You are on page 1of 153
*Por que mulheres tém tantas queixas na esfera do amor? De se sent us eee en cette ecu Se cee ue ce teen ice tet Cents eR Cu eae ee cc eae aes eae ee er eae ee ete ees Pe ie eee cae een en eee dos demais? E, de outro lado, por que os homens, diferentemente das ee ee ce ee a ae ee ieee atta goa ae ed Pecos ce ee oe et een net ern eal ae eee tee tet rae Vereen recut acne ceed Mee ta eee ee ne eee eerste ar Ce at ea eee pees ee ea eee ed Pr eae A Css eee eS acti a ne a Gren ue hese ok awe mecanismos que moldam esses processos de subjetivagao? E que pe as afetivas sao utilizadas?’. O presente livro é fruto de 20 anos de exper Pee etc ern rerun ee catheters Be ee asM ig ed a eto eae eee en eet cic cna erty See rete etic nc eee et Sree et icecream ene eee ete ree eee ieee sam de formas diferentes. NM Cds ——— Saide meatal, e gener’ Valeska Zanello Satide mental, género e dispositivos - SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Cultura e processos de subjetivacao ec enB 7870 “ant vale ‘Scie ment gdero edpostos: aura eprocezes de subeasso/ ‘esta ane = Cra: Apes, 208, soipi23em (si inca gras 1. Sade Memal 2. Alas de gtr 3. secterp The Sée Valeska Zanello SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Cultura e processos de subjetivacao Aeris Curitiba - PR 2018 tors Apes, eden Capyighne 208 aoe Diets de Elo seat Fs Ape ie, FICHATECNICA COMITE EDERAL Anis baa Gouves- USP FDTORAGAO. seen Sexe sheen DINGRAMACKO. Andes bed CGERENCIACOMERCIAL tlae de nance GERENCIADE FINANEAS Simo ra errand le GERENCIAAOMIUTRATIN, og COMUMEAGAO Caton ar ‘COMITE CIENTIFICO DA COLEGKO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAUDE E MUMANIOADES DIRECAO CIENTIFICA 0c Doors Mics Gonges(Unan) ‘ONSULTORES an Oe ead) ‘nmr Rayman UP) ‘we cls Pots ON ani Bra Ln ere) ter Ria (8) ona Ute asians 2a HC) nerd Ferns ees) ie aor ere (9) ‘A lmagem da capa deste lvro ndo fol escolhida aleatoriamente. Tata-se de um quadro ‘que pertenceu por muitos anos a meus avés maternos. Meu avd, que adorava objetos de arte, omprou-o em um mercado na Italia. Ee esteve pendurado, desde entao, ora na sala de visitas, oo perto da mesa na qual a grande familia que eles tiveram se reunla para {fazer suas refeigbes. Esse quadro tem uma histéria aparentemente engracada, mas no ‘fundo portadora de muitas evelagoes sobre a nossa cultura, eo espaco e os saberes das mulheres. Meu ave era um homem muito carinkoso, mas, de familia italiana e bastante ‘eligioso, encarnava, como quase tados os homens de ua época, o patriaca, Tudo dentro da prescrto, ndo fesse minha avé uma potencial revoluciondri, nascida em uma “fazenda, no Interior do Espirito Santo, Els se casaram no terceire encontro que tiveram, ‘No primeiro, minha avé era noiva, mas desmanchou 0 noivade para ficar com o homem que, nas palavras dela, arrebatou seu coragdo. Seu enxoval de casamento jéestava quase ‘pronto. Oex-nolva se chamava Alberto e em todas as roupas de coma e banho, minha ‘avé havia bardado A & M (Alberto e Mari). Com a guinada de destino que seu coracdo -2painonado the dev, ndo teve dvidas em remendar oA em O, transformando todo 0 ‘envoval em 0 & M (Oswaldo, nome do meu avé, e Mara). Isso jd é uma parte da historia, ‘Minha avé oprendeu, assim como varias ou a maior parte das mulheres de sua geracao, ‘a contornar mal-estares, a se responsabilizr em evitar qualquer descontentamento naquele que era seu parceiro amoreso, Voltando & histéria do quadre. Em uma das viagens a trabalho do meu ave, meus tios, entao adolescentes, pediram para minha avé para que os deixasse realizar uma festa dancante para os amigos, em casa. Meu avé era ‘um homem rigido, om valores moraissexistas e sua auséncia seria a oportunidade de 0s filhos se divertirem de forma mais livre. Minha avé, como quase sempre, consent, € ‘casa virow uma algazarra, Uma de minhastias retirou entao o quadro da parede, para imagem recuperate erm aforfzoy, de btipeihwon google com rserch?q-charcotshisterisBrlersCAh, NG enbii=28Rr2akespr-28bineb56bin6baBsoorce-Inmaktom-isceaeXEvedoahUKEW20¥OT IKRARUBLIAKHeaxAtOO_ AUIBIQBA#imgee=NyALKRSGRZMMA. 