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Livros publicados pela Colegdo FGV de Bolso (01) A Historia na América Latina de Jurandir Mal ‘Historia’ ensaio de critica historiografice 4 rba. 146 p. ‘a historiogrdfica (2009) (02) Os Bries ea Ordem Global (2009) de Andrew Hurrell, Neil MacFarlane, Rosemary Foot ¢ Amr SA ao aiender 'y Foot ¢ Amrita Narlikar, 168 p. (03) Brasil-Hstados Unidos: des ncontros ¢ afinidades (20K 7 Monies Hirst som enaiasnaltia de Anddew Harrell. 244 ae el Pp. ¢ ‘Entenda o Mundo! (04) Gringo na laje ~ Produgdo, circulagao ec is (04) Gringo na tae Pro i¢do e consumo da favela turistica (2009) ‘Turismo’ (05) Pensando com a Sociologia (2009) de Jouio Marcelo Ehlert Maia ¢ Luiz Fernando Almei ee eon o Almeida Pereira. 132p. (06) Politicas culturais no Brasil: dos anos 1 de Lia Calabre. 144 p. 930 ao sécile'XX1 (2009) érie ‘Sociedade & Cultura’ (07) Politica externa e poder militar no Basil: universos de Joxo Paulo Soares Alsina Jinionl60 po gfealeles (2009) Série ‘Entenda o Mundo’ (08) A Mundializagao (2009) de Jean-Pierre Paulét, 164 p. série ‘Sociedade & Economia’ (09) Geopolitica da Africa (2009) de Philippe Hugon. 172 p. Série ‘Entenda 9 Mundo’ (10) Pequena Yneradugdo & Filosofia (2008) de Frangoise Raffin. 208 p. Série ‘Filosofia’ (11) Induistria Culteredl © uae tntvrodugag (2010) de Rodrigo Duartey 132. ps Série ‘Filosofia’ (12) Antropologia das emogdes (2010) te Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho. 136 p. Série ‘Sociedade & Cultura’ (13) 0 desafio historiogréfico (2010) de José Carlos Reis. 160p. Série ‘Historia® (14) 0 que a China quer? (2010) de G. John Ikenberry, Jeflrey W. Legro, Rosemary Foot, Shaun Breslin, 132p. Série ‘Entenda o Mundo’ (15) 0s indios na Historia do Brasil (2010) de Maria Regina Celestino de Almeida. 164p. Série ‘Historia’ wo FGV 0 desafio historiogratico José Carlos Reis PLOISIH BLIaS @ 05109 aP ADI Copyright © 2010 José Carlos Reis Ved jo 2010 Impresso no Brasil | Printed in Brazil ‘Todos os direitos reservados a EDITORA FGV. A reprodugao nao autorizada desta publicagto, no todo ou em parte, constitui violagao do copyright (Lei n® 9610/98). Os conceitos emitidos neste livro sdo de inteiva vesponsabilidade do autor. CoORDENADORES DA COLEGAO: Marieta de Moraes Ferreira ¢ Renato Franco PREPARAGAO DE ORIGINALS: Ronald Polito RevISAO: Fatima Caroni, Marco Antonio Corréa DIAGRAMAGAO: FA Editorag. PROJETO GRAFICO B CAPA: Dudesign Ficha catalografi pela Biblioteca Mari Henri claborada ue Simonsen/¥GV. Reis, José Carlos © dogatid historiogestico / José Vatlos RE, - Rio de Janeixo: Edizors EGY, 2010. 160 p. (Colegio FGVARe bilsp.(S¢y Historia} Inclui bibliageatia ISBN:(978-85-225-0827-3 1. Histoffopratia Pesquisa historic, 3 Ricbeur, Paty 19136 2005. 4: Freyre, Gilberto 1900-1987,3.Fuindagio Getulio Yapgay 1. Titulo, 111, Série, eDp ~ 907.2 Eprrona FGY Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427 Bax: 21-3799-4430 editorafgy.br | pedidoseditora www.lgv.br/editora Introducgao. Capitulo 1 0 desafio historiografico Opirronismo historico A historia, antipoda da ficgao? A historia da historiografia Capitulo 2 A“dialética do reconhecimento” em Paul Ricoeur: meméria, histéria, esquecimento A face cognitiva da memoria A vulnerabilidade da memoria Historiografia e memoria: relagao conflituosa A operagio historiografica A meméria feliz: o “milagre do reconhecimento” Sumario 11 ll ve 22 29 32 36 al 45 60 10 FGV de Bolso Bomfim, ambos publicados pela Editora FGV. Ja escrevi mui- tos livros sobre teoria da historia e, aqui, fago um pequeno pot-pourri, corto e sirvo algumas fatias que, fora do contexto desses livros, ganham um sentido aut6nomo e proprio. A leitura deste livro