Lésbia PDF

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Maria Benedita Camara Bormann (Qéla) Lésbia Romance Atualzagdo do texto, introdugio e notas Norma Telles SCULITERES 1998, £1998, Editora Mulheres Capa e Projeto Grifice: Darachée de Bruchard, ibe a tapegaria Pomona, evinketas, de William Mores Atualizagio do texto e Introd Norma Teles Revisio: Susana B, Funck Zabidé L. Muzart, Sditoragio: Hditora ula Dados inrernacionas de Catalogagso na Publicagio (Ci) Leny Helena Brunel CRB 14540 7351 Bormann, Maia Benedita Cimara Létbia / Maria Benedtn Cimare Bormann; introdugso de Nora ales.» Floianépoliss Ed. Mahetes, 1998. 264 p12 em. Preudénimo: Delia 1 edigo: 1890 1. Literatara Brasileira — Romance. I, Tells, Norma, 1. Titulo ‘cou 818.3 ‘Witora Mutheres Jaixa Postal 5031 {5040-970 Floriandpolis, SC- Brasil ‘1 & Fax: (048) 233.2164 dieramulheres@lorips.com.br ttpy/woveditoramulheres.com.br Introdugao por Norma Telles lia foi o nome de pena adotado por Maria Benedita Camara Bormann em sua carteira ria durante as timas décadas do século pas- sado, Talentosa, jovial e irinica, publicou vérios livros além de cr6nicas, folhetins e contos breves nos principais jomais do Rio de Janeiro, entre 1880 e 1895. Comegou escrevendo em O Sorriso, passou para o jornal Cruzeiro, onde ficou um ano. Depois escreveu para a Gazeta da Tarde, de José do Patrocinio, e a Gazeta de Notfcias, de Ferreira Aradjo, entre outros periddicos. Foi a primeira escritora a colaborar na coluna, 0 que a partit daf se tomnaria uma tradigdo, & esquerda da pri- meira pigina do jornal O Pai, alternando com Coelho Netto, Valentim Magalhes, e outros. Nesse jornal, onde trabalhou desde o seu comego, junto com Quintino Bocaitva, foi contemporanea de redagio de Alutsio de Azevedo, Joaquim Na- Liésbia buco, Carlos de Laet eda poeta portuguesa Maria ‘Amalia Vaz de Carvalho. Escreveu em estilo ele- gante, que demonstra real talento e erudigio, se- gundo seus admiradores, ou escreveu sobre temas chocantes, er6ticos, segundo seus detratores e criticos. Maria Benedita Camara Bormann nasceu em Porto Alegre em 25 de novembro de 1853, numa familia de prestigio social e politico, Estava com dez anos quando se mudaram para o Rio de Janeiro, Ao se casar, em 1872, morava com os pais em um sobrado, que ainda hoje ali se ergue, A rua do Rezende, 48. Residia nesta casa quando faleceu, em julho de 1895. Entre esses dois acon- tecimentos, muito pouco se sabe sobre sua vida, Recebeu uma educagio esmerada, falava francés e inglés, contam os comentadores, e como de- monstram seus livros, foi uma estudiosa do pen- samento e da literatura de sua época. Andradina de Oliveira diz que escrevia desde pequena, ten- do posteriormente selecionado o que queria con- servar e destrufdo o que no the parecia ter valor. Pintava, tocava piano e cantava com bela voz de ‘mezzo-soprano. Foi casada com José Bernardino Bormann, seu tio materno, her6i da Guerra do Paraguai, engenheiro militar de talento que em 1909 tornou-se Ministro da Guerra. Foi também escritor ¢ ensaista, tendo deixado livros sobre as Moria Benedia Bormann Iutas no sul e a guerra do Paraguai. Os sucintos relatos da época sobre a e tora sugerem ter sido “acidentada sua existéncia romanesca, e cruel o seu destino”. No entanto, nunca essas insinuagies se tornam um pouco mais explicitas. Alguns comentarios parecem néo pas- sar de confusio entre as personagens da autora — especialmente Lésbia— e sua vida. Algo con- tra o que a prépria escritoraalertou, varias vezes, afirmando que tal pritica levavaa enganos e con- fusdes, como se poder constatar nas péginas des- te livro, Talver Maria Benedita Bormann tenha passado a vida lendo e escrevendo no sobrado da tua do Rezende, sorrindo com a ironia que Ihe atribuem das insinuagées de aventura € r0- mances. As pesquisas néo desvendaram nada além dos tragos conhecidos da. persona pablica, segundo o autor do comentario acima, “incon- testavelmente uma das mais bilhantes escritoras do Brasil contemporineo”.' No inicio do século vinte, seus livras jé haviam se tornado raros, em- bora ainda fossem muito apreciados por aqueles que possufam exemplares.' Com o passar dos anos, entretanto, o nome de Maria Benedita Ca- mara Bormann foi desaparecendo, assim como seus livros, da meméria coletiva. O uso de pseudénimo € uma questéo inte- ressante com relagéo as mulheres. A:partir de cri Lésbia meados do século dezenove, ao invés de perma- necer um subterfilgio para encobrit a identidade, passa a marcato nascimento da escttora, um po- der derivado de um batismo privado, um segundo eu, um nascimento para a primazia da lingua- gem. Reflete um esforco para se livrar de — ow transformar — o patrimdnio herdado, o peso da nomeagio familiar, os nomes de poder e o poder ddas normas presentes em sua vida. No caso de Délia, a escolha o nome de pena no parece aleatsria. Aponta para a Antigiidade clissica, o mundo dos homens eruditos ¢ dos ga- binetes vedados as mulheres, e assim assinala uma ruptura com a divisio cultural do conhecimento ‘que se difundira na cultura através de uma linha diviséria dos géneros. Aos homens, todas as reas do conhecimento e da produefo cultural; 4s mu- Iheres, um verniz de educacéo para uma conver: sa de saldo, reprodugfo e cuidado com os filhos. Uma vida sem histéria propria. Ao mesmo tempo, a escolha € uma indicagio do posicionamento politico da autora, pois sabe-se que, nas décadas que precederam a Repiiblica, nomes romanos eram adotados para assinalar essa opgio. Além disso, esboga o tragado de uma genealogta pré- pria, imagindria, uma genealogia feminina que tem inicio com a poeta Safo, passa pela perso- nnagem romana Délia e as denominadas Safos dos Maria Benedita Borman séculos subseqiientes chegando até George Sand, a Safo que dominou Patis em meados do sécula dezenove e de quem Maria Benedita Bormann diz, ter demonstrado “o que pode a génio em pei- to feminino.” Dalia era um epiteto dos gémeos Artemis € Apolo, que se refere a0 local de seu nascimento, Delos, e aos festivais a eles dedicados. Artemis se tornou 2 romana Diana e na Roma antiga Délia. foi o nome escolhido pelo poeta Tibulo para can- tar sua amada e, através dela, homenagear 0 ginio de Safo. A época em que viveu o poeta nos legou imagens de mulheres independentes, assertivas, que buscavam auto-gratificagéo in- telectual e escolhiam seus amantes. Naquele pe- riodo, varios poetas cantaram assim suas amadas ce, dentre essas personagens, a mais famosa foi a Lésbia dos versos de Catulo. © universo imagi- niitio sugerido pela escolha do pseuddnimo é o mesmo que nomeia as personagens do presente livro, considerado o mais importante de Maria Benedita Bormann. Ela transforma as persona gens dos poetas latinos em escritoras que falam coma prépria vor, numa época em que as mulhe- res no deveriam se afirmar nem ser escritoras para nfo se deixar fixar em categorias socialmen- te aceitas, para escapar a0 meio-dia da configu- ragio apolinea hegemonicamente surda d multi- plicidade de vozese sons da cultura, somentefre- aientando as ermas paragens de Artemis/Délia/ Diana, onde as palavras podem ser selvagens ou evasivas, escortegadias e se recusam a ser doma- das.‘ Selvagem e agreste referem-se a aspectos da palavra que nfo permitem a redugio ao utlité- tio, ao domesticado e assim podem nomear outras paisagens. ‘Como pode ser observado neste livro, a es ctitora é extremamente cuidadosa na escolha das palavras, provocando com isso ressondincias e en- cadeamentos. Ela se torna bilingie, multilingie, criando uma estrutura na qual cada lingua dife- rente ajuda a heroina a se livrar das incursdes repressivas da outra. A herofna precisa ter acesso. a varios mundos lingisticos que dialogam entre sia ajudam a estabelecer suas proprias regras. Ela emprega esse recurso através de fragmentos, tecortando e fazendo bricolagens para refazer sentidos. Acaba contrapondo-se as tendéncias dominantes de um monélogo com as metrépoles ‘e uma pretensa homogeneidade cultural, refazen- do nas brechas idéias correntes. No emprego das vérias linguas esté envolvida na busca de uma segunda identidade e da revisio das produgdes culturas. As citagSes nfo aparecem para ilustrar uma boa educagéo da personagem mas como a descoberta de uma outra interpretago. E assim Maria Benedita Bormann u também que utiliza os vrios saberes que, a0 invés de aparecerem como reguladores, sugerem ini ‘eras outras possbilidades, interrogando as vores que ordenariam que se calasse. E por nio querer se deixar fixar em categorias preestabelecidas é que também recusa a denominagio de “Zola de sais", que posteriormente Inés Sabino atribui a Maria Benedita Camara Bormann. Percorre as vérias escolas literéias,retirando delas o que the aprat. Lésbia € o que se denomina um Kinstler roman, um romance de artista, um género que enreda 0 continuo pracesso através do qual uma pessoa progride em diregio & criagio de sua arte. Trata-se de uma estéria que aborda o desenvol- vimento, formagio e problemas especificos do artista e focaliza a busca de um “eu” criador que se manifesta também em outras esferas da vida — no caso deste livro, no corpo, nas roupas, na casa, refazendo os tradicionais espagos femininos. Um romance de artista eserito por uma mulher no século dezenove & muito raro por varias razdes, apontadas por estudiosos,* que nio cabe enume- rar aqui. Em breve, pode-se comentar que 0 cam- pode vivéncias das mulheres era muito mais imi tado que o dos homens. Elas néo iam 8 guerra, nem freqiientavam universidades ou bordéis. E raramente eram artistas. Para tornar-se criadora, 12 Lésbia a mulher precisava enfentar as experiéncias a ela destinadas e criticé-las. O liveo de Délia, an- tecipando em uma década escritoras de lingua inglesa dos altimos anos do dezenove! e as mo: dernistas do nosso século, estabelece a ligagio entre a busca da protagonista por desenvolvi- mento artistico, independéncia financeira e amo- rosa, ea necessidade de um local de trabalho pr6- prio. No caso, com um toque local de excesso, a personagem escritora realiza sua arte num pala- cete todo seu, A independéncia financeira da he- rojna devido a um acaso da fortuna nfo nos deve surpreender, pois ao percorrer os jornais do Rio de Janeiro, no perfodo, é surpreendente o nimero de aniincios de loteriapublicados. Além disso co- mentava-se muito as perdas e ganhos répidos na bolsa de valores © a rapidez com que 0 dinkeiro mudava de més Lésbia & um liveo que entrelaga as relagbes fe tens6es entre a paixéo pelo conhecimenta — leitura e escritura — e a paixdo erdtica. Ao con- tsério da “mulher que desvive-se em carinho e afeto”, a escritora-heroina vive, com prazer e in- tenso sofrimento, os desejos da mente e do corpo. Nio hi cisio entre a realizagio pessoal na expe- rigncia e o eu artistico que deseja liberdade das exigéncias da vida hé alterndncia e interrelagio entre esses dois pélos. A fronteira entre vida e Maria Benelta Bormamn B arte € rompida, as duas se mesclam e se conta- rinam, mediadas pela imaginagio que remodela a tradigio recebida, as histérias contadas nos i- vros, alterando os desenlaces e as tramas. O oni- rismo aparece neste € nos autos livros de Délia, como espaco de transformac&o onde a ambi- wilidade é introduzida para que os movimentos ocorram e haja mutabilidade, troca de dimensées e irradiagGes. Devora os “estrangeirismos” (pa- lavra da autora) para devolver outras idéias e vai fabricando com histérias que vem de fora e com as que vém de dentro, com paix extrema an- gristia, através da liberdade da criagio e da re- pulsa 8 repeticao de regras, uma estética mestiga onde, com audécia, mistura os profundos confli- tos e tensbes as supremas elevacées. A paixo e ‘o.desconsolo estio presentes em seus “temas vi- ris" combinados ao “elegante estilo feminil que desvenda os mais profundos mistérios” da psico- logia das personagens. Dentre os varios livros e autores citados, dois desempenham papel central no livro. © Wer- ther, de Goethe, mencionado na prélogo pela au- tora, € um marco da sensibilidade do século, ‘Além das razées oferecidas pela autora para essa predilegio, talver haja outra. Délia, apesar das referéncias a Goethe, nunca menciona 0 Fausto Ora, esse 6 0 modelo paradigmatico da busca co 4 Lésbia artista seu embate entre criagio e experiéncias no mundo." Ao nfo menciané-lo ela esté