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TEMAS EM DEBATE OS PROFESSORES E SUAS IDENTIDADES: O DESVELAMENTO DA HETEROGENEIDADE Bernardete Angelina Gatti Goordenadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da FCC Docente da PUC-SP © artigo discute o trabalho cotidiano de professores a construgao de uma identidade profissional, Ievando em conta os inumeros fatores que participam da composi¢ao dessa identidade. Nos paises em desenvolvimento, hoje, a protisstio de professor vem sofrendo profundas transformagdes sob © efeito conjugado de uma série de fatores. Entre es- ses temos de considerar, de um lado, 0 crescimento do nimero de alunos e sua heterogeneidade socio- cultural, a demanda pela populacao de uma certa qualidade da escolarizacao, 0 impacto de novas for- mas metodolégicas de tratar os conhecimentos © 0 ensino, e, de outro, a auséncia de priorizagao poli co-econémica concreta da educagao primaria @ se- cundéria e as estruturas hierérquicas © burocréticas, no mais das vezes, centralizadoras e inoperantes em seus diferentes niveis. No entrechoque dinémico des- sas condicdes situa-se 0 trabalho cotidiano dos pro- fessores em suas salas de aula, com a bagagem que sua formago basica ou continuada the propiciou, com os saberes que com sua experiéncia construi. E 6 desse trabalho que a sociedade em geral real- menta-se no ato de garantir a transmiss4o e a con- tinuidade da experiéncia humana, pela comunicagao, manutengao ou criagao @ recriagéo de saberes sele- cionados numa dada cultura ¢ tradigéo Cad. Pesq., Sao Paulo, n.98, p.85-90, ago. 1996 Em sociedades que sofrem grandes ¢ répidas mutagdes como a nossa, podemos detectar, na cons- trugaio e na forma que toma o papel social dos pro- fessores, e também nas propostas para sua formagao, uma questéo de fundo, pouco trabalhada nas pesqui- sas, que mereceria ser examinada e levada em conta, dado que ela 6 a base de seu modo de ser social: trata-se da questo da identidade do professor. A identidade permeia 0 modo de estar no mundo e no trabalho dos homens em geral, € no nosso caso particular em exame, do professor, afetando suas perspectivas perante a sua formagao e as suas for- mas de atuagdo profissional. Os professores, como seres socials concretos, com um modo préprio de es- tar no mundo, de ver as coisas, de interpretar infor- mages, so ignorados pelas pesquisas e pelas poll- ticas de intervengo que lidam de forma objetal ou abstrata com esses profissionais. Esse profissional é um ser em movimento, construindo valores, estrutu- rando erengas, tendo atitudes, agindo, em razlio de lum tipo de elxo pessoal que o distingue de outros: 85 sua identidade. Associadas a identidade esto as mo- tivagées, os interesses, as expectativas, as atitudes, todos elementos multideterminantes dos modos de ser de profissionais. A identidade no é somente cons- tructo de origem idiossincratica, mas fruto das intera- (9®es sociais complexas nas sociedades contempora- eas © expresso sociopsicolégica que interage nas aprendizagens, nas formas cognitivas, nas agdes dos ‘seres humanos. Ela define um modo de ser no mun- do, num dado momento, numa dada cultura, numa historia. Ha, portanto, de ser levada em conta nos processos de formagao e profissionalizagéo dos do- centes. Quem é esse professor em relagdo ao qual tantas e tantas pesquisas se fazem? Quem 6 esse professor de quem se diz no ter “qualidade? Que epresentagdes tem de si, como pessoa e profissio- nal? Como essas representagdes interagem atuando na sua prépria formacao © nas ages pedagégicas que desenvolve? Essas so questées importantes ara a compreensao do ser-professor que podem nor- tear 0 fazer-se professor. Nao sabemos muito sobre as questées aponta- das. As pesquisas no tém sido