deve ser acompanhada dos classicos do “desafio historiografico”, pelos quais os jovens historia- dores devem comegar a edificagdo da sua biblioteca: Carr, E. jH. O que é a hist6ria?; Schaff, A. Histéria e verdade; Colling- wood, R. G. A ideia de histéria; Bourdé, H. e Martin, H. AS escolas hist6ricas; Marrou, H. f, Do conhecimento histérico; Aron, R. Introduction a la Philosophie de Vhistoire; Risen, J. | Razdo historica (os 3 volumes); Bloch, M. Apologia da historia | ou oficio de historiador; Cardoso, Ge Vainfas\R. Dominios da | historia, para ficar apenas nos incontornaveis, Enfim, o autor sabe prefere que ‘o Protagonista da lei- tura seja o leitor. E_espera que-este,pequeno livro, em suas maos e¢ sob os seus olhos, transforme e ampliéo seuwhorizonte de expectatiya: O autor deseja que os seus leitores, além de historiadores mais competentes, torném-sé homens ‘ec mulhe- res “melhores”, amais complexos, engajados ha construcgao de um mundo-de liberdade, onde todos possany explorar a sua singularidade potenciahe’ viver fruindo'da sua identidade/ diferenga, sem perder de vista-o viver-juntos. 0 “escrever historia” nao € inteiramente Paralelo ao “fazer a historia”. Para Ricoeur, a agao écomo. fim texto, 0 texto jaé acdo. Texto € agao sao criadores dé‘sentido. Portanto, é preciso “escre- ‘ver hist6ria” pensando e "fazéndo a histéria” de um mundo que se pode compartilhar, mediado por linguagens criado- ras de sentido, que ordenam o direito, Promovem a justi¢a, expressam e tornam complexas as subjetividades, Enfim, a historiografia é essencial a vida cultural e a a¢ao politica que constroem um mundo social habitavel. Capitulo 1 O desafio historiografico O pirronismo historico | A historia é um.conhecimento possiveld |Zer afirmagdes'com significado ldgico sobre o pi | possivel fazer unia descrigao objetiva-do 1 se déPato a ele? Se istosfor possivel,quais os Ii ‘possibilidade? O que faz efétivamente o historiador? Qual é 0 seu real interesse, asua sensibilidade profunda? Qual seria a relevancia intelectual deuma pesquisa historica? Enfim, qual seria a identidade epistemoldgica da historia? Estas questoes de epistemologia revelam o desafio histo- riografico. Blas poem em divida a possibilidade do-conheci- mento histéric ritantes ¢ insoltiveis, o histo- riador nao pode d t reformuld-las, aqui, nosso interesse nao é langar a historia em crise, pois ndo duvidamos da legitimidade do trabalho his- térico. A nossa reflexdo retorna a elas, sem buscar respostas definitivas, pois nao ha consenso, sobretudo para consolidar e fortalecer 0 trabalho do historiador. A enorme relevancia La» e. mites dessa ana = FGV de Bolso desta reflexao é demonstrada pela bibliografia vasta e riquis- sima sobre tais questdes. Essa bibliografia leva a multiplas diregées, revelando a época, as instituigdes e a personalida- de dos autores que as discutiram. Para nés, “pensar” nao se , festringe a encontrar respostas. O pensamento fecundo adia a dissolucao dos seus problemas, a sua “solugao”. “Pensar” é | perguntar continuamente, transformando possiveis solugées ! jem novos enigmas. Paradoxalmente, o pensamento nao quer: ‘resolver 0 mundo, mas torna-lo vertiginosamente enigmati- co. Ele nao deseja dissolvé-lo, mas manté-lo como problema. “Pensar bem” € construir e explorarjaporias, impasses, dile- mas. E tornar -on €xo 0 que.parece simples‘ou dado. Nao ¢ io coma espada, de forma impaciente, autor! 