clara- ‘mente apontando outro caminho para a formagio da artista. A personagem-herofna de Délia, di- ferentemente do Fausto, no sai em busca de novas experiéncias, mas esgota as possibilidades dladas is mulheres, para, entio, tentar novas pers- pectivas de vida. Werther, por eu lado, é um livro em que episédios da vida do autor sio transfor- mados em ficgo, onde verdade e invencio se ‘mesclam para compor um romance. outro livro, citado “ao aeaso” em um mo- mento transformador da narrativa, nfo chama muita atengfo & primeira vista, Mas seu papel é ainda mais central Trata-se das Méximas de Epic- teto, um eseravo filésofo, um dos principais difu- sores do estoicismo, que em Roma ensinou e aca- bou conquistando a liberdade, Epicteto afirmava que toda criatura humana, em qualquer época e ‘em qualquer situaglo, fosse homem ou mulher, eseravo ou senhor,s6 seria verdadeiramente uma pessoa digna da razio que the fora outorgada, se vivesse a propria vida de acordo com que the fosse a esstncia. Propunha o cuidado de si como arte da existéncia que conduziia @ liberdade. Na prética do cuidado de si, as mulheres, ele alerta- va, deveriam ficar ainda mais arentas, Pla reagio que despertavam desde meninas, por causa de ‘Maria Benedita Bormann 5 sua beleza, poderiam ser levadas a prestar tengo 86 2 aparéncia exclusivamente para dar prazer a0 homem a0 invés de cuidarem de i O fundamental, para o filésofo, era ser 0 ‘que se é Na paideia por ele proposta, ha intima ligagdo entre males fiscos e males da alma, uma aproximagio entre medicina e moral. O cuidado de si é um sistema de obrigagGes recfprocas e, em conseqiiéncia, é pritica social. A arte do cui- dado de si propunha varias priticas, receitas, exercicios. Muito importante era a atividade de falar eescreves, na qual o trabalho sobre si mesmo € 4 comunicagéo com os outros se baseavam. Portanto, 0 ato de escrever se tora uma estra- tégia na constituicao do eu. Pratica esta bem di- versa da auto-exposigio preconizada pelo ethos cristo. A escrita firma aanimi medicina, ou medi- cina para a alma, ¢ hé uma intima relago entre 0 fisco e o psiquico.® Quem estiver genuinamen- te interessado na satide da alma retira-se em si mesmo, constantemente, nfo para se expor mas para recordar regras de ago e considerar como se condusit. As notas escrtas para 0 cuidado de si dever ser simples e claras, pois o estilo deve refletir a orientaco ética. As orientages e con- cepedes de Epicteto permeiam tado 0 livro de Délia, mesmo quando nao explicitadas, assim como 0 estilo de parégrafos curtos que muitas 16 Lésbia veres formam também aforismos. Lésbia, a personagem-escritora, ao contré rio das herofnas amorosas e humildes do periodo, 6 segura e ambiciosa ¢ tem “uma jaga em sua per- sonalidade, é vingativa,” diz a narradora deste livro. A sugestio € de que se a mulher pode set igual ao homem em arte e engenho, também deve ser capaz de partilhar elementos de sua vilania e fazer escolhas morais. A personagem segue um impulso inato para a afirmacio de seu sex, nio aceita que s6 as pessoas de classe média alta te- nnham sensibilidade estética e ética. dias estas que sio as do fil6sofo est6ico, como também sua acio é pautada por momentos de recolhimento, quando medita sobre os acontecimentos, traca seus rumos ¢ escreve. A articulagao da subjeti- vidade da personagem é uma definigio de fron- teiras em alterndncias de luz e sombra, sonho € realidade, entre as-condigSes de ago e a aco, entre a personage ¢ a sociedade num diélogo entre a necessidade e a liberdade, a vida ea morte Um limite importante da subjetividade € definido pela percepefo dominante da mascu- linidade no pensamento de época. A pluralidade de figuras masculinas neste livroassinala a recusa da nattadora em fixar as posigdes de género. A diferenga entre o pai e o marido, por exemplo, Maria Benedta Bormann u mostra que dispersa a lgica unilateral do poder através da sucessao de figuras masculinas seme- thantes. Na pluralidade de possibilidades hé lugar para brutos, tolos, vaidosos, vingativos, para ho- mens de bem, para enganadores e para o homem senstvel, ocompanheiro de mente e corago, um interlocutor que ouve e aprecia, bem como para © jovem que desperta.a paixio adormecida na mulher mais welha, questio ainda muito discutida em nossos dias. A morte da heroin, sua éiltima trama, 4 autora em seu prélogo, & a conseqiéncia fatal do seu tormentoso e acidentado viver". Com ela concorda Bachelard quando afirma que 0 sui- cidio, na literatura, € fundamental para os valores draméticose € preparado como “um longo destino fntimo. E, literariamente, a morte mais prepara- da, a mais prenunciada, 2 mais total.” Como se a autora quase desejase que o universo inteiro par- ticipasse da morte da heroina na égua, “a verda- deira matéria da morte bem feminina’. Contem- plar a 4gua € escrever-se, dissolver-se € morrer."” Lésbia recebeu resenhas elogiosas como a de O Pats, em 4 de novembro de 1890, e existe consenso entre 0s seus contemporaneos quanto 4 ser esta sua obra mais importante. Hé uma resenha discordante, a de Araripe Jinior. Em ar- tigo no Correo do Povo, mostra-se condescen- Lésbia dente com “a peregrina formosura” da autora, seu olhar e tom de voz, com “a gentileza de seu sexo" Mas néo encontra nada disto — afirma — no livro, nfo encontrou nada que correspondesse “a tanta graga fisica e to celestes dons naturais” Ele sabe, e enumera, 0 que deveria ter escrito ‘uma to formosa mulher, “tinha o dever de ma- nifestar-se uma artista cheia de sobressaltos, nervosa, intelectualmente violentada pela his- teria tropical.” E termina dizendo: a autora Ihe parece “téo pouco conhecedora do papel reser- vado & mulher nas sociedades do século XIX”. Ele, ao comentar outro livro de Délia, afirma ser ela ‘uma erotmana: “E interessante observar que a pecha pelo obsceno parece ser uma prerrogativa da autoria masculina [...] E sintomético, portan- to, que Délia seja condenada por ser uma escri- tora que ‘no perdeu a preocupacdo antiga da literatura brutal”. " Araripe Jinior demonstra o paternalismo dispensado, em geral, As escritoras clogios pela aparénciafisica, beleaa e graga. Mas este tipo de eritico sabe como tanta delicadeza deveria ser transposta para a escrta, as mulheres deveriam escrever 86 a respeito de sentimentos que considerava puros, isto 6, preseritos. Erot®- mana, adjetivando a autora, e o tipo de jufaos ‘expressos acima foram empregados por criticos conservadores, no final do século passado, aqui Maria Benedita Bormann _ ieee ¢ também nos paises de lingua inglesa, para eset toras que desafiavam as definigBes dominantes a respeito da mulher ede seu papel no mundo: Atri- butos como independéncia, coragem, autores peito, conhecimento, erudicfo, erotismo, cuidado com @ mente e com 0 corpo, autodeterminagéo eram vistos como opostes & domesticidade e pu- reza desejadas na mulher e assim se tornavam elementos de incompreensto, desassossego e cen sura.!? O obsceno nao € necessariamente vulgar. Aheroina-escritora é ousada,inteépida eirénica, como a autora. A ironia dissimula a intensidade dos eventos, borra os limites da nogéo de verdade, embora possa afirmar uma idéia, O riso impede que a personagem se identifique com a depresséo, proporcionando um distanciamento, um movi- mento. O obsceno e 0 riso fazem parte dos mis- térios femininos e em tempos antigos o sagrado obsceno se manifestava, por exemplo, em Eléus Conta-se que, quando Deméter estava profun- damente deprimida por causa da auséncia da filha Perséfone, Baubo foi ficar junto dela e encantou- a.com seu: humor ao contar-lhe histérias obsce- nas, gesticulando sempre até fazé-la rit. O iso fax Deméter conhecer a paixdo que a devora, 0 que é bom para ela e o que nao lhe pertence. E encontra dentro de sia centelha de humor que a 2 ___Lesbia leva a mudaro rumo dos eventos e passa a ensina lo as outras mulheres, para que néo sejam tio inocentes na vida, nos prazeres ¢ na morte. De- méterensina, pela ironia que aprendeu com Bau- bo, a fazer conexio com o fogo mortal, um estado de intensa conscincia que inclui o erotismo 0 obsceno embora néo se limite a eles.” Lésbia a0 aceitar a prépria ironia e 0 préprio erotismo no se deixou prender, pelos softimentos e desalentos da vida, mas moveu-se, meio em &s criticas que sem divida deixaram cicatrizes e também uma ‘amargaitonia, e nos legou matérias para reflex, “no morrendo de todo” como era seu desejo. Esta reedigio de Lésbia torou-se posstvel gragas a generosidade do bibliofilo Erich Gemeinder. le contou-me que ainda estudante leu uma pequena noticia sobre o livro e passou a procuré-lo por todo 0 Brasil. Depois de uns vinte e cinco anos, finalmente, em 1984, conseguiu-o na biblioteca que pertencera a Olyntho Moura. Erich permitiu que a esmerada encademagio de seu exemplar fosse desfeita, para se fazer 0 microfilme que ser- viu para 0 cotejo da presente ediglo. Recente- mente, Eliane Campello, trabalhando com Rita Terezinha Schmidt, encontrou um outro exem- plar na Biblioteca de Rio Grande (RS). Maria Benedita Bormann a Notas 1, Almanach Luso Brsileico, 1897, .268, 2, Andradina de Oliveira, A mulher iograndense série. Poe ‘to Alege: Oficnas Graphicas da Lvraria Americana, 1907 3, Sandra Gilbert e Susan Gubar, No man's land, Vol New Haven: Yale University Press, 1981 4. Ver Stephen Simmer, “The Net of Artemis: Text, Complex" Dragonflies. Dallas, p. 55-65, summer 1980. 5. Patricia Yaeger, Honey Mad Women. New York: Columbia Universiey Press, 1988, 6. Verespecialmente Grace Stewart, A New Mythos: the novel ofthe artistas heroine 1877-197. Eden Press, 1979 e Susan Gul, "The Birth ofthe Arteta Heroine: (Re)production, the Kiinstlerroman Tradition, and the Fiction of Katherine Mansfield" in Carolyn Heilbrun (org). Representation of, ‘Women in Fiction. UMI, 1996 7. Ann Heilmann, "Feminist Resistance, the Artist and ‘A Room of One's Own’ in Women's Writing, vol 2, 83. London: ‘Triangle, 1995, p. 291-308 e, da mesma autora, “The ‘New ‘Woman's Fiction and Fin-de-Siécle Feminism in Women's Writing, vol 3, 3. London: Tingle, 1996, p.197-216. 8. Grace Stewart, A New Mythos: the noel of the artistas heroine 1877-1977. StAlba: Eden Press, 1979. 9. Michel Foucault, Le souct de so. Pats: Gallimard, 1984 10. Gaston Bachelard, Lea et les néves. Paris: Corti, 1979, pall __Lésbia {1 Rita Teesinha Schmidt, "Cultura e Dominagio" in Leas de Hoje. Porto Alegre: UFRS, 1997 12, Ann Heilmann (1996), op.cit,p-201 13, Angelyn Spignesi Muleresfamintas, SP: Surin, 1992; Clarissa Pinkola Estés, Women who run with wolves. New York: Ballantine, 1992, cap. 11 bie Cronologia da Autora 1853 - Nasce em Porto Alegre a 25 de novembro, filha de Patricio Augusto da Camara Lima, conferente da Al- findega da Corte, e de Maria Lutsa Camara Lima, natu- ‘ais daquela cidade, Eram seus avés paternos Jodo Hi- pélito de Lima e Benedicta Corréa da Camara, filha do primeiro Visconde de Pelotas.Eram avés maternos Gui- Therme Bormann, natural de Hanover, e Ricarda Manoela cde Maia Bormann, 1852 -£batizada no dia 31 de dezembro, na Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus. Recebe o notne da ‘v6 paterna, Maria Benedictae tem por padtinhoso v6 ‘materno, Guilherme Bormann, e D. Clara Ricarda Mai. 1862 - Muda-se com a familia para a Corte, 1872-Pede icenga & Camara Eclesisstica do Rio de Ja neio para casar-se com o Capito José Bernardino de Bormann (1844-1916), natural do Rio Grande do Sul, seu tio materno. Ocasamento € realizado em 7 de decem- bode 1872 na Igreja Matri de Santa Rita, na Core, as dezoito horas. 1881 - Publica "Magdalena" em O Sorriso. u Lésbia 1882 - Publica "Sonho", *Estelas Cadences’, “Estela” emCnaeio 1883 -Publen “Auréts, "Carta indo”, "Perfil “Bella Napoli” na Gazeta da Tarde 1884 - Publica inimeros contos brevese “Uma Vitima” nna Gazeta da Tarde; publica em lio Uma Victima, Duas Irmas, Magdalena 1885 -Recebe critics favoriveis ao livin, especialmente em O Paix 1886 - Publica “Angelina, flhetim, em O Pai. 1887 - Publica ofolhetim “Uma histéria antiga” em Pai 1889 - Publica contosbrevesemA Fam, jomal de Jose- phina Alvares de Azevedo. 