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MUSICOLOGIA OU MUSICOGRAFIA? ALGUMAS REFLEXGES SOBRE A PESQUISA EM MUSICA Alberto T. IKEDA INTRODUGAO Ao receber a programagao @ o temairio de discussdio para a mesa de ‘oxposigées desta sessdo com varias sugestées de pauta, optel por contri- buircom um assunto que julgo ser da maior importancia e que pode prece- der as abordagens sobre as Perspectivas da Pesquisa Musicoldgica. Vou me ater a um tema do Ambito epistemolégico, com base no que se pode observar nos tiltimos anos e, mesmo tradicionaimente, na prética dos dois, campos mais proeminentes do fazer ciénoia na musica: a musicologia his- f6rioa e a etnomusicologia, notadamente na primeira especialidade. Trata- rel da dicotomia que se estabelece entre o fazer ciéncia e o fazer arte (no caso, musica), que resultam em problemas sempre abertos desse campo, e que necessitam de atencao constante, embora jé tantas vozes tratados. Enfoco, pois, questées relacionadas com os principios fundantes da prdpria musicologia enquanto ciéncia da musica, que, creio, poder ter abrangéncia tanto para a realidade brasileira quanto para a América Latina. Isto resuitard, possivelmente, em polémica entre as distintas concepgdes relacionadas com as pesquisas musicolégicas. No entanto, de antemao, quero salientar que os pontos aqui levantados nao pretendem atingir pes- soas em especial, mas apenas refletir criticamente a nossa pratica neste setor, pautando elementos epistemolégicos que acredito serem fundamen- tais para um clareamento do fazer cientifico no campo da musica. MUSICOLOGIA OU MUSICOGRAFIA? A questo que apresento para reflexdo ¢ a disting&o entre dois proce- dimentos metodolégicos verificados nas pesquisas musicais, ambos costumeiramente denominados e entendidos como musicologia. Podemos. diferenciar um primeiro procedimento, classificével como cléncia na acepeao mais plena, que chamaramos musicologia propriamente dita, @ um outro, que enquadrariamos como pré-cientiico, podendo ser melhor designado musicogratia. Evidentemente, sao partes de um mesmo processo, porém no tém sido assim entendidas. 3 ANATS I sImPOSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA 10 A 12 DE JANEIRO DE 1997 MEMORIAL DE CURITIBA XV OFICINA DE MUSICA FUNDAGAO CULTURAL DE CURITIBA DDepésito legal junto & Biblioteca Nacional, conforme dacraton? 1882, de 20 de ‘dezambro de 1907, Eaitora Responsavel Elisabeth Seraphim Prosser Assessotia em Editoragtio ‘Antonia Schwinden Artesnal Aparecido Cassimiro de Oliveira Miguel Angelo Gubert Alice Cristina Rodrigues cog prepa pl nsx Coneatais en bfomao Sen SI ‘Simpésio Latino-Amoricano de Musicologia (1. 1997 8612 Curitba) Aaals | Simpésto Latino-Americano de Musleologa, Curitiba, 108 12.00 janoiro do 1997 erganizadores Elisabeth Seraphim Prossor, Paulo Castagna — Curtiba Fundagéo Cultural de Curitiba 1998 K+ 287 p 1. Musicologia- Congressos - America-Latina. 2. Musicologia - Histeria - América-Latina, 3, Musica Pesquisa - América-Latina. |. Prosser, Elsabeth Seraphim Il. Castagna, Paul. Il. Fundacso Cuftural de Curitiba. IV. Thu. 00 (20.04) 780 ISSN 1415-2001 DU (2, od) 78: 061.3, Iimprasso no BrasiVPrinted In Braz Endereco para venda efou permuta Fundagdo Cultural de Curitiba - Livearia Dario Vellozo Praga Garbald, 7 - CEP 80.020-280, Curlba-PR “Tol. (041) 322-1825 - Fax (044) 223-1541 small lomineki@ prgovbr Realizagio Fundagao Cultural de Curitiba Diretoria do Musica e Artes Cénicas 0s trabathos apresentados durante o evento que no constam da presente publicapo no foram enviados & Coordenaeso Eatoral a tmpo da serem includ, As posquisas @ artigos sao de intera responsablldade dos respectivos autores. | SIMPOSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA 10 A 12 DE JANEIRO, 1997 - CURITIBA/PR OFICINA DE MUSICA XV Prefeito de Curitiba CAssio Taniguchi Presidente da Fundacao Cultural de