1, mas desat-lo serenamente, fazendo.asua teo- ria. “Pensar”, enfim, é problematizar um objeto’bem demar- cado, criar hipéteses, testa-las, Depois, procurar articular um discurso sobre esse objeto em linguagem clara‘e comunicavel, debatendo-o publicamente, ilumirand6-6 sobdiversos angu- los, percebendo-o em suas mudangas no tempo. Para ver esse objeto tornar-se um enigma ainda maior! Havera um final feliz para tais interrogagées? Alguém‘encontrara a formula do uni- verso e da historia, o'$egredo deDeus? Hd os que, ingénuos, creem ja terem atingido este grau zero, este ponto arquime- diano do conhecimento:’O que, felizmente, nao impediu a histéria de continuar em sua busca. Quando se esperava ter acedido a verdade, ao fim da histéria, um temporal mudou a diregao das folhas e tudo o que era sélido se desfez no ar. Por isso, ha necessidade da reflexao tedrica, nao sistematica, nado dogmatica, nao totalitaria, mas problematizante, descrente, historica. A teoria da historia acompanha e se confunde com 7 a histéria da historia. — O desafio historiografico 3 Nao é possivel, portanto, ser historiador sem tomar 0 co- nhecimento historico como problema, sem avaliar o tamanho das dificuldades do empreendimento historiografico. Se 0 co- nhecimento histérico é a construgao de um sujeito, este nao pode pratica-lo surda e cegamente, precisa por em diivida a sua capacidade de tocar 0 seu objeto, os “homens no tempo”, e partir da possibilidade do nada ao ser. Admitamos, portan- to, que, embora exista ha cerca de 2.500 anos, o conhecimen- to histérico é epistemologicamente muito problematico. Ha autores que o consideram impossivel. Os argumentos céticos sdo intimeros e todos muito fortes. Entre outras objecdes a possibilidade da historiografia, afirma-se: ; = é um conhecimento) indireto, que nao mostra o vivi- do ao vivo. anconsistenté: O historiador conhece o passado. recorrendo-.a ° testemunhos,_,intermediarios suspeitos, que,,ou nao sabiam o qué éstavam vivendo ou desejavam controlar a imagem que .o fituro — o historiador 2° faria deles,Entre® sujeito.¢@ objeto do é6nhecimento ha_uma inultrapassaveldistancia tem- poral, uma barteirasinvisivel, apenas perceptivel em documentos, vestigios, testermunhos, sempre precarios, lacunares,arruinados,e muitas vezes estrategicamente depositados\Conhecimento indireto, 0 historiador nao pode tocar o ‘seu objeto, experimenta-lo, testa-lo, re- produzi-lo, repeti-lo. O passado é uma abstragao, ndo é mais, e ninguém jamais sal era como teria sido. E mes- “mo se 0 historiador pudesse retornar ao passado, isso 0 tornaria um conhecedor mais eficiente? Ele se tornaria apenas mais um contemporaneo, envolvido pelo seu objeto, e saberia tanto daquela época como alguém que a viveu, isto é, muito pouco; La» FGV de Bolso = ao produzir o seu discurso, conhecimento indireto, do passado, o historiador nao cria uma linguagem especifi- ca, mas utiliza a sua lingua materna, cheia de preconcei- tos, anacronismos, arcaismos, equivocos, sentidos mul- tiplos, conotagées, crencas, partidarismos. Em busca da “verdade”, os historiadores, por um lado, reproduzem a linguagem das fontes e, por outro, criam novas pa- lavras, as quais dio 0 nome de “conceitos”, nos goes confiam cegamente. Contudo, observando de perto, tais “conceitos” nunca mantém o significado explicitado na introdugao e, ao longo do trabalho}acabam decaindo em metaforas ou palavras-chave (mestras (falsas). Portanto, a linguagem da historia nao a distingue de um discurso mentiroso! Em histéria, o que diferéncia a linguagem da verdade da linguagem da méntira? Enquanto,pura lin- guagem, cddigo, nao ha diferenca alguma; Alias, bom mentiroso é aquele que Gabe explorar em-seu_interesse a linguagem da Verdade: oferece.dados) graficos, nume- ros, nomes; locais, datas, eventos; autoridadeés, pés de pagina, alibis, testemunhids oculares, farta’ documenta- gao anexa. Todos falsosl\& histéria xem chegaria a ser um “romance verdadéiro’; conhecimento indireto, do passado, em linguagem