1890 -Publica‘A estatua de neve, flhetim, em O Paix publica oomance Lésbia, editado por Evaiso Rodrigues da Costa 1892 - Escreve na nova coluna a esquerda da primeira pagina de O Paix 1893 - Publica Celeste pela edtora Magalies & Com- panhia, 1894 -Celese€ pubicado como flherim em A Noxicia, 1895 - Em maio, publica “Mylady” em A Noticia 1895 Morte as tés da manhi do dia 23 de jul Estava com 42 anos fleceu devido a uma ilcera no estSmago. Foi sepultada no cemitétio Sao Francisco Xavier. Nio deixou descendentes ‘Maria Benedita Bormann a5 Livros da autora Uma Vitima, Dyas Irmas, Magdalena. Rio de Janeiro: Typo sraphia Central, 1884 Léshia. Capital Federal: Evaristo Rodrigues da Costa, 1890. Celeste, Rio de Janeito: Magalies & Companhia, 1893; 2° cdigio, Rio de janeito, in A Noi, 1894; 3 edo, Rio de Janeiro: Presenga/ MinC /Pré-Meméria | INL, 1988. CConstam também como tendo sao em lve, sem no entanto ‘nenhum exemplar ter sido encontrado: Aurdla (1883); Ange. lina (1886); Esdtua de Neve (1850). Sobre a autora ARARIPEJONIOR, Tistdo Alencar. Obractica. Rio de Janta: ‘Casa de Rui BarbosalMEC, 1958. vl. 2 BLAKE, Augusto Victorino Sacramento. Diccionario biligra- hico braileivo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900. CESAR, Guilhermino. Historia da literatura do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1955. "8LIK, Regina Rogério. “Celeste: Nova Malle, mulher estra- tha, decadente". Washington, BRASA, nov. 1977 26 Lésbia MARTINS, Ars rcrtoras do Rio Grande d Sul. Porto Alege: Instzuto Estadual do Live 1978 MARTINS, Walon. Hira da ineligécia rsia So Pa lo: CulrifEdusp, 1977. ol. MENEZES, Raimundo de. Diino lteiio base. 2 Rio de Janeito:Livos Técicose Cientfces, 1978 MOTT, Maria Lucia B. “Escrtoras Basleitas do pasado" In (Caen, Sto Paulo: Coselho Estadual da Condgho Femi nina, 1985. Malier bras, biblgrfia anotada, So Paul: Fund Carlos ChagasBrasiiense, 1979, vol | CuuvetRA, Andadina de. A mulher riograndense. 1 sti Excriptoras Moras, Porto Alegre: Ofcinas Graphicas da Li- warts Americana, 1907 aI Tancredo de Barros. Ackégas au dizionario de pet donymes. Rio de Janet) Leite & Ca, 1929 SABINO, lgnes. Malhresilses do Breil. Rio de Janeiro: Gari, 1899; 2d. Foriandplis: Mulhees, 1996, Sci, Rita Tereinha. “Cultura edeminagdo"Poto Ale- ae, Leas Hoje, 197 “Ds eaclusi da imitagfoe ds tanegesso: 0 cao Toromanee Celexede Matis Benet Boman. In Fetes, Michel (org), As amas do exo: terra ea resiéncia da lteraua, Porto Alegre: Eaitra Sage, 1998, ‘TELES, Noma. "Autor". Inobi, Js Luis (orp. Palawas da critica Bio de ane: Imago, 1992 Caelum ou "Tinceura Azul". In Funck, Susana Bor ‘io (org). Trocando ids: sobre @ mulher € @lteratwra Florianspoli:Edeme, 1994, Maria Benedita Bormann n “Bscrtors,esritas,escrituras" In Del Priori, Mary Tore) Histnia das mulheres no Bras. Sao Paulo: Contexto, 1997 __. "Um palacete todo seu”. Washington, BRASA, nov. i997 Encantagdes. Sio Paulo: Nat Editorial, 1998 (no peel) VILLAS BOAS, Peto. Notas de bibliografiasu-vio-grandense Porto Alegre: Insticuto Estadual do L-veo, 1974 Ga ‘Nota Editorial Para a preparagio do texto aqui apresentado, utilza- mos a primeira, ¢tnica, edigao de Lésba, publicada ro Rio de Janeiro, em 1890. ‘Atualizamos aortografia,# acentuagio eacra- se, Corigimos uns poucos errosdbvios e incorporamos a errata da autora, Respeitamos a pontuagio mesmo ‘emcasos que, hoe, possam parecer “errados". Respet- tamos, ainda, a paragrafagdo da primeira edicéo bem ‘como oemprego de maiisculas, excetuando-se 0 no- mes dos meses, hoje escritos em mindsculas. Mantivemos os estrangeirismos em iélico,colo- ‘cando em nota o significado daqueles que nos patecem ‘mais em desuso. Colocamas também em notas alguns -verbetes sobre figuras literdrias e histricas. Optamos, ‘no entan‘o, por nfo dar significado de vocabulosdi- cionarizados por mais desusados e desconhecids. Preferimos atualizar de acordo com as normas vigentes o nome de familia da autora, tal como tem sido feito pelos demais criticos. A épaca da edigSo do livro, Maria Benedicta Camara Bormann ou de Borg. ~ Lésbia ~ Ao Leitor Ox deve impressionar 0 espectador diante de uma estétua, ou de uma tela primorosa, nao € a idéia ou fato que uma ou outta repre- senta, mas sim a beleza dos contomnos, o deli- neado das linhas, enfim, a perfeiglo do trabalho. Com o livro, que também é uma obra de arte, dé-se o mesmo; pertencendo o assunto & fantasia do autor, pode ele ser alegre ou finebre, grandioso € mesmo banal, contanto que a forma seja correta, a idéia bem desenvolvida ¢ a de~ dugio légica. Um dos desfechos condenados, segundo a opinio de muitos, €0 suicfdio; no entanto, ne- nnhum livro é mais belo do que WERTHER, e nele ha o endeusamento do suicfdio. Lésbia também termina pelo suietdio,e lon- ge de ser um ato irrefletido ou violento, 6 antes a conseqiiéncia fatal do seu tormentoso e aciden- tado viver. Ela nfo era apologista desse género de mor- u Lésbia te, porém hé casos em que € ele a melhor das so- lugdes; e quem poderé alardear que nunca em- pregaré esse meio, aliés mui legttimo, a fim de libertar-se de males intoleraveis? Lésbia € talver o resultado de sentimentos amargos, mas encerta proveitoso ensinamento que Ihe emprestaréalguma utilidade E um romance a parte, porque, sendo a protagonista uma mulher de letras, a vida desta abrange maior ambito e mais peripécias do que a existéncia do comum das mulheres. Nio se deve viver demasiado pelo coragio, pois o fervilhar das paixées envelhece e cansa alma, provocando esse desencanto de onde nasce 10 tédio que de manso leva 20 suctdio. Lésbia viveu duplamente: conheceu todas essas dores crudelissimas que sto a partilha das amas eleitas e suportou-as com valor, crente de que cumpria um fadéro, Mais tarde, preferiu morrer a trait 0 nico ente que a amava com veras tevera280: quando ‘uma mulher como ela encontra um homem como Catulo, deve sactficar-Ihe tudo, até mesmo a vi- da 1890 Délia PB coms dessas tardes amenas de abril, em que Ja viragdo passa na folhagem, tocando-a de le vve em fraternal afago CChilravam as cigaras em coro, interrompi- do apenas por alguns psius,psius, em que pareciam resfolegar para depois continuarem 0 animado conjunto Baixava o sol mansamente a0 ocidente, em suave languides, como que volvendo saudoso ¢ amortecido olhar pelo espaco percorrido. Asgitavam-se as comas das drvores em bran- da ondulacéo, acariciando e colhendo os iltimos raios luminosos que as beijavam, desprendendo- se dentre elas um sussusro melodioso, como doce queixume. Esvoagavam 0s pssaros em torn 206 ni thos, piando alegremente e logo emudecendo; a terra ia assumindo essa suprema quietacdo da me- lanedlica ¢ misteriosa passagem do dia & noite. No ambiente e na sombra violécea do cre- piisculo havia um convite & meditagdo e & sau- 36 Lésbia dade; eta a hora em que se despe a alma de todas as mesquinharias da vida, encarando unicamente 6 que a compunge ou deleita Impregnada de aromas, subia dos jardins 2 brisa, entrava afoitamente pelasjanelas, movendo as cortinas, embalsamando os aposentos e indo rmorter junto a uma mulher cismarenta Era o toucador, onde ela se achava, um mi- mmo de arte e bom gosto, contendo elegante mo- bilia de pau-rosa e cetim azul turquesa, grande tapete de peldcia da mesma cor, cobrindo parte do soalho e uma psiché a refletir os quadros e as tetéias do tépido ninho. Sentada, ou antes, caida no diva, nesse pungente abandono que atesta intimo desalento € no cansago fisico, emergia de uma profuséo de cassa branca e rendas tenufssimas, como ne- vada flor cercada de espuma, uma moga flexivel alabastrina ‘Asmangas curtas eo colo a meio descober- to deixavam que o olhar se extasiasse na pureza das linhas e na imaculada alvura do corpo, onde se distinguiam claramente azuladas veins, percor- rendo a epiderme e formando caprichosos tecidos. ‘Umedecidos por indisivel expressio de sen- timento fitavam o horizonte os olhos enormes ¢ escuros, enquanto @ boca, nacarada e breve, cris- pava-se em mudo lamento. ‘Maria Benedta Bormann u Mirava a quebrada fronteira, via a relva estender-se por ali abaixo em admirével nuanga, comegando no verde escuro e terminando no amarelo seco. Em intermitente mutaglo de claridade, os altimos raios do sol, ora iluminavam, ora deixa- vam na sombra aquele declive, provocando na pélida criatura vago desejo de rolar eternamente pela encosta, sorvendo o cheiro ativo da relva comprimida e fresca. ‘Além, passava uma carroga carregada de tijolos, descendo lentamente, e do outro lado re~ colhiam as tréfegas lavadeiras a roupa estendida nos arbustos. No pavimento térreo, sob seus pés, toca- vam uma valsa plangente, conversavam & espera dd jantar, chegando-lhe aos ouvidos argentinas gargalhadas, contristando-Ihe 0 coragio. Quando sofremos, consideramos como es- carnecedor insulto o alheio contentamento. Padecia a alma naquele adoravel corpo, quando a porta se abriu, entrando um homem no toucador a pisar fort tar, pressentira-o a jovem pelo magnetismo da aversio, contraindo-se-Ihe 0 semblante. Tinha ele trinta anos, fisionomia biliosa, vulgar, antipatica. Olhando-a surpreso, inquiriu: antes mesmo de o avis- 38 Lésbia =O que fazes aqui sozinha, quando todos esto na sala? — Nada! aprontei-me e espero a sineta do jantar, — Ora! deixa-te de fantasias! queres tor- nar-te notavel! Com vistvel enfado ergueu-se ela e desceu A sala. Arabela chamava-se a moga, porém todos a co- nheciam por Bela, gentil desinéncia que muito The quadrava. Até dezesseis anos, sorta sempre, sem que ‘uma nuvem Ihe ensombrasse o curioso e ardente volver dios grandes olhos ingénuos. Filha dnica, eram seus menores desejos adi- vinhados pela terna solicitude dos pais, aos quais pagava em afagos 0 que The davam em gozos e alegrias Confiadamente se the abria a alma pura e amorével aos generosos sentimentos,indignando- se ante a deslealdade e o egofsmo: para ela o bem nfo era mais que o belo posto em agio, e 0 mal uma manifestagio de fealdade, irritando-Ihe 0 espirito artistico. Dotada de extraordindria inteligéncia, sen- ‘Maria Beneita Bormann 39 tia viva necessidade de aprender e esmerilhar 0 pongué de todas as coisas; satisfazendo sempre 20s professores e habituando-se a ser a primeira entre as condiscipulas, que a respeitavam e adulavam, invejando-a. Saindo do colégio aos quinze anos, estreou- sena sociedade, primando pela graga e pela finura do seu espirto cultivado, cheio de originalidades, sedento de luz. Durante um ano abrilhantou as festas onde ia, excitou a admitagio dos homens e a célera das mulheres; muito jovem ainda, cingiu o dia- dema de incontestavel superioridade, que tao prejudicial se torna aquelas que o trazem. Um dia, teve a desdita de encontrar 0 ho- mem que o destino the reservava para marido e couviu essas palavras afetuosas e aparentemente sinceras, com que os homens iludem as mulheres. Procurou ele freqientar-lhe a casa, desper- tando pela sua assiduidade a desconfianca dos pais de Bela, os quais nfo lhe mostraram boa cara e fizeram sensatas admoestagdes & filha; mas esta persistiu em atendé-lo, com a cegueira do fatalis- mo e desposou-o trés anos mais tarde, apesar da viva oposigéo da fami. No fim de oito dias, j4 ela se arrependia, medindo a profundidade do abismo onde se des- penhara; suspirou, pds a0 ombro o pesado lenho 2 Lésbia do matriménio, abafando os queixumes que Ihe subiam a0s labios e devorando as lagrimas que the escaldavam as faces. Séo tio habilidosos os homens que apagam de todo nos coragdes que os amam os mais vee- mente afetos ‘Assim sucedeu entre Arabela e o marido: aagrosseria eo bestial ciime deste éltimo mataram a ternura da pobre moga, infundindo-the um ran- cor que aumentava de dia a dia Tinha zelos da beleza, da graga edo espitito da mulher, tentava mesmo amesquinhé-la, para que ela duvidasse do préprio merecimento e assim ro visse a distncia que os separava Initil esforgo! Quando Bela se deixava arrastar pelo entu- siasmo, falando com judiciosa elogigncia, empa- lidecia ele e zombava: — Es insuportdvel! uma preciosa ridicula! ‘Ao ouvir estas palavras pela primeira vez, chorou a misera de despeito e tédio; devendo a elevagio de seu espirto lisonjear a vaidade do marido, irritava-o apenas, 0 que demonstrava a pequenez desse néscio, que ela se envergonhava de haver escolhido para companheito. Para esquecer os pesares evafastarse intei- zamente desse homem que Ihe era antfpoda, estu- dou com afinco, auferindo magnifico resultado. Maria Benedita Bormann, a ‘Tornara-se-Ihe odiosa a casa, onde penetra- ra palpitante de emogio e coroada de flores de laranjera: fora ali, que