convenientemente delineadas para nos oferecer cenarios mais completos sobre a pessoa e a identidade socioprofissional dos professores. Temos, no que respeita & América Lati- na, algumas pistas sobre essas questdes a partir das quais podemos fazer algumas reflexdes e talvez ba- sear politicas de ensino e desenvolver novas investi- gagdes que tragam um aprofundamento no conheci- mento © nas possibilidades de construgdo e recons- ‘rugdo da identidade profissional de docentes com im- acto positive nas acGes educativas. As pistas as uals nos referimos advieram de um conjunto de pes- quisas realizadas de modo coordenado nos inicios dos anos 80 em seis paises latino-americanos (Schie- felbein ot al., 1994). Vejamos alguns resultados desses trabalhos. Quando se fala sobre 0s professores, como também sobre os alunos, fala-se de generalidades, supondo- ‘se sujeitos abstratos pertencentes a um conglomerado. homogéneo. Embora os dados mostrem que a quase totalidade dos professores em exercicio sejam mulhe- tes — € 0 impacto no ensino desta feminizagéo da rofissdo nfo pode ser ignorado —, esse conglome- rado no 6 tio homogéneo como possa parecer ou se deseje fazer crer. Ao contratio, comporta grupos ‘com diferengas bem significativas. Varia 0 nivel so- cloeconémico familiar das protessoras, mesmo que tendencialmente, hoje, provenham sobretudo das ca- madas mais baixas das escalas de indicadores so- cioeconémicos. Pertencem fundamentalmente a gru- Pos que tentam a ascensao social pela instrugao, ‘sendo mulheres, é profisso privilegiada para seu in- gresso no Ambito publico, no universo social do tra- balho fora do lar. O exercicio do magistério, tanto para aquelas de origem social nas camadas médias, quan- 86 to para as demais, 6 pois uma via de saida da vida privada, e, para as oriundas das camadas de mais baixas rendas, ¢ também meio de sobrevivéncia e afirmagao social em profiss’io ndo manual. Associa-se também ao esterestipo social da fungéo de mulher — cuidar. E esse & um aspecto interessante a ser apro- fundado, pois cuidar no significa necessariamente en- sinar, avalar, alavancar. Pode significar apenas guardar 4, no limite, um “no deixar morrer” simbélico. Para parte desse professorado o salério 6 ainda ‘um complemento de um processo de incorporagao so- cial, mas, para a maioria, o salério é fundamental para ‘@ manuteng&o da familia, que dele depende em es- ala cada vez maior. Embora genericamente com ‘suas expectativas insatisfeltas, essas néo tém a mes- ma natureza para todas as docentes. Para as mais bem situadas sociaimente as expectativas relatadas 8&0 mais idealizadas, associadas a propostas de fazer ‘com que as criangas aprendam, a ter reconhecimento social. Para aquelas cujo nivel socioeconémico fami- liar 6 mais baixo, as expectativas estdo relacionadas a contribuigo da profisso para o rendimento familia, ‘com ter um emprego mais seguro e conciliar a atua- {¢40 profissional com a manutengao da familia. Explo- ando os aspectos relacionados a frustrago na pro- fissdo, que 6 expressa pela maioria, verifica-se que essa frustragao repousa também em fatores diferen- ciados como: os baixos salérios, a auséncia de con- digdes para 0 bom exercicio da profissao, os proble- mas relativos & formagao para a protissdo, as més re- tages no trabalho, as miltiplas exigéncias extraclas- se ou, ainda, a exaustéo pola demanda continuada das criangas @ a indisciplina. S40, pois, heterogéneos 0s fatores de desmotivacao das docentes em exerci- Cio, fatores esses que devem estar associados a ex- periéncias especificas de vida e trabalho. Sao diferen- tes as expectativas relativas ao exercicio da profisséo, so também diferentes os motivos de frustragao. Por ‘outro lado, as satistagdes que encontram relacionam- se com 