Curitiba Margarita Elizabeth Pericas Sansone Assessora da Presidéncia Ana Cristina de Castro Diretor Administrativo e Financeiro José Hart Filho Diretora de Musica e Artes Cénicas Eliane do Rocio Faoro Marcassa ‘Assessora de Imprensa ‘Ana Luzia Palka ‘Assessora Juridica Elizabeth Beraldi | Coordenadora de Programacao Visual | Vivian Schroeder Comissdo Artistica da XV Oficina de Misica Lutero Rodrigues, Ingrid Seraphim e Paulo Bosisio Coordenagao do | Simpésio Latino-Americano de Musicol Elisabeth Seraphim Prosser, Paulo Castagna e Lutero Rodrigues Organizadores dos Anais Elisabeth Seraphim Prosser Paulo Castagna | SIMPOSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA Perto de comemorar os 500 anos de seu descobrimento, e como advento do Mercosul, 0 Brasil acorda para a necessidade de integragao ‘em todas as dreas. Ciente dase processo e dentro do propésito de oferecer sempre o melhor & comunidade, a Fundagao Cultural de Curtiba promoveu © Simpésio Latino-Americano de Musicologia, semente que germinou em solo harmonioso de ritmos @ estos, © entrosamento da misica brasileira com a produgéio musical de rnossos irméos da América Espanhola sadimenta o trabalho de pesquisa musicolégica desenvolvido por renomados estudiosos. E 0 caminho para a preservagao da meméria musical do continents, por meio do resgate de obras que se deterioravam em arquivos paiblicos e partculares, bem como © registro @ 0 debate de inimeros aspectos do fazer e do fruir misica do pasado e do presente. As composig6es que vém a tona ressoam a riqueza das melodias da nossa histéria. © Simpésio também permitix a convivéncia com Francisco Curt Lange, que poucos meses depois faleceria, aos 93 anos. Alemao, naturalizado uruguaio, fundador do movimento chamado Americanismo Musical na década de 1930, o mestre foi homenageado por esta Fundagao Cuttural pelo trabalho pioneiro na musicologia latino-americana, lembrando que 0 agradecimento é a meméria do coragao. O quadro de convidados estrangeitos completou-se com Cristina Banegas, pesquisadora de musica colonial para drgao escrita nas Américas, @ por Piotr Nawrot, polonés radicado na Bolivia, estudioso da musica sacra dos jesultas dos séculos XVI e XVII Entre conferéncias, debates, mesas-redondas, acordes ¢ harmonias de preciosos concertos, 0 | Simpésio Latino-Americano de Musicologia abriu novos caminhos e oportunidades para o conhecimento da alma de nosso Povo. O trabalho sério e criterioso que cercou o evento resultou nas Conquistas registradas nestes ANAIS. Esperamos que a proposta de recuperaro passado e fxar o presente musical tenha ressonadncia e se una 08 programas jé desenvolvidos pela Fundagao Cultural de Curitiba com 0 propésito de enriquecer as mentes e compartihar com as pessoas cada vvez mais o conhesimento, criando iguaidade de oportunidade para todos. Margarita Pericds Sansone Presidente da Fundagao Cultural de Curitiba SUMARIO. 1'SIMPOSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA APRESENTACAO PROGRAMACAO GERAL CONCERTOS... HOMENAGEM.. Presenga de Francisco Gurt Lange José Maria NEVES CONFERENCIAS 20 Los érganos en Latinoamerica (siglos XVI al XVIII). Cristina Garcia BANEGAS Archivos misionales de Bolivia: contenido y compositores, Piotr NAV/ROT MESAS-REDONDAS Recuperagao e interpretacao de musica latino-americana Recuperacao do miisica brasileira do passado.. 49 Emani AGUIAR Recuperagao e interpretagao de musica secular no Brasil (1500 - 1850)... Rogério BUDASZ 1 BB Perspectivas da pesquisa musicolégica na América Latina (séc. XVI XX) Musioologia ou inoneoarateg Alaupaaetianteniatinenipee nied emmisica ... Alberto. IKEDA 2 63 Perspectivas da pesquisa musicolégica na América Lé caso brasileiro... 