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Café e o Crescimento da . Industria Durante a Primeira epublica (1889-1930) Fregiientemente, a Primeira Repailica (ou Republica Velha) é caracterizada pe- los historiadores como a “repiiblica do café-com-leite”. Esse rétulo procura ressaltar uma caracteristica politica do periodo: 0 predominio de Sao Paulo e de Minas Gerais na esfera federal. Como todo rétulo, o da “repiiblica do café-com-leite” comporta alguma simplifi- cago, Hle nio se aplica a toda a Primeira Republica e oculta a participacio politica de ‘outros grupos regionais que, em certos momentos, foi decisiva. ‘Também no plano econdmico, a caracterizagio da Primeira Repiblica é mais complexa do que poderia sugerir 0 rétulo “café-com-leite”, F inegdvel que a producio cafeeira teve papel decisivo na economia brasileira durante essas quatro décadas: 0 volu- ime das exportacGes e o nivel de renda dependiam, em grande medida, do desempenho do setor cafeeiro e a propria politica econémica do governo tinha a produgao cafeeira como marco de referéncia obrigatério. Essa posico central do café na economia nacional nao dove ocultar a existéncia de outras atividades exportadoras fundamentais para diversas regides do Pais: borracha, acticar, algodo, cacau, fumo, erva-mate, couros e peles sao a ase econdmica de amplas areas, desde a Amazinia até o Sul do Brasil. Nao se pode jgnorar também que, durante a Primeira Reptblica, observou-se uma crescente produgsio agricola para o mercado interno: acticar e algodo, produzidos originalmente para expor- taco, passaram ater significativas parcelas de sua producio dirigidas ao consumo dentro ddo proprio pais. Outros produtos agricolas, principalmente alimentares, também registra~ ram aumento de producao destinada ao mercado interno, Embora a economia brasileira ‘ainda estivesse voltada principalmente a atividade exportadora, o fato de se ter uma sig- nificativa producio agricola destinada ao mercado interno indica uma mudanga impor- tante. Essa mudanga estd associada, principalmente, a desdobramentos da expansio cafeeira: a urbanizagéo relativamente ripida em algumas dreas do pais ¢ 0 nascimento de uma industria interna cuja dimenso ja permitia certo grau de integraco ao fim da Pri- imeira Reptblica, O meio urbano industrial necessitava de alimentos e algumas matérias, primas que podiam ser fornecidas pela agricultura, redirecionando assim sua atividade. E Claro, no entanto, que o prdprio surgimento da industria constitui a transformagéo mais importante a ser observada no periodo. 40 FORMAGAO ECONOMAICA DO BRASIL Desse modo, a economia brasileira na Primeira Repiiblica é bem mais complexa do que nos sugeria a imagem do “café-com-leite”, A producao cafeeira ¢ a atividade cen- tral, mas observa-se a diversificacio da agricultura e o surgimento de uma indiistria cuja dimenséio esta longe de ser desprezivel. Evidentemente, neste quadro mais complexo, os elementos sociais ~ as novas classes que emergem no periodo ~ ¢ politicos ~ as caracter érquico - também demandam maior atenca: Emibora o objetivo do capitulo seja o de fornecer uma visio geral da economia e da sociedade brasileira na Primeira Repiiblica, seu nticleo, do ponto de vista analitico, situa-se na discussdo das relagées entre café e indtistria, ou seja, de como a indtstria nasce com base nas condicdes criadas pela expansdo da economia cafeeira e nos limites a que o crescimento da indiistria estd sujeito nesse perfodo. Trata-se de tema polémico que concentrow a ateng3o da historiografia econdmica brasileira por ter implicacdes que se projetam na interpretagio do periodo posterior. 2.1 DA PROCLAMAGAO DA REPUBLICA A REVOLUGAO DE 1930: OS PRINCIPAIS MARCOS POLITICOS DA PRIMEIRA REPUBLICA! A Proclamagio da Reptiblica, como evento, foi resultado de uma aco militar comandada pelo Marechal Deodoro da Fonseca. # conhecida uma afirmagao de que 0 ovo teria assistido “bestializado” o movimento das tropas no Rio de Janeiro, sugerindo seu distanciamento dos atos que conduziram ao fim do Império. Embora seja certo que nao houve participacio popular direta na Proclamacao da Repiiblica, o desenrolar dos fatos posteriores ao 15 de novembro de 1889 mostrou o profundo engajamento de dife- rentes grupos sociais na formagao das instituigbes e na politica republicana, indicando que @ proclamagio nio fora apenas um golpe militar que promoveu a substituicio do Imperador por um Presidente. Relembremos sinteticamente as duas foreas sociais que a historiografia entende presentes no movimento republicano. De um lado, havia os interesses ligados as regioes em expansao (principalmente as que tinham o café como produco fundamental) ¢ que viam na Republica a possibilidade de instituir um regime federativo: as unidades da fede- ragio — os Estados ~ seriam dotadas de ampla autonomia politica e administrativa, em oposigdo ao regime centralizado que vigorou no Império. Essa autonomia permitiria que 5 grupos dominantes nos Estados gerissem, de forma mais adequada a seus interesses, diversos instrumentos de agdo do governo. De outro lado, no movimento republicano também estava presente o interesse, identificado com as classes médias urbanas, de transformacio das instituigbes juridicas ¢ politicas. A revolugao antiescravista e antimonarquica visava instituir a igualdade juridica Cinexistente enquanto permanecia o trabalho escravo) e a possibilidade de representacao politica das classes médias (excluida, durante o Império, pelo regime eleitoral censitério). 