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PERFORMATIVIDADE RADICAL: ATO DE FALA OU ATO DE CORPO?' Joana Plaza Pinto “The body is the blindspot of speech.” Inserido na tradigao logicista de Oxford, 0 filésofo inglés J. L. Austin, no Resumo: Este trabalho uma reflexdo sobre 4 Teoria dos Atos de Fala, de J. L. Austin (1998; (1976). Meu objetivo & oferecer uma interpretagao feminsta ao problema da rela Bo entre linguagem e corpo. Para isso, ba: seio-me nas interpretacoes de Butler (1997, 1999), Derrida (1979; 1990) e Rajagopalan (1989; 1990; 1992, 1996) que se referem 20 trabalho de Austin. Discuto que a impos sibilidade do controle intencional do ato de fala exclu a unicidade propria 8 idéia de “efei- to mental” e desloca os limites da ago do ato de fala para além da ilocugio — para 0 ‘campo controverso do corpo que fala. O su- Jeito que fala € aquele que produz um ato corporalmente; 0 ato de fala exige 0 corpo A presenca materia e simbélica do corpo na ‘execuggo do ato é uma marca que se impée ro efeito lingustico. O corpo, como elemen- to regulado pelas convensées rtuafizadas nele inscritas, eperformativizado pelo ato que pos tula sua signiticagao prévia, impede a redu: so da andlise do ato de fala & andlise sim- ples das convencées linguistics, e exige le- var em conta a integralidade da materaiidade do corpo que produz o ato, Palavras-chave: performatividade; atos de fala; corpo; J. L. Austin; teoria feminista de uma i esta teoria geral dos atos de fala, a partir terpretacao feminista para 2 desenvolvimento avancado de seus trabalhos, defendeu a necessidade de se partir para uma teoria mals geral das atos de fala. Pretendo aqui buscar refletir sobre © que poderia ser tomade como relacdo entre ato de fala e corpo. Austin (1976, 1998) propds-se 2 discutir sobre enunciados que néo poderiam jamais ser nem verdadeiros Niterdi v. 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 nem falsos - os enunciados _perfor- ‘mativos. O problema da verdade sempre foi central na filosofia, portanto Austin preparou um campo polémico de discussao: existiriam determinadas realizacées linguisticas que néo permitiriam qualquer afirmago sobre seu valor veritativo. Ainda que pudesse implicar a verdade ou falsidade de outros, © enunciado performative nao existe sendo para fazer Caracterizando 0 pensamento de Austin como “relativement originale”, Derrida procura mostrar que a concepcéo de comunicagao exposta na teoria dos atos de fala nao se assimilaia em nada 3 concep¢éo classica de comunicacdo, como transporte. Em suas palavras' “Communiquer, dans le cas du performatif [..] ce serait communiquer tune force par Fimpulsion d’une marque” (DERRIDA, 1990, p, 37). Forga, neste caso, seria uma das duas forcas atriouidas por Austin ao enunciado performativo: forca ilocu- ciondria ¢ forga perlocucionéria. Esses tipos diferentes de forca so conse- uéncias da tripartigao do ato de fala: ato locucionério ~ realizacdo de um ato de dizer algo; ato ilocucionario - realizag3o de um ato ao dizer algo; e ato perlo- cucionério ~ realizagéo de um efeito sobre o interlocutor. A respeito dessa tripartigao, inicial no pensamento de Austin, Derrida comenta que sua elaboracao é derivada da idgia de um sujeito intencional consciente da totalidade do seu ato de fala; nada Ihe escapa, e, portanto, hé uma unidade de sentido na sua realizacdo. De fato, a intencionalidade parece organizar as conferéncias iniciais de Austin, enquanto ele procura um fio condutor para 0 proceso do ato de fala - ele se esforca em trazer elementos que cerquem o enunciado performative e garantam seu sucesso. A oposicao sucesso/fracasso se sustenta pela intengdo do/a falante, ou seja, pelo que ofa falante intenciona para co enunciado que ele/a produz, tratando, portanto, as convengées ritualizadas do enunciado como um contexto possivel de ser saturado, de ser dado como totalmente determinavel Essa critica de Derrida a Austin procede. No entanto, as conferéncias de Austin (1976) s8o reflexdes, como observou Rajagopalan (1996), repletas de reviravoltas. Depois de um longo caminho reflexivo, Austin acaba por deixar de lado a distingao