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Pet yw ME ncontroscoma Ml mer ty Verto) Enea y) ENIO SILVEIRA — Fazer Historia ou Nao e MARIO PEDROSA — Teses para o Terceiro Mundo e SERGIO AUGUSTO — Os Direitos de Carter e os Diretos de Chomsky e HELIO JAGUARIBE — Modernizacao e Desenvolvimento ¢ UMBERTO CERRON| — Estado e Revolugao e FRANKLIN DE OLIVEIRA — Fungao Politica da Literatura e FRE! BETTO — Pratica da Pastoral Popular e AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA — A Morte da Baleia e ZULEIDE FARIA DE MELO —A Forgade Trabalho eos Indices Salariais e EDUARDO. GALEANO — En el Reino del Revés, e! Sol sale a Medianoche ®SEBASTIAO GERALDO BREGUEZ — A Imprensa Brasileira apos 64 @ ANTONIO CARLOS DE BRITO — Atualidade de Mario de Andrade e SERGIO FARACO —Hombre e HELENO FRAGOSO —A Lei de Seguranga Nacional A DENUNCIA DE UMA EPOCA (Dois sécuios Pela sinceridade, honestid: fidedigna pesquisa em que baseia; pela vivéncia e pagao que teve no periodo focado; pela interpret abrangente que lhe pro; ciona o método dialético de lise; e pela vibrante oport dade politica do momento que divulga este estudo, Bandeira oferece ao publico livro que vem despertando, suas sucessivas reedig6 mais vivo interesse. Crg 4 Este 6 o mais completo bal até agora realizado entre sobre as relacdes dos di ses. Abarcando o tempo rico que vai do Brasil Col queda de Joao Goulart, fi mentado em exaustiva e ciosa pesquisa, esta 6 uma indispensavel para quem di conhecer até que ponto vida politica, econédmicae ral tem estado ligada a g! de historia) nagao do Norte. Conciliagao e Violéncia na Historia do Brasil Gisdlio Cerqueira Filho Gizlene Neder Membros do SOCII (Pesquisadores Associados em Cién- cias Sociais), sociedade civil de cardter cientifico e cul- tural, sem fins lucrativos, fundada em maio de 1978, com sede no Rio de Janeiro. Esta pesquisa foi realizada na PUC/RJ com recursos do CNPq, tendo como titulo Conciliagdo e Violéncia na His- toria do Brasil — uma interpretagdo dos aspectos ideold- sicos da literatura diddtica do Ensino Fundamental. Esté vinculada ao Projeto “Violéncia na América Latina”, pa trocinado pelo Centro Internacional de Crimonologia Comparada, da Universidade de Montreal, Canadd e pelo Instituto de Criminologia da Universidade “Del Zulia”, Maracaibo, Venezuela. Apresentacdo an Cr$ 200, Pats estranho este que tem sua historia contada a criangas nas salas de aula e leva 0 nome “Brasil”. Pats ameno, cordial, conciliador. Onde terras foram conquistadas sem derramamento de sangue. Onde {ndios foram “aculturados” e tribos dizimadas pacificamente por jesuitas, em nome de Deus e da Igreja. Onde a mao-de-obra foi escravizada com alguns sorrisos Pedidos pelo reembolso postal & EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA S.A. ____Rua Muniz Barreto, 91-93, Rio de Janeiro - Ru - 21 189 trocados entre explorador e explorado. Onde o senhor da fazenda foi um bondoso pai e os conflitos, sociais e raciais, estéo inteiramente ausentes. Pats habitado por homens que tém seu cariter'‘marcado, nesta ordem, pela religiosidade, pelo pacifismo, individualismo, civismo, e cordialidade. Que sempre encontram um “jeitinho” para desculpar as agressdes do sistema. O sociélogo Gisdlio Cerqueira Filho e a professora de Historia Gizlene Nader analisam a viséo maldita dessa Historia fabricada pelos livros didaticos publicados pelas maiores editoras do pats (eles selecionaram 37 livros entre sete editoras), que sdo, coincidentemente, aqueles escolhidos pela FENAME — Fundagao Nacional do Material Escolar — e doados para o 1.