1, Ha vasta lteratura sobre a politica durante a Primeita Repablica.O lezor pader encontrar informagoes € anilises mais extensas em Carone (1970), Fausto (1995) e Souza (1969) (© CAFE E 0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1889-1950) 41 Essas duas forgas inerentes ao movimento republicano, além dos proprios milita res, estéo presentes nos anos iniciais da Republica. ‘Sem diivida, os militares encontravam razées particulares para sua oposicao a0 regime imperial, A chamada “questao militar”, que percorreu os anos finais do Império, era o resultado de crescente divergéncia entre os militares principalmente do Exército ¢ 0 poder imperial, divergéncia que nascera & época da Guerra do Paraguai. ‘Alcados ao poder, os militares procuraram impor um governo ditatorial que deve- ria prolongar-se até que a reforma do Estado se concluisse. Deodoro ¢ Floriano, embora pertencenies a distintas correntes, expressaram essa preocupacao dos militares, presente, por exemplo, na proposta de um Poder Executivo forte e centralizado. Especialmente os rilitares influenciados pelo positivismo ressaltavam a no¢ao de progresso, admitindo a necessidade de imprimir um rumo aos destinos do pais. E claro, o papel do Estado seria fundamental na definicdo e implementagao dessa agao modernizadora. ‘Tais nog6es nao eram exclusivas dos militares (em particular do Exército). Parce- las da classe média urbana esposavam idéias semelhantes, envolvendo nacionalismo fortalecimento do poder executivo federal. Estas propostas foram claramente atropeladas na elaboragio da Constituicio de 1891. Ai prevalecew nitidamente uma estrutura liberal e federalista, inspirada no modelo norte-americano, Promulgada em fevereiro de 1891, a primeira Constituicao republicana consagrava a autonomia das antigas provincias, agora denominadas de estados, de acor- do com o desejo dos grupos agrario-mercantis dominantes. Aos estados se reservava 0 direito de ter corpos militares proprios (as forcas puiblicas), de tributar a exportacio de seus produtos, de contrair empréstimos externos sem necessidade de autorizacao federal, de ter constituigées préprias, assim como cédigos eleitorais e judiciérios. A Unido (0 g¢ verno federal) manteve, no entanto, poderes importantes como o de tributar a importa- ‘cao, de criar bancos emissores de moeda, de manter as forcas armadas nacionais e inclu- sive de intervir nos Estados para manter a ordem ou a forma republicana federativa. ‘Apesar da autonomia estadual, 0 governo federal mantinha posi¢ao importante principal- ‘mente nas relagdes econdmicas intenacionais. Do ponto de vista politico, a reptiblica federativa fundou-se no presidencialismo, havendo ampliacao do regime representativo. Foi estabelecido o voto direto universal para os maiores de 21 anos (excluindo-se as exigéncias de comprovagao de renda para habilitacdo ao processo eleitoral, como havia vigorado no Império). Nao podiam votar os analfabetos, 05 mendigos, os pracas-de-pré (militares que nao tivessem patente de oficial) {© 08 religiosos sujeitos a voto de obediéncia, Embora nao houvesse proibigdo constitucio- nal, as mulheres, em geral, nao eram eleitoras. Esse sistema representativo, em principio democratico, foi profiandamente viciado pela pratica eleitoral, como veremos ao tratar do “coronelismo”. A propria Assembléia Constituinte elegeu o primeiro Presidente da Repiblica: 0 ‘Marechal Deodoro da Fonseca obteve pequena vantagem de votos (129) contra o paulista Prudente de Morais (que obteve 97). Para a vice-presidéneia foi eleito outro militar, 0 Marechal Floriano Peixoto. Tendo assumido em fevereiro de 1891, Deodoro foi levado & reniincia em novembro do mesmo ano, apés fechar 0 Congresso e propor a convocagio de novas eleigies e a revisio da Constituigao. O fortalecimento do Poder Executivo da Unio ea menor autonomia dos Estados estavam entre os objetivos dessa reviso, como era de se esperar da postura conhecida de Deodoro. 42 FORMAGAO ECONOMICA DO BRASIL © Presidente nao conseguiu,, no entanto, reunir o apoio das Forgas Armadas para seu intento e acabou por renunciar, Floriano Peixoto, militar que também preferia a cen- tralizacéo do Estado, tinha uma atitude nacionalista e era, de certo modo, identificado com o “jacobinismo” da classe média,* optou, no entanto, por um acordo politico com a elite politica paulista. Embora em campos opostos no plano ideol6gico, Floriano e os Ideres paulistas percebiam que esse acordo era a forma de garantir a continuidade do regime republicano. Apesar disso, 0 periodo foi conturbado: a revolucio federalista (no Rio Grande do Sul) e a Revolta da Armada (iniciada no Rio de Janeiro) exigiram a inter- venso da Unido, num processo que se estenden até 1895. Floriano foi sucedido, em 1894, pelo paulista Prudente de Morais, encerrando 0 ciclo militar do infcio da Repiiblica: Floriano, nao obstante © apoio dos “jacobinos”, no conseguiu fazer seu sucessor, tendo sua pretensio sufocada pela elite politica paulista, O perfodo Prudente de Morais (1994-1998) foi marcado por um epis6dio armado = 0 de Ganudos ~ ¢ pelo agravamento da situacgo financeira do Governo, num processo ‘que vinha jd do Encilhamento. Seu sucessor ~ Campos Sales - levou & frente ages que ‘marcaram, por longo tempo, a politica e a economia da Primeira Repiiblica, Isso foi possi- vel, antes de mais nada, porque as ages politicas dos militares, frequientes e ostensivas 1s primeiros anos da Repiblica, praticamente se encerraram ao fim da gestao de Pruden- te de Morais. Conseqientemente, ampliou-se a possibilidade de dominio por parte das 5 politicas dos grandes Estados. Dentro destes, no entanto, havia ainda a rivalidade ‘entre diferentes grupos, rivalidade essa que se projetava, por vezes, até na politica nacio- nal. Campos Sales procurou, entio, a partir da Constituigao liberal de 1891, criar um arcabougo politico que viabilizasse 0 dominio “oligdrquico”, ou seja, o controle do Estado pelos principais grupos politicos dos grandes estados. A chamada “Politica dos Governa- ores” foi o arranjo polftico que consubstanciou aquele intento. Boris Fausto assim resu- ‘me seus objetivos: “reduzir ao maximo as disputas politicas no ambito de cada Estado, prestigiando os grupos mais fortes; chegar a um acordo basico entre a Unido e os Estados; por fim a hostilidade existente entre Executivo e Legislativo, domesticando a escolha dos deputados. © governo central sustentaria assim os grupos dominantes nos Estados, en- ‘quanto estes, em troca, apoiariam a politica do presidente da Repiiblica” (Fausto, 1995, p. 259). Assim, em cada Estado, os grupos politicos mais fortes organizaram-se em torno de Partidos Republicanos estaduais. Estes grupos manipulavam