7 Maria Elizabeth LUCAS 69 Masia, misioos, musilogos: uma reviso das perspectives para a pesquisa musical no Brasil : ‘Manuel VEIGA 90 Integrapao da pesquisa musicol6gica na América Latina Maria Augusta CALLADO Arquivos: localizagao, material existente, acesso, trabalhos realizados, perspectivas “Descoberta e restauragao”: problemas atuais na relagéo entre pesquisadores e arquivos musicals no Brasil Paulo CASTAGNA Arquivos musicais mineiros: localizagdo, material existente, acesso ¢ trabalhos realizados. Aluizio José VIEGAS 110 Dois acervos mineiros André Guerra COTTA 131 Arquivos de manuscritos musicais brasileiros: breve panorama. Recuperagao e propostas para uma sistematizaco latino-americana..137 José Maria NEVES Bibliografia Musical Brasileira - BMB II Mercedes Rels PEQUENO. 164 COMUNICAGOES Bartolomé Massa: algunas caracteristicas de su estilo Ricardo Francisco TRECEK 175 Morales: primeiras sombras Caio BENEVOLO 184 Um manuscrito andnimo sobre Edmundo HORA 1ag4o, encontrado na Bahia Teoria musical no Brasil: 1734-1854 «oc... Femando BINDER e Paulo CASTAGNA Os libretos de G. Martinelli ¢ a 6pera italiana em Portugal nna segunda metade do_séc. XVI: algumas consideragdes. Paulo Mugayar KUHL As bandas de miisica nas Minas Gerais ... Vinicius Mariano de CARVALHO Martin Braunwieser na viagem da Missdo de Pesquisas Folcldricas (1938): diario e cartes : Alvaro L. R. 8. CABLINI O nacionalismo musical nas trés Suites Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernandez .... : ‘Simpson de Brito Melo BAUMANN ‘A miisica para violéo de Jo&o Pernambuco e Heitor Villa-Lobos... Leandro CARVALHO Hist6ria e significado nas Missas de José Penalva ....... Elisabeth SERAPHIM PROSSER Misica brasileira para cinema: uma abordagem semistica. Luciane HILU Revista Eletronica de Musicologia Norton Eloy DUDEQUE ENDEREGOS DOS PARTICIPANTES . 191 198 218 230 .. 287 250 255 +. 265 282 291 204 MESA-REDONDA II PERSPECTIVAS DA PESQUISA MUSICOLOGICA ___NA AMERICA LATINA (SEC. XVI A XX) ot MUSICOLOGIA OU MUSICOGRAFIA? ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PESQUISA EM MUSICA Alberto T. IKEDA INTRODUGAO Ao receber a programagao @ 0 temério de discussfo para a mesa de exposigdes desta sessao com varias sugestdes de pauta, optel por contri- buir com um assunto que julgo ser da maior importancia e que pode prece- der as abordagens sobre as Perspectivas da Pesquisa Musicoldgica. Vou me ater a um tema do émbito epistemotégico, com base no que se pode observar nos titimos anos e, mesmo tradicionaimente, na prética dos dois. ‘campos mais proeminentes do fazer ciénoia na musica: a musicologia his- t6rica e a etnomusicologia, notadamente na primeira especialidade. Trata- rei da dicotomia que se estabelece entre o fazer ciénoia eo fazer arte (no caso, musica), que resultam em problemas sempre abertos desse campo, @ que necessitam de atengao constante, embora ja tantas vezes tratados. Enfoco, pois, questées relacionadas com os principios fundantes da prépria musicologia enquanto ciénoia da miisica, que, creio, poderd ter abrangéncia tanto para a realidade brasileira quanto para a América Latina. Isto resultard, possivelmente, em polémica entre as distintas concepgdes relacionadas com as pesquisas musicolégicas. No entanto, de antemao, quero salientar que os pontos aqui levantados no pretendem atingir pes- soas em especial, mas apenas reftetircriticamente a nossa pratica neste setor, pautando elementos epistemol6gicos que acredito serem fundamen- tais para um clareamento do fazer cientifico no campo da musica. MUSICOLOGIA OU MUSICOGRAFIA? A.questéio que apresento para refiexo é a distingdio entre dois proce- dimentos metodolégicos verificados nas pesquisas musicais, ambos ccostumeiramente denominados ¢ entendidos como musicologia. Podemos diterenciar um primeiro procedimento, classificével como ciéncia na acepcao mais plena, que chamariamos musicologia propriamente dita, e um outro, que enquadrariamos como pré-cientiico, podendo ser melhor designado musicografia. Evidentemente, sao partes de um mesmo