0 trabalho em sala de aula, porém, por mo- tivos diferentes: porque se sentem donas desse es- ago sem interferéncias diretas, porque ai se realizam afetivamente com as criangas, ou porque em sala de aula se sentem mais seguras ou nao se sentem vi- Giadas e cobradas diretamente etc. Contradigdes 80 evidentes om seus depoimentos, 0 que nos mostra ue 0 vivido nao pode ser tomado linearmente ¢ sim- plificado em slogans. Boa parte das professoras di- em que escolheram 0 magistério vinculado as expec- tativas que se supde que a sociedade deposita na es- ola, ou seja, com a expectativa de ensinar as crian- a5, mas muito poucas dentre elas consideram como principal qualidade de um professor “conseguir que seus alunos aprendam’. E, ainda, boa parte delas atri- bui sua decisdo de ser professora a fatores externos a propria profissao — por exemplo, para ter emprogo seguro, porque havia escola de formacao de profes ‘sores perto da residéncia, a possibilidade de combinar Os professores @ suas identidades. estudo com trabalho, porque 6 profisséo mais adequa- da socialmente para mulheres, © outras ainda decla- ram vagamente que ser professora_simplesmente *aconteceu", Ao lado disso, a maioria diz que: sempre quis ser professora, porém 40% delas optaria por ou- tra profissdo, quer pela ndo-valorizagao atual da pro- fisso, quer pelos balxos salirios, quer pelo trabalho muito desgastante. Todas essas condigdes e contradigdes apontam para a necessidade de se compreender com mais profundidade os contextos sociais, afetivos e culturais ‘que permeiam 0 exercicio do magistério na medida fem que as suas motivacdes, percepges, crengas, ati- tudes, valorizagées relacionam-se diretamente com os, modes de envolvimento das professoras com seus alunos @ com a tarefa pedagogica. ‘A imagem social que tém de si mesmas também 6 contraditéria. De um lado oxaltam 0 quanto sao gra- tiicadas pelas criancas @ pais, de outro apontam 0 descaso das politicas sociais para com a educagao e 0s professores, 0 desinteresse dos alunos, 0 néo- comprometimento das familias com a educagéo dos filhos. Muitas sentem-se desvalorizadas pelos baixos salérios, mas muitas outras também pelas arbitrarie- dades com que inovagées e reformas educativas s&0 impingidas a elas e a0 sistema, colocando isso no ni- vel pessoal da “falta de respeito”. Falta de respeito das autoridades educacionais e falta de respeito por parte dos alunos. Nesse ultimo caso, para as que tra- balham com alunos de baixa renda, a falta de respeito repousa no descaso com a aula @ a escola; para as que trabalham com alunos de melhor posigo social, sentem o dasprezo de pais e alunos por se conside- rarem socialmente superiores @ professora que é tra- tada “como empregada’. Também 0 sentimento de desrespeito ndo repousa em fator Unico e nao tem um sentido tnico. Além disso, 0 sentimento de valoriza- oldesvalorizagao pela comunidade de entorno da escola também tem nuangas diferenciadas. Pistas pa- recem ligé-lo as proprias caracteristicas socioculturais da comunidade atendida: 0 sentimento de desvalor- zago 6 mais forte nas professoras que atuam em co- munidades altamente urbanizadas, mais industializa- das, com nivel socioeconémico mais alto. Voltemos a um aspecto jé abordado, o da escolha da profissao, para confronté-lo com a questo da pro- mogdo/retengao dos alunos. E aqui estarei me refe- rindo especificamente as professoras pesquisadas em atividade nas 1® as 8 séries do 1° grau, pertencen- tes & rede pulblica, tomando-se como amostra os es- tados do Maranhdo, de Minas Gerais e de Sao Paulo, ‘com caracteristicas representativas em relagéo a0 pals. A estratificagao efetuada por localizagao, séries, disciplinas e nivel sociceconémico da clientela permi- tiu-nos trabalhar com uma