as eleigdes, de modo a ‘garantir a vit6ria dos candidatos situacionistas tanto no plano estadual quanto no federal. Assim, consolidava-se 0 acordo entre o presidente da Reptblica e os Partidos Republica- nos estaduais. A garantia final de funcionamento desse pacto foi dada por uma mudanga no regimento da Cémara dos Deputados. Nao existindo Justica Eleitoral, a diplomagao do deputado eleito nas umas dependia de uma “Comissio de Verificagao dos Poderes” inter- na Camara, O mais velho deputado eleito numa nova legislatura assumia a presidéncia temporéria da Cimara e da Comissao. Ora, este deputado, indicado apenas pela idade, poderia ser um oposicionista. Para evitar esse incdmodo, a mudanga no regimento fez 2. Ochamado “jacobiniso”¢ identified pela mbilizago de uma parcela da classe média, principalmente ‘no Rio de Janeiro, que durante a Revolta da Armada sai is ruas em defesa da Repablica, Emboraefémero, © jacobinismo fo imporcante na sustentacio de Floriano Peixoto, (© CARI E 0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1889-1930) 43. com que © presidente tempordrio da Camara, apés as eleigies, fosse o mesmo da legislatura anterior (desde que reeleito). A este deputado, obviamente identificado com a situagdo, cabia reconhecer os mandatos dos novos deputados. Ou, no caso dos indesejados, promover a chamada “degola”: um oposicionista eleito poderia nao ter seu mandato reconhecido por eventuais “fraudes” no proceso eleitoral, identificadas pela Comissio de Verificacio de Poderes. Desse modo, a situacéo (presidente da Republica e artidos Republicanos) poderia perenizar sua maioria na Cémara Federal, evitando qual- {quer ameaca das oposicoes. Assim, uma simples muclanca no regimento da Cémara prati- ‘camente aniquilava 0 “espitito” liberal da Constituicéo ao impedir a efetiva representacao das oposigées. Alids, como bem nota Fernando Henrique Cardoso, “Campos Sales (...) convicto de que a direcio ou a orientacdo de um pprocesso politico “é uma funcio que pertence a poucos e nao & coletividade’, pro- ‘pos um ‘Pacto Oligarquico’, capaz de dar cabida a um sistema baseado numa Tideranga que mais do que pessoal seria ‘institucional’. A condigio, entretanto, de ‘que 0 acesso & ‘institucionalidade’ se restringisse aqueles capazes de exercer uma ‘soberania diretora’ ” (Cardoso, 1975, p. 48). Foi, portanto, com Campos Sales e sua “Politica dos Governadores” que se conso- lidou o cardter oligarquico da Primeira Repiblica: as fraudes do sistema eleitoral se soma- vva agora a articulagio do governo da Unizo com as oligarquias estaduais num esquerma que dificilmente poderia ser rompido pelas oposicées. Campos Sales fez seu sucessor, 0 também paulista Rodrigues Alves. Evidentemente, essa visio esquematica é incapaz. de dar conta de toda a realida- de histérica. A politica de defesa do café (proposta ¢ defendida principalmente pelos politicos paulistas), por exemplo, sofreu enorme resisténcia por parte das elites politicas dos Estados nao cafeeiros (que desejavam também a defesa de seus produtos). Mesmo em termos politicos, a “politica dos governadores” podia ser objeto de ameagas. Um exemplo tipico foi a sucesso presidencial em 1910: 0 Rio Grande do Sul, com o apoio de Minas Gerais, langou como candidato o Marechal Hermes da Fonseca (sobrinho de Deodoro da Fonseca); niio concordando com essa candidatuira, Séo Paulo ¢ Bahia apoiaram Rui Barbo- ‘sa que se ops ao militar por meio de sua “campanha civilista”. © Marechal Hermes fol celeito e, tentando evitar que se repetisse essa cisao, So Paulo e Minas Gerais estabelece- ram um acordo técito pelo qual, 2 partir de entao, os Presidentes da Republica seria, alternadamente, representantes desses dois Estados. Esse acordo foi respeitado, pois ape- ‘nas numa situago excepcional ~ a sucesso do paulista Rodrigues Alves, que morreu em 11918, sem assumir a Presidéncia para a qual fora eleito ~ houve um presidente de outro estado ~ 0 paraibano Epitacio Pessoa. Isso nao quer dizer que as divergéncias regionais estivessem superadas: a sucessiio presidencial de Washington Luis 0 demonstrou, pois, diante da insisténcia do presidente em ter um sucessor também paulista, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraiba estabeleceram uma alianca politica cujos desdobramentos resultaram na Revolugio de 1930. Embora a origem dessa cisio fosse 0 desrespeito a0 pacto entre Sao Paulo e Minas, 0 fato mostra que as divergéncias regionais haviam sido apenas sufocadas e no superadas. Se a politica da Primeira Repibliea comportou conflitos entre as camadas dit ‘gentes, igualmente importantes foram as manifestagdes de grupos sociais alijados da efe- ‘iva participagio no processo politico. De um lado, os trabalhadores urbanos comecaram 44 FORMAGAO ECONOMICA DO BRASIL aorganizar-se em torno de entidades sindicais (primeiro de caréter anarquista e, nos anos 20, vinculadas principalmente ao Partido Comunista). Sua mobilizacdo ganhou expresso em varios momentos (como nas greves de 1917), porém seu foco esteve dirigido princi- palmente aos problemas do mundo do trabalho. Por outro lado, nos anos 20 repetiram-se as chamadas revoltas “tenentistas": jovens oficiais, principalmente do Exército, rebela- ram-se contra 0 governo oligdrquico da Primeira Repiblica: sua critica se dirigia princi- palmente as viciadas instituigdes polfticas, mas também continha alguma dose de nacio- nalismo. As revoltas no Rio de Janeiro (1922), em Séo Paullo (1924) e no Rio Grande do Sul (1924) culminaram com a chamada Cohuna Prestes que, de 1925 a 1927, sob a lide- ranga de Lufs Carlos Prestes, percorreu cerca de 24 mil quilémetros no interior do Pais. Embora fosse um movimento essencialmente militar, a preocupasao do tenentismo era de natureza politica ¢ social: tratava-se da defesa das instituicSes republicanas contra sua conspurcacao pelo Estado oligdrquico e, em especial, o combate ao poder das oligarquias nas dreas em que as desigualdades sociais eram mais evidentes. Pode-se dizer que 0 tenentismo conquistou a simpatia popular (principalmente nos grandes centros urbanos), a indicar que o movimento expressava também a insatisfacio de outros grupos que se viam excluidos da efetiva participacio no sistema representativo. Estes movimentos tive- ram significativo impacto politico ¢ so um dos componentes que levaram o presidente Artur Bernardes a manter o “estado de sitio” por quatro anos de seu mandato. O fim da Primeira Repiblica, marcado pela Revolucio de 1930, conjuga esses diferentes conflitos observados ao longo do perfodo: cisdes entre oligarquias estaduais iniciam o processo que ganhou seu cardter “revoluciondrio” quando elementos origindrios do tenentismo incorporam-se a0 movimento que, nesse momento, adquiriu outro sentido. Estes fatos ligam-se & constituicéo de outro Fstado (0 Estado Populista) que é objeto de estudo no capitulo seguinte. 