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CAPITULO 1 INTRODUCAO O HOoMEM se movimenta a fim de satisfazer uma neces- sidade. Com sua movimentacao, tem por objetivo atingir algo que lhe é valiose. E facil perceber 0 objetivo do movimento de uma pessoa, se é dirigido para algum objeto tangivel. Entretanto, ha também valores intan- giveis que inspiram movimentos. Eva, nossa primeira mae, ao colher a macd da arvore do conhecimento, executou um movimento ditado tanto por um objetivo tangivel, como por um intangivel. Desejava ter a mac& para comé-la, mas ndo apenas para satisfazer seu apetite por comida. O tentador lhe havia dito que, comendo a mac, ela alcancaria o maxi- mo do ‘conhecimento: era esta sabedoria o valor funda- mental a que ela aspirava. Conseguiria uma atriz representar Eva colhendo uma maca de uma arvore, de modo tal que um espec- tador totalmente ignorante da histéria biblica ficasse a par de seus dois objetivos, o tangivel e o intangivel? Talvez nao de tode convincentemente, mas a artista interpretando o papel de Eva pode colher a.maca de varias maneiras, usando movimentos de variada expres- sividade. Pode fazé-lo Avida e rapidamente ou langui- da e sensualmente. Pode também colhé-la com uma expressdo destacada no braco estendido e na m§o cris- pada, em seu rosto e em seu corpo. Muitas outras sao as formas de agao, cada uma delas podendo ser caracterizada por um tipo diferente de movimento. Ao definir 0 tipo de movimento como voraz, sensual ou destacado, nao se define apenas aquilo que se viu de concreto. Aquilo que o espectador observou pode ter sido ig apenas um peculiar sacudir répido, ou talvez um lento deslizar do braco. A impressdo de voracidade ou sen- sualidade é a interpretagio pessoal do espectador, conferida ao estado de espirito de Eva numa situagao peculiar, Se o espectador pudesse observar em Eva 0 rapido movimento de agarrar no ar, quer dizer, se ele visse a mesmo movimento executada sem o objetivo con- creto, provavelmente nao seria levado a cogitar nem do objeto, nem do motive. Perceberia um tovimento rapido de agarrar sem compreender seu significado dramético. & Gbvio que poder ocorrer ao espectador indagar se acaso este movimento, aparentementé sem propésita objetivo, nao teria sido executade no intuito de revelar alguns tracos do estado de espirite de Eva, ou de seu cardter, E pouco provavel que um movimento consi- ga traduzir mais do que uma impresséo superficial, pois jamais conseguiria oferecer um retrato definitivo de seu carter. Por outro lado, varios outros movi- mentos concerdantes, como por exemplo, os que in- cluissem a postura € 0 modo de andar de Eva, antes do gesto de arrancar, ofereceriam indicagdes adicio- nais e mais clatas de sua personalidade. Mas, mesmo em tais citcunsténeias, a conduta de Eva no ato de colher a magi seria menos caracteristica de sua perso- nalidade do que sua momentinea avidez naquele dado contexto, Em outras ocasides, ela pode desenvolver Titmos e formas de movimento marcadamente diferen- tes que, comportando varias agdes, a revelariam como uma pessoa sob uma Juz inteiramente diferente +O movimento, portanto, revela evidentemente mui- tas coisas diferentes. £ 9 resultado, ou da busca de um objeto dotado de valor, ou de uma condicdo mental. Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada situaclo. Pode tante carac- terizar um estado de espirite e uma reacdo, como atri- butas mais constantes da personalidade. 0 movimento pode ser influenciado pelo meio ambiente do ser que a se move.eE assim que, por exemplo, o meio no qual corre uma ac&o dard um colorido particular aos movi- mentos de um ator ou de uma atriz; serdo diferentes ‘ino papel de Eva no paraiso, ou no de uma mulber da ‘sociedade num saléo do século XVII, ou no de uma moca no balcdo de um bar na favela. Todas as trés mulheres podem ter personalidades semelhantes e exi- bir quase que as mesmas caracteristicas gerais de movimento, mas elas adaptariam seus comportamentos a atmosfera da época ou ao lugar em que estivessem. Um carater, uma atmosfera, um estado de espi- rito, ou uma situacgdo nao podem ser eficientemente representados no paleo sem o movimento © sua inerente expressividade. Os movimentos do corpo, incluindo qnovimentos das cordas vecais, s40 indispensiveis 4 atuacao no paleo. HA ainda um outro aspecto do movimento que é de capital importaneia para a atuagdo dramética. Quando dois ou mais artistas vao se encontrar, no paleo, deve entrar em cena, aproximar-se um do outro (seja se tocando ou mantendo uma certa distancia entre si), para depois se separarem e se retirarem de cena. © agrupamento dos atores no palca se d4 através do movimento, cuja expressividade difere da do movi- mento individual.* Os membros de um grupo se move a fim de demonstrar seu desejo de entrar em contato uns ¢om os outres. O objetivo astensive do encontra poderd ser lutar, abragar, dancar ou_simplesmente conversa. HA, porém, propisites intangiveis, tals como a atracao entre individuos que simpatizam entre si ou a repulsa sentida por pessoas ou grupos antipaticos uns para com os outros.« Os movimento grupais podem ser vivos, rapidos e carregados da ameaca de agressividade. ou suaves ¢ sinuosos como o movimento da Agua num lage sereno. ‘As pessoas podem agrupar-se & semelhanga de ruchas de montanha, dsperas € esparsas, ou come um riacho que flui lentamente na planicie. As nuvens freqiiente- a TL mente se agrupam em formas bastante interessantes, de efeito dramatico bem estranho, Os movimentos gru- pais no paleo lembram de certo modo as mutdveis ‘puvens, das quais tanto pode se formar uma tempestade como irromper o sol. O ator individual empregaré por vezes a sua movi- mentacio como se scus membros fossem 08 componen- tes de um grupo e esta é provavelmente a soluc&o do enigma intrinseco a expressividade da gesticulacaa, Ao colher a macd, voraz ou langilidamente, Eva expres- sara sua atitude através dos movimentos de partes de seu corpo; na avidez, seus bracos ou até mesmo todo 9 seu corpo poderdo rapida e ardentemente se atirar para a frente, completamente voltada em direcio ao objeto ambicionado, A aproximacao languida podera ser caracterizada por um lento e despreocupado levan- tar de um braco. enquante o resto de corpo permanece preguicosamente curvado, distante da objeto. Quase se trata de um movimento de danca, no qual a ag&o exter- na esta subordinada sensae&o interna. Nao ha neces- sidade de palavras para transmitir essa sensagio ao espectador. O gesto de Eva procurando