20 vasoeaznet9 criadas pelos homens, do casamento a lei, que confinaram e confinam as mulheres, e as deixam loucas. Segundo essa autora, nos uitimos sé- culos 0 homem foi identificado 4 racionalidade e a mulher & figura da insana, nesse caso em uma dupla polaridade: a loucura como um dos erros das mulheres e, por outro lado, como a prépria esséncia feminina. Neste ultimo sentido, Showalter (1987) aponta o quanto a loucura tem sido mais experenciada por mulheres do que por homens e que, mesmo quando a loucura € vivenciada pelos homens, é metaférica e simbolica- mente representada como feminina, Omomento histérico da criago dos manicémios iniciou os grandes, debates acerca da classificagao nosoldgica dos tipos de alienagao. Alm disso, 0 século XIX foi um periodo de grande transformago na epistemo- logia da clinica médica em geral, quando ocorrev a passagem da tradicgo classificatéria taxondmica para uma busca etiolégica (Foucault, 2004). A psiquiatria permaneceu como um filho bastardo, pois, naimpossibilidade de encontrar uma causalidade certa para as doengas da alma, fixou-se cada vez mais em uma pratica descritora e classificadora das supostas patologias, sendo que essa classificago pautava-se, muitas vezes, por valores morais. No Brasil, Engel (2004) realizou uma importante pesquisa sobre a pratica psiquidtrica e as mulheres no final do século XIX. Em seu tra- balho exegético de prontudrios de casos reais de internacao psiquidtrica nessa época, a autora encontrou situagées diferenciadas para o diag- néstico de doenga mental entre homens e mulheres. Para elas, as razOes agrupavam-se sobretudo na esfera da sexvalidade (fora do casamento, 1n3o contida, com fins ndo reprodutivos) e o rompimento de um ideal de maternidade; no caso deles, tratava-se de desvios relativos aos papéis sociais atribuidos aos homens, qual seja, ode trabalhador e provedor. No entanto, como destaca a autora, lugar de ambiguidades e espaco por exceléncia da loucura, 0 corpo €¢2 sexvalidade femininos inspirariam grande temor aos médicos & 205 alienistas, constituindo-se em alo prioritério das intervengBes, ‘normalizadoras de medicina eda psiquiatea" (Engel, 2004, p. 333). No organismo da mulher, em sua fisiologia especifica, estariam inscritas as predisposides ao adoecimento mental “ nferente, e553 & uma letra que ainda se faz muito presente na contemporaneldade, sobretudo nas AGC en cot oIsosos: Cts proces de base an Segundo autora, a constracio da imagem feminina a prt da naturezaedas suas es implicara em qualfiear a mulher como naturalmente fréal, bonta, sedutora, svbmissa, doce, etc. Aquelas que revelassem atributos copostos seria consideredasseresantinaturas Engel, 2004.32). Com 0 advento da criagdo dos neurolépticos, na década de 50 do século XX, fortaleceu-se ainda mais a pratica taxonémica, com 0 surgimento e a disperso cada vez maior dos Manuais de Transtornos Mentaist, os DSMs Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Rodrigues, 2003) ~ e 0s CIDs ~ Classificagdo Estatistica Internacional de Doencas e Problemas Relacionados com a Satide. Se antes 0 louco era confinado, agora a ideia de patologia, de “transtorno mental”, passa a ganhar campo dentro da prépria normalidade. Ou seja, hove uma pa- tologizagio da vida: no continuo entre 0 normal e 0 patolégico, ocorreu um processo de patologizacao do normal (Maluf, 2020)°. O discurso do sujeito em sofrimento passou a ser traduzido em termos de presenca/ auséncia de sintomas (identificados pelo especialista), tais como os des- critos nos manuais, caracterizando-se por uma légica binaria (Zanello, Macedo & Romero, 2023). Exemplos de perguntas realizadas nas entrevistas psiquiatricas e o que se busca aprender por meio delas Como voce se chama? (ou quem