You are on page 1of 16
W. V. O. Quine A EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA (*) (*) Publicado em Ontological Relativity and Other Essays (cap. 3, 1969). © Columbia University Press. A epistemologia ocupa-se dos fundamentos da ciéncia. Concebida com essa amplitude, a epistemo- logia inclui o estudo dos fundamentos da matemé- tica como um dos seus dominios. Na passagem do século, os especialistas pensavam que os seus esfor- cos neste dominio particular iriam conduzir a um sucesso notavel: a matemética parecia reduzir-se in- teiramente a légica. Numa perspectiva mais recente considera-se preferivel descrever essa redugao como uma reducdo a légica e & teoria dos conjuntos. Do ponto de vista epistemoldgico esta alteracio é um revés, dado que nao podemos reivindicar para a teoria dos conjuntos a solidez e o cardcter de evi- déncia que associamos A légica. No entanto, dentro de padrées comparativos, o sucesso alcancado nos fundamentos da mateméatica continua a ser exem- plar e, até certo ponto, é possivel iluminar as outras partes da epistemologia estabelecendo paralelismos com esse dominio. Os estudos relativos aos fundamentos da mate- mitica dividem-se, simetricamente, em dois grupos, os conceptuais e os doutrinais. Os estudos concep- tuais interessam-se pela significagéio, os doutrinais 270 pela verdade. Os estudos conceptuais ocupam-se da clarificagdo dos conceitos, definindo uns nos termos de outros. Os estudos doutrinais procuram estabele- cer leis, provando umas com base em outras. Ideal- mente, os conceitos mais obscuros seriam definidos nos termos dos conceitos mais claros, de modo a maximizarem a clareza, e as leis menos ébvias se- riam provadas a partir das mais dbvias, de modo a maximizarem a certeza. Idealmente, as definicdes gerariam todos os conceitos a partir de ideias claras e distintas, ¢ as provas gerariam todos os teoremas a partir de verdades evidentes por si mesmas. Estes dois ideais estdo ligados. E que, ao definir- mos todos os conceitos usando um dos seus sub- conjuntos que se privilegia, estar-se4 a mostrar como traduzir todos os teoremas nesses termos pri- vilegiados. Quanto mais claros eles forem, mais pro- vavel & que as verdades neles expressas sejam obvia- mente verdadeiras ou derivaveis de verdades dbvias. Em particular, se os conceitos da matemitica fos- sem todos redutiveis aos termos claros da légica, todas as verdades da matematica passariam a ser verdades da légica; e as verdades da légica so com certeza todas clas ébvias ou, pelo menos, potencial- mente dbvias, isto é, derivaveis a partir de verdades ébvias, por meio de passos que, um a um, sao todos eles ébvios. Esse resultado preciso énos recusado, dado que a matemitica se reduz apenas A teoria dos conjun- tos e nao a Idgica propriamente dita. Essa reducdo ‘acentua sem ditvida a clareza, mas apenas devido as inter-relacbes que dai emergem ¢ ndo porque os ter- m mos finais da andlise sejam mais claros do que os outros. Quanto as verdades finais, os axiomas da teoria dos conjuntos, a sua certeza e evidéncia sio inferiores aos da maioria dos teoremas matemd- ticos que derivamos delas. Além disso, sabemos, a partir da obra de Gédel, que nenhum sistema axio- mético consistente pode cobrir a matemética, mesmo que renunciemos & auto-evidéncia. Nos fundamentos da matematica a redugiio continua a ser, do ponto de vista matematico e filosdfico, fascinante, mas nao realiza o sonho do epistemélogo: nao revela © fundamento do conhecimento matemiatico, nao mostra como a certeza matemitica é possivel. Fica ainda, contudo, uma sugesto para a epis- temologia em geral: trata-se da dualidade de estru- turas que se manifestou especialmente nos funda- mentos da matematica. Refiro-me a bifurcagéo numa teoria dos conceitos ou da significagao, por um lado, e numa teoria, ou doutrina, da verdade, por outro, pois ela aplicase tanto a epistemologia do conheci- mento natural como aos fundamentos da matema- tica, O paralelismo esta em que, tal como a mate- matica é redutivel A légica, ou a légica ¢ a teoria dos conjuntos, também o conhecimento natural deve basear-se, de algum modo, na experiéncia sensfvel. Isto significa que se explicara a no¢ao de corpo em termos sensoriais (quanto ao lado conceptual da bifurcacdo) e que se justificara 0 nosso conheci- mento de verdades da natureza também em termos sensoriais (quanto ao lado doutrinal da bifurcacéo). Hume examinou a epistemologia do conheci- mento natural pelos dois lados da bifurcacao, 0 con- a 22 ceptual e 0 doutrinal. O seu tratamento do aspecto conceptual do problema, a explicagao de corpo em termos sensoriais, foi ousada e simples: os corpos foram directamente identificados com as impress6es sensoriais. Se o senso comum distingue a maa material ¢ as nossas impressdes sensiveis, alegando que a mac& é una e duravel, enquanto as impres- ses sio muitas e fugazes, entdo, sustentou Hume, tanto pior para o senso comum; a sua nogao de que