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JOSE MIGUEL WISNIK On EO SENTIDO™ Uma outra historia das misicas edie © 1989 « 1999 by Jone igual Wie ape: Mocma Casket Prope ingle Spans Revi: Maria gina Machado ‘ne Maria Barbe Wi ot 8 3300 3 Som mui Tora 21%7952 Todo or ieios dena ego reservados Ru Bande Pais, 702, 6.72 (04532.002 — Sto Paulo — sr Telefe: (011) 865-0801 ac (01) 86-0814 ail oleras@misenetpcom br AGRADECIMENTOS A Hélio Ziskind, cujo trabalho abriu e acrescentou muitas trithas de som e de sentido a este livro. A Ricardo Breim, mestre de harmo- nias, ouvido e coracio absolutos. A Mauricio Dottori, pela generosa competéncia com que ilustrou o texto ‘A Willy Corréa de Oliveira, um brinde no meio do coro das con- tradigdes. A Edson da Cunha Swain, dentista transcendental, que afi- nou o teclado cosmobiolégico. ‘Aos alunos que acompanharam o curso “O som ¢ 0 sentido”, pelo interesse, inquietacées, contribuigées. Aos promotores desse curso em varias cidades: Centro de Estudos da Escola da Vila (Sao Paulo), Edi- tora Brasiliense (Sdo Paulo), Sui generis (Porto Alegre), ssc (Cutiti- ba), Escola Cendrio/Ner-FUNARTE (Rio de Janeiro). Em especial: Rosa Iavelber (Escola da Vila), Marcelo Levi e Flora Venincio (Brasiliense), Leoberto Brancher e Jussara Quadros (Porto Alegre), Celise Helena Niero (Curitiba), Adauto Novaes (Rio). ‘Aos miisicos em Sao Paulo: Na Ozzetti, Vania Bastos, Suzana Sal- les, Bliete Negreitos, Teté Espindola e Cida Moreira, Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Carlos Renné, Itamar Assungao, Livio Tragtenberg, Péri- cles Cavalcanti, Hermelino Neder, Paulo Tatit, Walter Franco, Tom Zé, Arnaldo Antunes. A Fundagao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo, que financiou uma viagem para estudo do tema deste livro (1982),€4 Fun- dac3o Guggenheim, que me concedeu bolsa de pesquisa em 1984, da ual este livro resulta em parte. Aos editores da primeira edi¢io, Companhia das Letras ¢ do Livro, que encamparam em 1989 as dificuldades de producio de Circulo 5 ‘um livro-fita. Ao pessoal da equipe de produgio do Circulo do Livro, pela gentileza e atengio com que contribuiu, naquela oportunidade, para a solugio das dificuldades técnicas. ‘A Marcia Maria Vinci de Moraes, pela mais-que-datilografia ‘A Elisa Zein, José Antonio Pasta Jtinior, Celia Fid, Marilene Fe- linto, Joo Camillo Pena, Viriato Campelo, Zé Tatt, Paulo Neves, pe- Ia ajuda, forga e inspiragao. A Laura, miisica silenciosa. Sao Paulo, junho de 1989) agosto de 1998 Jost Miguel Wisnik INDICE Apresenmtagdo eee eceeeeeee I. Som, ruido e siléncio Fisica ¢ metafisica do som 1. Sinal de onda. Som e siléncio . 2, Periodicidade e pulio 3. Duragées ealturas ..... 4. Complexidade da onda sonora 5. Fase e defasagem — Som-ruido 6. Coda . we Aneropologia do ruido 1. Some sacrificio . 2, Recalque eretorno do ruido 3. Coda . bees Introdugao & miisica HW. Modal ...0.00000ceeeeces Composigio das escales 1. Osom acednico ¢ os delfins de Apolo 2. A escala pentaténica e a economia politica 3, O tempo circular € a tonicd 6.2.6... 4. A excala diatinica eo problema do tritono 5. Sociologia das aleuras ‘Tertitérios modais .. 1, Arabese indianos 2, Pigmeus e balineses - 15 7 ty 19) - 20 2) a 76) - 30 32 aoe) - 4 + 53 59 pao) .71 we 7H ee) . 78 . 81 we 83 - 89 - 89 - 94 3. Modalismo e minimalismo ‘Harmonia das esferas. 1. A vitrola de Platao 2. O laboratério das alturas UL Tonal ...... papboosendos LA grande diacronia 2. Harmonia das esferas em "pregn 3. O pacto : 4. Um parintesefiustico 5. Sonata dialética 6. Texturas e parédia 7. Um apéndice sobre 0 mito IV. Serial V. Simuleaneidades Notas ...... Discografia do co Ficha técnica Atilha Ossom eo sint Roteiro doc ... Indice remissivo ........ 