amostra relativamente pe- quena (n=304) mas abrangente quanto a varidveis. Gatti, Esposito, Silva, 1994). Como j& apontamos, a Cad. Pesq., 7.98, ago. 1996 maioria das professoras diz ter escolhido o magistério por gosto”, porém, acrescentam a esse motivo fatores: circunstanciais que talvez expliquem melhor sua con- digdo e sentimentos atuais no magistério, tais como a falta de outras oportunidades educacionais ou de trabalho, mercado de trabalho dificil em outras areas, ‘experiéncias ocasionais de dar aulas acabando por fi- ‘car, nao ter conseguido seguir outra carreira univer sitéria. Um tergo dessas professoras diz que para elas foi uma profissdo que “aconteceu”, ou seja, ndo rep- resentou uma escolha clara, consciente, especifica. Essas condigdes de ingresso e permanéncia como protessoras certamente estao associadas as perspec- tivas perante seus alunos e seus modos de agir com eles, seus objetivos e metodologias de trabalho. Como encaram, entéo, a questéo das reprova- des escolares? A questo da repeténcia 6 um dos problemas mais séries que vem ocorrendo em nosso sistema escolar. As altas taxas de reprovagéo nas di- versas séries do ensino basico parecem uma marca registrada do proprio sistema, a ponto de pesquisa- dores referirem-se a uma ‘cultura da reprovagao” en- tre 0s professores (Ribeiro, 1991; Silva, Davis, 1993), como trago marcante seja de incompreensao dos pro- cessos de construgao de conhecimentos @ sua ava- liagdo, seja de auto-afirmacao, seja por alienago & repeti¢ao cega de modelos vigentes. Inumeros proble- mas relatives & forma de execugao da avaliacao em sala de aula e seu papel no proceso e na qualidade da aprendizagem dos alunos tém sido analisados até amplamente discutidos. Ao realizarmos 0 levanta- mento desses dados junto as professoras, com o ano letivo j4 para adentrar em seu bimestre final, pergun- tou-se quantos alunos de suas respectivas classes iriam, em sua opinido, repetir de ano. A média de re- petentes anunciados por classe — que na pesquisa contavam, também em média, com 34 alunos — foi de onze alunos. Realmente um némero muito eleva- do: praticamente um tergo de cada classe. Solicitou- se, ent, as professoras que assinalassem trés ra- z26es que julgassem mais importantes para explicar esta repeténcia. As mais assinaladas foram a falta de interesse dos alunos (61%), a falta de interesse por parte dos pais (49%), 0 excesso de faltas dos alunos. (84%) @ a desintegracdo familiar (33%), Outras alter- nativas relativas a aspectos pedagégicos e materiais no Ambit da escola foram minimamente assinaladas. Nesse caso ha uma convergéncia interessante: pro- fessoras de situagdes sociais as mais dispares apon- taram as mesmas causas como num discurso deco- rado. Ou seja, parece nao haver uma percepao di- ferencial das causas da repeténcia entre as docentes, ‘qualquer que seja sua préptia condigo social. Mais, uma vez constata-se, quase uniformemente, a tendén- cia a atribuir aos préprios alunos ou @ sua familia a responsabilidade pelo seu insucesso na escola. Essa parece ser uma forte representagao social que domina ‘as opini6es e perpassa as atitudes e o proprio traba- 87 ho dos professores em nosso pais. Apenas um pro- fessor revelou uma sensibilidade diferente diante da questo, © que nao quer dizer que em tese ele seja nico. Foi unico na amostra estudada. Escreveu: “o sistema de educagao esté muito distante das neces- sidades quer dos alunos, quer da sociedade, como da propria realidade que temos”. Ainda assim, refere-se 0 “sistema” sem personalizar e trazer a questéo para 08 agentes diretos da educagao, tal seja a propria agdo docente, as formas de gestéo das escolas — 08 diretores, as formas de exercicio da coordenacao © orientagéo pedagégica ou educacional. Podemos