pegar a maga ainda nao constitui uma cena dramética. O drama se inicia no mo- mento em que ela a oferece a Addo. 0 drama sempre se da entre duas ou mais pessoas ¢ é nesse contexto que © movimento grupal atinge seu nivel de maior proprie- dade. Mesmo um soliléquio e um solo de danea so, na realidade, um didlogo entre dois pilos de uma indi- vidualidade mobilizada por reflexdes pessoais ou por alteracies de humor. A dualidade dos pélos se torna visivel nos movimentos, 05 quais exibem as tenses internas. Em cenas de amor e combate, a dualidade das emo- ¢Ses fica incorporada em duas pessoas. Eva oferece a Adio o fruto proibido. Seu gesto de ofertar e o dele de aceitar constituem mais do que um mavimento utili- tario, por meio do qual a maga passa de um para 9 Fy outro. B a formacéio de uma tempestade iminente que pressagia nuvens trovejantes, earregadas com o destino da raca humana, Os gestos serdo menos notdveis menos expressives se a tempestade que se avizinha for condensada num didlogo verbal. A estéria do fruto proibido representada numa danga-mimica teré um nivel maior de expressividade em sua elaborada gesti- culagdo do que se for acompanhada de palavras. A danga pura ndo possui uma esbiria descritivel. Freqientemente é impossivel esquematizar o contetdo de uma danca em palavras, embora sempre se possa descrever o movimento. Na danca pura o espectador no poderia saber que um movimento de agarrar rapi- damente no ar estaria expressando avidez ou qualquer outra emocda relativa & macA: veria simplesmente o agarrar rapido e experienciaria seu significado por intermédio do interjogo de ritmos e formas que, na danca, contam sua propria estéria, acontecimento fre- qiente num mundo de valores e desejos nao definidas logicamente. O movimento, em danca pura, nda necessita adap- lar-se aos catacteres, as acdes, as épncas ¢ as situa- Ses, mas o faz na danca-mimica que, virtualmente, & uma acdo sem palavras, embora muitas vezes apoiada num fund musical. A execucéio no paleo de dancas sociais caracteristicas de um perioda histérico, do status social do povo, da ocasiao € localidade da danca ndo pode ser considerada como danca pura. Nesta, 0 impulso interior para @ movimento cria seus pr6 padraes de estile e de busca de valores intangiveis e basicamente indescritiveis. A arte do movimento no palco incorpora a totali- dade das expresses corporais, incluindo o falar, a representaedo, a mimica, a danca e mesmo ui acom- panhamento musical. OQ drama falado e a danca musical sao, contudo, floragoes tardias da civilizagdo humana, © movimento sempre foi empregado com dois propésitos distintos: 2 a consecucdo de valores tangiveis em todos os tipos de trabalho e a abordagem a valores intangiveis na prece ena adoracaéo. Ocortem os mesmos movimentos cor- porais tanto no trabalho quanto na veneracdo religiosa, conquanto difira a sua significacie em ambas as instan- cias. © estender de um brago & o segurar e manejar de um objeto devem ser feitos segundo uma ordem légica a fim de se alcanear os objetivos praticos do trabalho. Isso nao se di na adoragao. Neste contexto, os gestos se seguem uns aos outros de acordo com uma seqién- cia completamente irracional, apesar de cada um dos gestos usados na adoracio poder ser também encaixa- do num plano de aco de trabalho. O estender de um brago no ar pode expressar o desejo por alguna caisa que nao se pode apanhar com a mao. O balangar dos bragos e do corpo, que eventualmente lembrem o empu- nhar de um objeto, podem significar uma luta interna e se tornarem a expressio de uma prece para libera- co de uma confusdo interna. © europeu perdeu o habito ea capacidade de orar com movimentos. As genuflexées dos religiosos, em nossas igrejas. sao os vestigios de preces com movi- mento. Os movimentos rituais de outras racas sio muito mais ricos em gama e em expressividade. As civilizacies contamporaneas se limitaram as oragées faladas, nas quais 03 movimentos das cordas vocals s¢ tornaram mais importantes do que os corporais. O falar, enlao, freqiientemente é levado a se transformar em. canto. Entretanto, é provavel que a prece litdrgica e a danga ritual tenham coexistido bé muito tempo atras; sendo assim, é provavel também que o drama falado a danga musical tenham ambas se originado na ado- rao religiosa: de um lado, na liturgia, ¢ de autro no ritual ‘A complexidade total da expressividade humana, enquanto abrangida pela arte do movimento, € repre- sentada no seguinte diagrama. u Nunca sabemos se o homem se considera como par- ticipante de uma tragédia ou de uma comédia da qual ele é 0 protagonista no drama da existéncia, e a Natu- reza formande o coro, Nao obstante, é um fato inegé- vel que 0 extraordinario poder de raciocinio e de acao do homem levou-o a ocupar uma posicio peculiar no que tange ao seu relacionamento com o meio que a . cireunda. “OQ homem tenta representar os conflites que surgem do solitfrio papel de sua raga. O publico vé, refletido no espelho da tragicomédia, um personagem que luta @ que se encaminha inexoravelmente para a destruigdo ou para o ridiculo. Parecem set igualmente reconfor- tantes as légrimas e o riso do pablico, para cada caso, como reagdes A representacao das aventuras interiores e exteriores do personagem. ‘Esta néo 6 uma explicacdo utilitarista ou uma des- culpa para a aco dramética, Ha mais coisas sob 0 manto da cooperacio audiéncia-atores do que o diver- ‘timento propercionado pela contemplaciio da miséria eda loucura humanas, um dos olhos rindo, 0 outro cho- rando, © teatro espelha mais do que nosso cotidiano _ de sofrimentos e alegrias, O teatro da um “insight” na oficina na qual o poder de reflexdo e de aco do » homem é gerado. Esse “insight” proporciona mais do 6 | ue uma compreensio mais rica da vida: oferece a ‘Uperiéncia”inspiradora de uma realidade que trans- cende a nossa, feita de medos e satisfagdes. ‘0 que realmente acontece no teatro nao se di ape- nas no palco ou na platéia, mas no Ambilo de urna cor~ rente magnética entre esses dois pélos. Os atores no paleo, constituindo 0 pélo ative desse circuito magné- tieo, sdo responsdveis pela integridade de propésito segundo 0 qual estd sends encenada a peca. ‘Depende disto a qualidade da corrente estimulante entre paleo udiéncia. - CaN) inegivel o encanto da perfeicéio meciinica ine- rente aos movimentos da fala e da gesticulacdo. & um ‘prazer enorme ouvir uma fala com boa dicgae & presen- ciar gestos apropriados, nos quais parece ser completa a vitoria do espirito sobre a matéria. : ‘© ator