96 +99 99 -105 ell 113 LM? £135 143 e143) +158 161 im 173 177 18) oe 184 -189) 2194 2195 202 + ++207 2-221 = +253 = 255 257 -259 261 279 APRESENTAGAO Este é um livro para mtisicos e ndo-miisicos. Ele fala do uso hu- mano do som ¢ da historia desse uso, Mas no é uma “histéria da mui- sica” no seu sentido mais usual: historia de estilos e de autores, suas biografias, idiossincrasias ¢ patticularidades composicionais também uma histéria da misica tonal européia entendida como misi- ca universal, E, sim, um livro sobre vozes, siléncios, barulhos, acordes, tocatas ¢ fugas, em diferentes sociedades e tempos. Modos escalates em contraponto com modos de producao. Som dos anjos, dos astros, dos deuses, dos deménios; mtisica dos homens, das musas, das mé- quinas. Seé histéria, 0 livro poderia ser definido como 0 esbogo de uma histéria da linguagem musical, em seu contracanto com a sociedade € com certas construgées mitolégicas, iioséficas¢ literatias. O micieo dessa histéria esta nos capitulos “Modal”, “Tonal” e “Se- rial”, precedidos de uma descrigéo geral do fenémeno sonoro ¢ de seus modos de uso (“Som, ruido e silencio”), e seguidos de um comentério sobre as miisicas da atualidade (“Simultaneidades”). © campo modal tal como é entendido aqui, abrange toda a vasta gama das tradigdes pré-modernas: as miisicas dos povos africanos, dos indianos, chineses, japoneses, érabes, indonésios, indigenas das Amé cas, entre outras culturas. Ele inclui também a tradicdo grega antiga (que s6 conhecemos na teoria) e o canto gregoriano, que se consti- ‘tuem, ambos, em estigios modais da misica do Ocidente. tonal abrange 0 arco histérico que vai do desenvolvimento da Polifonia medieval 20 atonalismo (formagio, fastigio e dispersio do sistema ronal na miisica chamada “etudita’, da Europa), € tem seu mo- 9 mento forte entre Bach e Wagner (ou Mahler), do barroco ao roman- tismo tardio, passando pelo estilo classico. serial compreende as formas radicais da miisica de vanguarda no século Xx, representadas por Schoenberg e Webern, ¢ pelos seus desdobramentos, que levam & muisica eletronica, formas essas que se- recentes & miisica ro compatadas, por contraste, com as tendént repetitiva, também chamada minimalista. Habitualmente as historias da misica sao histérias da zona tonal, indo do barroco z Debussy, com uma breve incursao pelo dodecafo- nismo e um final suspensivo sobre a muisica atual, em que o fio da his- téria se perde na completa impossibilidade de articular 0 passado e 0 presente. Elas contém muitas veres introdugdes sobre a musica modal, a qual permanece, por sua vez, completamente desligada da tradiga0 tonal européia e moderna, quando nao exética em sua estaticidade pré- moderna. Em Uma nova historia da miisica (1950), Otto Maria Carpeaux resolvett o problema pelo avesso, assumindo com todas as letras aquilo que considerou ser uma condigao inevitével da nossa escuta, a sua oci- dentalidade. Em outtas palavras, gravitamos, segundo Carpeaux, em torno da evolugio tonal européia, ¢ nisso consistiria necessariamente para nés a (histéria da) musica. Convencido, como Spengler e Toyn- bee, de que “a miisica, assim como a entendemos, é um fendmeno pecifico da civilizagio ocidental”, de que “em nenhuma outta civiliz G40 ocupa um compositor a posigao central de Beethoven na histéria da nossa civilizagio”, e de que “nenhuma outta civilizagdo produziu fenémeno comparivel a polifonia de Bach”, Carpeaux omitiu coeren- temente o capitulo costumciro sobre miisicas modais “étnicas’, e co- meca a sua histéria pelas melodias diaténicas (e terminantemente oci- dentais) do canto gregoriano, porque elas sao a base sobre a qual se constitui 0 tonalismo. No entanto, fica cada vez mais claro, nos tiltimos trinta ou qua- renta anos, que a misica “ocidental” (tal como € referida por Otto Ma- ria Carpeaux