a iluséo desaparecera para sempre, deixando-a ferida e aniquilada; era ali, nde tudo Ihe recordava o desmoronamento de sua vida; resolveu portanto morar com os pais, ccuja presenga amenizaria a agrura da sua existéncia. assara o pobre coraglo por todas as fases, em que amor se extingue: amargura, rancor ¢ enfim o tédio, que nada mais acende, nem apaga. Para ela no tinha a vida interesse algum, porque Ihe anuviavao presente a sombra daquele homem, fechando-lhe também o futuro e entor- pecendo-the a alma eo corpo. PB 0 OQ ceixando 0 toucados, entrou Bela na sala, conde se achavam alguns parentes ¢ amigos; causou alegria a sua apariclo, e todos, pressu- ros0s, apertaramlhe a nivea méozinha. Pouco depois; dirigitam-se a sala de jantar, tomando lugar & mesa; a alguma distancia do marido estava Bela, tendo a seu lado o Dr. Luiz Augusto, médico distinto, cujo merecimento se encobria por excessiva modéstia, 0 que muito 0 ptejudicava nesta sociedade, onde o'reclamo é tudo. Tinha ele quarenta e dois anos e uma dessas fisionomias serenas, que parecem refletir a calma dde impoluta consciéncia; o bondoso olhar, habi- tuado a encarar as dores do corpo, guardara como que um resquicio de compaixiio ¢ atrafa a con- fianga. Consolava 0 enfermo a sua voz pausada ¢ branda, repassada da simpética comiseragio do seu espitito forte e paciente, sempre disposto a alvidar os proprios pesares, ante 0 alheio pade~ #4 Lésbia cimento e ante o dever e a grandeza da sua pro- fissi. Softiatalvez, mas ninguém poderia precisar o género do seu sofrimento; tal era a discriglo e a reserva daquele caréter altivo e ao mesmo tem- po singelo, ‘Apreciava-o Bela, guiada pelo fino instinto feminil, que a levava a adivinhar naquele homem cientifico um coragio sensivel, aberto & piedade -capaz de compreender os desgostos que a pun- iam. Nio tendo o corpo humano mais segredos para Luiz Augusto, procurou ele também devassar a alma, esse agente ativssimo, intangivel e mis- terioso, contra 0 qual muitas vezes esbarrara no meio de sébios diagnésticos sobre o mal fisico. ‘Além da apreciago que a beleza ea instru- cio de Bela Ihe inspiravam, prezava-a ele como interessante estudo, em que a crescente curiosi- dade do psicologista era turbada pela compaixiio do homem, Via que a moga caminhava para uma dessas medonhas nevroses, em que a alma e 0 corpo se uunem revoltosos, produsindo terriveis explosbes, de onde surgem crimes. Foram servidos os primeitos pratos entre cesses didlogos frouxos que indicam voraz apetite, animando-se gradualmente a conversa, a medida Maria Benedita Bormann 6 que 0 estomago se satisfazia, aclarando as idgias e desenrolando as linguas. Cruzavam-se as pilhérias de um lado a ou- tro; ouvindo repetit a apreciagéo de um caipica sobre o melhor quadro de um dos nossos pintores, Bela acrescentou: — Creio bem no que me diz, apesar da ignorancia do apreciador, porque é inata na cria- tura a admiragZo pelo belo. marido, que néo perdia uma s6 de suas palavras, perguntou-the com revoltante sarcasmo e visivel intengio de a rebaixar: — Em que romance leste esta frase? Empalideceram todos ¢ olharam para Bela. Corando de leve, agitadas as marinas, cer- rou a meio as pélpebras e, soabrindo os labios nesse riso nervoso com que as mulheres escarne- cem, respondeu: — Foi nos Grandes néscios,eapftulo Xi, pé- gina 350. Mordeu 0 matido o bigode, teve fmpetos de estrangulé-la e riu convulso como riso bilioso dos verdugos. Sorriu Bela para seus pais, que conserva- vam 0 sobrolho carregado, e, para os aquietar, Ihes disse: — Sinto devorador apetite! Compreendendo Luis Augusto a dolorosa 46 Lésbia dissimulagio da moga, experimentou iresistivel desejo de quebrar uma bengala nas costas daquele marido-lacaio. Em breve todos se ergueram da mesa, to mados de certo enleio e confusio; aproximou-se de Bela a prima Joana, uma refinada intrigante, invejosa, seril, eapaz de alterar a paz do préprio céu, se de hé muito, a entrada desse recinto néo Ihe estivesse vedada, e com vor meliflua, disse: —Pobre Bela! ni facas caso daquele bruto! Conhecendo-a de longa data, in a moga ante o fingido consolo, mas reprimindo- se, replicou secamente: — Siio-me de todo indiferentes — ele € seus partidarios! E deu-the costas, ditigindo-se ao saléo. Joana fez logo uma sdbia evolucéo para se aproximar do marido de Bela, e carinhosa Ihe murmurou: — Primo, nio se incomode; Bela gosta mui- tode mostrar espirito, mas isso nada tem de mau! Ainda encolerizado, olhou-a de soslaio 0 srosseirdo, mas afisionomia da megera mostrava tamanha candura que ele caiu no lago, dizendo: — Sio insuportaveis as mulheres preten- siosas! —O que quer? o primo casou com moga bonita ¢essas rosas tém muitos espinhos! For que Maria Benedita Bormann a ‘nfo procurou alguma menos sedutora e mais sen- sata! acrescentou, ainda despeitada, por ele haver outtora rejeitado as filhas que ela Ihe oferecera de mil modos. — Oral senhoral agora é tarde demais para pensar nisso! objetou ele, deixando-a na sala de jantar. Vendo-se sozinha, sem poder alimentar a perversidade, correu a harpia a0 salfio, onde todos se achavam, procurando ela manter a intriga sur- da que sabia urdir com extrema pericia, envene- nando antigas e devotadas amizades or vezes, haviam descoberto a duplicidade da malvada, cujas faces tinham perdido a facul- dade de encubescer, e que prosseguia sempre nas imesmas baixezas, cumprindo o seu miserdvel fa- détio, sem sequer notar que a desgraca lhe entra- vva em casa por todos os lados. Mais tarde, ouvindo distraida uma valsa de Chopin, apoiava-se Bela & sacada, quando Luiz Augusto veio despedit-se — Ja vai, doutor? inquiriu ela. —Tenho que ver um doente; até amanha. Mas... como... std gelada! 6 o fio nervoso! excla- mou ele, a0 apertar-lhe a méo. —Un dia, ainda a sented mais fia, porém, enttio, j4 no terfo os nervos nenhuma ago sobre tim! replicou ela amargamente oa — Que pensamentos slo esses! hé de viver muito tempo! — Para qué?... As vezes, apraz-me a idéia dda morte: seria um consolo!.. Se este viver de- vvesse durar sempre, nao sei o que faria! — Acalme-se Bela! seus pais, que a ado- ram! — E verdadel... mas, a quem direi o que sinto, meu amigo, a nao ser ao senhor? —Resignagéo e jurzo! disse o médico, aper- tando-the a miocom afeto e retirando-se comovido. eb, m ses depois, conversava Bela com os pais Ol Crsciate jantar, quando apareceu Arnal- do, rapaa de dezesseis anos, filho da prima Joana, de cujo espirito de intriga era digno e natural herdeito; em tio tenta idade jé tinha sido estu- dante de farmécia, caixeiro e conhecera mil in- dastrias, Logo de chegada contou a Bela mais uma ‘vez 0s boatos que a seu respeito corriam, ¢ referiu novas balelas que acentuavam no piiblico a con- viegdo de ser ela adesonra eo algor daquele meigo « imaculado cordeiro; empalideceu Bela, assustan- dlo aos pais, que a amparavam, admoestando Ar- naldo com severidade. De stibito, sorriu a moca nervosamente, & ‘como que tomando uma resolugao suprema, bal- bucio — Ora! ha males que vém para hem! Nesse momento preciso, entrava o marido; ergueu-se ela impetuosa, fulminanda-o com 0 olhar colérico e bradando: so Lésbia — Saia desta casa para sempre! Até hoje, tudo suportei estupidamente, por vos precon- ceitos; mas, que tiveram e tém a indignidade de me acusar, acabou-se, é inGtil o meu sacrfi- cio!... Saibam todos que fui desgracadissima, e que doravante no o quero ser! ‘Ao principio atGnito, ao depois vido e es- pumando, avangou o marido para ela; interpbs se solene o sogro e, indicando a porta, trovejou: — Saial e esquega até o nosso nome! Eu previa esta desgraga, quando me opus a téo de- sastrado casamento, porém Bela teimou e eis 0 resultado! Minha filha no careceré do senhor; felizmente ainda vivo e sei trabalhar! (O marido de Bela, néo estando preparado para esta cena extrema, enfiou, emudecendo al- guns instantes. Afinal, tomou o chapéu num arte batamento desvairado e deixou aquela casa para sempre, voeiferando pela escada em despejo de injarias vis ¢ ameagas de vinganga. Descrever a tristeza que se seguiu no lar de Bela 6 ocioso. Nos primeiros dias, s6 se viam aisemblantes anuviados, mudeze solidi. Afinal, os pais de Bela foram os primeiros a experimentar anecessidade de teagir,recebendo visitas e levan- do a filha a todos os pontos em que se pudesse distrait. Em breve procurou ela a sociedade e 0 bu- Maria Benedita Bormann 51 licio das festas, aspirando largamente @ idéia da sua liberdade e da eterna auséncia do antipatico semblante, que lhe tocara por sorte na aventurosa loteria do matriménio. Passou algum tempo tranqiila, tendo a'al- ma a suprema quietagio dos grandes desertos, onde a vista se estende desassombrada, refle- tindo-the a rosada face a serenidade do espirito ea calma das noites bem dormidas ¢ isentas de pesadelos. Chegou Luiz Augusto a afagar a esperanca de vé-la livre da tremenda nevrose que tanto 0 amedrontara; sorra satiseito, vendo-a passar os dias com a mesma serenidade de fisionomia, sem indicios assustadores, Ta Bela a toda parte, sendo cortejada como todas as mulheres bonitas; indiferente escutava as blandicias de uns e de outros, dando aquelas sensaborias 0 apoucado valor que elas devem ter. Ouvir galanteios mais ou menos estipidos ou picantes era uma imposigo que ela suportava, do mesmo modo que se sujeitava Bs variantes da moda, ora alargando, ora apertando os vestidos; aumentando ou diminuindo os chapéus;alteando ou baixando as botinas. 3 Lésbia ‘Uma noite, em um baile, depois da vals sentiu indizivel tédio daqueles semblantes banais que Ihe sorriam no fim de todas as frases; retraiu-se dolorosamente 0 coraglo vazio, revoltando-se com a inagdo em que permanecia; nao compre- cendeu a misera que estava em uma fase perigosa ‘eque um incidente qualquer poderia transformar aquela apatia em efervescéncia. ‘Adoravel, no longo vestido de seda cor de opala, que the descobria 0 colo e os bracos de admirdvel carnagio, refugiou-se em uma saleta, sentando-se no diva, dando costas & porta, ven- do-se refletida nos espelhos que a cercavam. Apoiando a cabega ao espaldar, perdeu 0 olhar no espaco, em cismas flutuantes, retragando mil imagens, ora confusas como em molesto s0- rho, ora vivas,palpitantes, fortalecidas pelo fogo de sua fértil imaginacSo. As vezes, servia-lhe de ponto de partida a cena comovente de um romance; inconsciente se associava aqueles personagens fantésticos,c ando novos lances e novo desenlace ao que lera Agitava-se 0 corago, acelerava-se 0 san- gue nas artérias, revivendo ela naquelas exis- téncias ficticias, cheias de febre e delirio, onde a alma se expandia no sofrimento e na luta Soabriu os lébios, aspirou largamente, pa- ‘Maria Benedita Bormann 33 recendo-the que uma emanagio ardente Ihe en- chia os pulmées, vivficando-os; meneou a for- mosa cabeca, murmurando — Que loucura! invento tanta coisa e apa xono-me pelo imaginatio!... Seria capae de fazer um romance, de eriar para outrem o destino que me quadraria! Calou-se, caindo em novas divagacées, quando sentiu no ombro 0 contato de uns labios vividos, que the causaram sensagio de fetto em brasa. Ruborizada de pejo ¢ indignacéo, ergueu- se, ptocurando o insolente que a tanto ousara; empalideceu, deparando com o homem elegante que se conservava de pé, com as mics cruzadas sobre o claque, tendo os olhos baixos — Senhor!...gritou ela, trémula —Perdoe-mel... balbuciou ele; e, avangan- do um passo, com a vor abafada eo olhar amei- ¢gado por carinhosos receios, acrescentou — A minha insensatez deve demonstrat- Ihe a impetuosidade do que sintol.. Se néo me pode absolver, no me repila, a0 menos; ouga- me! Deixou-se Bela cair no diva, paralisada pela emogio, cheia de assombro, quase presa a alma por aquele homem, a quem mal conhecia. Causando-Ihe indiaiveis temores, fazendo- sa Lésbia the compreender toda a gravidade do fulminante choque que a abalava, perpassou-lhe pela mente a lembranga dessas impetuosas e sGbitas paixses, que avassalam na simples troca de um olhar. Sentiu a mfsera que era esse 0 ente que a fascinaria com o fatal prestigio do amor, e, xé- mula, ansiava ouvir as suas palavras, sem a mf- nima idéia de resisténcia, de antemio vencida e subjugada. Sentou-se ele a seu lado, pélido, dizendo ‘em voz sumida e ardente: —Compreende a atragio do ima e o arras- tamento magnético.. pois bem, & 0 que eu sin- tol. Pratica de