individual que atinge esse nivel de fascinio na representacao se coloca num grau clevado da escala de perfeigfo. Surge, no entanto, uma questfio: seria este o degrau mais alto? Um virtuose desse género ‘empréga os movimentos do carpe bem como das cordas i is habilidoso artesdo € seus Quanto maior a economia de esfarga, menos apa’ @ a fadiga. Uma grande economia de esforgo faz com que o movimento parega ecorrer quase que sem esforge algum. Isto também se aplica aos movimentos que geram a voz, ouvidos mas nao vistos. Os detalhes expressivos permanecem quase que acidentais neste tipo de movimento executado porque tado o esforco esta concentrado na realizacao suave das agies necessarias ao trabalho. O oficio do artesio é trabalhar com obje- tos materiais, 0 do ator 6 trabalhar com seu préprio corpo e voz, empregando-os de tal modo que fiquem eficientemente caracterizados a personalidade humana e@ seu comportamento, varidvel segundo as diversas situacdes. Tanto 0 trabalho do arteséo como 0 do ator = a podem ser executados habilidosamente com uma agra- davel e itil economia de estorgo. Mas, no caso do ator, | requer-se mais: ele tem que se comunicar com o publi | c@, Ele tem que estabelecer aquele contato entre palco ¢ platéia que foi acima comparado a uma corrente magnética bipolar. E dbvio que a exibicho de habili- dades num dado movimento pode eriar alguma modali- dade de contato, por vezes até um contato mais intimo gratificante, Aqui surge @ problema da qualidade do contato. A integridade do propésito que postulamos anterior- mente pode ser considerada como uma questao de gosto. © artista que prefere utilizar movimentos habilidosa- mente executados situa-se certamente mals alto na escala da perfeicao. Em sua representacdo, o teatro se torna puro entretenimento, espelhanda a felicidade, a loucura.¢ a miséria humanas, situacéo na qual a audién- cia pode encontrar conforto e alivio do seu penar cotidiano, Suponhamos que fosse verdadeiro o contrario. As conclusées que seriam entao tiradas tim muito de inte- ressante ¢ fundamentam-se no exemplo de muitos artis- tas de primeira classe que niio so virtnoses. O ator que tenta fazer mais do que representar a vida, de modo habilidoso, usa os movimentos de seu corpo ¢ das cor. das vocais com o interesse centrado naquele panto que deseja transmitir para sua platéia e menos nas formas e ritmos externos de suas aches. Este tipo de artista concentra-se na atuacdo dos impulsos internos da con- duta, que precedem aos seus movimentos, dando pouca atencfio, em principio, & habilidade necessdria & apre- sentacio, Resulta, deste modo, uma qualidade dife- rente de contato com o piblico, quando ¢ enfatizada @ participacio interna ao invés da habilidade. evidente que o virtuose se verd facilmente ten- tado a restringir 0 nimero de seus movimentos aque- les que sejam mais adequados & sua habilidade. O outro tipo de ator estaré inclinado a rejeitar todo tipo de sele- a gfio e, para ele, quase todos as exercicios de formas sim- ples de movimento eonstituem mera acrobacia. Em sua tentativa de manter fluindo livremente sua movimen- tacao espontanea, frequientemente apresentar-sé-4 mais irregular ¢ impulsive do que o virtuose De um modo geral, pode-se dizer que essas duas perspectivas contrastantes se movimento com deis diferentes objetivos: ‘ile. de e estA se esforeando para o segundo destes sbjetivos tem uma inclinagio mais profunda e uma chance maior de penetrar nos mais remotos recessos daquilo que vimos denominando oficina de pensamento @ aio. Ao situarmos este ator — dado que ‘seja per- sito em seu préprio género — numa colocac&o superior da escala dos valores teatrais, esté-se dando preferén- cia a formas menos primitivas, ¢ portanto mais com- plexas, de mentalidade e gosto. Poder-se-ia atualmen- te justifiear até certo ponto essa preferéncia, porque parece que o homem contempordneo tem necessidade ‘ie uma profunda penetracao nos mais intimos recessos da vida e da existéncia humana que, se trazides 4 tona, poderiam ajudé-lo a recuperar algumas de suas quali- dades essenciais perdidas. As pessoas que parecem ter evescido demais para a veneracko da pura babili- dade de movimento buscam novos alvos pata seu deseja admirativo. Muita coisa depende dos dramaturgos ¢ coredgrafos € do tipo de pega teatral e balé que apre- sentam, ebora seja um fato que atores ou bailarinos que possiem um sentido realmente criativo de apresen- taco cénica tenham a capacidade de conferit a uma pega inediecre aquele aspecta revelador que langa luz sobre os recantos male dasnaturesaehumana i entos utilizadgs em trabalhos eécritos para.o teatra sao as corporais, os das cordas vocais e, pode-se acrescentar, os executados pelos instrumentis- tas da orquestra, O movimento humano com todas as' cad alavras. ‘A arte do teatro é dinamica, porque cada fase da representacde some quase que imediata- mente apés ter aparecido. Nada permanece estatica ¢é impossivel realizar-se um exame demorado das deta- Ihes. Na misica, um som sucede ao outro ¢ o primeiro morre antes que seja ouvide o seguinte, As falas dos atores © os movimentos dos dancarinos estio todos num fluxo din&mico continuo, interrompide apenas por pausas breves, até que finalmente cesse de todo ao terminar 0 espetéeulo. As tendéncias controvertidas do pensamento e do sentimento des varios personagens representados siio expressas tanto em palavras como em agoes na atua- gdo teatral, que é o desempenho artistico da acao humana. Na mimica ¢ no balé, a dindmica de pensa- mentos ¢ emoges 6 expressa numa forma puramente visual, Por assim dizer, so escritas no ar pelos mavi- mentos do corpo do artista. A parte audivel de um bai- lado, que é a musica, contribui para a danca, em parte acentuando 0s componentes ritmicos dos mavimentos corporais e, em parte, traduzindo seu cantetide emacio- nal em ondas sonoras. Na opera, a fala é substituida belo canto, dai o papel proeminente conferido a miisica. A fluida transitoriedade dos trabalhos das artes F dinamicas tem que ser contrastada com a sdlida dura- bilidade dos trabalhos das artes plasticas e estaticas ” — arquitetura, escultura e pintura — embora deva-se ter em mente que as Gltimas contribuem para o cendrio © para o guarda-roupa. Mas a dindmica da acao ¢ da’ danca é facilmente eliminada se forem excessivamente, acentuados os elementos estaticos da representacao, a saber, cendrio ¢ guarda-roupa. O teatro francamente pictérieo negligencia o atribute essencial do trabalho teatral que € 0 movimento. Este ponto