You are on page 1of 3
DESIGUALDADES SOCIAIS E OPORTUNIDADE EDUCACIONAL A PRODUGAO DO FRACASSO Carlos A. Hasenbalg Do Centro de Estudos Afro-Asidticos/RJ e do Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro — IUPERJ @ ou tivesse que resumir em pou- cas palavras e, de uma maneira simplificada, os resultados da pes- quisa recentemente concluida pela equipe da Fundacio Carlos Chagas!, diria que o negro, frente & educaco, enfrenta trés impas- ses (algo que todos nés suspeité- vamos e que agora est confirma- do com luxo de detalhes). Esses impasses seriam, para mim, os se- guintes: primeiro, o negro ingressa ou no ingressa no sistema formal de ensino? Segundo: 0 negro con: segue vencer a barreira da 1? série do 1? grau, enfim, consegue se ak febetizar ou no? Terceiro impas- se: 0 negro consegue completar as quatro primeiras séries do 1? grau, 0 antigo primario? Acho que esses seriam os trés impasses basicos, no s6 em Sao Pau: lo, mas também no Brasil; talvez mais para o resto do Brasil, porque Sao Paulo apresenta indicadores edu cacionais bastante privilegiados dentro do contexto brasileiro, Ha uma tese de mestrado defendida em 1879 no IUPERJ, que traz contribuig6es importantes, tam- 24 Cad. Pesq. (63) nov. 1987 bém, para esta questo. Essa tese combina a andlise quantitativa de dados, colhidos numa pesquisa tipo survey, com uma analise qualitativa de entrevistas ‘com professores e observaco participante. Conside- ro que essa tese, em certo sentido, complementa os resultados da pesquisa da Funda¢ao Carlos Chagas. A\leitura dos dois textos enriquece o resultado de um @ de outro. Maria Teresa Ramos Dias (falecida tragicamente ‘em marco de 1980, no dia da inauguraco do douto- rado do IUPERJ) é a autora do trabalho. Ela procu- rou, no seu estudo sobre o sistema de ensino primé rio no Rio de Janeiro, confirmar a teoria do socilogo francés, Pierre Bourdieu, segundo a qual as criangas das classes populares, através de sua socialize¢ao priméria dentro da familia, no adquirem o capital cultural e lingilstico que as habilite a decodificar 0 ti: po de mensagem que a escola transmite, mensagem que est, digamos assim, armada em termos do que Bourdieu chema de “cultura dominante ou cultura le- gitima’’. Um dia Maria Teresa chegou com um con- junto de tabelas nas quais apareciam resultados que ‘no batiam em absoluto com a teoria do capital cul- tural e linglistico. As tabelas indicavam que em es- colas de classe média, alunos pobres tinham um bom desempenho e, vice-versa, em escolas de classes po- pulares, alunos de classe média tinham um baixo de- ‘sempenho. Ou soja, 0 aluno de classe social diferente da clientela modal da escola tinha seu desempenho préximo & média da escola. Ora, se alunos pobres ti- ham um bom desempenho nas escolas de classe media, a teoria do capital cultural e lingiistico nfo estava correta. A partir dessa constatacdo ela procu- rou verificar 0 que estava acontecendo, porque a teoria de Bourdieu nao se confirmava no caso do Brasil — pelo menos do Rio de Janeiro — onde ela trabalhou com quatro escolas da rede municipal de ensino primério. No plano da andlise quantitativa, Maria Teresa organizou os dados de duas formas complementa- res. Em primeiro lugar, agrupou os dados referentes a08 alunos das quatro escolas, estabeleceu correla co entre origem social e desernpenho escolar classi- ficado em duas categorias: sucesso e fracasso esco- lar. Através dessa anélise, constatou para o conjunto dos alunos freqentando as quatro escolas, uma for- tissima correlagao entre desempenho e nivel socio- econdmico: alunos pobres — fracasso escolar, de- morando mais de dois anos para so alfabetizarem; alunos no-pobres ou de classe média — altas taxas de sucesso, alfabetizagao em até dois anos. (0 segundo passo — e aqui é que destaco o as- 1 Em 1996, @ Fundardo Carlos Chagas e o Conselho de Partcipe ‘plo e Desenvolvimento Negro, a pedido da Secretaria de Educe {$80 do Extado de Sto Paulo, realzaram urn Diggndstico sobre a Suacio educacional do negro no Estado. O trabalho consta de tres partes: uma reviaio biblogrfica dos estudos © pesquicas {que tataram dreta ou indretamente, da situac8o educacional {do negro no Brasil, uma revsio dos estudos pesqusas, sobre ‘2 dzcriminacSo racial em materia didaticos paradidaticos;e, finalmente, ume andlise dos dados sobre a educarSo de seg ‘mentos rac, @ parr de informarbes coletadas pela Fundago Instituto Brasileiro de Geogratia Estaistica ~ IBGE, ecto interessante — 6 que, quando se efetua essa mesma andlise entre origem social e desempenho, orem dentro de cada escola, essa correlaco prati- camente desaparece. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que através de certos mecanismos, as escolas primarias piblicas tendem a recrutar clientelas social- ‘mente homogéneas. Obviamente que ha um peque- no grupo de alunos que séo desviantes, mas ha um ‘mecanismo pelo qual as escolas primérias criam uma clientela socialmente homogénea. Ou seja, a escola recruta, majoritariamente, alunos de classe media ou, majoritariamente, alunos pobres. A partir dessas caracteristicas sociais da clientela, a escola cria uma norma institucional de desempenho tal que, se a clientela & de classe media, o desempenho da escola 6 bom, a taxa de sucesso 6 altissima; se a clientela @ pobre, a taxa de fracasso é altissima Por que ocorre esse mecanismo de constituigio de clientelas relativamente homogéneas do ponto de vista da sua origem social? Um dos motivos 6 que o equipamento social, as escolas esto distribuidas na cidade — no caso do Rio de Janeiro — para atender as criangas de determinadas regides, de partes da ci- dade; e como todos sabem, as classes sociais esto espacialmente segregadas. Isso significa que uma es cola implantada na periferia do Rio de Janeiro vai ab- sorver fundamentalmente uma clientela pobre; uma escola na zona sul vai absorver uma clientela predo- minantemente de classe média. Esse @ um dos meca- rnismos que explicam a constituico de clientelas es- colares relativamente homogéneas, mas hé outros. Por exemplo, pensemos nas partes da cidade que ‘so socialmente heterogéneas. Entre Ipanema e Le- blon se situa a Cruzada Sao Sebastido, que @ um conjunto habitacional de populaco pobre. Ou en- to, na Gavea, onde reside uma parte da burguesia do Rio de Janeiro ao lado da Rocinha. Nesse tipo de regio, ou em partes da cidade onde vive uma popu- ago muito heterogénea, também se reproduz um mecanismo tal que, a crianga da favela ou a crianga da Cruzada Séo Sebastido vai para um tipo de escola a crianca de classe média vai para outra escola, que podem estar 2 distancia de uma, duas quadras uma da outra, Ha toda uma série de mecanismos discrimi- natérios de admissio, de forma que a escola de clas- se média, que tem que defender o seu status, que tem que defender a sua imagem, que tem que defen: der 0 seu desempenho recusa a crianca pobre. Esta 6, entdo, encaminhada para outra escola, que vai ser tipicamente de crianca pobre ou de crianga favelada. Através desse tipo de mecanismo & que as esco- las constituem essas clientelas homogéneas. A partir da constituigéo dessas clientelas homogéneas, a es cola desenvolve um padréo ou norma de desempe nho. A escola de padrio social mais alto possibilta um bom desempenho (e as diferencas sio brutais, Desigualdades soviais ¢ oportunidade educacional — a produgao do fracaso 25 so diferengas que vo de 80/90% de sucesso nas escolas de clientela mais rica, de classe média, para 60/70% de fracasso nas escolas de clientela mais po- bre). Este mecanismo ocorre mesmo em escolas do sistema piblico que, supostamente, deveriam ofere- cer educagao igual para todos. Por que isso ocorre? Aqui destaco alguns subsi- dios dessa pesquisa que ajudam a entender parte das constatacdes verificadas na pesquisa da Fundag3o Carlos Chagas e que apelam por muita atenco quan do se pensa em termos de politicas publicas que pos- sam vir a mudar esta situaco. Até agora eu estava falando em termos de classe social. E como que en- tra a raga? O que Maria Teresa observa é que & igual dade de origem social, 0 aluno negro apresenta o pior desempenho (o que coincide com a pesquisa da- qui). Isto &, a crianca negra, em geral, mesmo que seja da mesma classe social da crianca branca tem um desempenho pior. Como @ que se explica esse desempenho? Se explica, fundamentalmente, atra- vés desse mecanismo de selecéo. Mesmo conside- rando criancas da mesma classe social, as criancas negras tendem a ser recrutadas para escolas de alu- nado mais pobre. E via tal mecanismo de selecdo que a crianca negra acaba se dirigindo as escolas que atendem a clientela mais pobre. € através desse me- canismo de selecao ou de absoreao que o aluno ne- gro