sociedade, receio do ridfeulo, tu- dose apagou, tudo desapareceu com a sua presen- al. Vendo-a s6 nesta sala, impeliu-me o corpo a avides dos labios e beijei-a, como me ajoelharia ‘seus pés, levado pela intima idolatria.. Perdoe- mel... matam. a razo os grandes sentimentos, rompendo conveniéncias sociais e tomando o ho- ‘mem ctiangal... Se soubesse as lutas que hei tido; os desalentos que me prostram e 0 desespero que as veres me enlouquecel... Se é verdade que nada posso esperar da sua compaixio, nem mesmo um pouco de estima, por Deus, néo me prive ao me- nos de vé-la! sim? promete? — Oh! deixe-me s6, pego-lhe... nfo lhe poss... nem quero responder neste momentol... ‘Maria Beneita Bormann 55 balbuciou Bela, alta e simulando todavia altiven. Despediuse ele, cobrindo de beijos arden: tes a mo que ela maquinalmente Ihe estendera Se a eriatura tivesse o dom da presciéncia poderia assim fugir a tempo de mil desvencuras; em tal caso, procuraria Bela sai do baie, desapa- receria para sempre da Corte, a fim de nunca mais encontrar aquele homem que acabava de lhe con- fessar tio veemente afeto. GB v hamava-se esse mogo Sérgio de Abreu, formara-se em diteito, porém, nem seguira a magistratura, nem advogava; embrenhara-se pelas tortuosfssimas sendas polticas, procurando seguir as pegadas do pai que ocupara eminente posiglo social. Era elegante, inteligente, vaidoso, fazendo das mulheres uma idéia errénea e pouco lison- jeira, s6 porque algumas o haviam amado até a Joucura, tomando ele em conta de leviandade e impudor todos aqueles excessos de abnegacéo. Tomava-se perigoso, nio tanto pelos seus atrativos, como pela quase indiferenga que sentia junto as suas conquistas, as quais apenas lhe sa- tisfaziam o orgulho, sem The encherem o coragio egoista, interesseiro, metédico, medindo os seus carinhos, tendo o segredo de tomar-se desejado € nunca aborrecido, CChegara da Europa, havia pouco, impres- sionando-se vivamente pela beleza de Bela; de- mais, soubera que ninguém poderia gabar-se de sa té-la possufdo, incitando-o essa circunstancia a tentar to arriscada empresa. Pertencia a falange desses estréinas para quem as dificuldades aumentam o valor do suces- 0; mais se coloriu no seu espirito a imagem real- mente formosa da moga, em vista dos obstéculos que teria de superar para chegar a ela. Em uma reunifo foi ele apresentado a Bela, podendo adivinhar nessa palestra com que se in tercala a contradanga, a finura daquele esplcito delicado, insinuante, ligeiramente sarcéstico, que to bem se aliava & melodia da voz grave e con- traltina, Prenderam-no aquela mulher, tao diferente das outrs, tio nica, um vivo interesse, uma sede pelo desconhecido e uma inconsciente elevacio alma, julgando-se ele deveras apaixonado, coisa que muito o surpreendeu, desgostando-o de al- gum modo TTemia o egofsta o império de uma outra vontade sobre seu esptito, sempre ftio e cal- culista, mesclando-se-lhe um vago sentimento derrsisténcia, uma quase averso ao encanto des- sa linda criatura, que Ihe agitava o sangue, Dera-lhe precoce experiéncia o atrito do ‘mundo: sabia que todas as mulheres mais ou me- nos softem da nevrose romantica, consistindo 0 grande meio de prendé-las em ferit-lhes viva- Maria Benedia Bormann 59 mente a imaginagio. Mas, se em geral, era esse um meio eficaz de alcangar vitéria, ante o poderoso espirito de Bela seria necessério empregar outros expedientes E assim o compreendeu Sérgio, passando as noites atribulado, de mau humor, elevando e derrubando castelos, alternativamente rejeitando e aceitando milhares de ardis e de pérfidas com- binagoes. Decorreram alguns meses nessas indeci- sées, até a noite em que a lobrigou pensativa, Tonge de todas as vistas, sob a funesta influéncia das cismas doentias a que era sujeita Sentindo ele uma onda de sangue invadie- Ihe o cérebro, ecalculando que As-veres a ousadia ea violéncia obtém no amor grandes resultados, resolveu utilizat-se dessa extremidade, confiando também na estrela dos aventureitos;¢, pois, cor- reu moga, beijou-the a nevada espidua, pélido de ansiedade, aguardando a sua sentenca. Ao vé-lo, sentira a misera a fascinagio do abismo, néo tendo forgas para recuar, nem para expulsi-lo de sua presenga. ‘Achavaco insolente a sua razéo vacilante, mas absolviam-no a vaidade mulherl e 0 despon- tar de veemente afeto, tomando a ousadia pelo inresistivel impulso de voraz paixio. Artista emérito, compreendeu Sérgio o que oO oo Lesbia ela experimentava e exultou de prazer, saborean- do de antemio todas as delicias de préximo triun fo; mas, desde aquele momento baixara Bela em seu conceito, porque se nivelara as outras mulhe- res e, humanizando-se, perdera todo o prestigio. Ob! se the fosse dado adivinhar 0 que ele pensava a seu respeito,talvez ainda pudesse fugir, aguilhoada pelo orgulho e-pelo desprezo! Depois de ouvi-lo,ficara na saleta, pélida, tremula, sentindo no seio 0 embate de mil sent mentos contrétios, que se chocavam, esfacelan- do-se uns aos outros, predominando por fim 0 amor, despido de todas os escriipulos. — Meu Deus! eu 0 amo! balbuciow ela. ‘Abateu-lhe o semblante infinda tristeza, enchendo-lhe a alma, isolando-a no meio do bul cio; impressionou-a dolorosamente @ misica, a ponto de fazé-la chorat. E dizem que 0 amor é a suprema ventura! Um sentimento to pungente que desabro- cha orvalhado de lagrimas, extinguindo-se muitas vezes na agrura do 6dio ou no gelo da indiferenca! Fatigada, receando encontrar a Sérgio, re- tirou-se, pretextando ligeiro incémodo; entrou em casa silenciosa epresa A fatal imagem daquele hhomem, que desejava apenas a sua posse PB v OQ depois, comegou o Dr. Luiz Augusto a observar a atitude da moga, para devassar- Ihe o segredo que a minava, abatendo-he o sem- blante, provocando-lhe febris movimentos e mér- bidas prostracées. Trairam de Bela o afeto os olhos cativos, ‘quando se fitaram em Sérgio. Fino conhecedor de homens, lastimou-a 0 médico pela desastrada preferéncia concedida a0 dandy, vaidoso e vazio de sentimentos. Atravessou ela todas as lutas do pudor ¢ da conscigneia, todos esses recatados esertipulos alma e até as revoltas do orgulho; mas crescia a paixio incitada pela desesperada resisténcia da misera criatura, sendo afinal vencida a virtude pelo amor. Ignorando a sinistra verdade destas pala- vias — o abismo atraio abismo, despenhou-se na. culpa, que se assemelha a ingreme desfiladeiro cheio de ima, onde o crime atraio crime em fatal vertigem e sem descanso. a Lesbia Darou um ano aquela agonia: morderam- Ihe o seio em verenosas dentadas, como siilantes serpentes, a termura, a dignidade e o cijme, dei- xando-a desalentada, incapae de repeliro homem de cuja fdelidade duvidava, e também sem forgas de conhecer a fando toda a sua desventura Desesperada, receando os desalentos da amargura, teimou em conservar nos olhos lacr ‘mowos a venda que tenuemente Ihe encobria as perfidias do amante. As suas queixas, opés Sérgio ao principio férvidos protestos; pouco a pouco, porém, irita- ram-no aquelas Kgrimas, nfo dissimulando ele ligeio enfado; entéo, sufocou a moga os acerbos Jamentos, manifestando a humilhante cobardia dos grandes afetos, que tudo suportam, menos a idéia de perder o coracfo, que, no entanto, jé de todo os abandonara! Hé no mundo criaturas semelhantes aos abutres, que cevam a sua voracidade aos gritos da vitima palpitante e despedacada, Un dia encontrou Bela um desses monstros, nna pessoa de um desalmado que a cortejava havia algum tempo, com pertindciae ridfculos manejos. Concebeu esse homiem por ela uma dessas ‘Mania Benita Bermann 8 paixSes impetuosas, que arrastam a todos os des- varios; adivinhando a ligagiio da moca e de Sér- gio, espreitou o amante, a fim de vingar-se ow talver de se aproximar de Bela Serviu plenamente a deslealdade de Sérgio a animosidade do espio, que em breve The co- nheceu o vives, acompanhando-o nas orgas. Mais encorajado, fez 0 miserdvel & moga uma declaragdo em regra, a que ela opds desde nnhoso siléncio, dando-lhe costas;irritou-se ele, dizendo: — Sea senhora soubesse com quem Sérgio 4 atraigoa, talvez nfio me desprezasse tanto! ‘$6 as primeiras palavras ouviu Bela, sem mesmo notar a insoléncia das iltimas; empalide- ceu, bradando convulsa: —O senhor é um miserdvel! para que ca- Junie? — Posso provar 0 que assevero! disse ele. —Sequiser, hoje a noite, poders veriicar se minto! Apoiou-se ela & cadeira, dizendo fremente: — Pois bem... quero ver! —A meia noite, esperé-la-ei a porta do Aragjo, no Campo da Aclamagéo. Depois da safda desse vilio, caiu Bela no diva, chorando a deslealdade do homem tio ter- namente amado, e compreendendo 6 entio a insensatez do passo que tencionava dar; porém a Lésbia jd era tarde para recuar, ¢ demais, preferia todo © horror da decepgio as anglstias da incerteza A hora aprazada, embucada em denso véw negro, apeouse i porta, onde o delator lhe tomou a mao gelada, conduzindo-a a uma alcova com portas envidragadas, recebendo a claridade do préximo salio, iluminado, ruidoso, cheio de con- vivas excitados pelo estourar das rolhas. A tremer, ergueu Bela a ponta da cortina, mas o olhar anuviado nada péde perceber; cerrou. ela as palpebras, indignando-se contra a prépria fraqueza e olhou de novo. A cabeceira, lé estava Sérgio, belo de afoi- tamento, enrubescido pelo calor e pelos efeitos da ceia, falando baixinho a uma loira roliga, de labios pintados, e sorrindo-lhe de tal modo que 6 rubor tingiu as pilidas faces de Bela. Coma seguranga e a minuciosidade que as ‘mulheres possuem para apanhar em um relance 6s encantos e os defeitos das rivais, mirou ela a cortesi, distinguida pelo amante e sentiu-se hu- milhada Nada valia a outra, ¢ nem mesmo na esté- tica tinha ele uma desculpa Sentiu Bela no coracao uma espécie de rup- tura e comprimiu o dorido seio com as maos convulsas; saiu-Ihe da garganta medonho soluco, experimentando ela essa dor ostensiva, quase im- Maria Benedita Borman. 65 pudica, que necessita da piedade universal e & capaz de estorcer-se em pungente volipia aos apupos da multidio desenfreada ‘Tem duas fases o extremo softimento: @ do recato em que o paciente sort, ocultando o pade- cer, encarando a curiosidade como um sacri € ado cinismo, em que se alardeia todo o fel tra- gado, todas as lagrimas, todos os solugos, com sortiso c6ustico, eivado da acidez de mil pesares. Deu ela volta ao trinco da porta e ia entrar na sala com andar de espectro, em desalinho cemergindo-Ihe a formosa cabega des rendas som- brias do véu que Ihe calta sobre os ombros, des- tacando-se das roupas em marmérea brancura o livido semblance. As risadas das Cortesis envergonharam-na. Tragou o véu espesso, e nele se ocultando, apre- sentou-se de pé a porta, como uma visio funesta, impondo siléncio aquelas bocas avinhadas, sur- preendendo aqueles espiritos conturbados pelo 4lcool; caminhou a custo e um minuto apoiou-se a cadeira fronteira a Sérgio, cravando-lhe o olhar ardente, febril, cheio de censuras e maldigées. TTendo-a perfeitamente reconhecido, ficou provadas, aceitam-nas, porém, de boamente os romancistas, sobretudo quando dimanam da mu- ther, origem de todo o encanto e de todo 0 pres gio. ee Tyna Alberto doze anos, quando the che- gou a0 ouvido o nome de Lésbia, ora elevado 3s havens; ora vilipendiado pela inveja ¢ pelo es- tapido preconceito da mediocridade; entusiasta, aferrado as proprias idéias, antes disposto & be- rnevoléncia do que & critica, como acontece em getal 2 todas as crlancas, quis © menino julgar por si mesmo a escrtora que Ihe diziam jovem © bela, Emprestou-The um colega um dos romances de Lésbias devorou-o ele ds ocultas, experimen tando violentas emogées que Ihe convulsionavam © organismo, dissipando as névoas da infantil Jmaginacio, abrindo-Ihe novos horizontes que 0 fuscavam, cortando-lhe a respiragéo, sufocan- ddo-o em estranhas sensagSes demasiadamente fortes para a sua idade e inexperiéncia. Pélido, ofegante, fechava o livro, cetrava as pélpebra, procurando adivinhar aquela mulher divina, cujos escritos Ihe deixavam na alma um Maria Benedita Bormann, 1m trago incandescente; criava-a, ora loira, suave, ‘meiga; ora morena, de olhar sombrio; castanha, alva, r6sea; j& ruiva, com lébios rubros e olhos esmeraldinos. E todas essas imagens eram belas, porém ele sucessivamente as rejeitava, achando-as pou- co dignas de retratarem a desconhecida criatura que tanto o