fica melhor entendido se se considera a natureza intrinseea da arte estatica. ‘Varios objetes agrupados podem suscitar num pin- tor, devide as suas caracteristicas de forma, cor ¢ dis- posigdo espacial, o desejo de criar uma natureza morta, Esse quadro podera sobreviver muitos séculos ao cria-, dor e ao objeto inspirador da criacio, Um tral artistico desse teor, no qual o artista traduziu sua Para uma forma estitica e, conseqilentemente, perma: nente, preserva aquile que de outro modo teria sido uma’ impressdo passageira. A arquitetura pode semelhante- mente sobreviver ao projetista. O arquiteto tem uma visdo repentina, uma idéia intuitiva e da-lhe corpo séli- do ¢ permanente em pedra. Igualmente, uma est&tua erigida, por exemplo, num jardim, permanecera como testemunha da beleza que uma vez inspirou o cinzel do escultor, embora tanto este quanto seu modelo tenham falecido ha varios séculos. Os trabalhos artisticos estéticos compreendem os quadros, as esculturas e edificios de belissima arquite. tura, 0s quais podemos acrescentar objetas funcional- mente tteis que levam o traco inegavel do impulso genial da criacéo, Nessas modalidades de arte, ¢ poder dindmico do criador transcende na forma de sev trabalho. Os movimentos que usou para desenhar, pin tar ou modelar caracterizaram suas criagdes e conti nuam imobilizados nos tragos ainda visiveis de ser lapis, pineel ou cinzel, Sua atividade mental se revela na forma que conferiu ao objeto trabalhado, O artista estAtico cria trabalhos que podem ser ‘vistos como um todo e percebidos numa sé olhada, ao observar-se os desenhos, quadros, esculturas ¢ edificios que seu génio produziu, As geracdes se sucedem e cada umd delas admira a mesma tela, o mesmo vaso, a mes. ma estatua ou edificio ao qual o artista atribuiu forma individual praticamente imperecivel © efeito que um trabalho de arte estdtico produz sobre 0 espectador é genuinamente diferente daquele produzido por uma representacAo teatral. Frente a um quadro a mente do observador é convidada a seguir um caminho préprio, As recordagées e associages de idéias conduzem’a um estado de espirito contemplative @ a uma atividade interior de meditacio, A platéia de um teatro, de uma mimica ou de um balé nao tem oportunidade para contemplagéo. A mente do espec- tador vé-se inexoravelmente subjugada pela fluéncia de acontecimentos que mudam a todo instante os quais, dada uma verdadeira participacdo interna de sua par- te, ado deixam tempo disponivel para a cogitacda ¢ meditacdo elaboradas, ambas naturais e possiveis quan- do se aprecia, por exemplo, um quadro ou alguma cena de beleza natural. Representagoes teatrais onde os elementos pictoricos do cendrio e as naturezas-mortas séio superenfatizados tendem a enfraquecer 0 interesse @ a atencdo do espectador ao acontecimento dinAmico, que & © elemento todo-poderoso. Essa superénfase dos elementos pictéricos e arquiteturais pode nao apenas ser um perigo, como também um excessivo raciocinio. analitico nos trechos de didlogo pode destruir a unidade essencial do drama. © livre dramético intelectualizado @ ineficiente no palco. O pensamento analitico tende 4 Tormacaa de idéias estaticas e a um excesso de medi- taco. Quando 6 este o tipo de raciocinio que preva- lece numa pega teatral, o fluir caracteristica do did- : logo dramatico de ‘bom nivel e a acfio dos elementos a controvertides véem-se prejudicados. A mimica, elabo- rada com base em movimentos tanto ao nivel do con- tetido quanto ao de forma, é a arte basica do teatro. Os esforgos* conflitantes do homem em sua busca de valo- res revelam-se com maior veracidade na mimica. Excesso de palavras e excesso de miisica tendem a | ofuscar a verdade dessa manifestacao de esforgo, na medida em que se torna aparente por meio das agdes corporais do artista. A mimica pura atualmente é quase que desconhe- | cida e sua perda-é algo irrepardvel. A arte da mimica floresceu durante os primeiros tempos da civilizaclo humana, na adoleseéncia da hurianidade. Ha valores tais como a juventude, a ingenuidade e a inocéneia que podem ser perdidas pelas pessoas e pelas ragas e ja- | mais poderdo ser recuperadas. 0 mesmo acontece com certas formas de felicidade, de alegria, de inofensivi- dade e, até certo ponto, com a beleza, a elegancia ea graca, todos caracteres naturais da juventude e da ino- céncia. A luta continua por tais valores, que ndo se pode tentar ganhar nem voltar a ter, é ridicula, no cotidiano. O milagre da recuperacio desses valores que se en- contram perdidos para sempre na vida didria é possi- vel no palco. Por qué? Porque o ator ou mimico tem condicgées de representar um personagem e suas cir- cunstincias, se souber o suficiente de suas caracteris- ticas intrinseeas de esforco, A juventude, a ingenui- dade, a inofensividade, a beleza, a elegdncia e a graca dependem de atitudes internas e 0 ator pode conscien- | temente reproduzi-las. Isto parece ser um paradoxo mas nao 0€ no paleo, onde os valores ndo tém necessariamen- te de ser possuidos, mas configurados, o que 6 feito atra- vés de uma escolha e de uma formulaco de qualida- des adequadas de esfor¢o. Pouco importa quem ird exe- cutar essa caracterizagao, contanto que seja de maneira eficaz. Véem-se abrizes de meia-idade desempenhando © Oe implies interna cuca publicagies do aunor 2 se ocigina 0 movimento, nesta ¢ em ‘parce dos qusis sip denominudas “esforgo™ (vide também pagina 51) | exeelentemente os papéis de mocinhas e sendo capa- | ges de nos transmitir a verdade a respeito da juven- | tude e seu destino, da maneira a mais comovente. A | juventude interior freqientemente coincide com aquilo que se denomina virtude; o vicio é incompativel com a inocéncia; ndo obstante, os componentes das quali- | dades de esforco demonstrados por uma pessoa virtuo- sa @ por outra, viciada, sdo os mesmos, incluindo os | mesmos elementos de movimento. A disposicao dos im- pulsos internos que criam o movimento mostra, parém, diferen¢as de ritmo e tensao. ‘Uma das producies primitivas mais caracteristicas de danca-mimica consiste em imitagées de movimentos de animais. Os espiritos malevolentes ou benevolentes — viciados au virtuosos — que governam o destino hu- mano sGo representados como animais venerados ou detestados pelos membros das tribos primitivas. & ttil que © ator-bailarina considere e compare os ritmos ti- pices de movimento de varios seres vivos, animais ¢ homens, a fim de chegar a algum entendimento da se- lego de qualidades de esforco, ou do tipa de impulsos internos apropriados aos varios personagens, situacdes e circunstancias representados na mimica primitiva. Parece que as caracteristicas de esforco dos ho- mens so muito mais variadas e varidveis do que as | dos animais. Encontram-se pessoas com movimentos semelhantes aos de um gato, doninha ou cavalo, mas nunca ninguém viv um cavalo, uma doninha ou um gato 2 movimentos semelhantes aos humanos. 