po- lissémica, apoiado“em documentacao Suspeita, 0 cOo- nhecimento hist6ri¢o é incapaz de fazer previsdes e é articulavel apenas depois do evento ocorrido, limitan- do-se a uma retrodicgao Pouco rigorosa. F um conheci- mento falacioso: post hoc £180 propter hoc (depois disso, entao, por causa disso). O historiador cria explicagées, a posteriori, selecionando e hierarquizando causas, ele-. gendo causas e eventos mais e menos “importantes”, Ele atribui a condigdo de causa de um acontecimen- O desafio historiografico to ao evento que ocorreu antes, mas a anterioridade_ nao é suficiente para garantir a causalidade. Nao é um conhecimento prognéstico, mas pds-gndstico. Depois que o evento imprevisivel ocorreu, 0 charlatao afirma que era “Obvio que ele iria ocorrer”! A historia oferece uma causalidade sublunar, imprecisa, produzida por uma subjetividade em expansao. E um conhecimento “metafisico”, inverificavel, nao falseavel (Popper), que permite a convivéncia de inumeros discursos incom- pativeis entre si. Eles criam uma regressao infinita, sem chegarem a causa alguma. O historiador nao tem méto- do, nao explica nada e nao tem teorias. A historia nao faz reviver os eventos que narra, pois€ uma criagao do autor e nao dos seus atores. O.autor tria, simplifica, organiza, sustenta um século,ém uma pagina. O evento é uma diferenga, uma.experiéncia vividapque nao se pode conhecer a priori:e, talvez, nema _ posteriori. E individual, singular, Unico, acontece em um-momento e lugar determinados no passado,€ nao se repetira ja- mais.A histdria so pode’ser, anedotica; conhecimento indireto, do passado,.em linguagem po- lissémica, falaciosopo conhecimento histérico pratica sistematicamente o,qué mais abomina: o anacronismo. Ele olhao’passado com os olhos e as cores do seu pre- “sente, apagando.a diferenga que deveria preservar e conhecer entre presente e passado. Ele é ligado a época de sua produgao, violentamente pessoal e arbitrario, e dura tanto quanto dura um determinado presente. Por isso, precisa ser constantemente reescrito. E para nao permanecer! E um castigo de Sisifo: permanente reini- cio, cheio de ilusdes de verdade, verdades que duram o que dura uma geragao; y oN 16 FGV de Bolso = finalmente, como conhecimento das “mudangas hu- manas no tempo”, o conhecimento histérico é uma re- construcgao fantasmag rica, pois, enquanto mudanga, © seu objeto é misterioso, indecifravel, pois nao é — deixa sempre de ser. Pode-se fazer um discurso racio- nal, intersubjetivo, sobre o que nao permanece? Basea- do em qué? A histéria é um conhecimento sem objeto, que ndo chegaria-a produzir. nem erro, mas confusao. Os historiadores nunca esto de acordo sobre a que- da do Império Romano ou a Inconfidéncia Mineira. Os problemas da historia séosde critica e-de retrodiccao: ocorrido 0 evento, qualseria a sua explicagado? A retro- dicgao vai do ocorrido aos seus antecedentes, 0 cami- nho oposto do-da previsio. Ela parte do.evento para a sua causa, Por isso, a' explicacao histérica éconfusa e nao pode ser uma Iei-S hao é uma explicacao-dedutiva ou nomoldgica. Em hist6ria,-a cadeia de,eventos é im- previsivel, pois entram em cena sempre dados novos, que mudam as relagéés entre os dados ‘anteriores, que se supunha que ja cram conhecidos. Descartes foi.o que ‘ais insistiu neste rico. Para elep'a histéria-éum conheciment tem objeto, nao tem linguagem propria, nao prova. O relato histérico, mesmo mini quanto mais minucioso, pior. Ele nao se yr se passou. Os historiadores nao ofereceria imagem palida do que investigam. As explicagdes produzidas sobre os homens do passado esto marcadas pela subjetivida- de e arbitrariedade e preconceitos nao valem como conheci- mento. O conhecimento