conturbava, povoando-lhe os sonhos de menino ¢ matizando-Ihe o desabrochar dos seus devaneios de rapaz. Dali em diante, estudou com mais fervor, sorrindo a uma idéia que Ihe atravessara a mente ‘e que consistia no seguro meio de obter os livros de Lésbia e de lé-los & vontade; conseguiu tirar distingdo nos exames e pediu em fntimo sobressal- to como recompensa todas as obras da escritora Com suas economias comprou uma estan- tezinha catita, colocou-a pouco distante do leito e encheu-a dos amados livros, novinhos, com 0 especial perfume das folhas viegens, iemimente conchegados, luzidios, em vistoso mosaico, onde 0s titulos brilhavam em letras douradas. A noite, antes de apagar a vela, seu olhar fatigado mirava os cambiantes da estante e a0 despertar sonolento, era ainda ela a sua primeira preocupagio; se a qualquer hora ouvisse o brado de fogo procuraria ele unicamente salvar as obras de Lésbia, abandonando os demais objetos que, ea ro entanto, também Ihe eram catos. “Tanto indagou, que descobriu a morada da distinta mulher, mas nfo logrou vé-la, o que de~ veras o desconcertava; e chegou a sua mé sorte a0 ponto de nio poder divisé-la numa ocasiio fem que passava de carro, junto a um grupo que 2 designow & sua viva curiosidade, e, entretanto, voltara-se ele com toda a rapides e abrira desme~ didamente os olhos, sentindo deslumbramentos que o cegavam e ficando-lhe em torno tudo escu~ 10 e vatio. Quando para a Europa partiu Lésbia, tinha cle quinze anos; pouco depois, concluindo os pre~ patatérios, matriculou-se na faculdade de S. Pau- Jo, de onde voltava logo que terminavam os exa- mes, dando étimas contas de si, portando-se bem, nio abusando da benevolencia paterna e conten- tando-se com médica mesada. ‘Nas férias do quarto ano, veio ele encontrar a priminha Heloisa esbelta, adorével, no verdor das quinze primaveras, em que a mulher tanto se assemelha 8 flor em botio; ainda néo espalha e ostenta todo o perfume e brilho, porém jé encanta © prende. Mirando-a, sentiu Alberto tomar diverso caréter a ternura fraternal que até entio os unira, cexperimentando intimo sobressalto ao fitar aque- les olhos que o evitavam, o leve rubor que tingia ‘Maria Benedita Bormann 15 as faces da mocinha ea agitagfo do seo vinginal soerguendo 0 corpete elegante e singelo. Seria isso amor ou a irresstveleindefinida atragio de um sexo pelo outro? ‘Quem o podetia saber? Tlve: ambas as coi sas ou uma s6 delas, que o tempo apagaria sem deixar vestgi, ou marcaraindelevelmente para sempre, __Noentant, comegam eses dos resultados to dessemelhantes com os mesmos alvorogos ¢ com os mesmos receios, terminando de modo tao diverso! Em sincera expansto juraram as duas cran- gas eterno afeto, juntas entetecendo as alegrias do futuro com suaves e gents devaneios, borda- dos da si honestiade de suas almas crentes ¢ boas Volvendo a S. Paulo, a fim de terminar 0 curs, levava Alberto no seio uma centelha dessa forca indémita que tudo arrosta, sem conhecer obstéculos nem destnimos; & que penetrara 0 amor no seu esptito ordeitoe severo cumpridor dos deveres, poetizando-Ihe as aspragées e dou- tanh ore abi de sabi plo a Voltando ao Rio, depois de formado, pai e filho abragaram-se comovidos, em grata expanséo, feuindo o jdbilo de se havetem teciprocamente Lesbia indenizado. ‘Aos vinte e um anos, entrou Alberto na vida, seguindo a advocacta & sombra de um dis- tinto jurisconsulto, que o estimava deveras pelas suas aptiddes e excelentes qualidades. Cheio de promessas mostrava-se © porvit aos enamorados primos, que se contentavam com ‘2 métua ternura do presente, confiados um no outro, sem pressa pelo casamento que Thes apare- cia como a doce realizagao de seus caros sonhos ‘endo como a cadeia que deveria prender-lhes @ sorte, evitando-lhes 0 perjirio. Dividia Alberto 0 tempo entre o trabalho algumas diversGes pr6prias da sua idade, regres ‘ano 20 lar com a mesma placidez com que saira, sem que uma influéncia externa enublasse a ima gem de Helo(sa que Ihe iluminava a vida. Enno dia seguinte, sem que elaosolicitasse, impelido pelo afeto, contavaclhe o que via e fize- ‘a, nada omitindo, feliz por trazé-la ao corrente do seu proceder, recebendo em troca o limpido olhar da crianga que 0 adorava. Completara Alberto vinte etrés anos ¢ He loisa dezoito; esperariam ainda mais dois anos € centdo realizariam o desejado enlace, que os uniria a face de Deus ¢ dos homens, na vida ena morte, nessa eternidade humana que se traduz pot — sempre, caminhando a sorrit de méos dadas, sem ‘Maria Benedlita Bormann 1 temor dos cabelos brancos, nem do isolamento da velhice. Por esse tempo, tendo Lésbia regressado da Europa, o entusiasmo que ela infundita em Alber- to menino reapareceu vivaz no maneebo impres- navel e ardente; Heloisa, que se identificara com os gostos e predilegées do primo, também sentiu agugar-se-Ihe a curiosidade, ¢ desejou co- nhecer a escritora Logo que Alberto entrava em casa, pergun- tavarlhe a donzela se havia visto Lésbia, receben- do sempre resposta negativa, até que um dia, a0 almogo, radiante, como que transfigurado, rela- tou-the 0 rapaz 0 almejado encontro que se efe- tuara na véspera, ‘Tendo ido a uma reuni ouviu de repente pronunciar o nome dé Lésbia; voltou-se vivamen- te e deparou com a formosa criatura, que excedia a tudo quanto ele havia imaginado; surpreso, pre~ gado a0 assoalho, sem poder desviar o olhar da sedutora aparic, experimentou singular emo- Gio: um aperto de coragio seguido de inconcebt- vel tristeza e de profundo pesar por se julgar tio novo ainda, tao destituldo de merecimentos, tio nulo para acercar-se dela. No meio daquela fascinagéo em que a alma tomava proporgées absorventes, ripida passou- the pela mente a imagem de Heloise, provocando- :, eae Ihe febril movimento de impaciéncia e quicé de desagrado, de onde se originou 0 remorso. ‘Atemorizou-se-lhe mesino a consciéncia quando, 20 comparar involuntariamente as duas rmogas, deu a primazia & Lésbia, mas serenou-se uum pouco, murmurando: — Ora! Helofsa.é um anjo de meiguice © cesta... € um set & parte, que nfo admite compara- {ges Oh! como 6 bela... deestranhaformosura! “Absorto, conservou-se toda anoite & pouca distincia de Lésbia, magneticamente atrafdo; re- titou-se ao vé-la partir e entrou em casa contra feito, inquieto, tentando bani aquela encantado- ra alucinagao e procurando prender-se & noiva, que the inspirava infinda piedade. Nio pode dormir; fumou charuto sobre charuto, passeando pelo aposento, irsitado pela perseguigio de que era vitima; afinal, parando fem frente & estante das obras de Lésbia, tirou tum liveo ao acaso ¢ leu-o com férvida atengio, procurando na escritora um reflexo da mulher Quando a aurora lhe clareou 0 quarto, fati- gado, vencido pela etérea visio, caiu sobre o leito « teve um breve sono agitado por enganosos 50 ‘nhos, acordando sob o violento influxo da mesma idéia com que sucumbira ao cansago. ‘Nio notou Helotsa, a cindida crianga, 0 febril entusiasmo de Alberto, relatando-lhe o ‘Maria Benedta Bormann encontro da véspera; ouvia-o, admirando-lhe 0 brilho do olhar e questionando-o miudamente sobre a escritora, sem adivinhar que daquele en- canto sairia a sua desdita. — E bonita? clara ou morena? alta ou bai- xal como estava vestida? — E formosissima, alva, com uns olhos sombrios, profundos, de incomodativa expresso; a estatura é mediana. Quanto a0 vestido, néo sei, nem a forma, nem a cor. — O que dizes? olhaste tanto para ela e ignoras a cor do seu vestido! Enfim, os homens ppouca tengo prestam a essas minudéncias. Mas a0 menos, com quem se parece ela; vé entre as nossas conhecidas. — Oh! com nenhuma! atalhou ele, com leve desdém! — Assemelha-se a alguma das estétuas ou dos quadros que tenhamos contemplado? insistiu a mocinha. — Quall... ela 6 ela! Quando a vires, divas se tenho ou no razio! E dese dia em diante, como incautafalena, andou Alberto sempre em busca da luminosa cria- tua, perdendo a trangiilidade dalma, a quicta- 0 do espirito ea uniformidade do caréter;irita- varse por qualquer coisa, sem mesmo atender a Heloisa, que o desconhecia, sofrendo em siléncio. 180 Lésbia Por fim resolveu-se a afrontar o perigos quis ser aptesentado a Lésbia, falou-lhe, bebeu-the as palavras, embriagou-se ao som daquela voz grave ee musicale viu-se perdido, preso, incapaz de lutar, convencido de que aquela obsessdo incessante cra fatal, pois, desde longo tempo, antes mesmo de conhece-la,jé ela influfa em sua vida Seguiu-a como a sombra a0 corpo, até que um gentil amuo provou-lhe que era importuno, pelo que tratou de ocultar-se, sem cessar de acompanhé-la,traindo-lhe, porém, a perseve- ranca o incidente do carro ¢ 0 seu rapido auxtlio, impedindo um fracasso, como jé referimos. E, enquanto revoltava-se Lésbia a queré- Joe a recear vir a amé-lo, encerrava-se Alberto em seus aposentos, ébrio de emogio, aspirando avidamente o seu fato, impregnado do perfume da mulher amada, tio sui, to penetrante, vola- tilizando-se no espago ¢ encadeando a alma com invistveis liames. xx esde esse momento de répido contato fica- ram moralmente ligados, sendo persegui- dos pela métua lembranca que em vao tentavam esquecer; a todas as horas, a mesma imagem, 0 mesmo ser, em viva rotacéo, alucinando-Ihes 0 cérebro e enervando-thes o organismo. Procurou Lésbia amesquinhar Alberto, ne- gando-lhe toda e qualquer qualidade, se bem que mal o conhecesse, convencendo-se em pouco de que nio se pode analisar oente amado, nem repe- liro que fascina Abatida, mas ainda assim rebelde ao jugo que j4 a dominava, murmurou desolada: — Envelhece a cisma incessant... Neces- sariamente engendra uma idéia fixa a monomania € esta a loucura geral. © que possui esse rapaz para agitar-me tanto!!.. Nada, talvez!.. E, eu, que tudo conheci a quem tudo desencantou, cu, que havia suplantado todos os maus desejos, refugiando-me no afeto de Catulo, hei de voltar parvoamente as decepcées e aos dissabores de 182. uma paix que me levaré a tristes extremidades! E’que paixio? um desses invenciveis arastamen- tos, semelhantes linha matematica, partindo de tum ponto determinado e estendendo-se a0 infini- to! Uma paixéo medonha, monstruosa, eivada de insensater e de ridiculo, enfim, o horrendo amor ‘enil.. Sim, esa feia e degradante inflorescéncia da velhice, acre, mordente, envergonhada de si mesma, é 0 que experimento!.. Quarenta anos! idade cruel, em que se evolam os restos da moci- dade, dando passagem ao sombrio decrescimento da beleza ¢ da frescura!” E, ao entrar no ocas0, ‘com a vista jé enublada de névoas, por que ainda sinto 0 doentio ardor dos altimos raios do sol antes de obumbrar-se? Sersiesta, ao menos, a dit rma provacio da vida, a suptema angistia que ex- travasa d’alma?!... Oh! meu pobre Catulo, agora, s6 agora, compreendo a natureza do teu amor: constante, paciente, capaz de sacrificios ede imo- lar-se para facilitar a ventura daquele a quem se ‘mal... , eu, que repetia a todo o instante a frase de Chamfort — o amor é 0 contato de duas epi- dermes ea troca de duas fantasias! no entanto, cis-me escravizada a uma crianga que poderia ser meu filho!... E talvee um resultado da velhice esse extremo matemno, inato em todas as mulheres € ‘que se acentua com o volver dos anos! ‘Mas, sedutora e intima voz mostrava-lhe o indiatvel encanto de apoderar-se de um coracdo jovem que comega a desabrochar como flor sua ve, exalando perfumes ao primeito befjo do so E tio bom colhé-la nesse momento, aspits- Ja sofregamente, fan-la quase, langando-a exan- gue no caminho, onde o orvalho a reanimard em breve para deliciar outro viandante! E quanto orgulho de ser o mével da alegria «do pesar de outrem, de provocar beatific sorti- so ou amargurada ligrima, sem nenhum dizeito para exercer esse poder e sem temor de nenhuma forca repressival ‘Quanto gozo em submeter & nossa vontade © que nos rodeia, despertando sentimentos de amor, de davida, de receio e de esperanca Miserdvel ambicio humana! nio vés os destrogos produzidos por um momento de v4 sa- tisfagao?! Empanava sombria tristeza o olhar de Lésbia no meio desse cogitar que a torturava, ora febrici- tando-a em amorosos devaneios, ora abatendo-a com a lembranga de Catulo, que the dera dez anos de inalterével temnura e a quem devia com- pensar talvez pelo mais cruel abandono, ou pela reniincia desse incomensurével amor que a fizera coutra, desvendando the desconhecidos