° grau das escolas através do programa PLIDEF — Plano do Livro Diddtico para o Ensino Fundamental. No plano 77/78, entre todas as disciplinas, a FENA- ME doou 19.103.040 livros. Ou seja: espalhou a verso de uma Histéria contada como se fosse verdadeira, na qual a omissdo da violéncia é apontada por Gisdlio e Gizlene no trabalho Conciliagéo e Violéncia na Histéria do Brasil, como a maior violéncia que poderia ter sido cometida contra o povo brasileiro. A Historia do Brasil estd camuflada nos livros didaticos sob 0 pomposo nome Estudos Sociais, que serviu para amarrd-la, num mesmo saco apertado e malcheiroso, junto com a popular OSPB— Organizagao Politica e Social Brasileira —, a impopular Geografia, e a duvidosa Educagao Moral e Civica. Este saco é firmemente carregado ds costas dos professores (transformados em agentes da ‘‘verdade” oficial) e levados as escolas (agéncias ideolégicas) onde a educagdo funciona interligada ao aparelho do Estado. Para os autores a relagdo do Aparelho de Estado Escolar com a classe dominante assegura a continuidade de relagdes de exploracdo capitalista. E é debaixo de tantos interesses das classes dominantes que aprendemos a historia do nosso pais. Uma Historia de vencedores. Este discurso da vitoria, muitas vezes ufanista, dos nossos livros de Histéria, ressoa nos ouvidos dos alunos de 1.° grau, de seis a 14 anos de idade. E o que eles ouvem é uma ligdo monocérdia: a evolugdo histérica sem violéncia. Marcada por um 7 de setembro roméntico, quase uma dddiva da metropole, por uma aboligdo da escravatura ocultando a exploragdo do negro pelo branco e as conseqiientes fugas e suicidios; pela revolugdo de 30 — ea implantagao da ditadura — apresentada sem oposigao, e sem oposigao, também, as ndo téo longinquas ocorréncias de 64. O latifiindio é apresentado sempre como apenas ocupacdo de terras, livre de problemas. Nenhuma referéncia 4 concentracdo de renda. O negro — assim como o tndio — é sempre tratado sob a tica da inferioridade, embora ao menos nos livros este pats se mostre ausente de qualquer preconceito. A 190 Igreja é sempre justificada ideologicamente em sua missdo civilizadora e ndo Wolenta em prol da “cristianizagao das nagdes indigenas”. A violéncia, assim, é sempre externa a estrutura social brasileira, jamais partindo do gigante adormecido e manso, conciliador por natureza. Dat a NistOria da “agressdo” paraguaia, a crénica da transformagao dos pactficos chefes de clas, senhores rurais, em ferozes chefes de grupos armados: defen- idem, ¢ claro, a propriedade ameagada pelos ataques dos “‘selvagens” (tndios) Ou, entdo, combatem os quilombos. A Historia deste Brasil, “produto limpo, indolor, enxuto, como que jwido da lavanderia”, é distorcida, desmemoriada. E, investigada em temas Nos livros diddticos, nos trés periodos (colonial, imperial, republicano), revela isso uma vez mais, Nao bastassem tantos crimes contra a Histéria, ainda nos vem a Educa- (do Moral e Civica lembrar outras impropriedades que mais servem Para tisturar conceitos, tornando o aluno incapaz de discernir entre moral, civis- mo, patria, Deus, presidente, pai, autoridade, etcétera. O que dificulta mais ainda a tarefa de Sérgio Buarque de Holanda de repetir, incansavelmente, “o homem cordial morreu”. Mas, certamente, reforca a frase de José Maria Alkimin, tdo bem lembrada por Gisdlio e Gizlene, que na Otica da ideologia dominante o que importa ndo é a verdade, ‘mas a verso. De uma histéria de mitos — 0 da democracia racial, o da ndo violéncia, o da singularidade do Brasil frente a América Latina. Na qual o povo é quem conta menos. Norma Couri Introdugéo A VIOLENCIA EM SE OCULTAR A VIOLENCIA A despeito das revoltas dos negros, dos movimentos messianicos e do banditismo — trés tipos de movimentos sociais que, em épocas distintas, assinalam o lugar da violéncia na historia brasileira — a historiografia oficial tem procurado enfatizar a tradigdo e o papel da ndo-violéncia, isto é, uma certa tendéncia conciliadora presente na historia brasileira, originada, sobre- tudo, no perfodo da Regéncia (1831/1840). Vale ressaltar aqui que este periodo é imediatamente posterior 4 emancipagao politica do Brasil (1822), © que estaria a indicar que, a partir da formagao do Estado Nacional, come- garia a se manifestar na histéria do pais um constante recurso a conciliagao, acomodacao, nao radicalismo, para justificar a auséncia da violéncia, talvez 191 numa tentativa de