2.2 A ECONOMIA BRASILEIRA NA PRIMEIRA REPUBLICA: A AGRICULTURA DE EXPORTAGAO E A PRODUGAO PRIMARIA PARA O MERCADO INTERNO i mostramos que o rétulo de repiiblica do “café.com-leite” representa, no plano politico, uma simplificagdo que oculta importantes elementos da realidade. © mesmo pode ser dito em relacéo economia da Primeira Reptiblica: 0 café nao foi a tinica produ- io relevante e a propria economia cafeeira é bastante complexa, pois, além da fazenda de café, comporta atividades comerciais, de transportes, bancérias e outras de navureza urbana. Ainda assim, no se pode negar que o café foi o nlicleo em torno do qual grande parte da economia brasileira esteve articulada (direta ou indiretamente) e também 0 fulero da politica econdmica de todo o perfodo. Por isso, nao ha como estudar a economia da Primeira Republica sem examinar as caracteristicas e o desenvolvimento da produgao e do comércio de café. © CAPE E.0 CRESCIMENTO DA INDEISTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1889-1930) 45 2.2.1 A economia cafeeira (1889-1930) ‘A. DESENVOIVIMENTO E CRISE Desde 1820, o café aparece entre os principais produtos de exportacéo do Brasil (ao lado, por exemplo, do agiicar e do algodio). De 1840 até 1970, por mais de um século, portanto, o café respondeu por mais de 40% do valor total das exportagées brasi- Jeiras, chegando, em certos anos, a atingir 80% de seu total (Bacha e Greenhill, 1992, Apéndice Fstatistico, Tabela 2.3). Sua producio iniciou-se nos arredores da cidade do Rio de Janeiro ¢ adquiriu carter itinerante, sempre em busca de novos solos que substitufssem aqueles desgastados por décadas de cultivo. © principal rumo das plantacies foi dado pelo Rio Parafba do Sul, Drimeiro na entio Provincia do Rio de Janeiro e depois no Vale do Parafba em So Paulo, Mais tarde, a producdo cafeeira dirigiu-se para 0 interior de Sao Paulo (nas reas de Campinas, Rio Claro, Moji Mirim, Ribeiro Preto, Araraquara, Jatt ete.) ‘A época da Proclamacio da Reptiblica, a Provincia do Rio de Janeiro produzia cerca de 62% do total do Brasil, cabendo o restante a Sao Paulo. Ao longo da primeira Gécada republicana, no entanto, essa situagio foi invertida, como mostra a Tabela 2.1. ‘Tabela 2.1 Brasil: produgio total de café e participacio de Rio de Janeiro e Sao Paullo, 1884-1889 (quantidade em 1.000 sacas de 60 kg). ‘Ano Brasil Rio de Janeiro ‘S80 Paulo (5) () HC eee eee Oe 1884/85 6.206 702 208 1885/86 5 688 314 1886/87 65,7 343 1887/88 . 64.0 36,0 1888/89 63.6 36,4 1889/90 61.6 98.4 1890/91 5. 564 436 1891/92 54 45,6 1892/93, 52.3 aa 1893/94 512 48 1894/95 43,1 51,9 1895/96 479 52,1 1896/97 8.680 45.5 545 1897/98 10.482 43,7 563 1898/99, 8771 40,3 59,7 1899/00 8.959 39,5 60, Fonte: Bacha e Greenhill (1992), Aptndice Estaistico, Tabelas 1:3 € 2.6. E facil perceber que grande parte do crescimento da producéo de café nos anos 90 se deu em territério paulista (pois a producio do Estado do Rio de Janeiro néo cresceu 46 FORMACAO ECONOMIA DO BRASIL no perfodo). Tal resultado nao surpreende, antes de mais nada pelo caréter itinerante da producto cafeeira: os cafezais do Rio de Janeiro, em sua maior parte com varias décadas de existéncia, apresentavam produtividade em declinio, nao havendo razSes para novas plantacées em terras jd cansadas e cuja fertilidade fora esgotando-se ao longo dos anos. As novas plantagSes eram dirigidas, portanto, as reas nao exploradas com o café, muitas delas ainda ocupadas por matas naturais. Além desse motivo de ordem “natural”, hd razdes de ordem histériea para se entender o declinio da produgéo fluminense diante da paulista no fim do século XIX. 0 impacto da Aboligéo do Escravismo sobre a cafeicultura foi relativamente pequeno em Sao Paulo, pois a imigracdo se fazia em massa nos anos imediatamente anteriores & Lei Aurea. Jé no Rio de Janeiro, néo se verificou uma comente migratéria expressiva para a cafeicultura, provavelmente porque o declinio da produtividade e, em conseqiiéncia, da rentabilidade dificultasse a atracao do estrangeiro. Assim, a Abolicao acabou por obrigar areorganizagéo da mio-de-obra existente na regio, com impacto negativo prineipalmen- te por se tratar de uma cultura cuja produtividade se encontrava em declinio. Aliés, 0 ‘mesmo resultado também se verificou no Vale do Parafba paulista, igualmente sofrendo o declinio de produtividade de seus cafezais. Em 1886, a regio do Vale produzia cerca de Ges de arrobas de café; em 1905, sua produgéo se reduzira a 1,8 milhées e em 1920 a pouco mais de 700 mil arrobas. A regio cafeeira mais antiga do planalto paulista = a de Campinas ¢ arredores ~ sofreu o mesmo declinio: em 1886, com 4,8 milhées de atrobas, era a zona de maior producao; em 1920, com 2,3 milhées, cedeu aquele lugar & zona de Ribeiro Preto e arredores, com 8,8 milhdes de arrobas (Camargo, 1952, v. 2, Tabela 62; v. 3, Tabelas 107 ¢ 108). No conjunto da producéo brasileira, no entanto, $a0 Paulo se firmou como 0 principal estado produtor, sendo responsével, entre 1900 e 1930, por 60 a 70% do total do café produzido no Brasil; Minas Gerais aparece, nesses anos, com 15 a 20%, Rio de Janeiro com 5 a 10% e outros estados (Bahia, Fspirito Santo) completam o total. Quais as ra6es para tal predominio de So Paulo, além, obviamente, do jé referido cardter itinerante da produgao? £ inegavel que Sie Paulo foi beneficiado por intenso fluxo