que ele mesmo foriou entre performativo e constativo para concluir que este ditimo nao existe sendo sendo o primeiro (AUSTIN, 1998), e que essa distingdo inicial é fragil para dar conta do alcance operacional dos atos de fala. Sua conclusio é alcancada através de uma argumentacao complexa, Como € j4 popularizado, Austin demonstrou que uma seqiléncia como Eu prometo que volto”, quando proferida sob determinadas condicdes, pode ser considerada um enunciado performative, ou seja, opera, no caso, uma promessa. Essa primeira parte da sua discussdo em torno do performativo deu margem a interpretacoes ~ especialmente no campo dos estudos linguisticos -de que, para um enunciado ser performativo, ele deveria conter uma formula lingufstica preestabelecida, O exemplo mais conhecido dessa interpretacdo € 0 de Benveniste (1991), gue procurou resumir a férmula do performative’ [..] 9s enunciados performativos so enun- Ciados nos quais um verbo declarstivo- Jussivo na primeta pessoa do presente se constrdi om um dictum, Assim, ordonne 102 Niteréi, v 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 (ou je commande, je décréte etc) que fs population soit mob lsée em que o dictum & representado por la population soit rmobilisée (BENVENISTE, 1991, p. 300) No entanto, Austin caminha adiante e observa que a sequéncia “Eu prometo que volte” pode eauivaler 3 seqiiéncia “Eu volto", desde que ambas obedecam as condigdes de uma promessa, Assim, Austin afirmou que as estruturas linguisticas caractersticas dos enunciados performativos nao operam por si 56s; elas necessitam de um contexto, de convengées rtualizadas para realizarem seu efcito. € num contexto determinado que uma falante emite 0 enunciado cyjo significado repousa na aco que ele produz. Isso significa que so as condig6es do ato de fala, e nio sua férmula em palavras, que operam o performativo; o que leva & conclusio de que qualquer sequéncia, mesmo sem a férmula explicita com verbos decla- rativos-jussivos, como queria Benveniste, 6 um enunciado performative. Dai 2 conclusdo de Austin ser Até aqui observel duas cosas: que no exe te nenhum critério verbal para dstinguir 0 enunciado performative do enunciado constativo, © que 0 constativa ests sujeto smesmasinfelcidades que o perfarmativ. [1a férmala “afiemo quo" é inteirarente parecida com a férmula “le previne que”, formula a qual, como dissemos, sere para tornarexplcito 0 ata de fala que efetuaros; «, além disso, quendo se pode nunca emir tum enunciads qualquer sem realzar um ato de fala deste género. Temos talvez necess- dade do uma teor'a mais geval dos atos de fala e nesta teoria nossa antiteseconstativo- performatvo ter difculdade para sobrevi- ver (AUSTIN, 1998, p. 119}. No momento em que se descarta a dupla constativo-performativo, pode-se partir para ura teoria mais geral dos atos de fala, Mas que teoria seria essa? Sem diivida, seria uma teoria radical dos atos de fala, uma teoria que levasse em conta © sujeito de fala como parte integrante da performatividade, e nunca somente formulas linguisticas ou condigdes de fala. Uma visio performativa de linguagem deve integrar a complexidade da condigio de sujeito de linguagem, e levar as Gltimas consequéncias a identidade entre dizer e fazer, insistindo nna presenga do ato na linguagem; ato que transforma — opera. Se levo em conta a complexidade da condigo de sujeito de linguagem, tenho, como primeiro passo, que basear- ‘me em uma nogio de sujeito. Mas, que sujeito seria esse que age na linguagem? Como apontei, Austin argumentou que so as condigées do ato de fala que operam o performative, o que leva 8 necessidade premente de conhecer tais condigdes de fala de forma completa para poder analisar qualquer ato de fala, No entanto, desejar conhecer comple- tamente as condicées do ato de fala é pressupor que tais condigées so saturéveis, determindveis, e, portanto, ‘que seu significado esta retido em algum componente de sua realizagao. Qual componente setia capaz de ancorar toda a complexidade do ato de fala? Dois elementos foram tomados, nas diversas interpretacbes criticas ao trabalho de Austin, como lugar dessa ancora totalizadora