ressaltar a “superioridade” do Brasil em relagdo 4 Amé- rica Latina. Isto chegou a suscitar estudos sobre as caracteristicas de um suposto cardter especial do homem brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda’ chega * dar um reforgo especial a esta tese de ndo-violéncia quando formula a teoria do homem cordial, explicando a boa indole propria do brasileiro, fortale- cendo a crenga de que por esta ou aquela razdo se deveria encarar a violéncia como uma aberracao na vida brasileira. E mesmo presentemente, com obje- tivos ideolégicos explicitos, ndo sf poucos os homens de decisdo politica que “‘apelam’ para esta idéia da violéncia como uma anomalia na sociedade brasileira. Holanda observa que “a contribuicdo brasileira para a civilizagdo seré de cordialidade — daremos ao mundo o ‘Homem Cordial’ ”. A Ihaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tao gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um trago definido do cardter brasi- leiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influéncia ancestral dos padrées de convivio humano informados no meio rural e patriarcal?. Isto implica ndo apenas em reconhecer a cordialidade como marca do homem brasileiro mas em buscar as origens desta marca nos padroes de colonizagdo portuguesa. Alguns exemplos sao arrolados para defender esta tese: a independéncia do Brasil num quadro de consenso, com pouco con- flito e particularmente um movimento politico incruento, obtida facil- mente, quase como uma dadiva da Metrépole; a relativa paz social durante o Segundo Império (1840/1889); a aboligao da escraviddo sem derramamento de sangue; a Revolugdo de 1930 e mesmo a implantagdo da ditadura de Vargas (1937/1945) sem oposi¢ao violenta e rebelde; a reconstitucionaliza- cdo do pais em 1946 e o movimento politico de 1964 tealizados fora dos limites da luta armada e da guerra civil. Muitos destes fatos, e outros mais, tém sido manipulados na argumentagdo de que 0 homem brasileiro teria uma tendéncia ao compromisso, 4 conciliagdo, ou seja, a um comporta- mento em que a troca de favores estaria inevitavelmente presente. Os fend- 1. Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil, José Olimpio Editora, RJ, 1963, pigs. 101/102. A interpretacio do '*Homem Cordial” em fungio de um projeto autor vo coube a Cassiano Ricardo. Ver Contribuicdo para a defesa do pensamento original no Brasil (conferéncia realizada na Legiio Brasileira de Ribeirdo Preto, 1963, “O Homem Cordial” (MEC, RJ, 1959? ). 2. Ver Joseph Love, Comentario 4 Comunicagdo de Henry Keith in Conflito ¢ continuidade na sociedade brasileira — ensaios, Civilizagio Brasileira, RJ, 1970, pag. 107. 192 menos sociais mais violentos, como por exemplo 0 “Esquadrao da Morte”’*. na atualidade, séo vistos como um desvio no comportamento do ral brasileiro t{pico: cordial, bom, ndo-violento, conciliador. Esta tese tem sido inclusive constantemente invocada para mostrar a incapacidade do povo piste de realizar um projeto revoluciondrio de transformagao social e politica. Nosso pensamento é que a tradicao nfo violenta na hist6ria do Brasil corresponde 4 uma percepgdo falsificada da realidade concreta correspon- dendo a um mito que informa interesses especificos de priticas sociais de determinadas classes sociais. Como Vianna Moog, estamos reclamando uma revisdo do mito cldssico nao-violento (incruento): 3 “Jé se foi o tempo em que embalados por uma interpretacdo pre- cipitada (ou interpretagdes precipitadas) de certos fatos do nosso pro- cesso histérico — a aboligéo da escravatura sem derramamento de sangue, por exemplo, acreditévamos piamente na proclamada boa estru- tura do nosso equilibrio emocional. Hoje, depois da geral revisio de valores que a moderna Historiografia, assistida pela moderna Psicologia, esté promovando em todos,oe setores des cldncias|sociaydigam o que disserem da forma incruenta como foi levada a efeito entre nés a aboli- ao da escravatura, a proclamagao da Republica ou a implantacdo do Estado Novo (episédios em