como sendo “a” mtisica) nao descreve mais a prépria “mi- sica” ocidental. Aliés, Carpeaux percebera esse ponto de ruptura, 20 terminar a sua histéria dizendo que a miisica concreta e a mtisica ele- tronica “nada tem nem podergo ter em comum com aquilo que a par- tir do século xin até 1950 se chamava musica”. E conclui: “O assunto do presente livro est4, portanto, encerrado”. Modelar sob tantos aspec- 10 tos, o livro de Carpeaux é também um modelo do critério tonal “clés- sico” como modo de leitura da histéria, que se vé obrigada ai a fechar- se sobre si mesma diante da verdadeira mutacio que se operou nas mii- sicas deste século. Assistimos hoje, 20 que tudo indica, ao fim do grande arco evolu- tivo da miisica ocidental, que vem do cantochao a polifonia, passando através do tonalismo ¢ indo se dispersar no atonalismo, no serialismo ‘ena misica eletrOnica, Esse arco evolutivo, que compreende o grande ciclo de uma miisica voltada para o parimetro das altucas melédicas (cm detrimento do pulso, dominante nas mtsicas modais), é um traco singularizador da misica ocidental. E possivel que esse ciclo tenha se consumado na metade do século xX e que estejamos vivendo o inter- mezzo de um grande deslocamento de parimetros, em que o pulso vol- aa ter uma atuagio decisiva (as musicas populares, o jazz, 0 rock € 0 minimalismo dio sinais dessa diregao). Trata-se entdo de interpretar esse deslocamento, que pode ser lido ‘do apenas como uma espécie de “anomalia’ final que perturba o bom andamento da tradigio musical erudita, mas como o termo (ou 6 elo) de um processo que esté contido nela desde as suas origens. Entre os impasses declarados de algumas das linhas evolutivas da modernidade e o impacto da repeti¢ao nos meios de massa, fica im- possivel pensar a multiplicidade das miisicas contemporsineas a no ser através de novos parimetros Em primeito lugar, hé um vazamento daqueles bolsbes que sepa- ravam tradicionalmente 0 erudito e 0 popular, além de que a misica ocidental redescobre as miisicas madais, com as quais se encontra em muitos pontos. Os balineses e os pigmeus do Gabao so contempor’- neos de Stockhausen. Os cantores populares da Sardenha, com suas impressionantes polifonias, assim como as mulheres biilgaras (que man- tém vivo o canto imemorial da Tricia, pitria de Orfeu e Dionisio), s20 focos brilhantes das sonoridades presentes no mundo. O funk ea mii- sica eletrénica convergem juntamente no sintetizador. O jez e especial- mente o rock se alimentam da oscilagao ciclica entre processos elabo- rados e processos elementares. A cangio faz, em momentos prvilegiados, ponte entre a vanguarda e os meios de massa. A questao é, pois, repensar os fundamentos da histéria dos sons tendo em conta essa sincronia. Ela exige que o pensamento, ele mes- mo, se veja investido de uma propriedade musical: a polifonia e a pos- u sibilidade de aproximar linguagens aparentemente distantes ¢ incom- patives. Este livro quer ser, ao mesmo tempo, didatico ¢ ensaistico-inter- pretativo, Os termos técnicos sio evitados na medida em que nao pos- sam ser explicados e exemplificados (até onde isso ¢ possivel). Algumas especificages importantes foram deixadas para as notas, a0 final do li- vvr0. Nao se pede do leitor uma formagao musical, mas 0 senso da es- uta e uma disposigao para pensar, como na mtisica, em varias claves — onde se podem combinar a percepcio das sonoridades, a interasao corporal também 0 pensamento poético, histérico-social, antropol6- gico ou outro. As intengées didaticas, interpretativas ¢ polifénicas do livro ndo ica, acompanhan- do 0 percurso conceitual do livro através de um percurso sonoro, con- tido em ci cexemplos, extraidos is vezes de gravagoes existentes (principalmente ‘quando se trata das misicas modais), mas produzidos