proceso, porém no tém sido assim entendidas. a Nada do que aqui se colocaré constitui novidade, posto que ha muito, até em verbete de dicionério de miisica, como 0 de R. Fux (1967), ¢ em trabalhos que se ocuparam de questées da epistemologia musical ou metodologias das pesquisas musicals, essas questées jé foram aponta- das, embora, talvez, dentro de outros moldes. Para citar apenas algumas publicagées mais recentes e acessivels entre nés, podemos lembrar: Anto- nio A. Bispo (1983); J. Kerman (1987); M. Elizabeth Lucas (1987); ou R. Duprat (1991) e varios pequenos artigos do sociélogo F. Fernandes (1978), ‘que, em polémica metodolégica e ideoldgica com os folcloristas, desde a década de 1940, elucida diversos aspectos aqui tratados. Hé, porém, que se insistir nessas questdes, pois em nosso meio con- tinuamos a observar posicionamentos metodoldgicos pragmético- reducionistas nas pesquisas, que acabam caracterizando a maioria desses trabalhos nfo como ciéncia no sentido profundo, mas, sim, como para- ciéncia, ou proto-ciéncia, pelo menos quando se busca enquadré-los no atual estagio das praticas ¢ das reflexes das ciéncias humanas. Trata-se mais de musicografias, ou seja, trabainos apenas de desoripdo do objeto estudado ou colegdes de miisicas e documentos de interesse musical, que propriamente de musicologia, a qual exige andlise, interpretagao e compre- enso dos fatos, além das descrigées simples. Ressalte-se que ndo estamos propondo uma ciéncia da musica sem miisica, o que setia, por sua vez, um contra-senso sob a dtica musical. As musicogratias so fundamentais, nao resta divida, afinal séo a base para as andlises e reflexées, servindo & pratica musical, & realizagao dos con- certos © gravagées (logicamente, de preferéncia dos mtisicos), mas nao constituem investigagdes plenamente cientificas se mantidas apenas nes- se nivel. Seriam trabalhos para-cientificos ou para-musicais. No caso da etnomusicologia, podemos fazer a distingéio com a etnomusicografia, da mesma forma como em outras ciéncias, também de forte tradigo empitica. Na sociologia ou na antropologia, hd muito se faz separagdo entre as fases da sociografia e da etnografia, como momentos prévios e, portanto, a serem complementados nas /ogias, no sentido pleno. Também a histéria néo se efetiva apenas como historiogratia. Nesses tlt- mos casos, os estudantes dos cursos de graduagéo tém bem claras essas diferenciagdes, pois so disciplinas que se preocupam bastante com a re- flexo. Bom exemplo, ainda, desse proceder narrative e de colegdes de fatos so as tradicionals publicagdes no campo do folelore. \Vejamos 0 que se pode ler em A. A. Bispo, sobre 0 assunto: "Como ciéncia, a musicologia nao se restringe ao conhecimento resultante de co- leea0, descrigao e classificagao de fatos, implicando sempre a tentativa de explicd-los.”(p. 32) 6 Por seu tumo, podemos observar no verbete musicologia, do diciond- tio de R. Fux, o que se segue: ‘Como ciéncia auténoma, a musicologia no pode dispensar das demais ciénclas, pois os fenémenos musicais nao po- dem ser compreendidos sendo pela compreensao de fendmenos hist6ri- 0s, religiosos, psicolégions, folciérices, sociolégicos, etc.” (p. 229) Observe-se que no primeiro autor a questao da explicagao dos fatos, musicais pode (ou deve) ser entendida no sentido estritoe interno, técnico- estruturais poderiamos dizer, das questées que envolvem a miisica 6, ain- a, no sentido das explicagdes externas histérico-sociais ou estético-flosé- ficas. No caso de R. Fux, a preocupacao ¢ com a interdisciplinaridade com a compreenséo da miisica como tenémeno relacionado ao social, & hist6ria etc, conforme citado. Assim, muitos escritos sobre procedimentos metodolégicos de inves- tigagéo na area das humanidades, de autores diversos, inclusive musicélogos, chamam a atengdo para as quest6es que estamos tratando. Portanto, hd de se questionar