do ato de fala: a inten- cionalidade e a convengao ritualizada Na leitura critica de Derrida, vimos que Austin parecia atar as forcas 8 intengao dofa falante: & deste/a dltimo/a que parece transbordar a ago da forga ilocucionéria - que se quer fazer —e forca perlocucionsria -0 que se quer fazer ‘teri v. 3, n. 1, p. 101-190, 2. sem. 2002 103 fazer. Mas Austin no se engana sobre @ posicio fragil que ocupa a inten- cionalidade. De uma reviravolta funda- mental na tentativa de distingao entre o ilocucionario e o perlocucionario, ele se ergue com a nocao de uptake. Esse termo, traduzivel como apreenséo, pode ser mais bem entendido como a relacdo de intersignificagdo, quando as forcas envolvidas no ato de fala esto sendo negociadas pelos/as falantes. O uptake é ‘oreconhecimenta ente os interlocutores de que algo estd assegurado, de que o "abjet- vo iloeuciondtio” foi realizado através de sua orga. O uptake, enguanto uma relagao en tue interlocutores por meio da linguagem, std présimo do jogo, j que ndo hi regras rem citérios formas defnivos que possam descrevéo (OTTONI, 1998, p. 81). Neste momento, nao se pode mais afirmar que a intencao do/a falante determina as forcas do ato, mas, a0 contrério, o/a falante permanece como integrante das forgas que operam. 0 uptake desfaz a possibilidade de “falante consciente da totalidade do ato” porque exige alteridade, a presenca do outro; descentraliza 0 falante, fragmenta assim 05 efeitos, deixando, portanto, escapar “restos”, produzindo uma “polissemia irredutivel” (DERRIDA, 1990, p. 39) propria & performatividade Seguindo alguns argumentos de Austin, Butler (1997) discute como ele aplicava as idéias de convengao e de ritual para definir as condicées do ato de fala Supondo que sejam as condicdes do ato de fala definidas por convencées ritualizadas, como delimitar a extensio das convencées que esté sendo pressuposta na realizacio do ato? Sendo momento ritualizado ~ repetido no ‘tempo - 0 enunciado performativo mantém a sua esfera de operacéo para além do momento da enunciagdo em si Derrida (1990, p. 41) argumenta no ‘mesmo sentido, na sua critica & Segunda Conferéncia de Austin, afirmando que “le ‘rite’ n’est pas une éventualté, c'est, en tant quiitérabilité, un trait structurel de toute marque”. Ambos, autor ¢ autora, esto preocupados com o fato de que a iterabilidade - a propriedade que torna orito o que ele é, um momento repetido @ repetivel - mostra uma certa convencionalidade intrinseca ao ato de fala. Cada momento nico, presente € singular, de realizagao do ato ¢ um momento j§ acontecido, em acon- tecimento, a acontecer ~ é essa a dupla face que Ihe permite a performatividade. Butler argument: IF the temporality of linguistic convertion, considered as rtual, exceeds the instance of its utterance, and that excess is not fully capturable or identifiable (the past and the future ofthe utterance cannot be narrated with any certainty), then it seems that part of what constitutes the “total speech situation” isa failure to achieve a totalized form in any of is given instances (BUTLER, 1997, p.3), ‘A autora expde a impossibilidade de lidar com as condig6es do ato de fala como uma espécie simples de contexto, que pode ter facilmente definidos seus limites de tempo e espaco. Butler explora essa impossibilidade nos termos da constituigao do sujeito: podemos pensar que 0 sujeito age através da linguagern, € que agir tem sua origem no sujeito ~ neste caso, um sujeita intencional -, no na linguagem; mas devemos perguntar se 0 agir da linguagem é mesmo agir do sujeito, ou se & possivel distinguir entre os dois. De fato, podemos dizer que nés fazemos coisas com 2 linguagem (to do things with words), 104 Niteréi, v 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 produzimos efeitos com linguagem e também fazemos coisas para a lingua- gem, mas, seguindo a argumentacao de Butler, inguagem é também a coisa que 1nés fazemos. Linguagem é, assim, irredutivel 4 sua instrumentalidade, intedutivel a0 seu contexto simples, € inapreensivel em sua totalidade. Essa polissemia irredutivel ~ que fortalece 0 conceito de ato de fala aleangando uma performatividade radical - nos obriga 2 perguntar como esse dizer-agio se relaciona com o suieito. ‘Austin ensaiou uma discussao a respeito da relaco entre aco e consequéncia, baseado numa separagio entre acdo real minima @ suas conseqUéncias. 