que se confundem sintomas de imaturidade com sintomas de evidéncias de senso comum e dnimo cordial) j4 ndo podemos nutrir os mesmos equivocos”*. Feita esta breve it i Pe rns See ore temos diante de nds a questdo-chave que Qual o lugar da violéncia na estrutura social brasileira? Preliminarmente trataremos de definir violéncia e estrutura social. Joseph Love 5 nos fala de violéncia como privagio de bem-estar, de vida ou este Em instrumentais, a violéncia pode ser classificada da seguinte forma: 3. Ver o impressionante iivro-deniincia do promotor Hélio Pereira Bicu depoimento sobre o Esquadrdo da Morte, Comisso de Justia ¢ Paz de Sto Paulo 3 4. Vianna Moog, Bandeirantes and Pioneers, L. L. Bartlet, N.Y., 196: Le , N.Y., 1964, pag. 224. A edigdo consultada est traduzida para o inglés. O original entretanto é em portugué Gwizagdo Brasileira, Rio, 1978. ae Steno . Joseph Love, Comentério d Comunicapiéo de Henry Keith, in Con} pee ‘na sociedade brasileira - ensaios — Civilizagéo Brasileira, BN, 1990, pes. 193 (a) Violéncia politica X violéncia apolitica. Ex.: assalto 4 mao armada com fins politicos e crime comum. (b) Violéncia estruturada X violéncia ndo estruturada. Ex.: unidades militares e motim generalizado. (c) Violéncia secular X violéncia teligiosa. Ex.: revolta de escravos e movimentos messianicos. Devemos observar ainda que a violéncia politica pode se apresen: como reaciondria (conservadora) ou revoluciondria (progressista). Ex.: movimentos fascistas X guerra de guerrilha marxista. ESTRUTURADA NAO-ESTRUTURADA [secuiar | “arco Duas ressalvas se impdem e sao importantes: 1.4) De fato cada tipo dicotémico de violéncia representa pdlos de um “continum” no qual se pode situar determinado tipo de violéncia. 2.4) Os diferentes tipos de violéncia sao mutuamente inclusivos numa larga variedade de padroes. Neste trabalho estamos preocupados ndo com um conceito especifico do que seja violéncia, mas, precisamente com o papel que a violéncia joga nos processos histéricos em termos de opressdo ou libertacao de grupos e classes sociais. Nao se trata portanto de ver a violéncia como um mal ou um bem em termos absolutos, mas de equacioné-la como recurso a disposicao dos ho- mens. Por outro lado, a nogdo de estrutura social esté sendo pensada nos termos de uma sociedade encarada do angulo das relagdes com as coisas materiais e das relagdes dos homens entre si; telagOes estas que sao vistas 194 APOLITICA reaciondria revoluciondria (conservadora) (progressista) Wilerdependentes e geradas historicamente na atividade social de pro- # feproduzir as condiges essenciais de sobrevivéncia do grupo®. ‘Avi, toda estrutura social tem pelo menos trés partes que lhe sao laiente insepardveis e portanto interdependentes: por base, uma WistOrlea de produgao; por corpo um sistema de estratificagdo social ” pula um conjunto de instituigdes e valores sociais, cujo escopo é jaf © Manter como um todo o sistema estreitamente inter-relacionado | por estas partes®. Definidos a grosso modo os conceitos de violéncia e estrutura social, 08 & questHo por nds proposta: Qual o lugar da violéncia na estru- soolal brasileira? Hata questo, em princfpio, nos levaria a estudar a formagdo hist6rica woledade brasileira e a discutir o papel da violéncia nas diferentes instan- eeondOmica e juridico-politico-ideoldégica. Sem perder de vista a sociedade como um todo, optamos, todavia, por ber num primeiro momento qual o papel da violéncia na instancia do |gico. Mais concretamente, queremos saber como o pensamento domi- jWite no Brasil se manifesta a respeito do papel da violéncia nas instancias Mondmica e jurfdico-polftico-ideolégica. A nossa hipétese preliminar de trabalho é de que o modelo agroexpor- {ador, implantado no Brasil no quadro da expansdo européia, ao recorrer aos tepimes de trabalho necessariamente compulsérios, semi-servis ou mesmo eravistas para maximizar a acumulagdo de capital e manter 0 monopélio Somercial de uma economia basicamente voltada para fora’, produziu com