acaba apresentando um desempenho escolar mais fraco do que os alunos brancos da mesma clas- se social. Procurando entender este mecanismo — conversando com os professores, observando como funcionam as escolas de morro e as escolas de classe media — Maria Teresa notou que os professores es- 10 muito mal aparelhados para lidarem com essas, hoterogeneidades do alunado: heterogeneidades de classes, heterogeneidades étnicas ou raciais. Basica- mente a idéia 6 de que a atuagao do professorado es- 18 permeada pela ideologia que legitima as desigual- dades sociais, moldando sua percepco sobre a clienteta: quando se trata de um professor que trabi tha em escola para classe média, existe o que Maria Tereza chama de um “otimismo educacional”, ou se- ja, 0 relacionamento com os pais da crianga 6 bom, a imagem da escola é preservada, 0 professor se em- penha para que os alunos tenham efetivamente um bom rendimento, porque h que manter a imagem dessa escola como uma escola boa. Todos se orien- tam para a produce do sucesso escolar das crian- gas. Nas escolas de clientela pobre, onde obviamen- te a crianca negra esta sobre-representada, ocorre exatamente o oposto. Alo que existe é 0 que Maria Tereza chama de "‘ideologia da impoténcia”. A per- cepedo que os professores tém desse alunado é que eles sio filhos de pais bébados, de pais desemprega- dos, de familias incompletas, que os meninos vem sujos para a escola, que no prestam atencio, etc. Muitos componentes dessa profecia se auto- realizam. Uma defini¢a0 inicial da situaco — eu per- cebo meus alunos como no educaveis, porque ven de familias probleméticas, porque eles mesmos 80 problematicos, sujos, mal alimentados — afeta os re- sultados, mesmo quando ela é falsa: eu defini essa 26 Cad. Pesg. (63) nov. 1987 crianga, logo de inicio, como no educavel e a minha atuacdo pedagdgica vai ser tal, que as criangas vo acabar no sendo educadas. Portanto, minha defini {¢80 inicial, mesmo quando é falsa, se realiza no pro- Cesso educacional. Ento, considero que este seja o mecanismo bésico que explique o resultado diferente produzido por escolas pablicas que, supostamente, deveriam promover um mesmo tipo de educacio. Parece-me que esse é um dos aspectos que ajudam a F 08 resultados da pesquisa da Fundacao Car- los Chagas. Resumindo, destaco esses dois fatores que ex: plicariam a diferenca de rendimento escolar entre alunos ricos e pobres, brancos e negros: um meca nismo de recrutamento, ou seja, 0 aluno negro ou 0 aluno pobre é absarvido pela rede escolar de maneira diferente do aluno de classe média ou nao pobre; uma vez constituida esta clientela socialmente homo- génea, os professores atuam no sentido de reforcar a ferenga de que os alunos pobres e negros nao séo educaveis. Considero que nao se deve parar na constataco de que as escolas funcionam assim, mas pensar um pouco na maneira de melhorar esta situagao. Porque isso me reporta a um outro capitulo do Diagndstico da Fundaco Carlos Chagas, que ¢ 0 capitulo do pro- blema do racismo dos textos escolares e da Literatu- ra Infanto-Juvenil. Eu diria que esta questo passa a ser importante quando o aluno tem oportunidade de permanecer na escola. O problema 6 que a crianca que freqenta a escola durante um ano e repete a 1? série se evade da escola. Até o final da 1? série do 1? grau o livro didatico nem chega a ser importante. A crianga nao tem oportunidade de entrar em contato com 0 racismo do livro didatico. Penso, entiio, que sao varias as frentes de im- plantaco € planejamento de politicas educacionais visando eliminar as desigualdades sociais @ raciais produzidas dentro do sistema de ensino piblico & gratuito. Nao estou falando, aqui, da diferenca que possa existir entre o rendimento da escola pibblica e da escola privada, que atende a classe média alta, ‘mas estou simplesmente pensando na educaco ele- mentar oferecida pela escola piblica. € a escola pi blica, e no nivel elementar, que produz estas atrocidades que esto rolatadas nestas duas pesquisas a que me referi REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS DIAS, M.T.R. Desigualdades socais @ oportunidede educacional produc do fracasso, Rio de Janeiro, 1979. Dissent. (mest) IUPERJ. FUNDAGAO Carlos Chagas. Diagndstico sabre a stuagto duce ional de negros (pretos e pardos) no Estado de S80 Pauio. ‘So Paulo, 1886. 2v.

You might also like