0 exemplo que ele coloca rnos chama para a diferenciacao possivel entre ages minimas e seus resultados: dobrar um dedo, que acionaré o gatitho, que resultard na morte do burro. A agéo minima aqui designada ¢ 0 dobrar dedo. Num ato de fala simples, qual 2 agéo que fazemos? Austin afirma que a agéo que fazemos & uma ilocucao, admitindo uma distingso entre a agio que consiste em dizer algo ea acéo fisica ‘ngo-convencional, o que eva 8 conclusso de que o ato de fala & uma ago nao- fisica convencional. Mas numa teoria mais geral dos atos de fala, deveros nos perguntar se podemos, sem prejudicar a andlise da performatividade, considerar tais atos como ago nao-fisica conven- ional, Inicio deslocando as perguntas: 0 ato de fala & um ato fisico? Bxiste ato fisico no-convencional? Se o ato de fala é um ato convencional, portanto ritualizado, ele pode escapar de alguma forma as convengéese ritos que governam o corpo fisico que realiza a ago minima do ato de fala—a emissao de sons? Se quiséssemos separar em etapas as condicoes do ato de fala, poderfamos acabar por preparar um terreno para @ separagao sempre fértil entre o isico eo ‘mental, resultando num apelo 8 acao da linguagem como efeito mental — num exemplo banal, dizer uma promessa resultar no efeito mental de promessa Mas as condig6es do ato de fala nao so redutiveis a0 seu efeito mental produzido pela intengio do/a falante. Enquanto 2 iterabilidade prépria ao rito acarreta a impossibilidade do controle dos limites de contexto, portanto de espaco e tempo (e ja falamos sobre a repeticso no tempo que marca a forca performative da linguagem), a impossibilidade do controle intencional das forcas do ato de fala exclui a unicidade propria a idéia de “efeito mental” e desloca os limites da agao do ato de fala para além da ilocugéo — para 0 campo contraverso do corpo que fala © sujeito de fala € aquele que produz um ato corporalmente; 0 ato de fala exige 0 corpo. O agir no ato de fala 40 agir do corpo, e definir esse agir & justamente discutir a relacdo entre linguagem e corpo. A respeito do ato de fala cujo efeito € uma ameaca, Butler observa: ‘That the speech act is @ bodily act means that act is redoubled in the moment of speech: there is what i said, and then there is a kind of saying that the bodily “instrument” of the utterance performs. ‘Thusa statement may be made that, on the oasis of a grammatical analysis alone, ‘appears o beno threat. But the threat emer. {9e5 precisely through the act that body performs in the speaking the act (BUTLER, 1397, p. 11). Niterdi, v. 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 105 0 que faz do ato de fala uma acdo est redobrado pela forca da ilocucao e pela forca do agir do corpo que executa a ilocugéo. Assim, a presenca material e simbélica do corpo na execucao do ato & uma marca que se impde no efeito lingistico. Uma ameaca se materialize pelo enunciado performative que a opera, mas também pelo efeito do movimento do corpo que executa 0 enunciado. Essa afirmacao nao cria, como se poderia esperar, uma dicotomia corpo/linguagem, mas, ao contrario, mostra que © efeito do ato de fala é operado ao mesmo tempo pelo que dito, por quem diz e por como & dito - como 0 corpo diz, como 0 enunciado diz Os elementos que impulsionam sua marca no ato de fala operam numa imbricagéo irredutivel. 0 corpo diz mais que 0 enunciado? O enunciado diz mais que 0 corpo? Ambos dizem sempre o mesmo? Ou nunca dizer 0 mesmo? Essas perguntas podem ser respondidas integralmente? Para respondé-las temos que definir um limite intencional para 0 ato de fala: 0 que queria ser dito foi dito pelo corpo, pelo enunciado, ou por ambos? Mas o dizer do corpo nao & um acidente, uma casualidade psicofisico motora do momento da enunciagdo ligada a intengio dofa falante. © corpo 6 também ritualizado. Sua acao nao é um ato fisico ndo-convencional, como queria Austin, Suas estilizagées fazem parte dos processos de marcagéo social a convencionalidade © a repeticao definem sua legitimidade e tracam 0 dominio do possivel, do pensavel, do executdvel. 