0 reino animal é rico em manifestacGes de esforgo, mas cada es- | pécie animal é restrita a uma gama relativamente peque- | fade qualidades tipicas. Os animais s&o perfeites quan- to a0 uso eficiente dos habitos de esforgo restritos que possuem, enquanto o homer é menos eficiente no uso de modalidades de esforgo mais numerosas que poten- clalmente esto & sua disposigdo. Nao seria de sur- | Preender que surgissem conflitas em maior nimero e | intensidade nos seres humanos, dotados que sao da ca- t 3 pacidade de combinar intimeras — e fregiientemente contraditérias — combinacées de qualidades de esforzo. Os habitos de movimentacao dos mamiferos sem diwida so os que mais de perto se aproximam aos dos homens, se comparados com as de animais de grau in- ferior de organizag¢ao. Os hAbitos humanos de movi- tmento sAo mais freqilentemente comparados aos de ma- | miferos e talvez também aos de aves do que aos de | peixes, répteis ou insetos. | Pode-se admitir que uma rua lotada de pessoas | numa grande cidade sugira uma colméia ou um forrmi-- guelro, contanto que nao se distingam as peculiarida- des dos esforges de cada um dos individuos dessa rua congestionada. Nao é impossivel_ver, num formigueiro. certas formigas dotadas de caracteristicas de esforg especiais, sendo algumas mais agitadas e enérgicas do. que outras. Numa rua movimentada, entretanto, pode-| se distinguir mais facilmente individuos mais agitados| e enérgicos do que outros, bem como aqueles que lem- bram em suas manifestactes de esforca, tanto no modd de andar quanto na gesticulacao, uma centena de dife. rentes animais. Quando se olham as expressdes faciais} e os movimentos das pessoas numa multidio, distin-| guem-se facilmente as caracteristicas pessoais de es- forco dos individuos. A multidao faz com que nos lem- bremos de uma reuniao colorida com animais de todos es tipos. De modo algum podemos comparar uma tal reunido a um enxame de formigas, porque estas pouco ou nada se diferenciam em seus movimentos, ‘As faces e as mos dos seres humanos ¢ as cabecas e patas dos animais sao muitas vezes usadas como in- dicativas da similaridade entre humanos ¢ animais. As faces e as mfos dos adultos humanos podem ser con- sideradas como tendo sido moldadas por seus habitos de esforco. A forma de seus corpos, incluindo a da ca- beca e a das extremidades, significa talvez uma dis pesigéo natural de esforco ¢ pode ser vista como ma- nifestagdes de esforco “congeladas”. As formas de na- 4 tureza constitucional, perém, sio muito menos revela- doras do que os movimentos. principalmente aqueles se denominam movimentos de sombra.,Estes so movimentos musculares miniseulos, tais como 0 erguer de uma sobrancelha, uma sacudidela de mao ou um rapido pisotear do pé, os quais apenas tém valor ex- ivo. Siio em geral executados inconscientemente 2 muitas vezes acompanham, & maneira de uma som- bra, os movimentos da acdo com objetivo, dai a deno- minacio escolhida. Os movimentos faciais oferecem freqiientes e fortes contrastes As formas dos rostos. FeigSes bem moldadas podem se tornar altamente re- pelentes quando fazem uma careta e¢ as pessoas mais feias podem assumir a mais agrad4vel das expressies quando sorriem. Nao ha quem desconheca o fato de as expresses espelharem as conflitos interiores. « - Voltando novamente as manifestagdes simples dos esfor¢os em animais, pode-se dizer que cada uma de suas ordens parece ter selecionado algumas dentre os milhdes de possiveis combinagdes de esforco e manti- do as escolhidas ao longo de muitas e muitas geracées. Essas séries restritas de combinagdes de esforca po- dem ter moldado as formas corporais tipicas, bem como os habitos de movimento de varias espécies. Algumas pessoas exibem qualidades de esforco ti- picas de animais, embora ndo se restrinjam apenas a estes em seus movimentes. Em certas ecasides, ou por intermédio de treinamento, podem deixar de lado suas fixagdes mais tipieas e facilmente empregarem com- binagées de esforcos impossiveis de serem realizadas pelos animais a que se assemelham. A verdadeira es- séncia da mimica consiste na habilidade da pessoa de alterar a qualidade do esforco, ou seja, o moda segundo © qual € liberada a energia nervosa, pela variagdo da composiedo e da seqliéncia de seus componentes, bem come para levar em conta as reagdes dos outros a essas mudancas, Mimica é 0 tipo de drama no qual sdo imi- tadas cenas da vida, sendo uma atividade que apenas 38 ‘Os movimentos de um gato ou felino qualquer sdo, na maior parte do tempo, caracterizados por uma fluén. cia livre, 0 que se verifica em detriment de movimen- tos mais restritos, ndo particularmente peculiares aos gatos. Ninguém' ainda viu um gato assumir aquele an > Gar emproado dos cavalos. Um homem que se pareca | com um gato, porém, pode as vezes andar como um f cavalo se o desejar e, ao fazé-lo, paderé provecar ou | admiragao ou ridiculo. ‘Nao é sé a fluéncia que marca um gato, Quando salta, 0 gato também se mostrard re- laxado e [lexivel. Um cavalo ou um veado saltarao ‘magnificamente no ar, mas o corpo deles estar tenso cencentrade durante o salto. O corpo-mente humano produz muitas qualidades diferentes; ele tem condigses de pular como um veado e, se 0 quiser, como um gato. ‘Os componentes constituintes das diferencas nas qualidades de esforco resultam de uma atitude interior (consciente ou inconsciente) relativa acs seguintes [a- tores de movimento: Peso, Espaco, Tempo e Fluéncia. 