se trata da mesma macd numa e noutra ocasido é uma confusio vulgar. Cerca de um século depois do Tratado de Hume, a mesma concepsio sobre corpos foi adoptada por um dos primeiros filésofos americanos, Alexandre Bryan Johnson’). Ele afirmou: «A palavra ferro dé nome a uma associacéo de visio e de sensacdo.» «E 0 que é que se passou com o lado doutrinal, com a justificagio do nosso conhecimento das ver- dades acerca da natureza? Aqui Hume desesperou. Ao identificar corpos com impressées ele conseguiu realmente construir alguns enunciados singulares acerca de corpos como sendo indubitavelmente ver- dadeiros; como verdades acerca de impressdes conhecidas directamente. Mas enunciados gerais e também enunciados singulares acerca do futuro nao ganhavam nenhum aumento de certeza ao serem construfdos em relacio a impressées. Quanto ao lado doutrinal, nao vejo que esteja- mos hoje mais avangados do que no tempo de Hume. () A.B. Johnson, A Treatise on Language (New York, 1836; Berkeley, 1947). 2B © impasse_humeano—é—o—impasse-humanol Mas \ “quanto ao lado conceptual houve progresso. Aqui, © passo em frente decisivo j4 havia sido dado antes de Alexandre Bryan Johnson, que néo quis segui-lo. Esse passo foi dado por Bentham, com a sua teoria das ficcdes, e consistia no Feconhecimento da defi- nigdo contextual ou naquilo que ele chamou de paré- frase. Ele descobriu que, para explicar um termo, nao & preciso especificar um objecto a que este termo se refira, nem mesmo especificar uma palavra ou frase sinénima desse termo; basta apenas mos- trar, por um meio qualquer, como traduzir, to- mando-as globalmente, todas as frases em que sé empregue esse termo. O irreflectido procedimento de Hume e Johnson, que identifica corpos com impres- sdes, deixou de ser 0 tinico meio concebivel pelo qual faz sentido falar em corpos, mesmo na hipotese de que as impressdes sejam a tinica realidade. Alguém poderia procurar explicar 0 falar de corpos em termos de falar de impressées, traduzindo 0 con- junto das suas frases sobre corpos pelo conjunto das suas frases sobre impressées, sem que os pré- prios corpos fossem equiparados ao que quer que fosse. Esta ideia de definicdo contextual, ou de reco- nhecimento da frase como nucleo primario da sig- nificacdo, foi indispensavel para os desenvolvimen- tos que se seguiram em teoria dos fundamentos da matematica. Explicita em Frege, a ideia desen- volver-se-a completamente na doutrina russelliana das descrigées singulares como simbolos incom- pletos. 24 A definig&o contextual era um dos dois recursos de que se esperava um efeito libertador quanto ao aspecto conceptual da epistemologia do conheci- mento natural. O outro consistia em langar mao dos recursos da teoria dos conjuntos, como con- ceitos auxiliares. O epistemélogo que est disposto a complementar a sua austera ontologia de impres- ses sensiveis com esses auxiliares, vindos da teoria dos conjuntos, enriquece subitamente: j4 ndo dis- pe de classes de impressoes, classes de classes ¢ assim sucessivamente. Nos fundamentos da matema- tica as construcées mostraram que esses auxiliares, vindos da teoria dos conjuntos, representam um poderoso acréscimo; afinal, todo o glossario de con- ceitos da matematica classica pode ser construido a partir deles, Assim equipado, 0 nosso epistemélogo néo tera necessidade nem de identificar corpos com impressdes, nem de ficar nas definig6es contextuais; cle pode alimentar a esperanca de encontrar, numa subtil construgéio de conjuntos, a partir de con- juntos de impressdes sensiveis, uma categoria de objectos que satisfaz justamente a férmula de pro- priedades que reinvidica para os objectos. Do ponto de vista epistemoldgico, nao é indi- ferente que se siga um outro destes caminhos. A definicdo contextual é incontestdvel. Uma frase ‘a que, como um todo, tenha sido dada uma signifi- cacao, é inegavelmente correcta € 0 emprego que se faz dos seus termos componentes é portanto correcto, independentemente de serem ou nao dadas tradugdes nara esses termos, isoladamente conside- rados. Hume e Johnson teriam certamente usado 25 com gosto a definicdo contextual, caso tivessem tido a ideia. O recurso a conjuntos, por outro lado, é um lance ontologicamente drastico, um desvio relativamente 4 austera ontologia das impressées. H4 filésofos que prefeririam optar directamente pelos corpos a admitir todos esses conjuntos que correspondem, afinal, a toda a ontologia abstracta da matematica. Todavia, nem sempre este ponto foi claro, devido aos enganosos indices de uma continuidade entre a logica elementar e a teoria dos conjuntos. Foi por isto que se acreditou que a matematica se reduziria a légica, isto é, a uma ldgica inocente e nado ques- tiondvel, herdando assim essas suas qualidades. E foi provavelmente por isso que Russell se sentiu & vontade para recorrer tanto aos Conjuntos como & definic&o contextual, quando em Our Knowledge of External World, e outras obras, se voltou para © aspecto conceptual da epistemoiogia do conhe- cimento natural. Representar 0 mundo exterior como uma cons- trucio légica a partir dos dados dos sentidos, era este 0 programa, segundo as palavras de Russell. Foi Carnap que, no seu Der logische Aufbau der Welt, de 1928, mais perto-esteve da sua realizagio. Isto foi o que se passou quanto ao aspecto conceptual da epistemologia; e quanto ao doutrinal? Aqui o impasse humeano manteve-se inalterado. Se as construcées de Carnap se tivessem realizado com sucesso, estariamos habilitados a traduzir todas as frases sobre o mundo em termos de dados dos sen- tidos, ou de observacao, acrescidos da légica e da 216 teoria dos conjuntos. Mas o simples facto de que uma frase se exprima em termos de observacio, de légica e de teoria dos conjuntos, nao significa que ela possa ser provada a partir de frases de observacio, por meio da légica e da teoria dos conjuntos. A mais modesta generalizagao acerca de tragos observaveis cobriré um maior numero de casos do que aqueles que poderao vir a ser obser- vados efectivamente por quem a profere. Reconhe- ccu-se como va a esperanca de fundamentar, de um modo solidamente légico, a ciéncia natural sobre a experiéncia imediata. A procura cartesiana da cer- teza havia sido o motivo remoto da epistemologia, conceptual ou doutrinal; no entanto, essa procura revelou-se imitil. Pretender dotar as verdades da natureza com a plena autoridade da experiéncia ime- diata € uma esperanca t&o va quanto a de dotar as verdades da matemdtica com o caracter poten- cialmente ébvio da légica elementar. Qual poderd ter sido a motivagaio dos herdicos esforgos de Carnap quanto ao aspecto conceptual da epistemologia, quando a esperanca de certeza, quanto ao aspecto doutrinal, havia sido abonda- nada? Havia ainda duas boas razées. Uma era a de que seria possivel esperar que tais construgoes trou- xessem a luz e esclarecessem a evidéncia sensorial da ciéncia, ainda que os passos inferenciais entre a evidéncia sensorial e a doutrina cientifica nao atingissem o nivel da certeza, A outra razfio era a de que tais construgées iriam aprofundar 0 conhe- cimento que temos do nosso discurso acerca do mundo, mesmo deixando de lado as questées rela- am tivas a evidéncia; isso tornaria todo o nosso dis- curso cognitivo tao claro quanto o sfio os termos observacionais, a légica e, acrescento a contragosto, a teoria dos conjuntos. Para os epistemdlogos, Hume e os outros, foi desolador terem de admitir a impossibilidade de uma derivacao rigorosa da ciéncia do mundo exte- rior a partir da evidéncia sensorial. No entanto, duas das teses capitais do empirismo mantiveram-se, e mantém-se ainda, inatacdveis. Uma é a de que toda a evidéncia de que a ciéncia dispoe é a evidéncia sensorial. A outra, a que voltarei, é a de que qual- quer processo de inculcar significacao as palavras ter de repousar, em tltima anilise, em evidéncias sensoriais. Dai a persistente seducao da ideia de um logischer Aufbau em que 0 contetido sensorial do discurso seja explicitamente exibido. Se Carnap tivesse sido bem sucedido nessa cons- truco, como se poderia decidir que era essa a cor- recta? A questo néo teria sido pertinente. Ele pro- curava 0 que designava por reconstrugao racional. Qualquer construcdo do discurso fisicalista em ter- mos de experiéncia sensivel, de légica ¢ de teoria dos conjuntos seria considerada como satisfatéria se dela resultasse o discurso fisicalista correcto. Se hd um caminho, h4 muitos, mas estabelecer um qualquer teria sido o grande feito. Mas por qué entdo toda esta reconstrucio cria- tiva, todo este simulacro? A estimulaciio dos recep- tores sensoriais constitui, em Ultima anélise, toda a evidéncia em que cada qual pode basear-se para claborar a sua representacéo do mundo. Por que 28 nao ver simplesmente como essa construgio se pro- cessa realmente? Por que nao virar-se para a psi- cologia? A transferéncia de responsabilidades epis- temoldgicas para a psicologia havia jé sido conde- nada, anteriormente, como um raciocinio circular. Se 0 objectivo do epistemélogo ¢ a validacéo dos fundamentos da ciéncia empirica, ao empregar a psicologia ou outra ciéncia empirica nessa validacao, estaria a anular os seus objectivos. Todavia, tais escripulos contra a circularidade terfio pouca rele- vancia se n&o continuarmos a sonhar com uma de- ducao da ciéncia a partir de observagdes. Se pro- curarmos simplesmente compreender 0 elo entre as observagées ¢ a ciéncia, sera de bom critério empregar toda a informagdo disponivel, inclusiva- mente a que é oferecida por essa mesma ciéncia cujo elo com a observacio se procura compreender. Mas ha ainda uma outra razdo, que ndo tem a ver com o receio da circularidade, para se considerar favoravelmente a reconstrucao criativa. E que gos- tariamos de ser capazes de traduzir a ciéncia em légica, em termos observacionais e em teoria dos conjuntos. Esse seria um grande feito epistemolé- gico, pois mostraria