0 que é significado pelo corpo excede os limites do tempo do seu agir, exigindo simultaneamente a sua repeticao. Para ser legivel, o corpo precisa da sua histéria e também da possibilidade futura de sua repeticao. Como Butler afirma, 0 momento presente, contexto necessério a ser compreendido, nao dissolve 0 pasado; 20 contrério, sua legibilidade depende do pasado, elaborando j4 um futuro contexto para sua repeticéo. Devemos pensar no movimento do edo que ativa 0 gatlho como um ato ndo-convencional somente se o pensarmos como um ato simples, convertido em leis fiscas biol6gicas do breve momento de sua execugéo. Mas uma andlise da materiaidade do simples ato do movimento do dedo que ativa 0 gatilho pode reduzir seu contexto a0 ato breve em si? Deverd expandi-o as suas conseqiiéncias dretas (sada da bala)? Ou indiretas (matar 0 burro)? Ou 4 sua causalidade momentanea (0 burro doente)? A sua causalidade “histérica” (nao-conhecimento de cura para a doenca do burro)? Séo questées que problematizam a acio através do tempo, ‘mas evidenciam também a controvérsia do espaco, especialmente no que diz respeito a "0 que" realiza a aco (um Gedo? uma pessoa? ou um grupo de ess028?), © fato & que qualquer teoria da ago problematiza 0 corpo, expande ou reduz seus limites acordado com uma prdxis, Para a teoria dos atos de fala, tal qual a entendo aqui, 0 corpo tem seus limites irredutiveis porque nele estao inscritas as regulacdes socias, nfo como representagbes das estruturas de poder, ‘mas como parte dessas estruturas. A existéncia do corpo, nao como elemento fisico néo-convencional, mas como elemento regulado pelas convengoes ritualizadas nele inscrtas, ¢ 106 Niteréi, v 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 performativizado pelo ato que postula sua significacao prévia, impede a reducao da andlise do ato de fala 4 andlise das convengées lingUisticas. A perfor- rmatividade nao é a capacidade de aco efetuada pelo enunciado; a perfor- matividade & a capacidade de acdo operada pelo ato de fala na sua materialidade plena —sonora e corporal No entanto, é bastante arriscada, neste caso, a separacio entre uma materia- lidade sonora e uma corporal, parecendo pressupor assim uma instncia do corpo = 0 aparelho vocal - como ausente do aparato simbélico. Aebischer ¢ Forel (1991, p. 15) afirmam: “o conhecimento dos sons &0 que mais escapa ao controle consciente, porque & o que esté mais fortemente institucionalizado para permitir 0 exercicio da palavra’. Neste aso, 0 aparelho vocal participa tanto quanto qualquer outra parte do corpo das relacées simbélicas, e opera igualmente os efeitos do ato de fala, néo como “instrumento” desses efeitos (realizador neutro dos enunciados), mas como parte integrante deles. A exernplo, voltamos ao problema da ameaca ¢ podemos pensar que modificacdes de prondincia podem ser responsaveis dretas pelo efeito, Tanto que podemos afirmar que um determinado enunciado "sou como uma ameaca’” © que temos, entéo, & uma integralidade da materialidade do corpo ra execucéo do ato de fala produzindo uma polissemia irredutivel, escapando & intencdo do/a falante. A perfor- matividade é 0 que permite e obriga 0 sujeito a se constituir enquanto tal Apartirdeste ponto, o debate sobre © ato de fala como um ato corporal me leva aos problemas da identidade, pois é neste Ambito que o sujeito € instaurado como género. Em que termos 2 identidade de género deve ser tratada tendo em vista que o corpo tanto quanto alinguagem sao inseparavelmente partes do ato de fala? 0 uso do termo *identidade” para definir pardmetros culturaisfirmou-se nos liltimos dois séculos como um pardmetro de definicdo do sujeito. Em um certo estigio avancado de sua vida psiquica e social, 0 sujeito poderia ser visto como estabilizado e, portanto, seria uma unidade representativa do conjunto de certo tipo de vida psiquica e social. Essa Unidade representativa é sempre referida através de um sintagma nominal definido de acordo com o recorte de quem refere. Assim, existria 