horizontes. Sentindo-se quase perdida, no sabendo mais para quem apelar, conspirou-se contra o mi- 84 Lésbia sero Catulo, exprobrando-o in petto por nao saber prendé-la, aliando assim a injustiga 2 ingratidio € a0 olvido, arrependendo-se incontinent da sua inighidade ¢ jurando tudo sacrificar lhe. ‘Agitavam-Ihe o cérebro mil idéias contra- dindrias, sucessivamente afagadas e repelidas: fugiria de Alberto, iria de muda para a Europa, ou trataria de olvidé-lo, o que nao seria imposst- vel, pois t@m-se visto coisas mais difices. Deixatia entio o formoso Brasil? a cara pé- tria onde tanto sofrera e lutara para aleangar um nome, ejustamente depois de conseguir esse desi- deratum? Néo! ficaria, evitando encontrar o man- cebo, procurando mesmo apresentar-Ihe alguma jovem que a banisse daquele coragao mével e im- pressiondvel, dando a outa o que nfo podia aceitar Longe de tejubilé-la, porém, causavaclhe essa desistencia sensagio cruciante, como se um ferro em brasa The queimasse as mais delicadas fibras, convulsionando-a como se se tratasse de um sacrilégio. Depois do incidente do carro, comegou Al- berto a freqiientar-lhe a casa, mas com toda a reserva, cerimonioso, nos dias em que ela recebia, preferindo vé-la em companhia de outros a afron- tar os perigos do téte-d-téte: era a timidez do verdadeito amor amplificada pela superioridade daquela que o inspirava. axIV proximando-se 0 aniversério natalfcio de Lésbia, induziu-a Catulo a dar um ban- quete, no palacete do Rio Comprido, expedindo convites aos representantes da imprensa, aos li- teratos, e a diversas famflias gradas; enquanto escrevia 0 amante os respectivos enderecos, con- trafram-se os labios da iluste mulher no indeft- nivel sortiso de que Byron possuta o segredo. Lembrava-se de que muitos escripulos, ‘muita inveja, muitos rancores fariam uma trégua Para sentat-se A sua mesa, sob o seu teto, esme- rilhando o seu luxo, esvaziando-the a adega, es- quecidos de que ela era essa mesma criatura que taxavam de imoral, porque tinha a coragem de seus atos, afrontando essa desprecivel e gangre- nada sociedade que perdoa todas as vilanias, des- de que se revistam de fingido decoro. E as mulheres, eméritas na dissimulaco, saberiam sorrit-lhe docemente, bajulando-a, apa- rentando atdente entusiasmo pelos seus méritos, que no podiam avaliar e que muitas vezes ha- 186 Lésbia viam tentado deprimir, classficando-os de pe~ dantismo. Tinha Lésbia tazio de sortir, porque no Rio de Janeiro, muitos protestos de ddio, muitas sus- ceptibilidades desaparecem ante uma boa mesa com os culindrios requintes franceses ou mesmo brasileros, entre dois pratos € algumas libagSes, embora temporariamente, confraternizam dois inimigos figadais. ‘Se nao fosse'ahipocrsia humana, ainda te~ rfamos outra great-attraction, cheia de cintilagbes deslumbrantes ¢ a que ninguém faltaria — reu- rides de maledicéncia, onde néo se poupassem as proprias cis, fazendo-se para isso retrospectos a0 passado. ‘Como por encanto, transformou-se a prin~ cipesca hubitagio de Léshia, convertendo-se os posentos do primeito andar em sales parao bai- Je;20 rés do chao, na grande sala do bilhar, abrin- do sobre imenso parque, puseram a mesa do jan- tat com cem talheres, onde a prata, os cristais € 1s flores cambiavam & matavilha. Ostentavam gragas, belezas ¢ ricos adornos encantadoras mulheres decotadas, sobressaindo vivamente dentre as esguias casacas que as ladea- ‘vam, espathando no ambiente, de envolta com o acucarado cheiro dos vinhos e das madtessilvas, fesse inebriante ¢ misterioso olor feminil, mais Maria Benedita Bormann capitoso que o champanhe e 0 lacrima-chrst Saudavam-se com amabilidade redatores antagonistas que se haviam descomposto na vés- pera, observando-se reciprocamente de soslaio, averse, em falta de melhor, apanhavam qualquer cacoete do adversro pare nove asunto de po- Distinguiamse os literatos purs-sang dos de segunda linhagem pela thaneza do verdadeiro merecimento, enquanto mostravam os iltimos afetada sobranceria, propria para embacar o vulgo. Atravessaram o espago brindes, discursos, sonetos, ramilhetes de retorica, vindo cair aos pés de Léshia, serena, adorével, recebendo-os ‘como seu sibilino sorriso de esfinge: estava acima de tudo aquilo e ainda assim haviam-the durante algum tempo sonegado as homenagens que Ihe cram devidas Assistia Alberto a0 jantar, softendo de mo- do horroroso; cada saudagao dirigida a Lésbia era uum dobre de finadios sobre as suas caras esperan- ‘gas: quem era ele? o que fzera para ousar fitar aguele astro? Sufocava-o a amargura, fazendo-o descrer de tudo ¢ amaldicoar a prépria juventude, que & 6 melhor dos dons outorgados a criatura; entte~ tanto, se the fosse dado adivinhas, como ficaria desvanecido! _ Lésbia 198 No meio daquele bulicio, daquelas mani- festag6es, daqueles tiunfos, principalmente a ele via Lésbia, orgulhando-se por Ihe aparecer em todo o esplendor da gloria € do renome. Mais tarde, mostrava-se nos magnificos sa- Joes a melhor sociedade da corte, exercendo as filhas de Eva o seu impétio, entre sorrsos e olha- res provocadores; porém, junto a Lésbia pouco valiam todas aquelas sereias de vinte anos. ‘Tratia ela longo vestido de surah violeta, patenteando-Ihe a fosca brancura dos bracos, en- volvendo-a em encantadora suavidade'e desta cando ainda mais o negror dos lindos cabelos, onde se aninhava uma rosa natural de leve nacarada. Nao conseguiiam as vestes encobrir seu cor- po de estétua e antes como que o desnudavam, amoldando-se aos graciosos contornos ¢tentado- ramente os desenhando. Ela, aviventada pelo fogo sagrado, sempre a voejar pelas regises do ideal, desprezara a banal lisonja que se prodigaliza as mulheres formosas ¢ esquecera-se de que era bela como uma deusa Que lhe importavam esses deleites que to- das as outras poderiam ter! Sucediam-se as dangas com animagio, ul- tiplicando-se Catulo, a fim de diminuir as fadigas da amante, contemplando-a de longe, achando-a resplandecente e murmurando Maria Benedita Bormann 189 ‘Que encanto se desprende hoje de Lés- bia! E uma verdadeia fulguragao!e esse britho me oprime o seio como funesto augario! $6 a paixdo dé & mulher essa irradiagao sublime! Lésbia no dangava; devin-se a todos os convidados, distbuta sortisose finezas, propor. cfonando aos outros ensejo de se divertitem ¢ reservando para si as canseras, que si partlhas da dona da casa; mas, apesar de tantoscuidades, rnd perdia Alberto de vista : Norando que ele enttara em um gabinete- Zinho transformado em buen-retro, li foi ter tam- bém, magneticamente atrafda; achava-se o man- cebo sentado no div, curvado para a frente, com os eotovelos sobre os joelhos e apertando a fronte nas mos, ‘Aproximando-se com felino encanto, in- auitu ela — Doutor, ¢ fadiga ou tédio? _ Sobressaltado, trémulo, ergueu ele viva- inente a cabega, mostrando o semblante orvalha- do de légrimas, dessasardentes lagrimas dos vnte anos, sas tio do fntimo que podem ser conside- radas como a esstncia do sentimento. E Lésbia, a psicologista, para quem a alma humana nio tinha segredos, adivinhou em um relanceo que experimentava ele papitante, sentou- se-the ao lado, inquitindo com vor abemolada 0 — Softe!! Como que vencido pela exuberdincia do que sentia, sacudiu ele a fronte com violéncia, cerrou as pilpebras, tendo os queixos presos, passando com certaittitagéo o lengo pelos olhos e balbu- ciando: — Sob pena de parecer ridiculo, porque a légrima amesquinha o homem, setei franco, pois ainda nfo aprendi a arte de dissimula!... Padego cruelmente, como ui maldito e todo o meu crime @.. amé-la, minka senhora!... Deve zombar do ingensato, porque fai o primeira a escarnecer de tim mesmo, sem nem assim conseguir apagd-la da mente... Eu, utva nulidade social, encontret- a um dia e fiquei fascinado!... Eis tudo; € bem pouco, mas é imensamente grande a soma dos meus tormentos, dos meus pesares e das minhas lutas!.. Sou temerstio, € certo, e, no entanto, parece-me to natural amé-la, que eu considero todos os homens seus escravos!... Perdoe-me tudo quanto hei dito, mas a sua inaleerivel bondade deu-me forgas para tanto dizer!.. Oh! se fosse sossivel odid-la, eu estaria salvol... pose Ouvirao Lésbiaavidamente, bebendo-The as palavras, absorvendlo pelos olhos, pelo ouvido ¢ pelo olfato aquelas reflexdes sentidas, aquelas temoges ainda tépidas, com o calor d’alma, que Ihe bafejavam 0 rosto de envolta com o hilito eat Maria Benedita Borman 191 febril daqueles labios frescos, vermelhos, com a tigides do péssego. Abalou-a violentamente um frémito juve- nil, injetando-the fogo nas veias, causando-lhe vertigens, renovando-Ihe adormecidas sensagées que de todo julgara mortas, Havia no coragdo misterioso volitar: era a revoada das passadas crengas, das primitivas ilu- ses, dessas preciosas jéias da mocidade, que se perdem aos poucos na estrada da vida; e todo aquele bando voltava ao ninho, sedento de con- chego, esquadrinhando os intersticios, procuran- do o preferido cantinho de outrora, com a cari- nnhosa saudade dos que voltam. Desaparecera 0 universo inteito, sumira- se 0 passado, nao existia o futuro ¢ toda a sua cexisténcia comecava naquele momento, junto a0 mancebo que the inoculava a sua mocidade, as suas esperancas ¢ os seus ardores. Eno meio da eélia melodia daquela confis- sto, soara uma nota discordante nesse apelo 20 6dio como meio de esquecé-la; quase aterroriza- da, bradouw inconsciente: — Oh! odiar-me! sem uma ofensa, a0 me- nos?! Isso seria injusto e incompatfvel com a sua pouca idade!... Odio! rancor! mais um travo de fel na minha vida tio dura, téo pesada! murmurou comovide. — Ouga-me, sejamos bons amigos ¢ wt Lésbia a intimidade despir-me-4 desse prestigio de es- ctitora que me afasta do comum das mulheres. lhe: comegou a minha mocidade em uma luta € terminou em um desencanto. Attibuiram-me defeitos que eu ndo tinha e negaram-me as quali- dades que eu possufa. Era muito sensfvel a qual- quer demonstragio de ternura, ofenderam-me mortalmente ¢ tornei-me vingativa. Nasci para amar 0 mundo inteiro, nfo me compreenderam, por isso aprendi a odiat. Nao querendo despender em vo 08 meus melhores sentimentos, guard 0s no fundo d’alma, onde morreram & mfngua de alimento. Conhecendo todos os embustes da so. ciedade e toda a perfidia humana, caf na fria € inerte desesperanga que mutila a criatura para toda e qualquer aspiragio. Morreu assim 0 que de mais puro havia em mim— o coragéo, mas a tudo resistiu 0 cézebro, sempre atrafdo pelo belo e galvanizado pelo entusiasmo! Impeliu-me o ins- tinto de conservagéo para as letras, apaixonei- ime pela literatura e dos destrogos de mim mesma sargiu Lésbia, criagio hibrida, filha do sarcasmo e do ceticismo, ora convulsionada pela gargalha- da do histtiéo, ora empalidecida e sombria como a face de Hamlet!.. Ndo me ame; eu sou uma forma de mulher inteiramente oca com 0 cérebro incandescente; uma estétua insensivel que se contempla, em quem nao se toca e que s6 vive Maria Beredita Bormann 193 pela idéial... Desgragado do que me amar!... Sera a tenra vitima, cheia de seiva e eu 0 sequioso vampiro a absorver-Ihe as doces quimeras d'alma, © vigor de animo, as alentadas esperancas, dei- xando-o exangue, cansado da vidal... Fujal es- queca-mel... A mocidade alvida facilmente, res sente-se da proximidade do berco, chora e ti ‘como a crianga! —Ficarei! disse o jovem. —Ontem, talvez pudesse fugit, jé agora é impossivel... Amé-la- ei, embora esse amor me custe a vida! Terminava a orquestra os iltimos acordes da valsa; de um fmpeto ergueu-se Lésbia, fitando- The os olhos sombrios,infinitos e murmurando com triste sortiso — Desvanecer-se-4 aos poucos a sua fanta- sia, como morrem estas éltimas notas! E saiu ligeira, voltando 20 saléo, deparando com Catulo que a mirou com profunda temnura: aquele olhar de cativo que a deleitava, estava ela habituada, mas nesse momento causou-lhe vivo pesai, como que um ressaibo de remors0, ¢, impregnada ainda da frescura de Alberto, achou © amante avelhentado. Fatigada, ansiando pela solidio que a dei- xaria a 56s com a imagem do mancebo, ordenout que tocassem o gelope final, terminando o baile as quatro horas da manha. XX IC ee see sia Cal cde modo or vel, nao podendo mais duvidar da sua desdita, ow antes da desdita de Lésbia; seguira dia a dia os progressos da paixio da amante pot tum mancebo que podia quase ser seu