que todos os outros conceitos da ciéncia eram teoricamente supérfluos. E legiti- malosia —na proporeaio do grau de legitimidade, fosse ele qual fosse, da teoria dos conjuntos, da logica e da observacao — mostrando que tudo o que & feito com um dos aparelhos poderia em principio ser feito com o outro. Se a prépria psicologia pudesse oferecer uma verdadeira reducdo tradutora desse tipo, seria bem acolhida, mas 0 que é certo é 279 que isso nao é possivel, pois nao crescemos apren- dendo definicdes da linguagem fisicalista em termos de uma linguagem anterior da teoria dos conjuntos, da légica e da observacao. Bis aqui, portanto, uma boa razio para persistirmos numa reconstrugao racional: queremos estabelecer a inocéncia essencial dos conceitos fisicos, mostrando que eles ndo sio teoricamente indispenséveis. 0 facto, entretanto, é que a construcao esbocada por Carnap em Der logische Aufbau der Welt tam- bém nao dé uma redugao tradutora. E essa redugao nao seria obtida mesmo que o projecto esbocado viesse a ser realizado. O momento crucial é aquele em que Carnap explica como atribuir qualidades sensiveis a posicgdes no espaco e tempo fisicos. Essas atribuicdes tém que ser feitas de modo a preencher da melhor mancira possivel certos desideratos que ele enuncia e, com o crescimento da experiéncia, tém que ser revistas para continuarem a corres- ponder. Embora esclarecedor, esse plano ndo nos oferece nenhuma chave para traduzir as frases da ciéncia em termos de observacdo, de ldgica e de teoria dos conjuntos. ‘Temos que perder as esperancas quanto a qual- quer reducaio dessa espécie. Carnap perdeu as suas por volta de 1936, quando, em «Testability and mean- ing» (), introduziu as chamadas formas redutivas, de um tipo mais fraco que as definicées. A defini¢&o contextual de um termo mostrava como traduzir frases que contém este termo por frases equiva- (Philosophy of Science, 3 (1936), 419.471; 4 (1937), 140. 280 lentes onde o termo nao ocorre. Por outro lado, as formas redutivas da espécie liberalizada por Carnap nao nos fornecem em geral equivaléncias, mas im- plicagées. Explicam um termo novo, ainda que sé parcialmente, especificando algumas frases impli- cadas por frases que contém o termo e outras que implicam frases que o contém. Podemos ser tentados a supor que a aceitagdo das formas redutivas, nesta acepgéo liberal, seja simplesmente mais um passo de liberalizagiio, com- paravel ao anterior, dado por Bentham, quando aceitou a definicéo contextual. A espécie anterior e mais rigida de reconstruco racional poderia ser representada como uma histéria ficticia na qual imaginavamos os nossos antepassados introduzindo os termos do discurso fisicalista sobre uma base de fenomenalismo e de teoria dos conjuntos, por meio de uma sucess’o de definigdes contextuais. A espécie mais recente e liberal de reconstrucéo racional é uma historia ficticia na qual imaginamos os nossos antepassados introduzindo aqueles termos por uma sucesséio de formas redutivas mais fracas. Mas esta é uma ma comparacao. O facto é, antes, que a espécie anterior e mais rigida de reconstrugéo racional, onde prevalecera a definicao, nao envolvia absolutamente nenhuma histéria ficticia. Ela nao era, ou teria sido, se tivesse tido sucesso, nem mais nem menos do que um conjunto de directivas para conseguir realizar, em termos de fenédmenos e de teoria dos conjuntos, tudo o que realizamos, na pratica, em termos de corpos. Teria sido uma ver- dadeira reducdo por traducio, uma legitimacdo por 281 climinacdo. Definire est eliminare. A reconstrucio racional pelas posteriores e menos exigentes formas redutivas de Carnap nao faz nada disso. Relaxar as exigéncias da definicao e optar por um tipo de reducéo que nao elimina, é renunciar a ultima vantagem que, suponhamos, a reconstrucio racional ainda tinha sobre a psicologia propriamente dita, e que é a vantagem da reducdo tradutora. Se tudo 0 que esperamos é uma reconstrucéo que vin- cule a ciéncia & experiéncia por meios explicitos que excluam a traducio, entao parece mais sensato optar pela psicologia. Vale mais descobrir como de facto aciéncia se desenvolve e se aprende do que fabricar uma estrutura ficticia para efeitos similares. O.empirista fez uma importante concessfio quando abandonou a esperanca de deduzir as verdades da hatureza a partir da evidéncia sensorial. Perdendo agora a esperanca de traduzir aquelas verdades em termos de observagdo e auxiliares légico-matemé- ticos, ele fez uma outra concessao importante. Supo- nhamos que sustentamos, com o velho empirista Peirce, que a verdadeira significagdo de um enun- ‘ciado consiste na diferenca que resultaria da sua verdade para a experiéncia possivel. Nao poderiamos nés entao formular, numa frase do tamanho de um capitulo em linguagem observacional, toda a dife- renca, para a experiéncia, da verdade de um certo enunciado, e nao poderfamos em seguida tomar isso tudo como a sua tradugio? Mesmo no caso em que