quase sempre a partir de sintetizadores e seqiienciadores (quando se trata de miisicas tonais ¢ seriais). Sem a intengao de reproduzir literalmente a versio original dessas pecas, no que diz respeito sua instrumentagao € ex- pressividade “naturais”, a versio seqiienciada permite tornar nitidas certas passagens, decompor seus elementos e analisé-los concretamen- te sem a mediagZo excessiva — e abstrata para 0 leigo — da termino- logia técnica. Deve ficar claro, no entanto, que 0 acompanhamento sonoro no poderiam se realizar sem a presenga da propria m . Neste, 0 Ieitor-ouvinte encontraré uma montagem de foi pensado como linearmente paralelo 20 desenvolvimento do livro, ‘embora vi incidindo sistematicamente sobre os pontos tratados 20 lon- 0 dos seus diversos capitulos. Oprou-se, na preparagzo da trilha, por um roteiro que atendesse as necessidades do préprio material musical, © que dé a ela uma certa autonomia em relacio ao livro, embora se ‘mantenha integrada a ele. Para facilitar a coordenagio entre a leitura aescuta, cada conceito, idéia ou obra presente no livro, que se encon- tre exemplificado no Cb, vem marcado no texto com um asterisco*. Assim, o leitor sabe que encontrard num lugar do Co (verificével no presente no final deste livro) a versio audivel do que se diz ali, ¢ pode ir procurando, através da escuta e da leitura alternadas, 0 seu onto de acerto entre osom ¢ 0 sentido. O livro nao pretende enfim “traduzir” o “sentido” — intraduztvel 12 — da misica. Ele pretende apenas se aproximar daquele limiar em que a miisica fala ao mesmo tempo ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir as outras linguagens, Esse limiar eseé fora e dentro da histéria. A miisica ensaia e antecipa aque- las transformagées que estio se dando, que vio se dar, ou que deve- riam se dar, na sociedade. 13 if SOM, RUIDO E SILENCIO FISICA E METAFISICA DO SOM 1. SINAL DE ONDA. SOM E SILENCIO Sabemos que 0 som é onda, que os corpos vibram, que essa vibra- «fo se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagacio on- dulatéria, que o nosso ouvido é capaz de capti-la e que o cérebro a in- terpreta, dando-Ihe configuragées e sentidos. Representar 0 som como uma onda significa que ele ocorre no ‘tempo sob a forma de uma periodicidade, ou seja, uma ocorréncia re- petida dentro de uma certa freqiiéncia Pevioicidade da onda sonora O som é 0 produto de uma seqliéncia rapidissima (e geralmente imperceptivel) de impulsdes€ repousos, de impulsos (que se represen- tam pela ascensao da onda) e de quedas efclicas desses impulsos, segui- das de sua reiteragio. A onda sonora, vista como um microcosmo, con- ‘tém sempre a partida e a contrapartida do movimento, num campo praticamente sinerénico (jé que 0 ataque ¢ 0 refluxo sucessivos da on- da sao a propria densificagao de um certo padrao do movimento, que se dé a ouvir através das camadas de ar). Nao é a matéria do ar que ca minha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa atra- 7 vvés da matéria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, 0 seu desenho. © som é, assim, 0 movimento em sua complementaridade, ins- crita na sua forma oscilatéria. Essa forma permite a muitas culturas pensé-lo como modelo de uma esséncia universal que seria regida pelo movimento permanente. O circulo do Tao, por exemplo, que contém 0 fmpeto yang e 0 repouso yin, & um recorte da mesma onda que costu- ‘mamos tomar, analogicamente, como representagao do som. 0 Tao do som Em outros termos (agora mais digitais do que analigicos), pode- se dizer que a onda sonora é formada de um sinal que se apresenta € de uma auséncia que pontua desde dentro, ou desde sempre, a apre- sentacio do sinal. (O timpano auditivo registra essa oscilagao como uma série de compressoes € descompressdes.) Sem este