é vocé?) (auto-orientagdo, também deliio) Voct sabe que dia & hoje? M&s? Ano? (para ver orlentagao temporal) Vocé sabe onde esté? (orientagao espacial) Voeé escuta vozes? (alucinacao auditiva) Vé flminho passando pela parede? (alucinagao visval) Acredita que alguém queira te fazer mal? (delirio) Para perfazer um transtorno, 0 “paciente” deveria “apresentar” um ndmero minimo de sintomas, por certo periodo de tempo. No entanto pesgies em ranstoma de hurr aja fase €predorinantemente a de base iligc-hormona (Dates Zane, subret). Otero “tension” Eum tema técnica pra padres problemstices de comportamento tomate popula: pelo DSM, Sus unde &Uketamenterelaonada a sua ambigudade Est ene dos conceos ene Fen de doongae de sindrome mayer, 994), Subentendese am seu uso que fnalmente, os transtrnos Psquics sso mapeodos em deta Mas hoje o mopeamanto ete nossos modelos eis dep lage fiologl, Cenges culties evloes podem fazer via ou our fngao al procminente © os levaravecrganizr nasa nosoogia. com medealzaio, couse tom ota forme de controle do sujet, por mel da mordasa qui essa compilagio de sintomas, tal como descrita nos manuais, apresenta limitagGes, sob uma perspectiva de género. A primeira delas diz acerca do gendramento dos sintomas (Za- nello, 2014). Um exemplo classico & 0 choro, cuja expressio é inibida so- cialmente em homens, mas nao apenas permitida, como até incentivada em mulheres, em culturas sexistas. Destaca-se que “choro” é 0 exemplo dado nos principais manuais de classificac3o diagndstica para o sintoma “tristeza”, para diagnosticar o transtorno mental da “depressao”. Seria & toa que indices epidemiolégicos desse transtorno sejam mundialmente bem maiores em mulheres? Ao definir os sintomas que compéem certo transtorno, sem uma critica de género, pode-se criar um olhar enviesado que hiperdiagnostique transtornos em certo grupo e invisibilize-os em outros. Além disso, os resultados epidemiolégicos acabam por natura- lizar diferencas construidas culturalmente, as quais deveriam ter sido problematizadas na base mesmo de definicao do transtorno. Phillips e First (2008) e Widiger e First (2008) apontam duas ten- déncias teérico-praticas atuais, levando em consideracao a tentativa de superar essa limitaco (sem se desfazer dos manvais): de um lado, ha ‘quem sugira que haja descricao de sinais e sintomas de certas sindromes de forma diferenciada para homens e mulheres; por outro lado, ha quem aponte que a diferenca deveria ocorrer no nimero de sintomas neces- sérios para perfazer a sindrome, caso fosse um homem ou uma mulher. ‘Apesar da existéncia dessas criticas, realizadas, sobretudo, a0 DSM IV, no houve mudancas significativas nesses quesitos no DSMV. A segunda limitago toca o problema do questionamento do que é considerado como sintoma (e, portanto, 0 que aparece na queixa do pa- ciente): em geral, s80 aspectos que entram em conflito com certos scripts sociais/ideais calcados nos valores de género e por meio dos quais 0 su- jeito se constituiu (Zanello 2014a). 0 incémodo e o sofrimento surgem, muitas vezes, pelo descompasso com esses ideais’. Como terceira limitagao, precisamos considerar os valores e ideais de género do préprio médico (mas também do clinico ou profissional de sade), pois 0 sintoma, apesar de vir na queixa do paciente, é inter- 7 Segundo Brinkmann (208, conftosedscrepancis poder leva ao sorimento identi, em sus mit pls nies: socetaro atointerpetative exp soci esutowterpretatwo Impl; ndvidal utinterpretatve expo por fry nvidul eauoiteprtato mpl, Aoseo vs, pode aver va berture par passogem ao sofrment &conscineadegéneo, como veremas no dacover este ir. sA0DE EN CRO POSTS Ctr eprcnser de bee 2% pretado pelo profissional. Em savde mental, o diagnéstico do médico do 6, jamais, um ato neutro e nem baseado em um processo de mensu- rago. E um ato de julgamento moral, como afirma Thomas Szaz (2980) € como podemos ver em trabalhos de exegese de prontuarios