a diferenca resultante, para a experiéncia, da ver- dade do enunciado se ramificasse indefinidamente, seria possivel esperar abarcé-la inteiramente nas 282 implicagées légicas da nossa formulacio do tama- nho de um capitulo, da mesma maneira que pode- mos axiomatizar uma infinidade de teoremas. Aban- donando as esperangas quanto a uma tal tradugio, o empirista concede pois que os significados empi- ricos dos enunciados tipicos sobre o mundo exterior sao inacessiveis e inefaveis. Como explicar esta inacessibilidade? Simples- mente pela razio de que as implicacées, ao nivel da experiéncia, de um enunciado tipico sobre cor- pos seriam complexas de mais para uma axiomati- zagao finita, fosse qual fosse a sua extensio? Nao, a minha explicagéo é outra. E que o enunciado tipico sobre corpos nao dispée de nenhum fundo de implicacées, ao nivel da experiéncia, que se possa dizer que lhe é propria. Pelo contrério, uma massa substancial de teoria, globalmente considerada, tera em comum implicacdes ao nivel da experiéncia; € assim que tornamos as predigdes verificaveis. FE possivel que n&o sejamos capazes de explicar por que chegamos a teorias que fazem predicdes bem sucedidas, mas o facto é que chegamos a tais teorias. As vezes, também, uma experiéncia implicada por uma teoria deixa de se produzir; e entdo, ideal- mente, declaramos a teoria falsa. Mas o insucesso nao falsifica sendio um bloco de teoria tomado como um todo, uma conjuncéo de varios enunciados. O insucesso mostra que um, ou mais, dos enun- ciados é falso, mas nao diz qual. As experiéncias preditas, verdadeiras ¢ falsas, nado sao implicadas por qualquer dos enunciados que compéem a teoria 283 mais do que por outro. Pelo critério de Peirce, os enunciados componentes da teoria simplesmente nao tém significacdes empiricas; mas uma porcio suficientemente abrangente de teoria tem. Se, de algam modo, pudermos aspirar a uma espécie de logischer Aufbau der Welt, teré de ser a algo em que os textos seleccionados, para serem traduzidos em termos observacionais e légico-mateméticos sejam, na sua maioria, amplas teorias tomadas como todos, em vez de simples termos ou frases curtas. A traducdo de uma teoria seria uma cansa- tiva axiomatizagio de toda a diferenca resultante para a experiéncia, pois traduziria o todo sem traduzir nenhuma das suas partes. Em tal caso, mais valeria falar, nao de tradugio, mas sim- plesmente de prova observacional para teorias; e, seguindo Peirce, temos todo o direito de con- tinuar a designar isto por significado empirico das teorias. Estas consideragdes levantam uma questio filo- sofica que chega mesmo a por em causa a tradugio corrente no filoséfica, tal como a do inglés para © dialecto arunta ou para chinés. Pois se as frases inglesas de uma teoria s6 tém significagio quando tomadas em conjunto como um corpo, entéo sé quando tomadas em conjunto como um corpo é que podemos justificar a sua traducdo para o arunta. Nao haverd justificacéio para um emparelhamento de frases inglesas componentes com frases compo- nentes do arunta, a nfo ser a de que essas corre- lacées fazem com que resulte correcta a traducdo da teoria como um todo. Uma qualquer tradugdo 284 de frases inglesas em frases do arunta sera tao cor- recta como qualquer outra desde que nela sejam preservadas as implicagées empiricas da teoria como um todo. Mas é de esperar que muitos modos dife- rentes de traduzir as frases componentes, cada um deles essencialmente diferente do outro, oferecam as mesmas implicacées empiricas para a teoria como um todo: ¢ que os desvios na traducdo de uma frase componente possam ser compensados na tradugio de outra frase componente. Nessa medida, nao ha qualquer razio para dizer qual de duas tradug6es de duas frases isoladas é a boa, ainda que a dispa- ridade destas traducées seja ébvia (*). Um mentalista ingénuo nfo tem que temer ne- nhuma indeterminaciio dessa espécie. Todo o termo, toda a frase, é um rétulo ligado a uma idcia, sim- ples ou complexa, que esta armazenada na mente. Quando, por outro lado, optamos por uma teoria verificacional da significagdo, a indeterminagao pa- rece inevitavel. © Circulo de Viena aderiu a uma teoria verificacional da significagao, mas nao a levou suficientemente a sério. Se, com Peirce, reconhecer- mos que a significagdo de uma frase depende sim- plesmente do que vier a ser considerado como prova da sua verdade, e se, com Duhem, reconhecermos que as frases tedricas so possuem provas nao como frases isoladas mas como grandes blocos de teoria, ento o cardcter indeterminado da tra- ducao de frases tedricas seré a conclusao natural. ©) Cf. Ontological Relativity and Other Essays, cap. 1. mt, 285 E, excluindo as frases observacionais, a maioria das frases é tedrica. Reciprocamente, uma vez admitida essa conclusao, fica selado o destino de qualquer nogio geral de significado proposicional ou, igual- mente, de estado de coisas. ‘A inconveniéncia desta conclusiio nao nos