histérico produziria uma mutilagao da experiéncia passada, uma organizagao ilusoria e fantas- pirronismo his © impossivel: nao nao descobre leis, ‘ucioso, ou melhor, efere nunca ao que m nem mesmo uma O desafio historiografico 7 magorica dos homens do passado. S40 os historiadores que falam pelos fatos do passado. Mas, nao sao os fatos do passa- do, os feitos do passado, os homens do passado, 0 objeto do historiador? Nao deveria ele recuperd-los em seus proprios termos, tal como se passaram? A utopia rankiana seria mesmo tao desprezivel? Nao seria ela a realizagao plena do conheci- mento hist6rico? Para continuar critico, nao ha outro recurso, o historiador precisa aceitar a crise, as limitagdes, a precarie- dade dos resultados da sua “ciéncia”. Ele nao pode evitar este questionamento que atinge profundamente a identidade da historia (Topolsky, 1982; Collingwood, 1981; Fontana, 1998; Veyne, 1983). A historia, antipoda da-ficcao? Esta argumentacao cética.vistasuspeita da capacidade dea historia realizar o seu objetivo Original: vencer a imaginagao e o discurso ficcional Desde Herddoto,.o desafio historiografico foi sempre o.de lutar contra 0 erro; contra 0 falso, procurando ‘produzira”verdade”. Em sua origem grega, “historia” signi- fica pesquisa, investigagao, busca.davisiodo fato que teria o téstemunho ocular. 0 historiador narra-os fatos que ouviu de ‘alguéem que.esteve presente ou que ele proprio testemunhou. A historia’surgitr e continuow se legitimando como luta con- tra fabulas, lendas, mitos, falsos testemunhos. O seu esforgo é o de representar adequadamente 0 real, realizando as seguin- tes operagdes cognitivas: registro, memorizagdao, revivéncia, reconstituigdo, reconstru¢do, interpretagdo, compreensdo, des- cri¢do, quantificagdo, narragdao, andlise, sintese. Como busca da verdade, como conhecimento adequado da realidade dos fatos humanos, ela reivindica 0 estatuto de “ciéncia” e quer ser considerada “antipoda da ficcao”. O seu horror a ficcdo é tal que, quando se aproxima das ciéncias naturais, denuncia FGV de Bolso as sombras da ficgao que descobre nelas. Para Michel de Cer teau, a historia pretende ser mais realista do que as ciéncias naturais ao denunciar o seu “contetido ficcional”: linguagem formal, artificial, um artefato verbal esvaziado de realidade. O historiador desconfia dessa “ficgao cientifica”, que ignora fatos, a realidade, o referente do discurso. A ambigao da his- toria é ultrarrealista, ela aspira ser mais “cientifica” do qué a ciéncia. O seu realismo é mais radical do que o da ciéncia, pois € avessa a modelos, leis, conceitos, tipos, que, para 0 his- toriador, sao abstragdes, que se colocam no lugar do real. Para a historia, a ciéncia é fraca, deixando-se convencer e dominar pela ficgdo. Contudo, quando pertebe que, apesar das suas brechas ficcionais, a ciéncia pode ser umforte aliado em seu combate a ficgao, ela se aproxima e pfocura fazer alianga- Da ciéncia, ela quer imitar 0 seu controle da prova,.a sua obses- sao com 0 teste,a‘experimentacao laboratorialy Ela se inspira em seu espirito rigoroso; ém:scu esforgocde objetividade, em suas estratégias ¢ técnicas para apreénueré dominar a reali- dade empirica(Certeat, 1976 e £987), Contudo, os céticos tém Yazao?a busca.da “\Verdade” pa- rece incompativel como objeto do Rhisteriador, os homens nO tempo, e, desde 9 iMicigg a historiografia se misturou a litera=. pura A hi toria jamais atingiu-plenamente o seu objetivo de ser antipoda da'ficgao” Para Michel de Certeau, a historia S¢ _deixa dominar pela fiega0 quando esconde ou_ndo consegue perceber a forga organizadora do presente em sua refigura- _sa0 do pasado. Na verdade, a sua organizagao do passado nao € tao