compreender que no universo do professor, na sua lida didria com os alunos, estas questées ‘se colo- quem fortemente em virtude das condigées sociocul- turais em que alunos © professores esto imersos. Porém, com a ampla e ptiblica discusso sobre 0 con- texto social e suas relagdes com o papel da escola, sobre 0 chamado compromisso politico des professo- res, bem como sobre condigdes sociais dos alunos as questées ligadas a aprendizagem, algum avango de perspectiva poderia ser esperado. Nao 6 0 que se constata e, portanto, as questdes ligadas ao ensino © & aprendizagem das criangas e jovens, as estralé- gias de trabalho do professor com eles, deveria me- recer especial consideragdo, aliando-se a estas ques- tes uma compreensao verdadeiramente contextuada desse alunado e desses professores, Com a repeticao do discurso pedagégico da redengao das classes po- Pulares, da consciéncia da opressao, do papel do pro- fessor e da escola como mediadores desse processo, Poder-se-ia esperar, por outro lado, pelo menos um outro discurso dos professores diante das reiteradas criticas de se culpabilizar o aluno pelo seu fracasso, No entanto, permanecem atribuindo a eles os proble~ mas de aprendizagem. Isso mostra a grande pregnan- cia da situagao concreta experimentada polas profes- soras no seu dia-a-dia escolar @ 0 efeito da particu- laridade, em termos hellerianos, sobre 0 pensar e 0 agir dessas professoras. Para Heller (1975), imersos que estamos todos na Cotidianeidade, neia agimos e nos exprimimos como individuos. E, como tais, somos seres particulares genéricos ao mesmo tempo. Por exemplo, temos sen- timentos que so manifestagoes genéricas do homem, mas ao manifestar esses sentimentos 0 fazemos de uma maneira particular; partilnamos ideais de bonda- de, cooperacao etc., mas os expressamos em agdes movidos por motivagies idiossincraticas, especiticas, Particulares, utilitérias. Sendo seres participantes ao mesmo tempo da genericidade e da particularidade, sujeitos estamos a cristalizagbes, perdendo de vista a totalidade de nossa situagéo como pessoas num dado contexto social, alienando-nos. Com esse pro- cesso de fragmentagao e parcialidade toramo-nos particularidade. Como particularidade agimos com base em juizos provisérios que, ao invés de serem Continuamente reelaborados, cristalizam-se e tornam- 88 se guias de nossas avaliagdes de situagdes e pes- soas @ de nossas agdes, na vida em geral @ no tra- balho. Nesta condigao ficamos prisioneiros de nossos preconceitos. Olhar as professoras em sua cotidiani- dade sob esta dtica pode levar a compreensées mais amplas sobre os seus modos de ser com os alunos, na sua profisséio. Pode também permitir, dentro de certos limites, aberturas para alternativas de interlo- cug6es mais objetivas, portanto menos idealizadas presoritivas, com os professores, Voltamos entéo ao que jd afirmamos: 0 professor nao 6 uma entidade abstrata, um protétipo idealizado como muitas vezes o vemos tratado na pesquisa, em textos reflexivos em educacao, ou em documentos de politicas ou intervengdes educacionais. Ele é uma Pessoa de um certo tempo e lugar. Datado e situado, fruto de relagdes vividas, de uma dada ambiéncla que (© expe ou nao a saberes, que podem ou nao ser importantes para sua aco profissional. E 6 assim que precisa ser compreendido. Os professores tém sua identidade pessoal e social que precisa ser compreen- dida e respeitada: com elas é que se estard intera- gindo em qualquer processo de formagao, de base ou continuada, e nos processos de inovago educacional Fagamos uma pequena digressdo sobre a ques- to da identidade dos professores. Identidade se constréi e no é dada. E respaldada pela meméria, quer individual, quer social. Assim como o individuo 86 6 nas suas