de imigrantes euro peus, em grande parte destinados & lavoura cafeeira. A Tabela 2.2 indica 0 niimero total de imigrantes para o Brasil entre 1884 e 1900, assim como o niimero que ingressou em Siio Paulo. A partir de 1888, a parcela destinada a Sao Paulo superou a de todos os outros Estados, Tabela 2.2 Brasil e Sao Paulo: mimero de imigrantes, 1884-1920, Period 0 w ny, Brasil Sao Paulo 8), 1884/1887 145.880 53.023 * 36,3 1888/1890 304.054 197.781 519 1891/1900 1.128.315 733.335 49 1901/1920 1.469.095 957.149 58,3 Fonte: Villa e Suzigan (1973), p. 269. (0 CAPE £ 0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1889-1930) 47 Grande parte dessa imigragio foi subvencionada, ow seja, contou com recursos do Governo para o pagamento das passagens de navio dos imigrantes, além de abrigé-los na “Hospedaria dos Imigrantes” até que fossem contratados por um fazendeiro. Além disso, as empresas ferrovidrias instaladas em Sao Paulo transporavam gratuitamente os imi- ‘grantes até as cidades do interior a que se destinavam. Essa oferta de mio-de-obra relati- ‘vamente ampla constitufa, portanto, importante estimulo para a expansio das fazendas de café no interior paulista. Mas havia também outros fatores favordveis. ‘A expansio do crédito, a partir da Reforma Bancdria aprovada ainda no fim do Império, mas efetivamente implementada no comeco da Replica, forneceu recursos relativamente faceis para a formagao de novos cafezais. O mesmo efeito teve a expanstio ferrovidria: a extensao das linhas férreas em Sao Paulo cresceu de cerca de 1.600 km em 1885 para 3.300 km em 1900, franqueando novas dreas & exploracao cafeeira pela redu- fo do custo de transporte, Finalmente, cabe considerar as condiges do mercado’ para absorver essa cres- cente produgio. Para tanto, convém retornar aos meados da década de 80. De 1885 a 11890, o preco internacional do café cresceu rapidamente, aumentando também o valor total das exportagdes de café do Brasil (cuja média, entre 1880 ¢ 1884 era de 11 milhoes de libras esterlinas e atinge 19 milhdes em 1889). Essa elevacio nao se refletiu integral- ‘mente nos precos internos, pois foi amortecida pela valorizagio da moeda nacional. A propria receita de divisas propiciada pelo crescente valor das exportagGes de café somada 20s recursos advindos de empréstimos externos havia criado uma situagao extremamente favordvel no mercado cambial, colocando a taxa de cambio proxima de 27 d/mil-réis* (que cra a paridade oficial da moeda brasileira). A Tabela 2.3 mostra, lado a lado, a evolugao, em indices, dos precos externos e dos precos internos, além do valor das expor- tagdes de café de 1885 a 1890 Tabela 2.3 Brasil: valor das exportagées de café; prego externo € interno do café, 11885-1890. Ano w ay, Valor das Proco Externo (1885 = 100) (€ 1000) EEE Eee aoe eee eer Feces ete eee eee eeeee eee eee ere 1885 11.408 100 100 1886 12.107 141 1 1887 14.230 184 176 1888 10.857 1 120 1889 18.963 210 124 1890 17.850 237 149 Fonte: (1) Bacha e Greenhill (1992), Apéndice Estatstic, Tabela 1.6. (0) ¢ (Il) Defim Neto (1973), p. 58. ‘Uma reconstituigio cuidadosa da evolugio do mercado cafesiro entre 1857 e 1957 foi feta por Detfim Netto (1980). © d= dinheisos (= pennizs) 48 FORMAGAO ECONOMICA DO BRASIL, Fssa situacao se inverteu nos anos 90. Os precos internacionais manifestaram tendéncia a declinar, em especial depois de 1893 (ano que registra uma crise nos Estados Unidos, cujas importagoes correspondiam a cerca de 40% do mercado mundial de café). ‘No entanto, os precos internos continuaram a elevar-se em fungio da acentuada desvalo. rizagio da moeda brasileira ao longo da década. Partindo de 27 d/mil-réis em 1889, atingiu-se 0 nivel de 7 d/mil-réis 10 anos depois, como vemos na Tabela 2.4. Tabela 2.4 _ Brasil: taxa de cmbio, preco externo e intemo do café, 1889-1900. Ano Taxa de Cambio Prego Externo Prego interno (Dinheiros/Mi-Réis) (1889 = 100) (1889 = 100) Pee ee ee ee eee re cree 1889 274 100 100 1890 226 113 120 19891 149 90 171 1802 12,0 a7 201 1893, ne 103, 278 1894 10,1 92 290 1895 39 ot 262 1896 94 63 282 1897 77 a7 190 1898 72 4 163 1899 7a 42 156 1900 95 6 71 Fonte: Delfin Neto (1973), p. 61 Essa desvalorizagio do mil-réis decorreu de um conjunto de fatores: aumento do meio circulante em funcao da politica monetdria implementada na Reptiblica, saldos co- merciais reduzidos em varios anos ¢ limitado volume de empréstimos externos, provocan- do acentuado declinio do valor da moeda nacional diante da libra- esterlina, ‘Como resultacio, os ntimeros-indices de pregos externos e de pregos intemnos mos- tram claramente movimento divergente: em 1894, por exemplo, os precos internacionais haviam caido cerca de 10% (em relacio a 1889) e os precos internos haviam quase triplicado, sem que houvesse uma inflacdo (ou um aumento dos custos) correspondente em mil-réis. Ou seja, os precos internos davam um estimulo ao setor cafeeiro que a situa- so do mercado internacional jé no sustentava. Na segunda metade dos anos 90, come- gou a chegar ao mercado 0 produto das fazendas estabelecidas desde 1890, jé que a primeira colheita de um pé de café se faz. quatro a cinco anos depois de plantado. Essas saffas crescentes encontraram 0 mercado internacional enfraquecido (principalmente pe- los efeitos da crise dos Estados Unidos a partir de 1893). Seus efeitos comecaram a ser sentidos no Brasil em 1896 (pelo inicio do declinio do preco interno) e agravaram-se a Partir de 1898 quando o governo de Campos Sales, tendo Joaquim Murtinho como minis- ‘to da Fazenda, alterou radicalmente a politica monetétiae fiscal do Brasil Diante da ineapacidade do governo brasileiro cumprir seus compromissos da di- vida externa, Campos Sales negociou a consolidagao da divida externa entéo existente Por meio de um empréstimo dos banqueiros ingleses (que ficou conhecido como Funding- Loan). Ao suspender pagamentos referentes a juros e amortizagées da divida por alguns (© CAR £ 0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPOBLICA (1889-1920) 49 anos, 0 “Funding-Loan” reduziu a presstio no mercado cambial, pois o governo nao preci- sava