psiquiatricos (Engel, 2004; Zanello & Silva, 2012; Campos & Zanello, 2026). Nesse sentido, 0 que seria uma “sexvalidade exacerbada” ou “um excesso de agressividade"? O parametro utilizado geralmente pelos médicos (e pro- fissionais de sade) seriam os mesmos para homens e mulheres? E esse pardmetro, invisivel, acritico, profundamente gendrado, que precisa ser questionado, refletido, problematizado; pois ele é a “ponte” entre os manvais de classificacdo, o efetivo diagnéstico e qualquer possibilidade de tratamento a vira ser oferecida. Chesler (2005) destaca, nesse sentido, por exemplo, que, na década de 70, as mulheres americanas confinadas em instituigdes de satide mental eram uma espécie de heroinas rebeldes contra os limites apertados de um ideal de feminilidade, condenadas por sva busca de poténcia, cujo estigma de insana se dava pela quebra das normas de género. Em outras palavras, “a loucura tem sido a etiqueta histérica para © protesto feminino e a revolugo” (Showalter, 1987, p. 5). A “loucura” poderia aqui ser compreendida como uma comunicagao desesperada de falta de poder, interpretada sob um prisma gendradolmoral acritico. ‘Além disso, 0 que se observa é que houve, historicamente, uma confusao semiolégica na Psiquiatria, na qual signos simbilicos passaram 2 ser tratados como signos indiciais (Martins, 2003; Zanello & Martins, 2010). A légica indicial funciona mediante a operago que concatena efeito e causa, ou seja, parte-se de um efeito para se implicar uma causa, © que funcionaria bem para 0 campo das doencas fisicas, corporais. Nesse caso, os sintomas séo imediatos, ou seja, sem mediagio da lin- guagem, da cultura, e do préprio processo de semiosis do sujeito. Sao mais facilmente universalizveis e podemos encontrar sintomas patog- noménicos, isto é, sintomas que, quando presentes, apontam necesséria e biunivocamente para uma Unica causa ou doenca, J légica simbélica ¢ aquela mediada pela linguagem e que lida com a arbitrariedade dos signos. Aqui encontramos a formag3o sim- bélica dos sintomas, to presente no campo especificamente da psico- patologia, tal como apontado pela psicanilise freudiana (Freud, 19743; 1» asa za Freud, 1974 b). Hd a necessidade de qualificar a linguagem e a cultura na mediagao da formacao de tais sintomas'. ‘Um exemplo de formacao simbélica do sintoma pode ser retirado da prépria obra freudians “Minha observacao de Frau Cecily M. proporcionou-me a oportunidade de fazer uma coletnea regular de tais simbolizacdes. Todo um grupo de sensagées fisicas que ordinariamente seria consideradas por causas or- ganicas eram, no seu caso, de origem psiquica, ov pelo menos possuiam ‘um significado psiquico. Uma série especifica de suas experincias foram acompanhadas por uma sensacio de apunhalamento na regio do coragéo (significando ‘apunhalou-me até o coracao’)(..) Dores dessa espécie eram ogo dissipadas, quando os problemas em jogo eram esclarecidos. Junto com a sensacao de uma ‘aura’ histérica na garganta, quando aquela sen- sagdo surgia apés um insulto, encontrava-se o pensamento ‘terei que en- goliristo’" (Freud, 1893-2895, p. 230). Diferentemente dos sintomas regidos pela légica indicial, 05 sin- tomas simbélicos podem se transformar no decorrer da hist6ria, so me- tabléticos (Van den Bergh, 1965).Além disso, esses tipos de sintomassio ‘também formas expressivas que refletem os mundos locais de sentido (Martinez-Herndez, 2000). Martinez-Hernéez (2000) ressalta, assim, a necessidade de se passar da pergunta “qual a causa do sintoma?” para “qual o sentido do sintoma?