'A atitude referente a estes fatores difere segundo cada espécie. E proverbial tanto a preguica, quer di zer, uma indulgéncia exagerada de tempo do bicho- preguiga, quanto a pressa, ou uta corrida exagerada contra o tempo, de uma doninha. Nada no homem ¢ | mais trdgico do que a preguiga indiscriminada ou a | eterna pressa. | As principals caracteristicas das atitudes de esfor- | co de um ser vive so evidentemente suas seqiiéncias | de esforco mais completas e nfo sua atitude frente # um Gnico fator de movimento. Uma investigacdo exaus- tiva das seqiéncias tipicas das qualidades de esforgo em animais seria estudo para uma vida inteira. As poucas e rudimentares indicagdes aqui adiantadas sd _ podem servir ao propésito de chamar a atencio para a escala real de complexidade dos esforcos. © homem | co ser humano é capaz de executar. | i t se coloca no topo desta escala pois tem condigées para 4 6 os movimentos de |” usar todas as modalidades de esferea de que um ani- mal pode fazer uso e, como veremos mais tarde, mui- tas outras de sua propria eriagao, a saber, as combina- odes especiais de esforco humanas e humanitdrias que causar, como efetivamente o fazem, reagoes mais terriveis do que o consegue qualquer um dos animais. Deve-se mencionar um outro aspecto interessante. Os animais © os serés humanos mais jovens tém 4 sua disposigo uma eseala de capacidade de esforgo muito mais variada que a de seus pais. Um cachorrinho, um gatinho e, em certos aspectes, um bebé, tém maior jmobilidade que um cachorro, um gato ou um ser hu- mano adultos. As caracterfsticas tipicas de esforco do individuo e da espécie ainda nao estao plenamente de- senvolvidas no jovem, A sélegao restritiva continua apis 0 nascimento, embora a gama total de tendéncias tipicas de esforgo tenha sido herdada ¢ v4 sofrenda um processo continuo de desenvolvimento. A influéncia da historia de vida e do meio ambiente durante o periodo seletivo do inicio da juventude tor- na-s¢ claramente visivel em certas modalidades das ca- racteristicas finais de esforco do individuo amadure- cido. Novamente, essas modalidades sdo muito mais diversificadas no homem do que nes animais, exceto as mamiferos em determinades pontes. Um animal do- mesticado, por exemplo, desenvolvera modalidades di- ferentes de configuragaes de esforgo das desenvolvidas por um animal selvagem do mesmo género. A neces- sidade de uma uta continua para preservar sua exis- téncia tornaria os esforgos de um animal selvagem mais ricos em certo sentido, embora mais restritos em outros, do que os dé win animal domestieado. Durante seu periodo de crescimento, os humanos sao confronta- dos com uma luta pela vida diferente da enfrentada pelos animais e, conseqiientemente, o desenvolvimento de seus habitos de esforco assume formas diferentes. A capacidade herdada de um individue para resistir a st influéncias retardatatias desempenha um papel rele- vante no resultado final. ‘Mas os humanos, sejam eles primitives ou civiliza- dos, pobres ou ices, conseguem instituir complicadas redes de qualidades cambiantes de esforcos que repre- sentam 9 miltiplos meios de liberar a energia nervosa que lhes é inerente. O homem tem a capacidade de compreender a natureza das qualidades e de reconhe- cer os ritmos e as estruturas de suas segiiéncias. Tem a possibilidade e a vantagem do treinamente consciente, que lhe permite alterar e enriquecer seus hébitos de esforco até mesmo sob condigdes externas desfavord- veis, Os animais domésticos esto perdidos se forem expostes aos rigores dos incidentes da vida na nature- za livre. Animais adultos selyagens jamais poderao | tornar-se inteiramente domesticados. Tém eles peque- | na capacidade para modificar suas condutas de esfor- | co, mas 05 humanos, mesmo quando cresceram em meios primitives, podem refinar seus habitos de movi. | mento se surgir & necessidade, Jovens mimados podem | se transformar em homens ferozes na guerra ou em | outras situagdes de perigo. Tais pessoas adquirem ha- | bitos de esforco inteiramente novos e, em situacées mais | f4ceis, 80 capazes de voltar aos antiges e mais suaves, | se assim o decidirem. Em qualquer um dos casos, resta pouca diivida de que as possibilidades de esforgo do homem s&o tanto mais variadas quanto mais varidveis do que as dos animais e que é esta riqueza a fonte prin- cipal da dramaticidade de sua conduta. Poderiamos elaborar uma eseala que contivesse muitos graus, onde se esbocariam as eapacidades de esforgo mais restri- tas e fixas dos animais primitivos lado a lado as ati- tudes de esforgo potencialmente mais complexas ¢ mutaveis do homem civilizado. Além da riqueza comparativa da capacidade de es- forco humana, pode-se notar nela uma especialidade que cabe ser denominada de esforco humanitario. Nao pretendo fazer nenhum julgamentd moral com esta afir- = | macao. O esforco humanitario pode ser descrito como aquele capaz de resistir 4 influéneia de capacidades herdadas ou adquiridas. Gracas a esse esforco huma- nitario, 0 homem tem condigdes de controlar hébitos negatives e desenvolver qualidades ¢ inclinagdes que Ibe possara Serefilas, Apesar de influéncias adversas. ui orrente esta cheia implicago - prop ia de implicagdes dra Ficamos comovidas pela sugestio de esforcos qua- se humanitarios de devocao, sacrificio ou renincia que os animais exibem, 0 que pode ou nao estar fundamen- tado em fatos concretos. Mas o que assumimos como certo é que todo homem é capaz, e quase que obrigado, a fomentar esses tipos de esforco. O esforco humani- 4arie é considerado de perto quando se trata do estudo e do treinatnento de movimentos. Nao obstante, é ma- nifestacdo das mais importantes e talvez mesmo a pré- pria fonte da possibilidade da educacao do movimento, ‘aque é da mais capital importancia nao somente para o ator-bailarino, como também para o desenvolvimento pessoal ae ‘todo individuo. ao ha divida de que os instintos comunitarios homem desenvolveram caracteristicas que diferem _ tensamente dos instintos simplesmente herdados dos animais. Se se investigar o crescimento do senso comu- nitérie no homem, descobrir-se-4 que na base do seu desenvolvimento histérico existe um tipo especial de treinamenta de esforco da qual os animais sao incapa- zes. Esses estranhos hAbitos do homem, que nao podem ser inteiramente explicados como adaptacdo as circuns- {ancias e ao meio ambiente, so o resultado de um re- finamenta consciente do esforco. Os animais fazem uma escolha instintiva de qual esforco manifestar em res- posta ao seu impulso inato para assegurar sua vida individual e racial. A selegao que o homem faz das suas seqiléncias de esforco ndo mais parece ser totalmente inconsciente; ele tem a capacidade de coordenar uma gama de possibilidades de esforgo vastamente maior 2 do que a de qualquer outro animal e esta gama ultra- passa as necessidades da mera sobrevivéncia. No paleo, o homem expressa sua atitude mental peculiar escolhendo com cuidado as configuracdes de esforco adequadas ¢ realiza uma espécie de ritual ¢o- munitério na apresentagao de conflitos que decorrem de diferencas nestas atitudes internas. Ao domesticar os animais, o homem aprendeu como lidar com 0 es- forco e como alterar os habitos de esforgo dos seres vivos. Na aplicacao dos principias de domesticagao dos animais a ele mesmo, estendeu o raio de acio de trei- namento do esforeo até a criagaa de trabalhos de arte dindmica. 