lapso, 0 som nao pode durar, nem sequer comecar. Nao hd som sem pausa. O tim- pano auditivo entraria em espasmo. O som € presenga e auséncia, ee td, por menos que isso aparega, permeado de siléncio, Hi tantos ou ais siléncios quantos sons no som, e por isso se pode dizer, com John Cage, que nenhum som teme o silencio que o extingue’ Mas também, de maneira reversa, ha sempre som dentro do siléncio: mesmo quando nfo ouvimos os barulhos do mundo, fechados numa cabine & prova de som, ouvimos o barulhismo do nosso préprio corpo produtor/recep- tor de ruidos (refiro-me a experiéncia de John Cage, que se tornou a 18 seu modo um marco na miisica contemporinea, ¢ que diz que, isolados expetimentalmente de todo ruido externo, escutamos no minimo 0 som grave da nossa pulsagio sanguinea e 0 agudo do nosso sistema nervoso). © mundo se apresenta suficientemente espacado (quanto mais nos aproximamos de suas texcuras minimas) para estar sempre vazado de vazios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho. 2. PERIODICIDADE E PULSO A onda sonora'é um sinal oscilante e recorrente, que retorna por periodos (repetindo certos padres no tempo). Isto quer dizer que, no caso do som, um sinal nunca esté s6: ele éa marca de uma propaga- 40, irradiagao de freqiiéncia Para dizer isso, podemos usar uma metéfora corporal: a onda so- nora obedece a um pulso, ela segue o principio da pulsagio. Bem a pro- posi ceirtre as escalas sonoras ¢ as escalas corporais com as quicis medimos o tempo. Porque 0 complexo corpo/mente é um medidor freqiiencial de freqiiéncias. Toda a nossa relagio com os universos sonoros ¢ a musica passa por certos padrées de pulsacio sométicos e psiquicos, com os {quis jogamos 20 ler 0 tempo e 0 som. No nivel somatico, temos principalmente o pulso saaguineo e cer- tas disposigdes musculares (que se relacionam sobretude com o andar « suas velocidades), além da respiracdo. A terminologia tradicional as- socia o ritmo a categoria do andamento, que tem sua medida média nno andante, sua forma mais lenta no largo, ¢ as indicagbes mais ripi- das associadas ja & corrida afetiva do allegro e do vivace (os andamen- tos se incluem num gradiente de disposigies fisicas e psicoldgicas). As- sim, também, um te6rico do século xvi sugeria que a unidade prética do ritmo musical, o padrao regular de todos os andamentos, seria “o pulso de uma pessoa de bom humor, fogosa ¢ leve, & tarde” (!).2 s indianos usam o batimenco do coragio ou 0 piscar do olho co- ‘mo referéncia, esse sltimo ja préximo de uma medida mais abstrata, como aquela que certos teéricos chamam “duragao de presenga” (a , € Fundamental pensar aqui nessa espécie de correspondéncia 19 maior unidade de tempo que conseguimos contar mentalmente sem subdividi-la), Essa seria uma unidade mental, relativamente variével de pessoa para pessoa ¢ que, como lembram bem os defensores da mui- sica in natura, € mais importante do que o tempo mecanizado do me- trdnomo € a cronomettia do segundo.” fundamento dessa unidade de presenga estaria possivelmente em certas freqiiéncias cerebrais, especialmente no ritmo alft (sobre 0 qual voltarei a falar, por causa de sua importancia para o caso das on- das sonoras), que alguns consideram como 0 ritmo (ou, mais exata- mente, 0 pul) cerebral que serve de base & interpretacdo dos demais ritmos. Os sons séo emissses pulsantes, que sio por sua vez interpretadas segundo os pulsos corporais, somaticos e psiquicos. As miisicas se fa- zem nesse ligamento em que diferentes freqiiéncias se combinam e se interpretam porque se interpenetram. 