base no monopélio da terra trés classes: os latifundidrios, os escravos e os foreiros (estes vivendo do arrendamento da terra). Destas trés classes, podemos assinalar como homens livres os latifundiarios e os foreiros, mas isto ao nivel do formal porque na verdade o foreiro é dependente da classe latifundidria. E se, por um lado, a escravidao é um trago essencial no modelo ligroexportador (a relacao produtiva fundamental), a mesma escraviddo ndo era, todavia, o nexo efetivo da vida ideoldgica. A chave desta era diversa e 6. Karl Marx, Preficio @ Critica da Economia Politica, Colegdo “Os pensadores”, Abril Cultural, Vol. XXXV, RJ. 7. Rodolfo Stavenhagen, Estratificacdo social e estrutura de classes, Revista de la Escuela Nacional de la Universidad Nacional Autonoma del México, ano VIII, n.° 27, Enero/Marzo, 1962, pégs. 73/102, 8. Para uma exposigao detalhada e diditica da nogdo de estrutura social ver Costa Pinto Sociologia e Desenvolvimento, Civilizagao Brasileira, RJ, 1972, pég. 97 € seguin- tes. 9. Ver artigo de Fernando Novais O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial, in Brasil em perspectiva, Difusio Européia do Livro, $.P., 1971. 195 para compreendé-la devemos retomar 0 pais como um todo e as rel: entre as trés classes apresentadas: 1.9) latifundidrios X — escravos 2.°) foreiros X — escravos 3.°) latifundiérios X — foreiros As relagdes assinaladas nos itens 1.° ¢ 2.9 sdo claras. A relagdo ent latifundidrios e escravos implica necessariamente em violéncia uma vez que escravo é propriedade do latifundidrio. A relagdo entre foreiros e escrat nao se coloca porque raramente o foreiro possui escravos, trabalhando qi sempre na agricultura de subsisténcia. E a terceira relagdo que nos int tessa!®, Os foreiros nao sdo proprietdrios nem proletarios e seu acesso a social depende do favor, direto ou indireto, de um grande, de um latifun-’ didrio''. O foreiro pode ser visto, na sua forma caricatural, na figura do agregado. No nosso entender o favor aparece pois como o mecanismo atra- vés do qual se reproduz a classe dos foreiros, mas envolvendo também a dos latifundidrios. Entre estas duas classes é que ir4 acontecer a vida ideolégica tendo como nexo causal efetivo o favor. A vida ideolégica no Brasit sera regida por este mecanismo do favor que, com mil formas e nomes (por exemplo 0 “jeitinho”), atravessou a existéncia nacional, ressalvada sempre a telagdo produtiva de base, essa mantida pela violéncia. Tal mecanismo do favor estava presente por toda parte, combinando-se_ mais tarde a outras atividades mais ou menos afins dele como administragao, politica, indtistria, comércio, vida urbana, etc. Em muitos casos, o profis- sional passa a depender do favor para 0 exercicio da profissdo tanto como 0 funciondrio para manter um determinado posto ou ainda o pequeno pro- prietirio para manter sua propriedade. Schwarz nos fala do favor como nossa mediagdo quase universal e “sendo mais simpatico do que o nexo escravista, a outra relagéo que a colénia nos legara, é compreens{vel que os escritores tenham baseado nele a sua interpretacdo do Brasil, involuntariamente e (as vezes nem tanto*) dis- fargando a violéncia que sempre reinou na esfera da produgd0” }?. it Ver Marissdyii as Corsi. Prine Oren se chicane do café Instituto de Estudos Brasileiros, S.P., 1969. ij * Parénteses nossos. 12. Roberto Schwarz, As idéias fora do lugar, CEBRAP, n.° 3, S.P., pig. 154. 