os motivos da permanénoia insistente des- ses habitos redutores no que toca a investigacao, por parte de tantos estu- diosos musicdlogos. Varios podem ser os motivos geradores desse tipo de proceder preferentemente desoritivsta e simplificador nos estudos musicais. Um deles € certamente o de que nao existem (pelo menos no Brasil) cursos estruturados, com curriculo amplo, que formem musicélogos, a nao ser ‘excepcionalmente. Todos nés, em prinofpio, passamos boa parte de nos- sas vidas de estudo visando & pratica musical, fato que se repete nos cur- 808 de graduagao, ‘A maioria dos estudantes ligados 4 miisica e as artes conclui 0 curso sem ter produzido sequer uma monografia durante todo esse perlodo de estudos. Quando chegam a pés-graduacao (mestrado ou doutorado em miisica ou artes) supde-se que estejam preparados para a pesquisa, sen- do entéo instados a investigar, quando nao houve anteriormente trabalho especifico para tanto. Conseqientemente, suas realizagbes serao predo- minantemente referentes a coleta e @ documentagao. No geral, as discipli- nas oferecidas para o cumprimento dos oréditos exigidos nos cursos no se prestam & formagao do musicdlogo. Por outro lado, de nada adiantara a organizagéo de cursos regulares de musicologia dentro dos moldes positivistas convencionais, conforme abordo mais adiante. Outro fator contributivo é que costuma predominar na maioria dos in- dividuos que se voltam para o campo das artes, principalmente, da musica, um forte intuitivismo e pragmatismo. Valem a prética, 0 sentir, a emogao, havendo no geral rejeiggo por disciplinas do campo reflexivo (entendidas como banalidades). Entre o fazer arte ¢ o fazer ciéncia, naturalmente, a 85 maioria, dos misicos opta pelo primeiro. Assim, estes, ao se voltarem para as investigagdes musicais, quando muito, se tornam musicégrafos, mais, capacitados para os trabalhos de ordem mecanica. Nesses casos, é co- mum uma viséo utilitarista em relago aos acervos de musica historica, por ‘exemplo, que passam a ser apenas um repositério de miisicas para a pre- paragao de concertos e gravagées, sem a preocupagao efetiva de investigé-los. Comumente, ainda se pode notar nesses exemplos preocupagses preciosistas, de valorizagao de obras as mais remotas possiveis, sendo alardeadas como primeira audiego modema quando tornadas piblicas, 0 {que nao deixa de ser hildrio em se tratando de obras historicas. So verda- delros antiquérios, simples colecionadores das preciosidades musioais ou das boas miisicas do passado, de preferéncia em arquivos particulares, para usufruto exclusivo. (Muitas vezes, investigador e regente se sentem 08 préprios autores dessas obras.) Por sua vez, preciosismo da primazia ocasiona, usualmente, a publicacao um tanto apressada de artigos e res- tauragdes (na maioria dos casos trata-se apenas de transcrigdes atualizadas) pouce cuidadas, a fim de se garantir uma suposta e valorizada paternidade sobre determinada descoberta musicol6gica, 0 que contribui também para 08 trabalhos de nivel apenas musicografico. Cabe, aqui, aproveitar para questionar também os argumentos de que primeiramente se deve ter farta documentagao, para que posteriormente se procedam a trabalhos reflexi- vos. Tal discurso se revela apenas ideolégico, no sentido do fortalecimento dessas abordagens fragmentadoras da cultura, conforme conhecido das chamadas pesquisas bésicas, que se eternizam como procedimento metodolégico, Portim, no que toca as pesquisas, continuamos regidos marcadamente por posicionamentos originados no pensamento positivista, no qual, pelo lado perverso, se preconizava a impossibilidade de se conhecer além dos fenémenos em si, sem indagagdes dos porqués, das causas e finalidades dos fatos sociais e outros aspectos mais reflexivo-compreensivos relacio- nados aos fenémenos estudados. Dai é que, quando muito, nas pesquisas musicals, se