adquirir divisas para fazer frente a seus compromissos externos. Por outro lado, a fim de reverter a tendéncia a desvalorizagéo da moeda brasileira (mas também em conse- aqiiéncia das negociacdes com os banqueiros ingleses) adotou-se politica monetétia e fiscal restritiva (Inclusive com a reduggo, em termos nominais, dos meios de pagamento). ‘Como resultado, passou a ocorrer acentuada valorizacéo da moeda brasileira: de 7 d/mil- réis em 1898, ela valotizou-se para 12 d/mil-réis em 1902 ¢ atingiu 16 d/mil-réis em 1905. A absorciio da crescente producio brasileira de café pelo mercado mundial (em ‘especial pelo norte-americano) se fez a niveis de pregos relativamente baixos. Agregando ‘a este fato a valorizagéo da moeda brasileira, &ffcil entender o clima de crise que passou a dominar a cafeicultura a partir de 1896, clima esse que se agravou com o inicio da producdo dos cafezais plantados em meados dos anos 90. Foi apenas em 1906, diante da previsio de safra extremamente elevada, que se tornou claro 0 diagnéstico de superpro- dugao: 0 Brasil exportava, em média, de 9 a 10 millides de sacas de café por ano. A safra de 1906, prevista em 16 milhées de sacas, atingiu cerca de 20 milhées, havendo ainda, no mercado, um estoque de 9 milhées de sacas. A entrada da safra brasileira em meados de 1906 iria provocar 0 declinio abrupto do preco do café e o agravamento da crise jé em curso. Diante dessa perspectiva, em fevereiro de 1906 reuniram-se, em Taubaté (SP), 0s Presidentes dos Estados de Séo Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e consideraram necesséria a intervencio no mercado cafeeiro a fim de evitar o aprofundamento da crise. Essa intervengao, estabelecida pelo chamado Convénio de Taubaté, implicava as seguin- tes acdes: 1. compra do excedente da safra de café pelo(s) governo(s); 2. obtengéo de empréstimos externos para gerar os recursos para a compra do excedente; 3. cobranga de um imposto, em ouro, sobre cada saca de café exportado a fim 5 de captar recursos para o servigo da divida externa incorrida para a compra . do excedente; 4. proibicéo de novas plantagdes de café naqueles Estados; | 5. para evitar a valorizac&io da moeda (em decorréncia da entrada de volumo- 805 empréstimos externos), seria estabelecida a Caixa de Conversao. Este se- ria um érgio emissor de moeda, com base no lastro de divisas representado pelos capitais externos que entravam no pais (sob a forma de empréstimos ou ' de investimento diretos). Esta emissao (e a converséo do papel-moeda emit do em divisas) se faria a uma taxa fixa de cimbio, impedindo assim a valori- zagao da moeda nacional (e, conseqiientemente, a perda de receita em mil- ris do produtor de café). ‘Acompra do excedente foi iniciada pelo governo do Estado de Sto Paulo, diante da resisténcia oferecida, no plano federal, por lideres de outros Estados (que reivindica- vam politicas semethantes para seus prodiutos). No ano seguinte, no entanto, 0 Governo Federal assumiu o programa de valorizacao do café. Desde esse momento e até 1929, embora sob diferentes formas, realizou-se algum tipo de defesa da producao cafeeira, 50 —_FORMAGAO ECONOMICA DO BRASIL A légica do programa de valorizacio do café era relativamente simples: tina como pressuposto a posicao quase monopolista do Brasil no mercado internacional de ‘café (0 que tornaria eficaz a intervencio em termos de efeito sobre o prego internacional). ‘Admitia-se também que os cafezais alternam colheitas abundantes ¢ colheitas relativa- mente pobres. Isso se verificava de modo relativamente regular na seqiiéncia das safras prasileiras de café, 0 que permitia supor que o excedente comprado e estocado num ano {de safra abundante poderia ser colocado no mercado nos anos seguintes em que a safra fosse reduzida. Bem-sucedidas as primeiras operagées valorizadoras, admitiu-se que as crises do mercado cafeeiro podiam ser definitivamente superadas pela urtilizacio desse esquema, a ponto de a defesa do café ter-se transformado em atividade permanente. Havia, no entanto, uma inconsisténcia fundamental na manutencio, por longo prazo, desses esqquemas de valorizacio do café. Celso Furtado entende que as economias primério-exportadoras apresentam ten- déncia a superprodugio: dada a existéncia de recursos abundantes (terra e mao-de-obra) tem face das limitadas alternativas de investimento nessas economias (que se reduzem a poucos produtos valorizados no mercado internacional), ha nitida tendéncia a reinvestir 6s lucros da atividade em sua prépria expansio, Isso se d4 mesmo quando os precos internacionais j4 mostram sinais de enfraquecimento: como a procura de um produto ‘como 0 café cresce apenas vegetativamente (ou seja, na proporgao do aumento das popu- laces consumidoras e ni na de sua renda), o crescimento da produgo tende a superar oda demanda, conduzindo a crises de superproducao (Furtado, 1968, Cap. 30). Evidentemente, a manutenco de um programa de defesa do café por longo pra- 20 agravava essa tendéncia. A proibigio a novas plantagdes de café era de dificil implementagdo: desse modo, principalmente nos anos 20, percebe-se claramente a enor- ‘me ampliagao da oferta brasileira, preparando assim a grande crise cafecira de 1929. Estima-se que, entre 1900 ¢ 1910, havia no Brasil cerca de 1.400 milhoes de pés de café; fem 1920, esse n imero havia subido para cerca de 1.800 milhées e em 1929 para cerca de 2,600 milhées, «uase duplicando o niimero de pés de café do inicio do século. Por outro ado, mesmo que essa proibicio fosse eficaz no Brasil, ela nao podia ser estendida aos ‘outros paises produtores de café, o que reforcava a tendéncia & superproducio no merca- do mundial. Alids, isso jé se verifica antes de 1930: a participagio do Brasil no mercado ‘mundial de café era, em média, de 75% de 1901 a 1913 ¢ caiu para 62% de 1921 a 1929. Como resultado, o problema da superprodugéo tendia a torar-se estrutural, embora seu efeito ficasse aculto, pois a valorizagéo do café impedia o declinio dos precos, como se pode observar na Tabela 2.5. (© CARE E.0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1899-1920) 51 Tabela 2.5 Brasil: produgao, exportacéo e preco internacional do café, 1900-1929. ‘Ano o Wy ) Produgao Exportagao Prego Internacional ‘1900/01 19.845, 9.155 7,08 1901/02 16.076 14.760 6.94 1902/03 19.640 13.157 6.54 1903/04 11.217 12.927 6,80 1904/05, 11.159 10.025 7.55 1905/06, 11.652 10.821 8,35 1906/07 20.807 828 1907/08 11.604 . 