deveré persuadir a abandonar a teoria verificacional da sig- nificagio? Certamente que nao. O tipo de signifi cacdo fundamental para a traducdo e para a apren- dizagem da nossa lingua é necessariamente a signi- ficacio empfrica e nada mais. Uma crianca aprende as suas primeiras palavras e frases ouvindo-as e empregando-as na presenca de estimulos apropria- dos. Esses estimulos devem ser externos, pois devem actuar tanto sobre a crianca como sobre o locutor com quem ela esta a aprender (‘). A linguagem é socialmente inculcada e controlada. Inculcar ¢ con- trolar dependem estritamente do ajuste das frases a uma estimulacdo compartilhada. Os factores inter- nos podem variar ad libitum sem prejuizo para a comunicacao desde que o ajuste da linguagem aos estimulos externos nao seja perturbado. Na ver- dade, quando a nossa prépria teoria da significacio linguistica esté em jogo, no ha outra escolha que no seja a de ser empirista. que se disse sobre aprendizagem infantil apli- case igualmente ao Jinguista que faz uma aprendi- zagem de campo de uma nova lingua. Se o linguista no se apoia em linguas aparentadas para as quais ha praticas de traducdo previamente aceites, entio () CF. Ibid, cap 2, 1 286 os seus dados resumem-se as concomitancias entre enunciagdes indigenas e a situagio — estimulo obser- vavel. Nao é de admirar que haja indeterminacdo da traducdo, pois, naturalmente, s6 uma pequena fracedo das nossas expressdes relatam estimulacdes externas concomitantes. Claro que 0 linguista aca- bard por propor tradugGes nfo equivocas para tudo: mas para la chegar fara muitas escolhas arbitra- rias, ainda que inconscientes. © que quero dizer com arbitrrias? Quero dizer que escolhas diferentes tam- bém poderiam dar certo com tudo aquilo que, em principio, pode ser susceptivel de qualquer tipo de controlo. Liguemos agora, numa ordem diferente, alguns dos pontos entretanto estabelecidos. A consideracao crucial que esta na base da minha tese da indeter- minagio da tradugio é a de que um enunciado sobre © mundo n&o tem sempre, ou nao tem frequente- mente, um conjunto separavel de consequéncias em- piricas que se possa dizer que Ihe ¢ préprio. Essa consideracaio serviu também para dar conta da im- possibilidade do tipo de reducio epistemolégica em que cada frase fosse equiparada a uma frase em termos observacionais e Iégico-matematicos. E a impossibilidade dessa espécie de reducio epistemo- légica fez desaparecer a tiltima vantagem que & re- construc&o nacional parecia ter sobre a psicologia. Os filésofos abandonaram com razdo a esperanca de tudo traduzir em termos observacionais € Iégico- -matemiticos. Eles tinham reconhecido que a razao dessa irredutibilidade consiste em que grande parte dos enunciados nao tem geralmente conjuntos de 287 consequéncias empiricas que lhes sejam préprios. E, para alguns fildsofos, essa irredutibilidade apa- recia como 0 creptisculo da epistemologia. Carnap e os outros positivistas légicos do Circulo de Viena haviam j4 dado ao termo «metafisicay um uso pejo- rativo, conotando-o com auséncia de sentido; era agora a vez do termo epistemologia: Wittgenstein e os scus seguidores, principalmente em Oxford, descobriram uma vocacao filoséfica de recurso na terapia—consagraram-se a curar os fildsofos da ilusao de que ha problemas epistemolégicos. Mas quanto a isto penso que seria talvez mais til dizer que a_gpistemologia continua, embora num novo quadro e com um status clarificado. A epistemologia, ou algo que se lhe assemelhe, en- contra o scu lugar simplesmente como um capilulo da psicologia e, portanto, da_ciéncia natural. Ela estuda um fenémeno natural, a saber, um sujeito humano fisico. Concede-se que esse sujeito humano recebe uma certa entrada experimentalmente con- trolada — com certos padrées de irradiacdo em va- riadas frequéncias, por exemplo — e, no decurso do tempo, 0 sujeito fornece como saidga uma descricdo do mundo externo tridimensional e a sua histéria. A relacdo entre a entrada, diminuta, e a saida, tor- rencial, é a relago que nos sentimos estimulados a estudar mais ou menos pelas mesmas razdes que sempre serviram de estimulo a epistemologia; ou seja, para ver como a prova se relaciona com a teoria, e de que modo as nossas teorias da natureza transcendem qualquer prova disponivel. 