0 conjunto de sujeitos que representariam, por exemplo, “as mulheres”, ou “as mulheres que tém filhos", ou “as mulheres negras que tém filhos", assim por diante, A principal caracteristica dessa visio é que o conjunto referido pelo sintagma nominal é pressuposto por aquele/a que o utiliza, Isto €, quem profere sentencas sobre “as mulheres negras que tém filhos” pressupde que este conjunto de pessoas tenham uma vida psiquica e/ou social em comum, podendo assim definir a sue identidade. A pressuposigdo sobre a existéncia de grupos de pessoas coesos ¢ estéveis como representantes de uma deter- minada identidade € possivel, basica- mente, porque o conceito tradicional de Identidade tem uma relacio estreita com 2) uma certa visdo representacionalista e essencialista das redes de relagées sociais ~ 85 pessoas representariam, pois teriam incorporadas, em esséncia, suas classes, suas racas, suas religides etc.; b) 0 conceito de individuo como “um eu Niterdi, v. 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 107 individido e indivisivel” (RAJAGOPALAN, 1998, p. 29). Supondo que seja real que pessoas representam essencialmente grupos sociais definidos (por sintagmas nominais), devemos perguntar em que momento esse individuo individido e indivistvel estaria na plenitude do seu ser @ poderia, assim, ser designado como representante de um grupo qualquer. Os problemas oferecidos por essa nogéo de sujeito estavel chocam com @ defesa de uma linguagem performativa, porque quer controlar eprever elementos imprevisiveis nas condicoes insaturdveis de producao dos atos de fala que postulam identidades, ImplicagGes éticas sérias estdo presentes nessa espécie de controle social que pretende saturar 0 individuo numa identidade, de modo a garantir uma politica social apropriada 8s ideologias dominantes. Esse controle funciona bem a partir de pressuposicoes de identidades, porque carrega ele- mentos de “universalidade”. Essa universalidade, sempre essencialista, traduz © permanente no plano do Inegocidvel. A respeito da teorizagao sobre essa universalidade, Butler discute como tal proposta soa excludente e contraditéria: “As categorias de identidade nunca sao meramente descritivas, mas sempre normativas e, como tal, exclusivistas” (BUTLER, 1998, p. 36) Desse modo, identidade, tal qual é entendida no modelo tradicional, normatiza sujeitos através do ato que se propée a descrevé-los, controlando, pela exclusao e pré-definicao, compor- tamentos linguisticos e sociais em geral Meu interesse aqui & suspender todos os compromissos com aquilo a que © termo “identidade” se refere, procurando uma reutilizacao nao autorizada.' Pode o termo “identidade” ser adjunto ao termo “performativo" sem oefeito de uma contradicao? A unidade em torno do idéntico & a Gnica possibilidade para o uso do termo “identidade”? No seu debate sobre o conceito de identidade, Cameron (1995) combate fortemente a posicao que defende que falantes agem de acordo com o que s80, assumindo em sua critica que aquilo que 0s falantes sfo depende de como agem © sujeito é, entao, um ser perfor- mativizado, repetindo as ades para marcar sua identidade no tempo, de maneira que ela se apresente muitas vezes como “a fixed and integral part” da sua natureza (CAMERON, 1995, p. 16). “From a critical perspective, then, the norms that regulate linguistic performance are not simply reflections of an existing structure but elements in the creation and recreation of that structure” (CAMERON, 1995, p. 17) Nesta observagdo, Cameron procura abordar a identidade como um problema de performatividade. Assim, ela defende que a linguagem nao pode mais ser abordada como reflexo do sujeito, como instrumento que expée a ‘natureza” desse sujeito. Ao contrério, ela afitma que a “natureza” desse sujeito ~sua identidade — & constituida pelo ato que afirma sua preexisténcia © que sao identidades, se iden- tidades nao podem ser “encontradas" na linguagem, se nao s80 0 que define o sujeito por antecipacao? Do ponto de vista dos atos de fala, identidades so performativas, ou seja, so efeitos de atos que impulsionam marcagées em quadros 108 Niteréi, v 