realista assim, pois € muito orientada pelo presente. A historia se mostra pouco realista em relagdo a sua propria atividade, nao vé que a sua representagao do passado oculta o aparelho social e técnico que a produz, a instituicao pro- fissional. A reconstrugao do passado disfarga a pratica que O desafio historiografico 19 a organiza, escapa as press6es socioeconémicas que determi- nam as autorrepresentagées de uma sociedade. Uma comu- nidade cientifica é uma fabrica em série, submetida a limites de orgamento, ligada a politicas, a um recrutamento estrei- to e homogéneo, aos interesses do patrao e do momento. Os livros produzidos nessas fabricas nao re 6 de sua produgao e, por isso, se aproxim; sado como se fossem aut6 pres: des ins stitucionais e aos problemas postos presente, fazendo uma abordagem abstrata do passado, nao ‘percebendo as suas Ancoras.e-algemas no.presente (Certeau, ‘1976 € 1987). Portanto, os céticos teriam razao'se a historia insistisse em ser “antipoda_daficcdo”. Mas) se ela. mudasse de posigao, se aceitasse que-é contigua ela, faria uma xedefinigao do seu conceito-de verdadee daria-outro sentido ao_desafio historio- grafico. A argumentagao cética se-esvaziaria completamente. Nietzsche.@contraa “atitude cientifica” historicista e sugere que-seria melhor que, emvez de lutar‘contra’a ficgao, a his- toria assumisse as suas intimas, rela¢Ges\eom ela. A historia nao deve pretender sen “antipoda;da ficgao”, pois esta mais proxima da-arte. Nietzsche é contra a atitude cientifica para a historia, cujo lema-seria:’“seja a verdade, perega a vida”. Ora, se a vida deve-perecer, a quem serviria a verdade? Se a vida deve perecer, a verdade perecerd junto, pois a verda- de é a vida. Para ele, o ideal objetivista da historia cientifica estuda fatos despidos de toda subjetividade, eliminando o sonho e a imaginagao, que animam a vida. Ele se refere a trés atitudes diante do passado, que podem ser positivas ou nega- tivas, dependendo da medida: a) a historia monumental ser- ve aquele homem que age € aspira, que procura no passado exemplos, modelos para a sua agao, valorizando o grande e 0 €0 condena-enquanto passado, por sér passad 20 FGV de Bolso magnifico, protestando contra a fuga do tempo e a precarie- dade do ser. Nessa perspectiva, s6 0 grande homem conta e s6 ele é exemplar e pode inspirar a imitagao dos homens do presente. A historia é mestra da vida, pois serve a esta imi- tagdo. Mas, esta atitude monumental pode ser desfavoravel a vida ao fazer do passado um ideal e desqualificar 0 presente ea possibilidade do futuro. O risco do “monumentalismo” ¢ _ os mortos enterrarem os vivos; b) a histéria antiqudria serve aquele que ama e venera 0 passado em todos os seus detalhes, como raiz e origem. Esse espirito colecionador cataloga fatos e mais fatos, preserva 0 passado enguanto passado em arqui- vos e museus. O risco do “antiquarismo’ 6a mumificasa' de. um passado qite nao anima mais O piesente, nao o inspira mais, € os mortos enterramros viyos. A vida sd deve ser pre- servada na medida em que sé°vé aumentada em poténcia; C) a historia critica coloca o passado diante do tribunal da razao ado; © presen- te quer criar para siuma segunda natureza.