™. Para acessé-lo, & necessario qualificar tanto a experiéncia bio- gréfica do sujeito (e como ele entendefinterpreta seu sofrimento), a partir de uma escuta qualificada de sva fala, quanto os sentidos sociais, culturalmente partilhados pela comunidade da qual faz parte. Aqui é necessério destacar que a Psiquiatria possui varias linhagens, com en- foques e compreensio dos sintomas e do sofrimento bem diferenciadas, ‘0 que leva a praticas também distintas. Em um extremo, temos a psiquiatria biolégica, cuja epistemologia facilmente confunde semelhanga de sintomas com a universalidade do funcionamento anatémico/fisiolégico do corpo, atribuindo certas formas prevalentes de sofrimento (em homens e mulheres), na contem para se aprofundar nessa dicussi0, ver Zanllo (20078) « Martins (2013), que abordam essa temética em uma perspec pscaalec. SADE neyAL, cheno SPOSTTOS Cts pct debate 25 poraneidade, a seus sistemas orgSnicos. A propria linguagem ¢ tratada como objeto de escrutinio de alguma disfunc30, mais do que fruto do trabalho de semiosis do sujeito e, portanto, como repleta de sentido. No outro extremo, temos a psiquiatria cultural, a qual, a nosso ver, oferece subsidios para uma aproximaco e compreenséo cultural/social do sofrimento. A propria adocao da ideia da plasticidade corpéreo-cerebral, nessa vertente, apresenta pontos importantes para a reflexéo e a pes- quisa, que aqui nos interessa, do que é tornar-se pessoa homem e mulher ‘em sociedades nas quais 0 sexismo persiste em maior ou menor grav. A Psiquiatria Cultural aponta que hd um processo no qual o mundo social é transmutado na experiéncia corporal e/ou mental, sendo que a prépria eleigo do palco privilegiado para a formagio de sintomas (mais s0- maticosoumentais) depende do contexto culturale do momento histérico”. Nichter (1981) destaca que o sofrimento pode se expressar por meio de varias linguagens e que aquilo considerado classicamente como “sintoma” (em uma linguagem biopsiquistrica) é apenas uma delas™. Para esse autor, as linguagens do sofrimento (mal-estar) séo miitiplas e se constituem como respostas plausiveis, adaptativas, ou tentativas de resolver uma situacdo patolégica em uma dirego culturalmente signifi- cante: “Idiomas de aflicao (sofrimento/mal-estar) so meios social e cul- turalmente ressonantes de experenciar e expressar afligo(mal-estar em mundos locais" (Nichter, 2020, p. 405). Sua ideia de “idiomas da aflicgio” (sofrimento, mal-estar) serve para pensar nao apenas “os outros” no ocidentais, mas nossa prépria cultura (Nichter, 2010). Como ele mesmo afirma: “Diagnéstico e sistemas de tratamento nao se desenvolvem in- dependentemente da matriz cultural que dé forma & experiéncia e 8 ex- pressdo do mal-estar” (p. 402). * Aplquatria ural “e mantém ems uma encruzihada que concern 20 impacto dacaltura no comport sero ena expen” (mayer, 007, ps, algoFunéamerta o campo da psicopstologi. Para Kima {er lasoa pqtia clara eer de cnc sole da medina pr ear premoriamente quads Paloimpertive clinco. " Rpronmamanos aquida Piqua Tanscltural da Escola de McGil « Enemplos dados pelo ator, em sa pesquisa na socedade Inna, so: comensaldae, per de pes, Jejum, envenenamento, pres, obresrSoe ambivalent. O mada como apessoa seaconaleage certs "Sntomar’, quanto a enfatzaemaisfala, teaver coma padonzacao cultural com as rengasepste- roles ve podem sr egioss, centica et, Ham inerjogs entre catraesintomas, de acordo com "vinta de valores determunantes. Em artigo mairecente Meter, 2010), o autor lenou, a porte de fon expels cline, algon comportamentos que ten serido como iomas de afgSemal-ear: com portamento de tomar emésos sro «retormulagio da nomencatrabiomacca da Gowna; uso de estes ldagndsios burea de médicos ou setemas de saide; mudangas no padao de consumo 2 vars znu0 Assim, temos, de um lado, tanto a criago de quadros/modelos de compreensao e classificacao dos sofrimentos (e etnoterapias para tra- té-los), dentro de determinada cultura, quanto a configuragio e mani- festagdo da aflicdo psiquica em certos quadros passiveis de serem iden- tificados e reconhecidos (legitimados) culturalmente como sofrimento (Borch-Jacobsen, 2023). Trata-se de dois lados da mesma moeda. Para entender a ligagdo entre esses fendmenos, devemos levar em consideragio os aportes tedricos trazidos por