relagdes sociais, compreender os pro- fessores implica vé-los nas suas relagées sociais, constitutivas de seu ser. Portanto, percebé-los no seu vivido como pessoas inseridas num certo contexto fa- miliar @ comunitario, num contexto de classe, num sogmento de cultura, no seu trabalho e nas formas institucionais que definem e delimitam esse trabalho. Esta postura compreensivo-refloxiva implica nuangas que levam a admitir que, de quaiquer forma, temios necessidade de estruturar conceitos, consciente ou in- conscientemente — que nos orientam no agit —, mas implica também o lidar com 0 movimento social de Construgo em que esses conceitos se consolidam e se modificam, Assim, submergidos num movimento de transtormagao, no mais das vezes sutil porém conti ‘nuo, buscamos identidades até como uma condigio ara 0 nosso estar no mundo e agir nele. Se toma- mos a identidade como uma cristalizagao necessaria do incessantemente mutante, como uma ordenagéo que permite reconhecimento, nao podemos esquecer que ela é representagao de realidades originalmente heterogéneas e singulares. A identidade traduz a con- digéo humana de vivenciar contradig6es por meio de certezas incertas, Os professores ao agirem de determinadas ma- neiras revelam/escondem uma identidade complexa em que representagdes de conhecimentos, crengas, valores e atitudes se compdem integrando as viven- ias nas salas de aula e fora delas, Ao tentarmos tra- Os professores @ suas identidades.. uzir componentes desta identidade, por consideré-los importantes para qualquer ago junto aos professores, temos de ter presente ao espirito que estamos cor- rendo 0 risco de homogeneizar 0 que é plural. Por outro lado, e eis a contradigao da nossa situacdo, se nao o fizermos teremos dificuldades em chegar a uma, reflexéo que permita projeges @ aces. O isco pre- cisa, pois, ser corrido lembrando sempre que estamos correndo perigo de simplificar demais 0 que é mil- tipto. Varios fatores podem ser considerados como im- Portantes para a qualidade do desempenho profissio- nal dos professores. Nao faltam trabalhos académicos analisando-os. Fatores como a formacao dos profes- sores, as caracteristicas da instituig’o escolar onde trabalham, 0 contexto em que as escolas se situam, tanto no nivel da burocracia escolar como no das po- liticas de estado em geral, as condigées salariais perspectivas de carreira etc. foram @ sao estudados Por indmeras pesquisas. Mais recentemente se tem analisado as interconexdes entre esses fatores exter- nos ao professor @ as caracteristicas mais pessoais dos docentes como suas convicgdes, seus preconcel- tos, suas expectativas, suas habilidades gerals, suas habilidades pedagégicas, suas formas proprias de construgo cognitiva. Todos sao fatores atuantes no desenvolvimento da identidade desses profissionais, dai a importancia de sua consideragaio como totalida- de. O professor néo é um robé que se programa ou se adestra de acordo com as necessidades do mo- mento. O discurso pedagégico e o da pesquisa, bem como as politicas de interveneao para formacao ba- sica ou continuada desse profissional, voltamos a en- fatizar, consideram o fator pessoa do professor. Fala- se em dificuldades de mudangas do professor, de re- sisténcia etc., com uma conotacao ideologizada tra- duzida com julgamentos de louvor — “Eles resistem bravamente as interveniéncias externas! Sao herdis!" — ou, com julgamentos que traduzem condenacdo — “Nao mudam nunca, nao se atualizam, rejeitam ino- vagées cientificamente estudadas, so rotineiros, tra- dicionalistas, incapazes de aperteicoar-se etc.”