é rompe com as referénciasoda tradigao. O riseo do\radicalismo critico” € a destrui¢ao de tudo o que’ja foi. Nestés tras modelos, 0 exces- so de historia representa-ama desvantagem para a vida, pois 0 passado oprime € soterra,o presente. No entanto, ja em sua época, surgia a,hermenéutica; com Schleiermacher & Dilthey, que propunha uma’ relagao de didlogo entre o presente ¢ 0 passado: os vivos do presente interpretam e dialogam com os vivos do passado! Na verdade, desde Heréddoto, a histéria esteve ligada a vida e nao a morte. Desde og gregos, ela foi o testemunho dos tempos, a luz da verdade, a luz da memoria, a mestra da vida, a mensageira da antiguidade e a protetora do futuro (Nietzsche, 2003; Domingues, 1996). Portanto, a historia poderia ou deveria esperar ser uma “ciéncia’”? Apds Nietzsche, que revelou a dimensao de sonho O desafio historiografico 21 e imaginagao da experiéncia vivida, interessaria a ela conti- nuar imitando a ciéncia? Nao seria melhor assumir as suas caracteristicas de arte literéria? As relagdes entre a histéria ¢ o discurso cientifico sio complexas. Para Bloch, perguntar sobre 0 carater cientifico da hist6ria é formular a “questitin- cula que agitava os nossos avés”. Para Veyne, ao contrario, nao é vao saber se a historia é uma ciéncia, pois “ciéncia” nao é um vocabulo nobre, mas um termo teoricamente preciso. Talvez, possamos extrair da classica classificagao positivis- ta das ciéncias de Comte, embora nao fosse 0 seu objetivo, uma saida para este impasse. Para Comte, a hierarquia das ciéncias inclui seis ciéncias: matematica, astronomia, fisica, quimica, biologia, sociologia\Aparentemente, a historia nado esté presente. Elas apareceram sucessivamente por sua ordem logica: grau de generalidade, de-simplicidade e de indepen- déncia reciproca, uma ordem de~generalidade decrescente e complexidade crescente. Esta classificagao.tem_um duplo critério: epistemolégicoe historicos Embora Comte enfatize 0 seu cardterepistemoldgico, esta classificagao traz implicita- mente uma historia das ciéncias; elas apareceram “sucessiva- mente”, emergiram em épocas diferentes e cada surgimento trouxe mudangas profundas na ordem do conhecimento. Esta classificagaoinclué implicitamente a historicidade dessas ci- éncias, 0 quenos leva a }tipétese de que, talvez, a ciéncia das ciéncias seja a historia. $6 a historia pode explicar a matema- tica, a astronomia e a fisica a elas mesmas. A historia seria a primeira ciéncia, anterior a matematica, pois s6 ela explica cada ciéncia a si mesma e a relagado de todas entre elas. Todas elas dependem da historia, epistemologicamente, pois preci- sam da memoria e da linguagem para continuar existindo, e historicamente, pois os registros, os anais, sao anteriores e mais importantes do que os teoremas. A possivel saida do 22 FGV de Bolso ‘ja é ciéncia ou arte somente, a historia ra responder, A historia, para conhecer emoldgica, deve aplicar-se 0 principlo~ que epees sine s ¢ saberes: conhecer as suas mudan- ‘gas no tempo, fazer uma historia de si mesma (Comte, 1984; Bloch, 2002; Veyne, 1983). A historia da historiografia Recoloquemos, entao, o problema ja posto: de Herddoto a Ginzburg, existiria uma identidade estavel e reconhecivel do conhecimento hist6érico? Afinal, o que é a histéria e 0 que faz o historiador? Geralmente, evitam-se respostas abstratas. A resposta abstrata mais frequente: é o.conhecimento do passado humano, dos homens‘do passado, os fatos e feitos humanos do passado. Isto exclui os fatos naturais. E um conhecimento que pretende obter a verdadédo seu, objeto, atravésda investiga- gao, da interrogagado’é controle das, fontes, No entanto, uma resposta segura’so seria possivel através da anglise-da pratica concreta dos seus:especialistas. Avhistéria existe e é pratica- da porcuma comunidade specializada, logo, ela seria “aquilo , ue os historiadoresfazem’”” Bla Seria’® que pratica a comuni- dade dos historiadores-e pode- ; se-encontrar a estrutura log} ca do seusmétodo observando o modo como os historiadores operam. No éntanto, 0 “modo coma os historiadores operam” é histérico, muda, «€;, mesmo observando a pratica_concreta- da comunidade historiadora, nao se pode definir de forma