filho, temia as conseqtiéncias dessa alucinagio © ao mesmo tompo debatia-se entre o amor que a eletrizava a lembranca da afeigio que a ele votava, 0 que ainda o desvanecia no meio da sua desgraca. Nio se deve incriminar o amante menos- prezado por no adivinhar ou prevenit o aban- dono que o fere; € tao pertinaz, to enérgico 0 amor desdenhado, que se torna odioso, pois pa- ralisa a forca e a dignidade, provocando naquele que o experimenta a vergonha e o desprezo de si mesmo. Obstinado e sedento de vida, agarra-se a todos os subterfigios como um condenado, re- cusando acteditar na sentenga que o mata, pot- que no quer morrer, Pélido, sombrio, cruzava Catulo os aposen- 16 Lésbia tos, mutmurando triste — Oh! Lésbia! como tio depressa o amas- tel... Durante esses dez anos passados, dei-te felicidade, preparei-te para um futuro tranqiilo, livre de tempestades, que te conservasse sempre no carinhoso eirculo do meu afeto; por que te escapaste destes miserdveis bragos que nao sou- beram prender-tel!.. Querida de minha alma, se eu pudesse resgatar a tua serenidade de animo por uma eternidade de tormentos!... Quanta ven- tura, quanta paixio e quanta mocidade se des- prendem do teu olhar, quando o fitas!... como sio ambos belos!...E, no entanto, foi também assim que tu me amastel.. Havia momentos em que o misero febril- mente arrumava a mala, a fim de fugir para li- bertar a amante da sua presenga, partindo para nunca mais voltar, porém a saudade, um certo dlever de protegé-la contra a prépria fraqueza e mormente a impossibilidade de deixé-la, suge- riam-lhe amarga objec: — E, se um dia ela softesse? Se esse fil mancebo nio correspondesse ao que ela espe- raval se no soubesse compreendé-la’! Nao! ele ficaria para conté-la e amparé-la, para consol. la das decepgdes ¢ sobretudo do isolamento d'al- rma que consome e enlouquece!... Entéo, acharia © seu. persistente e profundo afeto 0 ensejo de sett Maria Benedita Bormann 17 patentear-se por absoluto esquecimento que é 0 mais sublime dos perdoes. E amor humano, eivado de soberba e de mesquinhez, 0 que se vinga e injuria; mas 0 que ‘esquece e perdoa é o amor divino e incomensu- ravel que sagrou o humilde paciente do Gélgota Receando ‘aire, compreendendo com a percepeio de amante idolatra que a sua vista a importunava, apesar de ela nfo manifestar @ mi- nima impaciéncia a seu lado, espacou as stas vis tas, porém, logo que se mostrava tinha o desgosto de perceber nos expressivo olhos de Lésbia a fugaz € esperancosa alegria deo julgar infel, sufocando com aquela suspeita os brados da propria cons- ciéncia e sentindo-se quase serenada Lastimava-a ele sabendo que muito pade- cia, porque nfo ignorava quanto € medonha a agonia de um amor que se extingue, despedagan- do-nos nas suas derradeiras convulsées e saindo do nosso seio com pedacos sangrentos e palpitan- tes do coracio! Entretanto, nfo podia o infeliz amaldicoa- la, ‘nem mesmo em mente a insultava, primeiro pela finura da sua educagio e depois pot ser de parecer que ulteajamos a nés mesmos, quando ultrajamos aqueles a quem temos amado, E tanto a idolatrava, que, se por ventura o tempo € os dissabores conseguissem apagar um ve Labia pouco oseu ardente afeto, ainda assim respeitaria aquela imagem extinta, professando a religido da lembranca E por que inculpé-la-ia? Era ela um astro rutilante, espargindo luzes para todos os lados; quereria ele ser o (nico a deslumbrar-se naquele esplendor? Demais, amara-o profundamente, em pro- longado idilio, em completa uniformidade de idéias, de gostos e de sentimentos, votando-lhe sincera estima, considerando-o como seu tnico « verdadeito amigo, até o fatal encontro com Al- berto. Se nfo fosse seu amante, de hd muito seria o confidente daquela paixfo que a abrasava e que mal confessava a si mesma. Conhecendo-a como ninguém, tendo lido claramente naquela grande alma generosa, calcu- lava a intensidade dos indisiveis remorsos e dos lancinantes. desesperos da apaixonada criatura, receanclo as insensatas resolugGes ou as lastimé- veis perplexidades daquele vulcanico e irrequieto espfrito. ‘Acusava-se também de'cobarde por néo atirar-se resoluto & cruel extremidade de uma ex- plicagdo, simulando mesmo uma deslealdade que favorecesse o rompimento, mas erguia-se insupe- rivel asinceridade da sua afeigfo, entrincheiran- ‘Maria Benedita Bormann 199 do-se indignada nas mais intimas fibras dalma ¢ provocando amargurado pranto. Somente, quando estamos cansados de amar, 6 que suspiramas pela infidelidade da pes- soa amad, para nos desprendermos da nossa fi delidade, como disia o profundo ¢ cético La Ro- chefoucauld.® Incapar de tomar a iniciativa, desejando ¢ temendo conjuntamente qualquer solugio 2 falsa posicio em que se achava, adiava o momento de falar sobre esse assunto, A espera de um incidente, de uma eventualidade que Ihe restitusse o afeto de Lésbia, suprimindo Ihe o rival e repetia a frase de Santa Teresa — "Nada deve inquietar-te, nada deve atemorizar-te; tudo passa!” Eo que fazia Alberto, enquanto se desalen- tava Catulo? Deixara-se invadir sem resisténcia pela imagem de Lésbia, que o deslumbrava em intimos clarées, eletrizando-o, tornando-o, ora feliz e ora desgragado, Procurou vé-la, sem ser visto, todos os das; enquanto a esperava, achava as horas mortalmen- te Tongas, quando a avistava, parecia-Ihe que os minutos voavam, sentindo o coragéo saltar-lhe no peito e julgando morrer pelo excesso de emo- Goes, Cheio dela, voltava a casa, ou dirigia-se 200 ésbia a0 escritério, tendo-a sempre ante os olhos, alheio a tudo e a todos, dominado pelo brutal egoismo do amor exclusivo. As vezes, no meio de suas fatigantes vigt- lias, passava a sombra melancélica de Heloisa, da casta mocinha toda extremos, que Ihe tribu- tava sempre os mesmos desvelos, sem querer ver ‘a quase indiferenga com que ele a tratava. Impaciente, febril, furioso consigo mesmo, murmurave: — Terei culpa de haver julgado que era amor éssa necessidade de amar que atormentava a minha juventude’... Nao! eu no amei a Helof- say interpretei erradamente o afeto que the votava desde a infancia, porque a ele se aliara a atracio cdo mancebo pela donzelal... Dar-lhe-ei a minha vida, farei mil esforcos para felicité-la, mas no Ihe sactficarei a minha liberdade!... Isso nun- cal... Demais, € to crianga! esquecer-me-& com tempo! Eadmitia o cruel egofsta que Helotsa tives- sea faculdade de olvidar uma afeigéo que sempre the aparecera como um fanal de esperancas, quando ele mesmo néo possufa a forga de bani a impressio mais recente e portanto mais facil de afugentar. Em parte, merecia desculpa: na idaile de Alberto hé impaciéncia e avider de conhecer a Maria Benedta Bormann 201 Vida, de extraviar-se em regides desconhecidas, fazendo a cada passo novas descobertas. Escolhe um coracio novel um outro cora- io envelhecido pela experigncia, ansiando cos tear essas mangens da existéncia que ainda nio viu € j4 percortidas pelo outro; da mesma sorte, faz um derradeito apelo aos juvenis amores 0 co- ragio desiludido e gasto pelas decepges, procu- tando um pouco de seiva e de calor, como essas flores heliotr6picas que se voltam para o sol. O que havia de misterioso e de imprevisto no amor de Helofsa? nada, a nao ser esse mesmo afeto que ctescera com ela, visivel, singelo, sem falsos rebucos. Quantas surpresas, quantos encantos e contrastes, porém, dormitavam no seio de Lésbia, causando a0 mancebo frenéticos desejos de co- nhecé-los ede colhé-los uma um como preciosas pérolas, guardadas em aquario de lagrimas! Voltando do baile em casa de Lésbia, onde tanto sofrera, era Alberto outro; nadava em jabilo por haver ousado confessar o seu amor, experi- mentando ao mesmo tempo profundo desénimo, nio tendo adivinhado a palpitante emogao da moga e tomando aquele ardente interesse por me- ra bondade ¢ comiseracéo. E que ainda estava na aurora da vida, nessa répida fase, em que possui o homem a grande Lesbia ror qualidade de ser modesto e de duvidar de si mesmo. 2XVI brio de amor, insacdvel de anelos, rentava Alberto perscrutar 0 futuro, desesperando- se por julgar que somente obtivera a benevoléncia de Lésbia,jé cansado desse primeiro favor e ale jando alegrias mais inebriantes. Nessa disposigo de espirito resolveu-se a véla de novo em sua casa, querendo também saber de que modo seria recebido, depois que no mais ignorava ela 0s seus sentimentos: era ites tivelmente atraido pela alma que o chamava em intima invocagio. Padecia a ilustre criatura; sentava-se mui tas veres nesse mesmo diva em que o jovem Ihe falara de amor, repetindo-Ihe as palavras, que~ rendo descobrir no soalho a marca de seus pés tentando aspirar o longinquo perfume que dele se desprendera Gozo pueril do amor, tio fatil e tio con- solativo! Abatida, enervada por sombrio desespero, presa de mil remorsos, ora absorvi 204 __Lésbia sitiva saudade de Catulo, ora deixava-se prender pelo vulto gracioso de Alberto, subindo-lhe uma onda de fel do coragdo aos labios Oh! por que nfo te encontrei aos vinte anos, em plena beleza, na confiante serenidade d'alma, cheia desse amor pela humanidade que a experineia destrdi aos poucos; quando, enfim, eu era digna de amor ¢ podia amar!?.. Desperdi- cei meus afetos, dando-os a seres vulgares e fal $05, que niio mereciam to ricas dédivas, perdi a mocidade, caindo de decepgio em decepgao, ¢, agora, velha, fanada, desalentada, o que poderet oferecer a um espirito avido de emogies, sendo 6 meu frio ceticismo e a minha glacial filosofia?! Oh! quanta raxéo tinha Mme. de Staél de horro- rizat-se da velhice e da idéia de af chegar! Agora & que Ihe compreendo em toda a extensfo esse sentimento que a esfriava, produzindo vertigens! O que daria eu para volver ao tempo de moga, em que a prética do bem me era fécil como um prazer, porque 0 coragéo transbordava de bonda- de e de fé! E como se evaporaram rapidamente cessas puras ilus6es que tanto perfumam 0 desa- brochar da existéncial Ah! se, a0 menos, nesta hora de provagio me restasse um pouco dessa cenergia que € a satde dalma e de que tanto dispus outrora! mas qual! Nada mais tenho que me auxi- lie @ acabar dignamente a drdua peregrinacio do ‘Maria Benedita Bormann 205 meu viver! Quanto pensamento insensato me atravessa a mentel... Hi tanta coisa vaga e in- compreensivel destacando-se, porém, do meio desse caos insuperdvel cansaco e indiatvel té- diol... E eu, tio refratéria 20 suicidio, revoltando- me sempre a idéia do aniquilamento e da desa- parigdo da criatura, afago mil vezes a0 dia essa extrema solugio de todos os males, esse fundo sombrio de toda a alegral... Penso como Rous- seau, quando disse: *— Quanto mais reflito, mais me conven- 0 de que a questéo do suictdio se reduz a esta proposiglo fundamental: Procurar 0 seu bem e fugit a0 seu mal, sem ofender a ninguém, é 0 di- reito da natureza. Quando a vida € para nés um mal ¢ no beneficia a outrem, poderemos dela libertar-nos. O que dizem os sofstas sobre isto? Primeiramente, consideram a vida como uma coi- sa que no nos pertence, porque nos foi concedi- da; porém, € precisamente por ser-nos concedida, que ela nos pertence, “Nao thes outorgou Deus dois bragos? En- tretanto, quando receiam a gangrena, deixam cortar um deles ou ambos, se for preciso. A pati- dade & exata para quem eré na imortalidade da alma; pois, se eu sacrifico meu brago a conserva ‘Gio de uma coisa mais preciosa, que é 0 meu cor- po, sacrifico meu corpo & conservacao de uma 206 ae eT Letsi coisa mais preciosa, que é 0 meu bem-estar.” “Suporta-se por muito tempo uma existén: cia amarga e penosa, antes de se resolver deix4- la, porém, logo que o tédio de viver suplanta 0 horror da morte, corna-se entio a vida um grande tal, do qual nos devemos libertar o mais depressa posstvel.” Demais, sem filhos, sem encargos de familia, quase sem lar, quanto sofrer4 na velhice a pobre sacerdotisa do ideal e do belo, observando 6 decrescimento das suas faculdades e a tibieza do préprio sentimento, congelando-se como flor de estufa exposta ao rigor da invernada! E ne- nnhum bafejo, nenhum calor a revigorard; porque nada substitui o influxo da mocidade!... Oh! Alberto! impele-te a tua turbulenta juventude a desconhecidas alegtias, anseias pelo amor, e me pedes ventura; encontrarias em mim essa quimera evocada pelas ardentias da tua imaginaglo? Crian-

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