. Po- rém, néo se analisam as implicagées de sua identi- dade profissional construfda nas interconexdes dos fa- ores apontados, de modo concreto, em sua historia de vida e de formaco Visées idealizadas @ parte, podemos pensar que 0s professores constroem suas identidades profissio- nais no embate de seu cotidiano nas escolas, sobre a base das vivéncias que sua situago social de clas- se, de sexo, de raga, thes possibilitou como back- ground. Eles se identiicam a partir de seu trabalho de ensinar. © que justifica esse trabalho 6 a respon- sabilidade de ter de garantir a transmissdo e a per- etuagdo da propria experiéncia humana consubstan- Ciada em um determinado tipo de cultura. Os profes- Cad. Pesa., n.98, ago. 1996 sores sao 0s construtores das vias pelas quais as ex- periéncias traduzidas em conhecimentos estruturados e organizados circulam interpessoas e intergeragies. Mas esta construgdo nao se da num vacuo, e sim numa dada histéria situada temporal e geograficamen- te. No seu que-fazer cotidiano constroem essas vias dentro dos limites das possibilidades concretas que ‘sua condig&o pessoal institucional determina, a partir das representagdes e mediagdes que elaboram e to- mam como orientadoras de suas agdes. A cristaliza- ‘go de crengas e valores que Ihes permite viver, tam- bém thes permite trabalhar. Ou seja, ensinam @ edu- ‘cam para metas @ com agdes pervasadas pelo préprio, significado que construiram em relagéo aos conheci- ‘mentos, a vida em sociedade, as pessoas. So esses. significados que precisam ser desvelados. Compreen- dendo isso, pode-se, com maior objetividade, pensar sobre quais as possibilidades de superagao das situa- Ses problemdticas, relativas ao professorado, nos processos educativos das novas geragdes. Sendo es- taremos trabalhando com abstragdes. Estas possibil- dades devem passar, na ética de exame que estamos, propondo, pelo desenvolvimento de uma consciéncia mais critica dos préprios profissionais do ensino. Sem © envolvimento direto dos professores no repensar de seu modo de ser @ sua condigo de estar numa dada sociedade © em seu trabalho — o que implica analise de sua identidade pessoal @ profissional —, as alter- nativas possivels na diregdo de uma melhor qualidade da educagao e do ensino nao se transformardo em possibilidades concretas de mudanga, Professor no se programa e nem é tabula rasa. Veremos, como te- mos visto, a0 continuarmos com os mesmos métodos. de formar professores @ prover seu aperteigoamento, simulacros de mudanga mas no transformagdes reais. ‘Segundo Azanha (1985) 0 que sabemos sobre 0 ensino em geral nao ultrapassa o nivel das opinides ou das idéias feitas. Em outros termos, nossa propria produgao dita cientifica situa-se no plano das particu- laridades, como examinamos acima. Ou reificamos slogans @ hipéteses, ou fazemos afirmacdes genéri- cas que sao verdades parciais parecerem verdades gerais. Ou ainda, de poucos casos isolados fazemos grandes generalizagées afirmativas que passam a fun- damentar argumentos e regras de procedimentos. O impacto quase nulo das politicas educacionais que se sucedem @ que ndo alteram 0 quadro de problemas de um ensino que visivelmente é deficitério demonstra isso. Contundentemente Azanha completa, afirmando que 0s desacertos repetidos e consolidados s4o fruto de providéncias tomadas no émbito das administra- ges da educagao, a “partir de um vago saber pe- dagégico que incorpora acriticamente meias-ver- dades". 89 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AZANHA, J. M. P. Sttuagao atual do ensino de 1® grau: paqueno ‘exemplo de desacertos. Cadernos de Pesquisa, S80 Paulo, 52, 1985. GATTI, B. A. A Identidade do pedagogo. Educario @ Compro- ‘misso, UFPI, Teresina, v.5, 0.12, 1993 GATTI, B. A, ESPOSITO, ¥. L,, SILVA, RN. Caracteristicas do professores(as) do 1° grau no Brasit perf e expectativas. Educagdo & Sociedade. 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