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 de comportamentos (fala, escrita, vestimentas, alimentacdo, cultos, elos parentais,filagées etc). Identidades so construgées exigidas pelos ritos convencionais que postulam o sujeito de maneira 2 garantir a possibilidade do “nds a partir da significagio da existéncia prévia do “eu". Desse modo, a iterabi- Tidade prépria ao rito garante uma certa estabilidade interna as identidades produz o efeito da sua naturalidade externa. No por acaso é possivel nomear grupos de pessoas a partir de definicoes de identidades, mesmo sem evidéncias ‘empiricas’ da sua existéncia: ¢ como dizer “Vou estudar as mulheres negras que tém filhos", e procurar buscar indicios da existéncia desse grupo definido a priori. Mas esse grupo no existe sendo no ato que o postula, ¢ em suas infindaveis repeticées. No conjunto de acdes que garantem identidades, a linguagem 6, sem divida, elemento fundamental, porque as ages ndo-linguisticas que postulam o sujeito, quando descrtas, so a0 mesmo tempo repetidas nos ato de fala que as descrevem. A linguagem néo reflete o lugar social de quem fala, mas faz parte desse lugar. Assim, identidade 1ndo preexiste & linguagem; falantes t8m que marcar suas identidades assidua e repetidamente, sustentando 0 “eu” eo “nds”. & repetigao € necessaria para sustentar a identidade precisamente porque esta nao existe fora dos atos de fala que a sustentam, Isso desloca 0 préprio conceito de identidade, pois qualquer afirmagdo definitiva a respeito de uma identidade 4 um equivoco baseado na visdo de sociedade como sistema de elementos coesos e coerentemente estaveis. Se assumimos a performatividade como 0 que obriga o sujeito a se constituir em processo, a identidade é também performativizada, ou seja, nao existe sengo na prética ¢ na histéria de sue propria exibicdo ~ © é por isso mesmo sempre maltipla, fragmentada e repetivel Abstract: This papers a remark about Speech Acts Theory, by J. L Austin (1998; [1967)) My objective is to offer 3 feminist inter- pretation about the relation between language and body problem. For that, I'm based on Butler's (1997; 1999), Derrida’s (1979; 1990) and Rajagopalan’s (1989; 1990; 1992; 1996) interpretations about Austin’s works. | argue that the impossbily fof the intentional control of the speech act precludes the unicty of the “mental effects” ‘dea and it displaces the limits of the speech act action further on ilocution ~ to controversial field of the body that speech The subject that speech is the ane thar brings about a bodily act; the speech act oblige the body. The body material and symbolic Niterdi, v. 3, n. 1, p. 101-110, 2. sem. 2002 109 presence an act execution is a mark that ‘impose itself on the linguistics effects. As a clement regulated by the ritually conventions which are written on it, and performatived by the acts that postulate its prior signification, the body prevent the reduction of the speech act analysis happening as the linguistics conventions simple analysis, and it oblige carry about the fully materiality of body that make the act. Keywords: performativty; speech acts; body; JL, Austin: feminist theory Nota "Parafraseando Butler (1998), a respite do termo “sje Referéncias AEBISCHER, Verena; FOREL, Claire (Org.). Falas masculinas, falas femininas? Sao Paulo: Brasiliense, 1991 AUSTIN, J. L. How to do things with words, 2nd ed, Oxford: Oxford University Press, 1976. Performativo-constativo. In OTTONI, Paulo Roberto. Visd0 perfor mativa da linguagem. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998. (Viagens da Voz). Apén- dice, p, 107-144 ENVENISTE, Emile. A filosofia analitica ea linguagem. In: Problemas de lingutstica geral. 3. ed. Campinas: Pon- tes, 1991, (Linguagem critica). p. 81-90. BUTLER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative, New York: Routledge, 1997, ___.. Fundamentos contingentes: 0 Teminismo e a questio do “pés-moder- rismo". Cademnos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-42, 1998, CAMERON, D. Verbal hygiene. London’ Routledge, 1995. DERRIDA, Jacques. Limited Inc. 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