0 homem tem condigdes de domesticar 0 seu semelhante ndo apenas na condigdo de escravo, mas ‘também na de um companheiro feliz; por Ultimo, apren- deu a se domesticar, treinando ¢ desenvelvendo seus propries habitos pessoais de esforgo, tanto engrande- cendo-os quantitativamente, quanto dirigindo-os quali- tativamente cada vez mais no sentido de se tornarem esforgos bumanitéries especifieos. £ deveras impres- sionante 9 modo pelo qual o homem alcancou esse tipo ‘de educacio do esforco, tendo seu paralelo na evolu- co dos hdbitos de esforgo animais. | | | } Oe animais jovens aprendem, conquanto indepen- | dentemente de um controle consciente, a selecionar € desenvolver suas qualidades de esforgo por meio das brineadeiras. Ao brincarem, os animais simulam todos gs tipos de acées que Iembram de maneira muito mar- cante as ages reais que terdo necessidade de praticar quando tiverem que se sustentar no futuro. Cagar, lu- tar e morder parecem estar indicados em seus movi- mentos, mas eles nfo cacam, nem lutam ou mordem de fato, ou, pelo menos, ndo com 0 prapésite de obter comida, Nos animaizinhos javens ¢ em criangas deno- minamos tal atitude de brinquedo e. nos individues adul- tos, danca e representacdo. Na brincadeira, experimen- tam-se, selecionam-se e escolhem-se as seqiéncias de eaforgo que melhor se ajustem, por exemplo, a uma a uta ou caca bem-sucedidas. 0 animal jovem, bem como acrianca, experimenta todas as situagdes imaginaveis: ataque, defesa, tocaia, ardil, vo, medo, e sempre a coragem € exibida. Acompanha estes experiments a busca das melhores combinacies possiveis de esfarco, para cada casio, O corpo-mente fica treinado para reagir de imediato, por meio de configuracies de ¢s- forca cada vez mais aprimoradas, a todas as demandas das Warias situagdes, até que se automatize a adocio da melhor delas. Os métodos de luta e caca de um gato adulto nado se encontram plenamente desenvolvidos num gatinko pequeno, mas o impulso para 14 chegar ja é discernivel desde os primeiros movimentos do animal- ginho. £ o que ocorre também com um cachorro peque- no, com um cordeirinho ou com qualquer outro animal joven. A brincadeira é de grande valia para 0 cresci- mento da capacidade de esforco e para sua organizacao. Nada nos impediria de rotular essas brincadeiras de atuagao dramatica acrobatica, nao estivessem as pala- yras atuagdo e drama reservadas para a exibigda cons- cliente do homem, no palca, de situagdes da vida. Ha tam- bém uma diferenca ai, no sentido de que a representacio no palco exige um espactador a quem possa o ator se diri- gir, ao passo que ao brincarem, 0 cachorrinho, 0 gatinho ea crianca nao tém qualquer preocupacaéo com a pre- senga ou nao de platéia. O brinquedo dos animais mais jovens, desta maneira, aproxima-se mais da danca que da representacao, poste que a danca nem sempre exige piiblico, Se as erlangas ¢ 08 adultos dancam, quer dizer, se executam certas seqiléncias de combinacées de es- forgo para seu préprio prazer, nfo é necessaria au diéncia. Nesse sentido, a danca é um exercicio mais genuino de esforco do que a representacao. A danga, au pelo menos aquilo que hoje em dia chamamos de danga, & porém diferente da representacio ¢ nem por isso, em si mesma, é uma arte teatral. Na danca ndo fica tao evidente a semelhanga com os conflitos da vida. A danca é 0 jogo estilizado que a nfo se relaciona diretamente com a conduta de esforgo | dramatica. Alguns animais dancam, o que quer dizer que aprenderam a estilizar seus jogos do mestha modo que o homem. Se estudamos as descrigdes exaustivas dos movimentas de aves e macacns, observados pelos cientistas, ficamos surpresos diante da semelhanca des- tes movimentos com a danca humana. Enquanta que no decorrer das brincadeiras as qualidades de esforco dessas criaturas cstio misturadas de maneira quase que irregular e casual, nas dangas humanas encontram- se graciosamente escolhidas, trabalhadas e separadas. Repeticées reeulares de seqiténcias de esforco formam "/ frases ritmicas que sao repetidas com exatidéo. Aquilo que pretendem os animais que dancam permaneceria um enigma se ndo assumissemos que a atividade toda | toma a forma de uma selecio e treinamento de esfor- cos mais ou menos conscientes. FE um fato bem conhecido que as brincadeiras e | dancas das tribos primitivas originaram-se de tentati- vas de torndlas, por si mesmos, mais conscientes de | certas combinacées escolhidas de esfargos. Além da | tomada de consciéncia, ou melhor, combinada com ela, | esta a fixacdo, na meméria e nos habitos de movimento, | da combinacao de esforcos escolhida. Trata-se de uma | construcdo muito singular de idéias acerca das quali- dades des movimentos e de seu uso. Talvez nao seja | muito inusitado introduzir aqui a idéia de se pensar em termos de movimento, em oposicao a se pensar em pa- | lavras. O pensar por movimentos paderia ser conside- rado como um conjunta de impressdes de acontecimen- | tos na mente de uma pessoa, conjunto para o qual falta uma nomenclatura adequada. Este tipo de pensamento nao se presta A orientaco no mundo exterior, coma 0 faz o pensamento através das palavras mas, antes. aperfeicoa a orientacio do homem em seu mundo in- terior, onde continuamente os impulsos surgem € bus- cam uma valvula de escape no fazer, no representar eno dancar. e i O desejo que o homem acalenta de orientar-se no labirinto de seus impulsos resulta em ritmos de esforco definidos, tais como os praticados na danca ¢ na mi- mica. As dangas regionais e nacionais s8o criadas pela repetico destas configuracdes de esforcos, na medida em que sao caracteristicas da comunidade. Essas dan- gas mostram a gama de esforeos cultivada pelos gru- pes sociais que vivem num meio ambiente definido. A languida e onirica danca de uma oriental, a orgulhosa e apaixonada danca de uma espanhola, a danca tem- peramental de uma italiana do sul, a bem-medida danca em circulos dos anglo-saxdes sao exemplos das mani- festagGes de esforco selecionadas e aprimoradas du- rante largos periodos am histéria até que finalmente se tornaram expressivas da mentalidade de sociais particulares, Um observador de dancas. pees ena- cionai: s pode obter muitas informagdes quanto ao estado de espirito ou tracos de carater preferidos e desejados por uma comunidade em particular. Em tempos bem antigos, estas