2 288 Esse estudo poderia ainda incluir mesmo algo semelhante antiga reconstrugao racional, na me- dida em que tal reconstrugao seja praticdvel; pois as construcées imagindrias podem fornecer-nos in- dicagdes sobre os processos psicolégicos efectivos, desempenhando assim um papel semelhante ao das estimulagdes mec4nicas. Mas uma diferenca sensivel entre a antiga epistemologia e 0 novo programa epistemoldgico esté em que agora temos todo o direito de recorrer livremente a psicologia empirica. ‘A antiga epistemologia aspirava a conter em si, num certo sentido, a ciéncia natural, que ela tinha pretendido construir a partir dos dados dos sentidos. No seu novo quadro, inversamente, a.cpistemologia esta contida na ciéncia natural, como um capitulo continente e conteido subsiste. Vendo como os corpos sao postulados pelo sujeito humano que estu- damos e como a sua fisica é projectada a partir dos seus dados, percebemos que a nossa situacio no mundo é exactamente igual a dele. © nosso proprio empreendimento epistemoldgico, assim como a psi- cologia da qual ele é um capitulo e toda a ciéncia natural de que a psicologia no é senfo um tomo, tudo isso € construcaio nossa ou projecco nossa a partir das estimulacdes semelhantes &s que atri- bufmos ao nosso sujeito epistemolégico. Hé assim um envolvimento_reciproco, ainda que em sentidos diferentes, da epistemologia pela ciéncia natural da ciéncia natural pela epistemologia. Esta interaccfio lembra-nos de novo a antiga ameaca de circuiaridade, o que, uma vez que deix4- 289 mos de sonhar com a deducdo da ciéncia a partir dos dados dos sentidos, nao nos deve inquietar. Pro. curamos compreender a ciéncia como instituicéo ol proceso no mundo ¢ nao pretendemos que essa cOmpreensao seja melhor do que a ciéncia que é 0 seu_objecto. Essa é, na verdade, a atitude que Keurailp preconizava j4 nos tempos do Circulo de Viena, com a sua comparacéo com o marinheiro que tinha que reconstruir 0 seu arco enquanto navegava nele. Um dos efeitos de considerar a epistemologia num quadro psicolégico constitui a resolugao de um velho e recalcitrante enigma relativo & priori- dade epistemoldgica. As nossas retinas sdo irradia- das em duas dimensées: contudo, sem que haja inferéncia consciente, vemos as coisas tridimensio- nalmente. Qual delas considerar como uma obser~ vagio, a recepco bidimensional ou a percepcao consciente tridimensional? No anterior contexto epistemol6gico, a forma consciente tinha prioridade, pois procuravamos justificar o nosso conhecimento do mundo exterior por meio de uma reconstrugao racional, ¢ isso exige que se esteja consciente. Isto deixou de ser necessdrio desde que abandondmos a tentativa de justificar 0 nosso conhecimento do mundo exterior por meio de uma reconstrugao sional. Pode-se agora estabelecer em termos de &timulaco de receptores sensoriais 0 que se con- siderar como observasio, intervenha a consciéncia onde intervier. 290 O desafio feito pelos psicélogos da Gestalt ao atomismo, que ha quarenta anos parecia tao rele- vante para a epistemologia, perde assim a sua viru- léncia. Deixar-se-4 de lado se sio Atomos ou Ge- stalten sensoriais 0 que ocupa preferencialmente 0 primeiro plano da nossa consciéncia; as estimula- Ges dos nossos receptores sensoriais passam sim- plesmente a ser consideradas melhor, como a en- trada da nossa mecfnica cognitiva. Os velhos para- doxos sobre dados inconscientes ¢ inferéncias, os velhos problemas sobre cadeias de inferéncias que teriam que ser rapidamente completadas, tudo isso deixou de ter importancia. Nos velhos tempos do antipsicologismo, a ques- tao da prioridade epistemoldgica era um ponto de controvérsia. O que é que tem prioridade episte- molégica, e sobre o qué? Sera que, por serem nota- das, as Gestalten tém prioridade sobre os atomos sensoriais, ou deverfamos, por alguma razio mais subtil, dar preferéncia a estes tltimos? Agora que nos é permitido apelar para as estimulagées fisicas, o problema dissolve-se. A tem prioridade epistemo- Iégica em relacao a B se A estiver causalmente mais préximo dos receptores sensoriais do que B. Ou, melhor ainda, falemos apenas e explicitamente em termos de proximidade causal em relac&o aos recep- tores sensoriais e deixemos de falar em prioridade epistemoldgica. Por volta de 1932 houve um debate no Circulo de Viena a respeito do que se deveria considerar 291 como frases observacionais ou Protokollsiitze (*). Uns sustentavam que elas tinham a forma de rela- térios de impressdes sens{veis. Outros que cram enunciados de um tipo elementar sobre 0 mundo externo, no estilo «Um cubo vermelho est4 sobre a mesa.» Outros ainda, por exemplo Neurath, afir- mavam que elas tinham a forma de relatérios sobre relagdes entre aquele que vé © as coisas externa’ «Otto vé agora um cubo vermelho sobre a mesa.» 0 pior é que nao parecia haver nenhum meio objec- tivo de resolver a questo: nao parecia haver meio de Ihe dar um sentido real. Tentemos agora encarar a questo no contexto do mundo exterior. Falando vagamente, o que exi- gimos das frases observacionais é que sejam as que esto na maior proximidade causal dos receptores sensoriais. Mas como avaliar essa proximidade? Podemos reformular a ideia’ do seguinte modo: frases observacionais so frases que, quando adqui- rimos a linguagem, dependem mais da estimulacao sensorial concomitante do que da informacao cola- teral acumulada. Imaginemos, por exemplo, que a respeito de uma frase, nos seja pedido que nos pro- nunciemos quanto a ela ser verdadeira ou falsa, que nos seja pedido o nosso assentimento ou dissen- timento. A frase em causa serd uma frase observa- cional se 0 nosso veredicto depender apenas da estimulagao sensorial presente no momento em que a frase nos foi proposta. () Carnap e Neurath, in Erkenntnis, 3 (1932), 204-228. 