3. DURAGOE: 'ALTURAS Mas preciso dizer como se apresenta o pulso na miisica. Assim como 0 corpo admite ritmos sométicos (a exemplo do sanguineo) ¢ ritmos psiquicos (como as ondas cerebrais), que operam em diferentes faixas de onds, as freqiiéncias sonoras se apresentam basicamente em duas grandes dimens6es: as duragaes*e as alturas” (durag6es ritmicas, alcuras melédico-harménicas). O bater de um tambor é antes de mais nada um pulso ritmico. Ele emite freqiiéncias que percebemos como recortes de tempo, onde inscreve suas recorténcias e suas variages. Mas seas freqiiéncias ritmi- cas foram tocadas por um instrumento capaz de aceleré-las muito, a partir de cerca de dez ciclos por segundo, elas vao mudando de carver € passam a um estado de granulagio veloz, que salta de repente para lum outro patamar, 0 da altura melédica. A partir de um certo limiar de freqiiéncia (em torno de quinze ciclos por segundo, mas estabili- zando-se s6 em cem e disparando em diego a0 agudo até a faixa au- divel de cerca de 15 mil hertz), o ritmo “vira” melodia”. 20 A A acelersst ritmica progresva e sua conversto em aleuras Se 0 nosso ouvido s6 percebe liscretos, separados e portan- to ritmicos, até 0 umbral aproximado de dez hertz (ciclos por segun- do), entre dez e cerca de quinze hertz 0 som entra numa fitixa difusa e indefinida entre a duracao e a altura, que se define depois, nos regis- tos oscilatérios mais répidos, através da sensagao de permanéncia es- pacializada do som melédico (quando a periodicidade das vibragoes ard ento com que o escutemos com a identidade de um possivel d6, ‘um mi, um lé, um si). A diferenga quantitativa produz, portanto, num certo ponto de inflesdo, um salto qualitativo: muda o parimetro da es- cuta. Passamos a ouvir, entdo, toda a cambiante das distingdes que vio deslizando dos graves aos agudos, 0 campo movente de tessitura (co- mo € chamado 0 espectro das alturas) no qual as notas das melodias fardo a sua danga. Nesse campo, pelo mesmo enlace corporal que jé comentei a propésito do andamento ritmico, 0 som grave (como 0 proprio nome sugere) tende a ser associado ao peso da matéria, com (05 objetos mais presos & terra pela lei de gravidade, e que emit bragdes mais lentas, em oposicao a ligeiceza leve e Iépida do agudo (o ligeiro, como no frances Kger, std associado & leveza). A partir de certa altura, os sons aguéos vao progressivamente sain- do da nossa faixa de percepcio: a sua afinagao soa distorcida, e eles vio perdendo intensidade até desaparecer para nés, embora sejam escuté- veis (por um cdo, por exemplo). No entanto, é preciso lembrar que, em mtisica, ritmo ¢ melodia, duragdes e alturas se apresentam a0 mesmo tempo, um nivel depen- dendo necessariamente do outro, um funcionando como o portador do outro. E impossivel a um som se apresentar sem durar, mini ‘mente que seja, assim como € impossivel que uma duragio sonora se apresente concretamente sem se encontrar numa faixa qualquer de al- ‘ura, por mais indefinida e préxima do ruido que essa alrura possa ser. Se pensamos as duragoes eas alturas como varia -m vie de uma mesma 2 seqiiéncia de progressio vibratéria, em que o ritmo, a partir de certo limiar, se torna melodia-harmonia (e sendo a melodia-harmonia uma ‘outta ordem de manifestacio de relagoes ritmicas, escutadas agora es- pacialmente como alturas), poderemos perceber que essas duas dimen s6es constitutivas da musica dialogam muito mais do que se costuma imaginar. A pedagogia musical costuma dar atengo nenhuma a essa passagem, a essa correspondencia entre as diferentes dimensdes vibra- trias, ¢ perde ai todo um horizonte de insights possiveis extremamen- te estimulantes para fazer e pensar miisicas. O prego que se paga € a cristalizacao enrijecida da idéia de ritmo e melodia como coisas separa- das, perdendo-se a dindmica temporal (¢ 0s fluxos) que fazem com que ‘um nivel se traduza (com todas as suas diferengas e correspondéncias) no outto.