procedem a analises internas e técnicas do objeto de estudo (analise estrutural), que, no entanto, permanece reificado do seu contexto social (ou hist6rico-social, no caso da musicologia histérice), dificultando a ‘sua compreensao. Exemplos dessa questao podem ser facilmente veriticados nos ban- ‘08 do teses das universidades, nas intimeras dissertagées e teses (dos institutos e escolas da érea das artes). Ha que se lembrar, porém, que tem havido diferengas de procedimento metodolégico, principaimente nos titi mos anos, entre a musicologia histérica e a etnomusicologia. No segundo 68 caso, por se abordar geralmente a misica de culturas vivas, sejam elas populares urbanas, rurais ou de grupos étnicos, se dé necessariamente uma vinoulagao mais estreita e central com as questées sociais, e, portan- to, coma sociologia e a antropologia, verificando-se entéio maiores preocu- pages com a contextualizagao social do objeto de estudo. O problema maior da reificagao fica mesmo por conta da musicologia histérica, Evidentemente, uma solugao possivel para os problemas levantados, diante das dificuldades que hé na nossa formagao (em que somente o do- minio das questées especificamente musicais exige anos e anos de estu- dos, ndo sendo simples a formagao concomitante em areas diversas de especializagao), é 0 trabalho de equipe incorporando profissionais da histé- ria, da sociologia e da antropologia e até mesmo outros especialistas, jun- tamente com musicélogos histéricos e etnomusicélogos, através de proje- tos especificos conjuntamente elaborados. Isto, porém, somente pode se concretizar & medida que a musicologia passara ser entendida como empreendimento institucional, através de cen- {tos ou niicleos formalizados de pesquisas interdisoiplinares @ néo mais, ‘como iniciativa de individuos isolados, como ainda 6 a nossa pratica mais, corriqueira. (No caso da relago entre 0 musicdlogo histérico @ 0 etnomusiodlogo, o trabalho pode ser bastante util, notadamente porque, em muitos casos, na cultura folciérica das regiées rurais se dé a preserva- ‘940 de praticas musicais bastante antigas, podendo haver elucidagées in- teressantes sobre muitos fatos para ambas as disciplinas.) Nesse sentido, e apesar dos problemas anteriormente levantados, as Universidades constituem locais privilegiados para o desenvolvimento des- se tipo de institucionalizagao, padendo contar com especialistas de diver- sas disciplinas, dos varios departamentos das faculdades ¢ institutos, e, inclusive, com verbas e bolsas de estudo dos érgaos de foment cientiico, Tais empreendimentos resultardo, certamente, em ganho precioso de tempo e no aprofundamento dos aspectos analiticos e compreensivos, be- neficiando a cultura musical como um todo. Mas, isto somente se concreti- zaré & medida que se superar individualismonegativoreinante nese. setor. De outa parte, os estudantes teréo af verdadeira oportunidade de formagao no que concemne aos prinofpios praticos e reflexivos que envol- ‘vem a musicologia. As universidades, através dos estudantes e funcionéri- 08, serdo sempre centros potenciais de formagao de coros e outros grupos de musica e de danga, onde se pode aplicar os resultados das pesquisas musicolégicas no que se refere ao ambito da praca, Para nao me alongar, no tempo a mim destinado, & preciso lembrar que também os festivals de misica, como esta importante e j4 tradicional o Oficina de Musica de Curitiba, devem continuar a abrir espago para a musicologia, quando se pode mostrar aos jovens, entre outras coisas, que através da miisica pode-se compreender melhor o homem e a sociedade atual e do passado, ¢ através desta se compreender melhor a miisica. Por fim, reponho a questéo nuclear destas reflexes, a dicatomia en- tre uma musicologia cientifica e uma musicolagia artistica: musicologia ou musicografia? 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