292 Mas um veredicto nio pode depender da esti- mulagdo presente a tal ponto que exclua toda a informacdo armazenada. O préprio facto de termos adquirido a linguagem revela que houve grande acumulacio de informagdo, de uma informacao sem a qual no estarfamos em condigées de pronunciar veredictos sobre frases, por mais observacionais que fossem. Assim, é evidente que temos que ser menos rigidos na nossa definigio de frase observacional, formulando-a da seguinte maneira: uma frase é uma frase observacional se todos os veredictos a seu respeito dependem da estimulagao sensorial conco- mitante e de nenhuma outra informacdo armaze- nada, além da que contribui para a compreensio dessa frase. Esta formulagdo faz surgir um outro problema: como distinguir a informacdo envolvida na com- preensfio de uma frase da informacio que vai além desses limites? Este é 0 problema da distingao entre verdade analitica, que decorre apenas das signifi- cages das palavras, e verdade sintética, que depende de algo mais do que destas significacées. Ora, eu sus- tento ha muito tempo que esta distincio é iluséria. Hi, todavia, um modo de dar um passo em direccao a esta distingdo, e de uma maneira que tenha sen- tido: poder-se-ia esperar que uma frase verdadeira em virtude da mera significagéo das palavras fosse subscrita por todos os membros que falam frequen- temente a lingua da comunidade. Talvez possamos, na nossa definicao de frase observacional, dispensar a nog&o controvertida de analiticidade em favor 293 desse atributo directo de aceitagéo por todos os locutores de uma comunidade linguistica. Naturalmente, esse atributo nfo é em absoluto uma explicagdo de analiticidade. A comunidade es- taria de acordo em afirmar que ha ces pretos; e no entanto ninguém que fale em analiticidade chamaria a isso um enunciado analitico. A minha rejeigao da nogao de analiticidade significa justamente a recusa de tracar uma linha que separe 0 que contribui para a pura compreenséo das frases de uma lingua e tudo aquilo em que a comunidade estd de acordo. Duvido que seja possivel fazer uma distingao objectiva entre a significagZo e uma informacio indirecta que todos os locutores de uma comunidade possuiriam Voltando de novo a nossa tarefa de definir frases observacionais, obtemos o seguinte: w frase observacional é aquela sobre a qual todos os locuto- res da lingua pronunciam o mesmo veredicto, quando é dada a mesma estimulacdo concomitante. Em termos negativos, uma frase observacional é uma frase que nao é sensivel, no interior da comu- nidade linguistica, as diferencas da experiéncia passada. Esta formulagdo esté em perfeito acordo com 0 papel tradicional da frase observacional, enquanto tribunal de recurso das teorias cientificas. Pois, segundo a nossa definicdo, as frases observacionais sao aquelas a respeito das quais todos os membros da comunidade estarao de acordo, quando subme- tidos & mesma estimulacdo. E qual ser4 o critério de pertenga A mesma comunidade? Simplesmente, a fluéncia da lingua. Esse critério comporta graus 294 ¢, de facto, pode ser conveniente considerar a comu- nidade mais estritamente em certos estudos do que em outros. Nem sempre o que é considerado como frase observacional por uma comunidade de especialistas é assim considerado por uma comuni- dade mais ampla. Nao ha, geralmente, nenhuma subjectividade na expressio das frases observacionais assim conce- bidas; normalmente, elas dizem respeito a corpos. Dado que o traco distintivo de uma frase observa- cional é a concordancia intersubjectiva sob estimu- lado concordante, é mais provavel que as frases de observacdo se refiram a algo de natureza cor- porea do que nao corpérea. ‘A antiga tendéncia para associar frases obser- vacionais a uma realidade subjectiva e sensorial parece até uma ironia, quando reflectimos sobre 0 facto de que as frases observacionais so destinadas a ser o tribunal intersubjectivo das hipéteses cien- tificas. A antiga tendéncia devia-se & pressio para apoiar a ciéncia em algo mais firme e anterior, na experiéncia do sujeito, mas esse projecto foi aban- donado. Com a epistemologia despojada do seu antigo status de filosofia primeira, desencadeia-se, como vimos, uma onda de niilismo epistemoldgicg. Esse estado de espfrito reflecte-se, de algum modo, na tendéncia de Polanyi, Kuhn e do falecido Russell Hanson, para depreciar 0 papel da prova e acentuar o relativismo cultural. Hanson lancou-se mesmo na aventura de pér em causa a ideia de observacéo, argumentando que as chamadas observacées variam 295 de observador para observador, conforme a quanti- dade de conhecimentos que trazem consigo. O fisico veterano olha para uma certa aparelhagem e vé um tubo de raios X. O neéfito, olhando para o mesmo lugar, observa em vez disto

You might also like