daneas eram um dos meios principais de ensinar ao jovem como adaptar-se aos habitos e cos- tumes de seus antepassados. Neste sentido, estau em intima conexao tanto com a educacdo quanto com o culto € religiao ancestrais _ Ajimperiosa necessidade de brincar e dancar expan- diu-se, em conseqtiéncia, numa variedade estonteante de tradigies de movimentos, em todos os campos da atividade humana. A danca tem sido empregada como um agraddvel estimulo ao trabalho, prineipalmente em trabalhos ritmicos de equipe, tendo se transformado em acessério da luta, da caca, do amor e de muito mais atividades. Foi na danea, ou pensamento por movimen- tos, que o homem a principio se apercebeu da existén- cia de uma certa ordem em suas aspiragées superiores per uma vida espiritual. Inconscientemente, aprendeu quais eram as fatores contraditérios e de equilibrio de suas acGes, mas nfo sabia como us4-los, nem tampouco controlé-los. 8 Nas dangas religiosas, o homem representava esses poderes sobre-hamanos 05 quais, segundo entendia, di- rigiam os acontecimentos da natureza, € determinavam o seu destino pessoal bem como o de sua tribo. A seguir, ‘o homem conferiu uma expresso fisica a certas quali- dades por ele observadas nesses poderes sobre-humanos fe, ao elaborar essas personificagdes das agoes de es- forco, o homem primitivo deseobriu a harmonizacdo do rumo dos acontecimentos; através de seu pensamento- movimento, caracterizou entao o poder subjacente a tudo como um deus de gesticulacdo deslizante Deslizar* é, egsencialmente, um movimento sustentade ¢ direto, com o toque leve. Ao deslizarem, 0 homem € sua divin- dade envolvem-se na experiéncia da infinitude do tempo e da cessagéo do peso da gravidade, embora es- tejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus: mavimentos. Muitas dancas dos aborigenes da Africa, da Asia, da Polinésia e da América exibem este aspecto de deslizar em suas dancas rituais e as pinturas ¢ esté- tuas de seus deuses sfio representadas por figuras que estao fazendo gestos de deslizar. Deuses que flutuam acima das Aguas demonstram no ritual, ou representa- e4o pictérica, uma atitude complacente em relagda aos fatores de: Tempo, Peso ¢ Espaco no movimento, Flu- tuar® 6 um movimento leve e flexivel que espelha um estado de espirite de semelhante contetido. Os malignos deuses da morte e da vialéncia sia figuras representadas com ages de esforco, como soco*. perfuragio e compressao. sendo que todos se tratam de movimentos firmes e diretos que ocorrem, ora subi- tamente, ara gradualmente. ‘As resplandecentes divindades da alegria e da sur- presa sio freqientemente caracterizadas, nas dancas, por movimentos de sacudir® e fremir. Aqui, a sensacio ‘de leveza sé casa a uma indulgéncia com espaco, que éevidenciada na flexibilidade e na plasticidade des mo- Todh T, —.0 signifleads dense termes ¢ explicedo depois (N. do A). Gtuding, Flsating © Thracting, cespactvamente, ag origina 4 vimentos. Aparighes e desaparicées stibitas conferem aos movimentos de sacudir e fremir a sua luminosidade. Segunde a concepeia do homem primitivo, os deu- ses etam os iniciadores e também os incitadores do es- forgo em todas as suas configuractes. E, além disso, eram os simbolos das varias acées de esforco. Havia dancas que representavam deuses que torciam*, cujos movimentos eram flexiveis e falavam da gradual pas- sagem do tempo, e apesar disso cles eram fortes & fir- mes. Havia deuses que talhavamt*, que lutavam contra a tempo e contra o peso com ligeireza e poderosa resis- téneia e, nao obstante, eram flexiveis no espago, ou seja, facilmente se adaptavam &s mudangas da forma. (Os espiritos ¢ gnomos, cujos movimentos se ima- gina serem stibitos e diretos, mas também gentis, sao muitas vezes caracterizados em dancas pontuantes™. ‘A estranha poesia do movimento, que acabou sendo expressa na danga saera, capacitou o homem a otga- nizar suas agdes de esforco segundo uma ordem que, em iiltima instincia, é valida e compreensivel ainda hoje. Somente o homem tornou-se consciente da exis- téncia dos deuses, quer dizer, 0 homem é 0 dnico ser vivo que tem conseiénela de suas aces e é responsa- vel por elas; deste modo, tornou-se o rei das criaturas eo senhor da Terra. As convengées das varias formas de ordem politica € econémica, na seciedade humana, surgiram. da percepcdo do esforco nas dancas regionais e nacionais. Ao ensinar suas criancas e ao iniciar 05 adolescentes, 0 homem primitive tentou transmitir pa- drées morais e éticos, por intermédio do desenvolvi- mento do raciocinio em termos de esforgo. na danga. Nessa época t&o remota a introdugao do jovem ao esforeo humanitério constitulu a base de toda a ci- vilizagio. _ Contuds, durante um longo perfodo o homem nio foi capaz de descobrir a conexéo entre seu pensamento- i da T. — © signifi dee temer é cali ns ui Waging Sadie « Dalton cogucemaeres eigeal. 6 movimento e sua palavra-pensamento. As descricédes verbais do pensamento-movimento enconwraram sua possibilidade de expressao apenas na simbologia poé- tica. A poesia, descrevendo os acontecimentos de deu- ses e ancestrais, foi substituida pela simples expressao do esforgo, na danca. A era cientifica do homem in- dustrial ainda tem que descobrir os modos e meios que nos capacitem a penetrar no dominio da tradu¢ao men- tal do esforco e da ac&o, a fim de que as linhas comuns das duas modalidades de raciocinio consigam finalmen- te reintegrar-se em uma nova forma. Os velhes méto- dos de conscientizacdo e treinamento do esfor¢o certa- mente auxiliarao a investigar os movimentos dos atores. Deve-se esperar que a mimica, enquanto atividade ex- pressiva do esforco, além de uma atividade criadora fundamental do homem, volte novamente a ser um fator importante do progresso civilizado, apdés o longo perio- do em que foi negligenciada, quando seu sentido e sig- nificado verdadeiros tiverem sido readquiridos. O valor de uma caracterizacdo por intermédio de movimentos de mimica semelhantes 4 danca reside no evitar-se a simples imitacgfo das peculiaridades dos movimentos externos, pois uma imitacao deste teor nao penetra nos mais remotos recantos do esforco interior do homem. Temos necessidade de um simbolo auténtico da visao interna que efetue contato com 0 ptblico e ele sé é atin- gido quando se aprendeu a raciocinar em termos de movimento. O problema fundamental do teatro é apren- der como usar esse tipo de pensamento com o propd- sito de atingir o dominio do movimento.

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