7,78 1908/09 19.945 12.658 7.55 4909/10 15.567 16.881 770 s910/11 11.543 9.724 9,10 i912 44.031 11.258 11,80 1912/13, 13.518 12.080 19,55 1919/14 13.754 13,268 12.45 1914/15, 15.151 11.270 10,95 1915/16 15.73 17.081 9,60 1916/17 13.891 13.089 9,85 1917/18 15.606 10.608 9.55 1918/19 11.781 7.433 11,55 1919/20 8.870 12.963 19,50 9201 17.116 11.525 19.50 | s92t/22 14.276 12.369 10,70 1922/23, 14.289 12.673 42,90 923/24 15.882 14.488 13,50 1924/05 14.801 14.208 17,50 1925/26 15.997 13.482 22,30 1928/27 18.348 19.751 21,60, 1927/28 27.848 15.115 18,50 928/29 16.275 13.881 21,90 1929/30 29.178 14.281 20,40 Notas: (De (i) Quantidades de 1.000 sacas de 60 kg. (Gt) Prego era centavos de dar por libra peso. Fonte: Bach e Greenhill (1992), apéndice estaistico, Tabelas 1.3, 1.6.¢ 1.8. Por ocasido da safra de 1929/30 conjugaram-se varios efeitos que destruiram as bases sobre as quais se sustentava 0 programa de valorizacio do café. Além do crescimen- to da capacidade produtiva dos cafezais brasileiros nos anos 20, trés safras de café (1927/ 8, 1928/9 ¢ 1929/30) foram elevadas, ndo registrando a alternancia usual entre safras “boas” e safras “ruins”, Assim, aumentava substancialmente 0 excedente de café a ser estocado e, conseqiientemente, o volume de recursos financeiros necessdrios para a com- pra desses estoques. Além disso, a quebra da bolsa de New York, em outubro de 1929, iniciava longo perfodo de crise da economia norte-americana e mundial com dois efeitos perversos para a economia cafeeira: de um lado, o impacto negativo sobre a demanda expresso pela abrupta redugo dos pregos internacionais do produto; de outro, a imediata 52 FORMAGAO ECONOMICA Do BRASIL retragdo dos mercados financeiros internacionais que dificultava a obtencio de novos cempréstimos externos para a compra dos excedentes de caf. ‘Mesmo apés a crise de 29 foi possivel conseguir um empréstimo externo para a defesa do café que se mostrou insuficiente para fazer frente A dimensao do excedente € impedir a queda do preco do café, Por outro lado, o entéo Presidente da Reptblica, Wa- shington Lufs, em nome de sua politica monetéria (que s6 admitia a emisso de moeda ‘com base no lastro em divisas da Caixa de Estabilizacao), recusou a proposta, oriunda da cafeicultura, de emissio de papel-moeda para a compra do excedente da produgio cafeeira. Arise de 1929, portanto, precipitou a destrui¢ao do programa de defesa do café, fechamento da Caixa de Estabilizacao (pela répida evaséo das divisas ali depositadas) , em certo sentido, a propria Revolugao de 1930 que encerrou o periodo conhecido como Primeira Repiblica. E inegavel que a valorizacio do café esteve entre as mais importantes politicas levadas & frente pelo Governo durante a Primeira Repiiblica. Sua dimensao acabou por interferir na execugdo de politicas tipicamente nacionais, como a monetdria ¢ ¢ cambial, como examinamos mais adiante. E importante, no entanto, ressaltar que a economia cafeeira néo se resume & fazenda ¢ aos fazendeiros de café. Nas éreas cafeeiras ha ampla diversificacao da ativida- de econdmica, expressa principalmente pela urbanizacio acelerada de alguns nticleos, Além disso, outras producées merecem ser referidas por sua importncia no plano nacio- nal ou por serem o nticleo de economias regionais bastante sélidas. A esses temas nos voltamos a seguir. B. DIVERSIFICAGAO DA ATIVIDADE NA ECONOMIA CAFEEIRA: A URBANIZAGAO Embora a atividade agricola seja o micleo da economia cafeeira, seria um engano imagind-la como uma sociedade estritamente rural. A economia cafeeira gerou ampla diversificagio da atividade econémica (antes mesmo do desenvolvimento da indiistria) de modo a estimular a expansio de cidades. Esse resultado € menos perceptivel na regizo fluminense, pois a cidade do Rio de Janeiro, como capital do pais, jé era importante ticleo populacional, politico, administrativo e comercial antes mesmo da implantagao do café. O comércio de café consolidou a posi¢do da cidade do Rio de Janeiro como principal riicleo urbano brasileiro por longo tempo. J4 em So Paulo, a diversificacdo da atividade econémica provocada pela expan- io cafeeita foi mais evidente, pois os nticleos urbanos pré-existentes eram pouco expres- sivos (inclusive a capital da entéo Provincia, a cidade dle Sao Paulo). Em 1872, a popula- do da capital era de 23.000 habitantes, indice claro de seu limitado desenvolvimento. ‘A primeira atividade induzida pela expansao do café foi, evidentemente, a comer- cial: 0s comissérios de café, intermediirios entre os fazendeiros € os exportadores de café, instalaram-se principalmente na cidade portuétia de Santos. Por uma comissao (em geral de 3% do valor das vendas), negociavam o café do fazendeiro com 0 exportador. Este era, em geral, o agente de uma casa estrangeira que adquiria o café para envié-lo & Europa ou 10s Estados Unidos. Nos meados do século XIX, importantes casas estrangeiras (como E. Johnston, inglesa, e Theodor Wille, alem) instalaram filiais em Santos para agilizar suas (© CAFE 0 CRESCIMENTO DA INDUSTRIA DURANTE A PRIMEIRA REPUBLICA (1889-1930) 53 compras de café. E importante notar que a atividade comercial logo se associou a financel- za: 0s comissérios eram usualmente “banqueios” dos fazendeiros, fazendo adiantamen- tos em “conta-corrente” que seriam descontados por ocasiio da safra. O comércio de café atraiu também bancos estrangeiros que se instalaram em Santos, tendo em vista as opera- ‘goes financeiras decorrentes do movimento de exportacao ¢ importacéo daquele porto. Anda no perfoco imperial, dois bancos ingleses ~ London & Brazilian Banke English Bank of Rio de Janeiro ~ instalaram agéncias em Santos; seus nomes indicam claramente © objetivo de realizarem negécios com 0 Brasil no momento em que o café constitufa 0 principal