estavel e incontestavel o que ela faz, Hoje, talvez, se possa afirmar, observando a operagao histérie, concreta dos his- toriadores, que a historia é 0 conhecimento “cientificamen- te conduzido” do passado humano, isto é, problematizante, hipotético, comunicavel, técnico, documenta, realizar um didlogo entre os homens vivogs ——- do, Ela procura do presente e os O desafio historiografico 2 homens vivos do passado, de forma racionalmente conduzi- da. Mas, ela nao foi sempre assim e¢ ja esta deixando de ser assim (Reis, 2005) . A historia da historia é um caleidoscépio! Ha cerca de 2.500 anos, ela existe em permanente crise, autodefinindo- Se vagamente. Como “obra escrita em pro: séculos V/IV a.€., opondo-se ao mito, a | a, a poesia ¢pica ea especulagao filosdfica, que também emergia. Ela era um olhar novo, uma revolugao cultural, que buscava a verda- de das mudangas humanas no tempo, em uma cultura que contemplava o eterno, o supralunar. Herédoto acreditava ser possivel falar das coisas humanaé, temporais;e com verdade. Mas, ofereceu varias versdés’ da verdadé e foi considerado “fabulador”. O proprio pai da ciéncia dos homens no tem- po foi tido como.contador, fabulador, mentiroso! Depois, a historia se confundiu com‘a mitologia politica. Hm Roma, o historiador “investigava ¢ pesquisava’ para légitimar o po- der, oferecendodhe uma origem, uma tradigao,-que lhe ga- rantisse a continuidade. Depois, a historiacconfundiu-se com a fé crist&, tornando-se-o)lévantamento dos\casos em que a vontade de Deus se,expressou, uma. historia das manifesta- ges divinas, milagresye teofanias..No século XVIII, apesar da busca da “historia perfeita” dos séculos XVI/XVIL, pelos cru- ditos Mabillon ¢ La\Popelinicre, a historia deixou-se dominar pela especulagao filos6fica e tornou-se um grande discurso especulativo, universalizador, teleolégico, utopico. No sécu- lo XIX, ela retornou 4 sua origem grega, especificamente aTu- cidides, e quis outra vez romper com a intuigao poética, com a especulagao filoséfica, com a retorica literdrio-politica, com a inspiragao artistica, com a fé, e inventou uma nova iden- tidade: “ciéncia”. Mas, nao era uma atitude original. Assim como havia cedido ao poder romano, a fé crista, 4 especulacado 24a FGV de Bolso filoséfica, agora se rendia ao sucesso das ciéncias naturais, em seu modelo ainda empirista e indutivista. Ela passou a buscar fatos concretos, documentos, e procurava estabelecer impos- siveis leis de desenvolvimento historic. Esta nao foi a ultima imagem da historia. Com o surgimento das ciéncias sociais, no final do século XIX € no século XX, a historia deixou-se fascinar por Marx, Weber, Durkheim e pretendeu tornar-s€ uma ciéncia social. Identidade que, hoje, no inicio do sécu- lo XXI, nao a satisfaz plenamente e ela volta a se relacionar mais intimamente com a literatura, com a poesia, a psicandli- Se, 0 cinema, a publicidade (Bourdé e Martin; s/d; Lefebvre, 1974; Fontana, 1998; Collingwood, 198k) : A identidade do conhécimento histérico dependeu, por ae = atlanses que a historia’ estabeleceu aglongo 40s seculos. O seu‘ reali . i- eae inhamento permanente. com os°conheci ntos dominantes do momento “ logica- ess a tornaram epistemo mente muito instavel. Sens’ obj Q >mos, © que se espera. do historiad Je ae ungr sacg,os-mesm wnt 0) 4 ‘oO que a preyfodta dima “mean €0 mesmo, funde coma sua matéria, pois.é que. sabemos dospassado €o. que é transmitido ©omo conhecitiento, O assado.nao fala por Si, mas atraves do que s© conheéce delegate “ao Francesa | éuma leitura de uma sérié de eventos Seon idea s Franga PO a in Seculasm Vig que nao. éxistiram eth sicomo “REVO ugao Francesa”

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