que se baseia o liberalismo." (ibid, p. 139). Ora, se se trata de qualificar as condigdes formais e, portanto, institucionais para a consolidagio da democracia, é preciso ir além da mera constatag’o da auséncia de obstéculos culturais ou sociais. A demonstragio da existéncia de uma identidade cultural e nacional, se permite uma interpretacao da nossa historia como um processo de crescente auto-deter- minagio, nao nos autoriza a pressupor um "destino democritico" inscrito na propria natureza "cordial" da sociedade brasileira. £ Sérgio Buarque quem o admite explicitamente. "Com a simples cordialidade nao se criam os bons principios. E necessdrio algum elemento normativo sido, tnato na alma do povo, ou mesmo implantado pela tirania, para que possa haver cristalizagao soctal. 246 LUA NOVA N® 26 - 1992 A tese de que os expedientes tiranicos nada realizam de duradouro é apenas uma das muitas ilusbes da mitologia liberal, que a historia esid longe de confirmar." (bid, p. 140). Diante do impasse aparentemente insolivel, entre a rejeicdo firme da tradico liberal-juridicista das nossas elites Politica e a recusa "ética" dos modelos autoritérios, fascistas e co- munistas, Sérgio Buarque, operando uma espécie de "acrobacia" intelectual, recua da posi¢Zo "normativista", que via no regime democratico o resultado de um esforgo racional de instituciona- lizagdo de regras impessoais de representac¢do e administragio dos bens piblicos, e retoma a argumentagao "pragmitica" para explicar a incompatibilidade "natural" da sociedade brasileira com os modelos politicos "rigidos" e férmulas institucionais abstratas e distantes da nossa realidade cultural. Assim, contra © risco de solugdes "extremas", ao modo dos regimes fascistas e comunistas, ele argumenta com a forca "absorvente" do "cardter nacional" que "amolece" e "deforma" qualquer principio ético ou politico, que reduziria o fascismo, por exemplo, a uma doutrina "acomodaticia" — "que deseja no intimo, algumas vezes com desconcertante ostentagao, a chancela, o nihil obstat da autoridade civil". No que, aliés, seguitia a "grande tradigao brasileira, que nunca deixou funcionar os verdadeiros partidos de oposi¢do, representativos de interesses ou de ideolo- gias." (ibid, p. 142). Da mesma forma, 0 "nosso comunismo" exprimiria muito mais fielmente uma *mentalidade anarquista", pouco consistente com a disciplina rigida exigida por Moscou, do que a "tensio incoercivel para um futuro ideal e necessdrio" em que se inspirava o marxismo da Terceira Internacional. A tentativa de conciliar uma reforma profunda do Estado ¢ 0 respeito as caracteristicas do "nosso modo-de-ser", por si mesma sintomatica das limitagdes estruturais que uma perspectiva democratica teria de superar para pensar uma transformacao politica radical, torna-se clara no repto final de Sérgio Buarque: "Ja temos visto que o Estado, criatura espiritual, opde- se @ ordem natural e a transcende. Mas também é verdade que essa oposic¢do deve resolver-se em um contraponto para que o quadro social sefa coerente VERTENTES DEMOCRATICAS 247 consigo. Ha uma tinica economia posstvel e superior aos nossos célculos para compor um todo perfeito de partes td0 antagénicas. O espirito ndo é forca nor- mativa, salvo onde pode servir a vida social e onde lhe corresponde. As formas supertores da sociedade devem ser como um contorno congénito a ela e dela inse- pardvel: emergem continuamente das suas necessi- dades especificas e jamais das escolhas caprichosas. H@ porém um dem6nio pérfido e pretencioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olbos estas verdades Singelas. Inspirados por ele, os homens se véem diver- sos do que sao e criam novas preferéncias e repugnan- cias. £ raro que sejam das boas.” (ibid, p. 142). A concluséo de Raizes do Brasil, confirma o "recuo" 4 primeira vista, meramente "tatico", diante do desafio teérico- politico de superar o "abismo" entre sociedade e Estado, mas que reflete inegavelmente um impasse “estratégico" do pensamento democritico republicano. © problema, tal como proposto por Alberto Torres e Oliveira Viana, deve ter uma solucao "vertical", através de uma intervencdo do Estado central, ou, como o pretenderam Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, "horizontal", por meio de um gradual adensamento do tecido social, apoiado num embrido de identidade cultural basica que se desenvolveria “naturalmente" no sentido da integracao social e politica essencialmente democratica? Sérgio Buarque rejeita as alternativas autoritarias porque consistem numa solucdo abstrata para a superacao desse "abismo" entre sociedade e Estado, que "violenta" a natureza "cordial" da sociedade brasileira; também recusa o doutrinarismo das propostas liberais que ignoram a natureza "material" dessa cis’o que reduzem a uma questo de engenharia constitucional. Entéo, como pretende ele seja superado o impasse? Pela Revolugao certamente nao, também reformas meramente institucionais seréo indcuas. Como realizar 0 seu ideal de Estado *amlgama" que integre, de modo no conflitual, 0 nosso "povo", essencialmente "bom" e as elites, "deformadas" pelo "mau uso" do poder, mas, ainda assim, a Gnica via de acesso a uma sociedade moderna e desenvolvida? A "ndo-resposta" de Sérgio Buarque pode ser interpretada simplesmente como uma fuga a questo, mas, talvez, seja mais interessante tom4-la como uma 248 LUA NOVA NP 26 - 1992 profunda consciéncia da insuperabilidade do impasse, pelo menos nos termos em que se colocava para os intelectuais e politicos dos anos 30. A Revolucgio de 30 abre um enorme espaco para reorganizacao da ordem politica e institucional do pais que os setores democr4ticos nao souberam ou nao puderam aproveitar. A imposicéo da “solugdo" autoritaria, através do Estado Novo, recolocaré 0 problema em novos termos, mais do que nunca atuais, para o pensamento republicano democritico: como transformar o Estado autoritério, instrumento de intervengao "arbitréria", mas supostamente "eficiente’, na sociedade, segundo um modelo de organizacao politica abstrato e, portanto, necessariamente violento, numa instituicdo representativa da sociedade, tal como ela €, frouxa, dispersa e dominada por desequilibrios estruturais, aparentemente insuperaveis nos termos de uma simples reforma constitucional? VALERIANO MENDES FERREIRA COSTA, mestre em Ciéncia Politica pela USP, € pesquisador do CEDEC € prepara doutoramento em Sociologia na USP. BIBLIOGRAFIA FREYRE, Gilberto (1978); Casa Grande ¢ Senzala, Rio, Liv. José Olympio Ed. HOLANDA, Sérgio Buarque de (1978); Raizes do Brasil, Rio, Liv. José Olympio Ed. SANTOS, Wanderley Guilherme dos (1979); Cidadania ¢ Justica, Rio, Ed. Campus. TORRES, Alberto (1978); A Organizagdo Nacional, Sic Paulo, Cia Editora nacional. VIANA, Oliveira € >, Instituigées Politicas Brasileiras, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia/EDUSP/EDUFF. (1930); Problemas de Politica Objetiva, Sdo Paulo, Cia Editora Nacional.

You might also like