produto do comércio exterior A diversificacio da economia ampliow-se com a construcdo das estradas de ferro. As dificuldades 0 custo do transporte por tropas de mulas estimularam a construcao de ferrovias. A zona cafeeira do Vale do Paraiba contou, jé na déeada de 1860, com a estrada de ferro D. Pedro II (depois Central do Brasil) que ligava o porto do Rio de Janeiro até a cidade de Cruzeiro. Em Sao Paulo, a primeira linha foi a de Santos a Jundiai, iniciada por Maud (lrineu Evangelista de Souza) e transferida A empresa inglesa The Séo Paulo Railway Co, Ltd, numa negociacéo em que Mau se sentitlesado em seus direitos. Essa linha foi inaugurada em 1867 e logo se props seu prolongamento além de Jundiai. For- ‘maram-se, entéo, empresas nacionais que ocuparam progressivamente o interior paulista (como @ Companhia Paulista, a Mojiana, a Sorocabana, a Ituana, a Bragantina, a Rio Claro, a Araraquarense e, jd no comeco do século XX, a Noroeste e outras de menor expresso). A maior parte dessas empresas formou-se com capitais nacionais, originérios da atividade rural ou do comércio e teve algum impacto sobre o processo de urbaniza¢éo. Suas sedes e oficinas localizaram-se em niicleos urbanos (como Jundial, Campinas, Rio Claro, Sorocaba), criando novos empregos e estimulando a economia dessas cidades. Em particular, a capital da entao Provincia ~ a cidade de Sao Paulo — foi beneficiada pelo surto ferrovisrio, pois ela adquiriu um novo cardter: além de ser o centro administrativo provin- cial, muitos fazendeiros vieram residir na capital (pois agora, com a ferrovia, era facil 0 deslocamento até suas fazendas no interior). Em conseqiiéneia disso, houve certo adensamento econdmico da capital que passou também a centralizar os principais negéci-- 5; 0 grande comércio de importagao e os bancos nacionais e estrangeiros passaram a ‘manter na cidade de Sao Paulo suas matrizes ou agéncias mais importantes; instalaram-se ‘empresas de servicos urbanos (iluminacdo a gés, transporte por bondes de tracéo animal, ‘gua € esgoto e, na tiltima década do século XIX, as primeiras experiéncias com telefonia ‘ecnergia elétrica). Também nos tiltimos anos do século XIX, instalaram-se algumas induis- ttias de grande porte, como observamos em t6pico especifico mais adiante. Em 1699, a empresa canadense The Sao Paulo Tramway, Light and Power Co. Ltd. estabeleceu-se em Sao Paulo: inicialmente tinha a concessio para construir e operar li- nas de bonde com tragio elétrica na capital, mas expandiu-se rapidamente, passando a fomecer energia elétrica na capital e em algumas cidades do interior. Mais tarde, absor- ‘veu a empresa de gés inglesa ¢ a empresa telefénica nacional que serviam a capital. O ‘mesmo grupo canadense constituiu no Rio de Janeiro uma empresa semelhante que tam- \bém absorveu grande parte dos servigos urbanos daquela cidade* 4. ‘Saes (1986a) mostra esta dversificagio de forma minuciosa para Sao Paulo e para as principaiscidades do Estado. 54 FORWAGAO PCONOMICA DO BRASIL Percebe-se, portanto, que a economia cafeeira néo se restringiu a atividade rural 20 comércio do produto de exportacao. Ela gerou o que Wilson Cano chamou de “com- plexo econémico” ot “complexo cafeeiro” (Cano, 1977), ou seja, um conjunto de ativida- des relativamente integradas e que sustentam, em especial, 0 acelerado processo de urba- nizacio da capital do Estado. Paralelamente, outros nticleos urbanos reproduziram, em menor dimensio, o fendmeno da urbanizaco da capital: pequenos bancos de ambito Jocal, empresas de transporte urbano, de iluminago e de energia elétrica, de telefones disseminaram-se pelas cidades do interior, somando-se ao comércio local ou regional que tradicionalmente existia nessas cidades. Santos e Campinas, como miicleos mais expressi- vos, também observaram a presenca de empresas de maior dimenséo. Por outro lado, cumpre assinalar uma caracteristica importante nesse processo de diversificagdo: exceto pela presenca do capital estrangeiro, nao ha “especializacao” dos capitais investidos em cada atividade. Fm geral, foram grandes fazendeiros e/ou comerci- antes de café que constituiram as empresas ferrovidrias nacionais como seus acionistas € diretores. O mesmo se pode dizer dos bancos, do grande comércio de importagio, das grandes casas comissétias e das empresas de servicos urbanos. Mesmo algumas inctistrias tiveram origem semelhante, Nesse sentido, parece razodivel caracterizar um “capital cafe- iro” que seria, a um tempo, agrério, comercial, industrial, bancério (Silva, 1976). Parece razodvel afirmar que a “face urbana’ do capital cafeeiro tende a fortalecer-se a0 longo do tempo, diante da atividade puramente agraria. Uma tentativa de aproximagao para essa hipétese 6 exposta na Tabela 2.6 em que se comparam indicadores da producao de café, da receita ferrovidria e de depésitos bancétios. ‘Tabela 2.6 Sao Paulo: valor do café (entradas em Santos), receitas das empresas fer- rovidrias ¢ saldo dos depésitos bancérios, 1895-1928 (valores em contos de réis ~ média anual do periodo). Periodo: 0 wy wy) au una Valordo —-Recelta das (%), Depésitos (%) café Ferrovias bancérios. 1995/99 292.112 62.191 219 117.284 40, igoo/o4 260.818 70.178 269 91,316 35,0 1905/09 (252.907 80.287 318 116.286 46.0 yo104 962.484 100.967 277 233.607 45 1015/19 414.886 114.689 2768 440,754 1062 192024 = 1.262.781 242.131 19.2 1.250.553 33,0 1925728 1.631261 954.218 23,4 2.183.517 1920 Fontes: (1) Araujo Filho (1969), p. 172-174 (al) Andro Estatistico de Sao Paulo (vérios anes). (Uy Saes (19860), apendice, p. 208-238, Embora os dados néo sejam estritamente compardveis, eles sugerem claramente ‘que 08 segmentos urbanos do capital cafeeiro tém expressiva participacao no conjunto da economia cafeeira. Por exemplo: a receita das empresas ferroviirias de Sao Paulo, de 1895 a 1928, representou de 20 a 30% do valor das entradas de café em Santos. Como as empresas ferrovidrias eram cerca de uma dezena (quatro de grande porte — Sio Paulo Railway, Paulista, Mojiana e Sorocabana —e as demais de menor expresso), é féeil perce-

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