196 Jomos ressaltar aqui que apesar da modificagdo, alids significativa, da Aboligdo da Escravatura em 1888, esta ndo representou a curto ima ruptura radical dentro do processo histérico brasileiro. Note-se ‘#i) 8 analisando este processo encontramos na questo da organizagao Wabalho tema por demais relevante. Encontrar formas que mantivessem jillo-de-obra barata (sendo que ela sempre se apresentou escassa) s6 se possfvel através de um sistema de exploragdo repressivo do trabalho. wibstituigsio do trabalho escravo pelo assalariado nao alterou em muito a ‘uira dos estabelecimentos agricolas que permanecem em regime de ile propriedade, monocultura, voltada para 0 comércio externo. A com- flo lutiftindio/trabalho compulsério se impés e sempre esteve presente ocesso histdrico brasileiro, relacionado a nossa situag&o de dependéncia ‘# tistema capitalista internacional. Dosta forma, a Aboligéo da Escravatura muito embora signifique um jareo importante, j4 que altera, inclusive, o equilfbrio do poder dentro da jipria classe dominante, no altera, entretanto, uma situagdo hist6rico- ‘itutural marcadamente autoritdria diante das massas. Este momento representa, entéo, um processo de manutencdo de jwande propriedade agroexportadora, mas em termos da destruigéo do modelo colonial tfpico (cujo primeiro sintoma de crise fora o fim do mono- polio comercial-1808), e, portanto de uma nova organizagdo dos fatores de rodugio (maior mecanizagio e utilizagéo da mio-de-obra assalariada). Mesmo se transformando as relagdes sociais de produgdo de escravistas para eupitalistas, 0 que significou, pelo menos a longo prazo, uma mudanca de peso, mantém-se, mesmo assim, o sistema de dominagdo: quem detinha os privilégios continuou detendo-os. Chegamos por fim a questdo basica que queremos testar: se a interpre- tugio da sociedade brasileira que informa os alunos do 1.° Grau (6/14 anos de idade) é baseada numa visdo que inclui o mecanismo do favor conciliagdo (aqui tomado como sin6nimo) para disfargar voluntdria ou involuntaria- mente (ndo importa), mas concretamente, a violéncia presente invaria- velmente na esfera da produgdo e que se reflete na instancia do politico mas nfio do ideolégico'® Sugerimos aqui a viabilidade da técnica “andlise do contetido” para avaliar a interpretacdo que a literatura didatica do 1.° Grau faz da hist6ria do Brasil. 13. Ver José Honério Rodrigues, Conciliagdo e Reforma no Brasil — um desafio histérico-polttico , Civilizacdo Brasileira, RJ, 1965. 197 Ao estudarmos a instancia do ideoldgico e a possivel “violéncia” de ocultar a violéncia efetivamente presente na sociedade brasileira vista m Perspectiva de formacio histérica, queremos dizer como 0 poeta: “Do rio que tudo arrasta se diz i i ‘ que € violento. Mas ningué: violentas as thargens que 0 comprimem.” a Parte I A VIOLENCIA AO NIVEL IDEOLOGICO Num artigo intitulado “As Injusticas e o Siléncio”!4 Fernando Henri- que Cardoso nota que pelos ltimos exemplos de intemperanga e violéncia estamos longe de poder sustentar aquelas supostas virtudes caracteristicas do ‘Homem Cordial” brasileiro. Para Cardoso, sem que o governo transforme em.meta nacional a reconstrugdo do pais em proveito dos brasileiros e ndo das empresas, sem que se admita que o mal nao estd em denunciar injusticas e desigualdades, mas em manté-las, a violéncia e os desatinos continuarao germinando € 0 siléncio do medo e da suspeita funcionaré como a grande cortina que separa o Estado (flutuando sobre a sociedade como se fosse todo-poderoso) da Nagao (sufocada Por desigualdades sociais). Mas 0 que Cardoso acha de maior gravidade em nossa situagdo, é que “nao é a luta Politica ou o choque entre ideologias que esta gerando a violéncia e o medo; 6 uma sociedade hipnotizada pelo arbitrio privado (. . .) e estancada no siléncio dos érgaos responsveis”. Todavia, e apesar destas observac6es, a bibliografia didética formagdo da sociedade brasileira parece pairar eisai tealidade eae tal © uso indiscriminado que faz dos esteridtipos correntes acerca da cordia- lidade € tolerancia do brasileiro. O que ndo nos deve espantar'S ; ao con- trario, deve-se levar em conta ndo apenas a contradic¢do realidade/discurso sobre a realidade e a violéncia implicita num discurso que escamoteia e inverte o real, mas que a existéncia mesma desta violéncia simbélica é com- rene Obrigatéria dos aparelhos ideoldgicos do Estado e do inculcamento ies pee | can dominante procura levar adiante no quadro da ideo- ae Fatiicado) no jornal Fotha de Sao Paulo, 24-10-1976, . Vide, por exemplo, no dia 21/abril/75, na homenagem a Tiradentes, tido