* A tradutibilidade subjacente entre duragbes e alturas é estimulada por um outro dado extremamente intrigante que envolve a relagéo en- tte as duas: aquele ponto de inflexdo que as separa, entre dez e quinze vibragdes por segundo, no limiar oscilante entre as figuras ritmicas ea altura melédica, coincide muito aproximadamente com a faixa vibra- téria do chamado ritmo alfa. O ritmo alfa (sicuado ence oito e treze hertz) € uma freqiiéncia cerebral que, 20 que tudo indica, funciona pa- 1a nossa percepgi0 como uma onda portadora de ondas, uma espécie de fundo condutor (desaparece no sono profundo e € recoberto por outros ritmos quando a nossa atengio esté solicitada, mas é particular- mente marcado no eletroencefalograma — quando os olhos estao fe- chados mas em vigilia, ou quando olhamos sem fixar o olhar).. Segundo Alain Daniélou, em sua Sémantique musicale, “o ritmo alfa parece ser de fato a base que determina o valor do tempo relativo € conseqiientemente todas as relagdes do ser vivo com o seu ambien- te”, Segundo essa interpreragio, ele seria 0 fator constante e subjacen- te, padrio vibratério que “condiciona todas as percepgdes”, funcio- nando como um sinal de sincronizagdo que comandaria 0 andamento da nossa sensacao do tempo. (Quando arvores em série na beira da es- trada, por exemplo, em sincronia com a velocidade do carro, entram rerferéncia sobre a atengao de Freqtiéncia, causam fort ta, podendo provocar acidente.) ‘A miisica teria, no limiar decisivo entre duragao e altura, ali onde “a pulsagao deixa de ser percebida como um elemento ritmico para parecer como cor sonora de uma escala melédica’, aquela frequéncia 22 vibratéria que é, digamos assim, a nossa medida no turbilhao das vi- bragoes césmicas. O ritmo alfa, pulsagZo situada no coragio da mtsica (como linha divis6ria e ponto de referencia implicito entre a ordem das duragbes ¢ a das alturas), seria 0 nosso diapasdo temporal, o ponto de afinagio do ritmo humano frente a todas as escalas ritmicas do uni- verso, ¢ que determinaria em parte o alcance do que nos é perceptivel ce imperceptivel.” 4. COMPLEXIDADE DA ONDA SONORA Quando dizemos que o sinal sonoro corresponde a uma onda que fazemos representar por uma sendide, estamos procedendo a uma re- ducao simplificadora, a uma abstracio que se faz necesséria para a apre- sentagio mais elementar de um fundamenco. Isso porque cada som concreto corresponde na realidade nao a uma onda pura, mas aum feixe de ondas, uma superposicéo intrincada de freqiiéncias de com- primento desigual. Os sinais sonoros nao so na verdade simples e uni- dimensionais, mas complexos e sobrepostos “NS NSINS* Onda sinusoidal Quase nunca (praticamente s6 em condigées laboratoriais, a par- tir de sintetizadores eletrdnicos) nos deparamos com um som que seja fetivamente o produto de uma ondulagao pura e simples (ou, como se diz, uma onda sinusoidal). Um som angelical desse tipo s6 se pro- uz em sintetizador e se aparenta com o registro mais agudo de uma flauta transversal. Se 0 mundo fosse sinusoidal, um grande conjunto de ondas pulsando na mesma freqiléncia, nao haveria musica, “Toda mtsica “esté cheia de inferno e céu’, pulsos estiveis e insté- veis, ressonncias e defasagens, curvas ¢ quinas. De modo geral, o som € um feixe de ondas, um complexo de ondas, uma imbricagdo de pulsos desiguais, erm attito telatvo. ‘A onda sonora é complexa, ¢ se compe de freqiiéncias que se su- perpoem e se interferem. Essa complexidade é antes de mais nada a 23 do som concieto, 0 som real, que é sempre, em alguma medida, im- puro. S40 os feixes de onda mais densos ou mais esgarcados, mais con- centrados no grave ou no agudo, so em suma os componentes da sua complexidade (produzida pelo objeto que gerou) que do ao som aquela singularidade coloristica que chamamos simbre*. Uma mesma nota (ou seja, uma mesma