como 198 No que se refere 4 ideologia, devemos levar em conta trés aspectos iidos na definigdo gramsciana: uma concepgdo de mundo que se mani- implicitamente na arte, no direito, na atividade econémica, em todas as ifestagSes da vida intelectual e coletiva. Ou seja, o primeiro aspecto se #@ 40 cardter globalizante da ideologia da classe dirigente, que envolve arte até as ciéncias, passando pela economia, 0 direito, etc. © segundo aspecto esté relacionado a ideologia como concep¢do do Windo difundida entre todas as camadas sociais a que se liga, de uma ou Witte maneira, a classe dirigente; todavia, adaptada aos diferentes grupos ‘Molais. O terceiro aspecto se refere a ideologia no angulo da diregdo ideolégica ili sociedade, se articulando em trés niveis essenciais: a) a ideologia pro- Prlamente dital; b) a estrutura ideolégica (organizagdes que criam e difun- idem ideologia); c) o material ideol6gico (os instrumentos técnicos de difu- Mio da ideologia). Nesta perspectiva, a Escola é vista, entéo, como uma agéncia ideoldégica por exceléncia e a bibliografia diddtica como um dos variados instrumentos de difusao ou inculcamento ideolégico. No nosso roteiro de pesquisa, estamos menos interessados na violéncia em si na Histéria do Brasil ou ainda nas indicagSes sobre localizagdo e/ou dendncia desta violéncia. Nosso interesse maior é ver como, na atualidade, a bibliografia diddtica do Primeiro Grau camufla esta violéncia oferecendo uma alternativa ideolégica, todavia, ela mesmo violenta, apoiada na falsidade e na falsificagZo da realidade, “Nao 6 a injustica que figura em primeiro lugar no ambito da pesquisa, mas a hipocrisia.” '7 Nesta linha de observagdes, a reprodugdo das relagdes de forga numa dada formagao social garante, em Ultima andlise, a reprodugdo do modo de produgdo ai predominante. E a reprodugdo da ideologia dominante visa a manutengdo da ordem vigente, constituindo-se, pois, em violéncia simbélica, ja que, pela inculcago da cultura e dos valores dominantes, implica numa imposig&o e desenvolve uma relagdo de dependéncia, quase sempre imper- ceptivel, ‘dissimulada, que reforga a relagdo domina¢4o/subordinagdo entre as classes sociais. 17. Hannah Arendt — Da violéncia in Crises da Reptiblica, Sio Paulo, E. Perspectiva, 1973. 199 Neste processo da ideologia dominante, a Educagdo ocupa lugar de: cado como agente veiculador dos valores e da cultura dominantes!®. seja, a Educagao, como parte interligada ao aparelho do Estado, cons‘ tuiu-se aparelho de hegemonia, Notadamente, a educagdo institucionalizada pelo seu cardter organizatério e sistematizado enquanto politica educa- cional, previamente, estabelecida e planejada em termos de estrutura politica dominante (neste caso a reprodugdo é intencional) ou de forma imper- ceptivel, enquanto reproduzida por intelectuais (os professores) organica- mente relacionados com a classe dominante (e neste caso © processo é quase sempre inconsciente). Consideramos, portanto, os professores como intelectuais organicos Vinculados ao grupo social fundamental, e constituindo-se em “funciond- tios”'® da superestrutura, que mediatiza sua relagdo com o mundo da pro- dugao. Ou seja, “formam-se assim, historicamente, categorias especializadas Para 0 exercicio da fun¢do intelectual, formam-se em conexdes com todos 0s grupos sociais, mas especialmente em conexdo com os grupos sociais mais importantes, ¢ sofrem elaboragSes mais amplas e complexas em ligago com © grupo social dominante”*°. Pensamos, entdo, os professores (notada- mente os alocados no Ensino Fundamental) néo como intelectuais criadores, que atuam no sentido de elaborar a ideologia dominante, mas como “divul- gadores mais modestos da riqueza intelectual ja existente, tradicional, acumulada”?!, 18. Ressalvamos, entretanto, as observag6es de Bourdieu e Passeron: “Numa formacio social determinada, o Sistema Escolar dominante pode constituir o Trabalho Pedagé- gico como Trabalho Escolar sem os que o exercem como os que a ele se submetem cessem de desconhecer sua dependéncia relativa as relagdes de forca constitutivas de forma social em que ele se exerce, porque: 1.