altura) produzida por uma viola, um clari- rete ou um silofone soa completamente diferente, gragas 4 combina- ‘io de comprimentos de ondas que sio ressoadas pelo corpo de cada instrumento, Essa ressonincia est ligada a uma propriedade do som, aque & de vibrar dentro de si além da freqiéncia fundamental que per cebemos como altura (a freqiiéncia mais lenta e grave), um feixe de feeqiiéncias mais répidas e agudas, que ndo ouvimos como altura iso- ada mas como um corpo timbristico, muitas vezes caracterizado co- mo a cordo som. Esse feixe freqiiencial embutido no som, esse espec- tto de ondas que o compae, pode ser, como através de um prisma, subdividido nos sons da chamada série harménica’. A série harménica é ainica “escala” natural, inerente & propria ordem do fendmeno actis- tico, Todas as outras sio construgées artificiais das culturas, combina- «goes fabricadas pelos homens, dialogando, de alguina forma, com @ série harmonica, que permanece como referéncia modelar subjacente, seu paradigma, (Mais adiante, mergulharemos no entendimento desse fendmeno, que é 0 prisma secreto do som, ¢ cujas refragbes do as suas cores harménicas.) Quanto 20 timbre: Duas formas hipoéscas de timbre oz a nota que escutamos como altura melédica corresponde, em cada ca- s0, 4 mesma velocidade vibrat6ria fundamental, Mas cada um dos ins- trumentos vibra também em outras freqiiéncias mais répidas (os cha- mados sons harménicos), diferentes em cada um, freqiiéncias que nio escutamos como altura, mas cujo produto reconhecemos como tim- bre. © préprio corpo singular de cada som se faz, portanto, de uma multiplicidade de periodos conjugados.* Assim como o timbre colore os sons, existe ainda uma varidvel que contribui para matizé-los e diferencid-los de outro modo: é a in tensidade dada pela maior ou menor amplitude da onda sonora. S\N INU DW A amplitude da ond: intensidade A segunda onda apresenta a mesma freqiiéncia (altura), mas uma amplitude maior (que resulta em intensidade: a primeira soa piano, a segunda forte ou fortissimo). Aintensidade é uma informagio sobre um certo grau de energia da fonte sonora. Sua conotagao primeira, isto é, a sua semantica bési- ca, esté ligada justamente a estados de excitacio energética, sempre dentro da margem de ambivaléncia (ou multivaléncia) em que se ins- creve todo e qualquer sentido em misica. O som que decresce em in- tensidade pode remeter canto a fraqueza €& debilitagao, que teria o si- lencio como morte, ou 4 extrema sutileza do extremamente vivo (podendo sugerir justamente o ponto de colamento ¢ descolamento desses sentidos, o ponto diferencial entre a vida ea morte, ai potencia- lizados). O crescendo e 0 fortissimo podem evocar, por sua vez, um jorro de explosio proteinica e vital emanando da fonte, ou a explosio mortifera do ruido como destruicio, como desmanche de informacdes Vitais. Falta ou excesso de intensidade (embora a rigor s6 possam set avaliados no contexto formal em que aparecem, denunciando a sua es 25 tratégia especifica) sio indices diferenciais de forga (potencidmetro das medidas humanas diante dos movimentos do mundo). As intensidades tecem todas as gradagbes dos crecendose diminuindos (cambiantes apre- sentadas em progressio, que se somam 8s melodias) ou todo © quadro, importantissimo, das pontuag6es: destaques, fortes ou pianos sibitos, acentuagbes minimais que séo decisivas para o resultado das pulsagbes (as intensidades séo um elemento auxiliar das duragdes na configura- «Go do suingue, do balango, da levada, da curvatura do fluxo, do con- tinuo no descontinuo, do descontinuo no continuo). “Através das alcuras e duragdes, timbres e intensidades, repetidos efou variados, 0 som se diferencia ilimitadamente. Essas diferengas se

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