° — ele produz e reproduz, pelos meios proprios da instituicao, as condigdes necessérias ao exercicio da sua fungdo interna de inculcagdo que sfo ao mesmo tempo as condigSes suficientes da realizagdo de sua fungdo externa de reprodugdo da cultura legitima e de sua contribuigdo correlativa 4 Teprodugdo das relagdes de forca e porque, 2.° — sé pelo fato de que existe e subsiste como instituicdo, ele implica as condigSes institucionais do desconhecimento da violén- cia simbélica que exerce, isto ¢, porque os meios institucionais dos quais dispde en- quanto institui¢do relativamente auténoma, detentora do monopélio do exercicio legi- timo da violéncia simbélica, esto predispostos a servir também, sob a aparéncia da neutralidade, os grupos ou classes dos quais ele reproduz 0 arbitrio cultural (depen- déncia pela independéncia).” in Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron A Reproducao — Elementos para uma teoria do sistema de ensino, Francisco Alves, RJ, 1975, pag. 75. 19. Ver Antonio Gramsci — Os Intelectuais e a Organizagdo da Cultura - Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1968, 20. Antonio Gramsci, op. cit. pags. 8/9. 21. Antonio Gramsci, op. cit. pags. 11/12. 200 Localizamos, portanto, na Educacdo??, elementos que tendem a atuar forma mais eficaz na reprodugao da ideologia dominante, eficdcia esta la de forma mais direta pela educagdo institucionalizada (sistema de 0) que, ao lado da educagao difusa (exercida por todos os membros wdos de uma formagdo social ou de um grupo) e da educagdo familiar ros de grupo familiar, aos quais a cultura de um grupo ou de uma confere esta tarefa) garante a produgdo e a reproducdo do sistema de us dentro de uma formagdo social especifica. i ; Pretendemos, também, fugir a uma andlise mecanicista, que vé no sis- Joma de ensino mero instrumento dos interesses da classe dominante e deste odo ressaltar sua relativa autonomia ou relativa dependéncia frente ao poder estabelecido. Queremos com isso dizer que, a par de sua fungdo teprodutora da ideologia dominante (fungdo externa) o sistema Escolar possui também “uma fungao propria de inculcagAo, j4 que o trabalho pedagégico tem por wloito produzir individuos modificados de forma duravel, sistematica, por \wna ago prolongada de transformagdo que tende a dota-los de uma mesma formagao durdvel e transferivel (habitus), isto é, esquemas comuns de pen- samento, de percepedo, de apreciacdo e de agdo .. .”?° Sua relativa “‘autonomia” tem a ver com o grau de hegemonia da ideo- Jogia dominante. E neste caso também se explica um maior ou menor con- trole direto da classe dominante sobre o Aparelho de Estado Escolar para garantir a reprodugdo da ideologia dentro dos limites hegeménicos. Eviden- clase assim a tendéncia marcadamente conservadora do sistema de ensino, j4 jue detém o poder de selecionar e de formar. ; No ee formag6es sociais cujo modo de producdo capitalista é predominante, nao se pode negar a relagdo do Aparelho de Estado Escolar com a classe dominante, e, portanto, sua atuacdo no sentido de assegurar a continuidade das relagdes ai predominantes, isto é, das relag6es de explo- ragdo capitalistas. Ou seja, caracterizamos a eficdcia do sistema de ensino enquanto veiculador da ideologia dominante, lembrando que sua fungao de conservacdo social atua com uma eficdcia maior pelo fato de permanecer dissimulado. k “Desde a pré-primdria, a Escola toma a seu cargo todas as criancas de todas as classes sociais, e a partir da pré-primaria, inculca-lhes durante anos, os anos em que a crianga esta mais ‘vulnerdvel’, entalada entre o Aparelho de 22. Como tantos o fazem (Gramsci, Althusser, Bourdieu, Passeron; para citarmos os ‘ dos). 3 Fae poi e Jean-Claude Passeron, A Reprodugdo — Elementos para uma teoria do sistema de ensino, Francisco Alves, RJ, 1975, pag. 206. 201

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