Shweder (1988). Se- gundo esse autor, faz-se mister diferenciar dois tipos de fenémenos: os de tipo natural e outros que so categorias intencionais. Os primeiros apresentam uma causa que independe do sentido que possuem para nés ou de nosso envolvimento, avaliagao ou experiéncia com o fe- némeno. As categorias intencionais, diferentemente, tém uma relagso causal ligada 8s nossas representacdes, concepgées e aos significados/ sentidos construidos. lan Hacking (ag95) propée, a partir desta diferenciacdo, acategoria tipo “interativo humano”. Esta, diferentemente dos “tipos naturais” (li- gados a fatos), seria carregada de valores. Esses valores acabam por pro- duzir uma ideia de “normalidade” (desenvolvimento “normal”, reacéo “normal’, sentimentos “normais", comportamento “normal” etc.) e, no caso de alguns grupos alvos de “descrigio cientifica”, criam-se os “des- viantes" (geralmente compreendidos como “maus”) Um exemplo da categoria “tipo natural” seria a molécula de dgua: independentemente do que vocé pense ou seja afirmado sobre ela, ela manteré a mesma estrutura quimica, aqui ou em outro planeta com qua- lidades atmosféricas semelhantes. Por outro lado, um exemplo da ca- tegoria de “tipo hurnano” seria a “criag3o” da pessoa do autista ov do homosexual, em determinado momento histérico. No caso do “homos- sexyal", trata-se de pensar que certo comportamento sexual (dentre tantos outros possiveis) passou a definir um tipo humano (a partir do fim do século XIX), 0 qual passou a ser objeto de estudo e de descrigo cientifica peculiar. Essa descrigo teve influncia na constituigio da au- tocompreensao das préprias pessoas descritas, de sua vivéncia identi- téria®, ressentida, em muitos casos, como patolégica. ™ Parindo ds contibuigbes da flosofa de Foucault, become da Hermentutia emuma vetete ees {giana egadamerana (par os quas 0 Dasen sempre se encoira numa pré-compreansioavtoimplatv, fue se descoahece), Siaknann (2008) aponta que no nicleo da la de eentidade exste a autonterpre ‘dpe noni, chen EspocTiGs can pce slehte 7 © que ocorre & 0 looping effect (Hacking, 1995): uma tendéncia de que categorias criadas utilizadas para entender e pensar comporta- mentos, atos e temperamentos humanos (pelas ciéncias sociais e hu- ‘manas) se tornem reificadas ¢ institucionalizadas como fatos sociais. Se- gundo Hacking, so criagdes humanas que dao sentido a determinadas experiéncias, e que tém como consequéncia alterar a prépria vivéncia delas. Trata-se de uma ficcdo, porém performativa. Criar novas formas de classificagao é, assim, mudar também a forma como nés pensamos em nés mesmos, mudar nosso senso de autovalor e a maneira como lembramos/descrevemos nosso passado. Como Hacking (1995) mesmo afirma, tipos humanos bem estabelecidos pelas ciéncias sociais e hu- 'manas afetam intensamente nossas preocupagées sociais (e pessoais). Segundo Hacking (2995), as caracteristicas da categoria dos “tipos humanos” seriam: a) tipos que séo relevantes para alguns de nés; b) tipos que primariamente ordenam pessoas, suas ages, seus comporta- ‘mentos; c) tipos que sdo estudados nas ciéncias humanas e sociais, ou seja, que esperamos ter conhecimento sobre; d) destaca-se, ainda, 0 efeito que estas categorias tém sobre os sujeitos por elas descritos. Por outro lado, ao criar “identidades" para certos grupos, looping effect também traz a possibilidade de que eles possam “lutar” contra a descrico cientifica em tela e modificé-la, como foi o caso da extingdo do “transtorno mental’ “homossexvalismo", do DSM, fruto das lutas dos mo- vimentos LGBTs. Também traz a possibilidade da luta por certos direitos politicos. Nesse sentido, o looping effect no é necessariamente algo ruim. Movimentos que lutam por avancos sociais, que aprovamos, fazem parte do jogo (Brinkmann, 2005). Quanto maior a conotagdo moral da classifi- ‘cacao do “tipo humano", maior 0 potencial para o looping effect. lan Hacking (ag95) deixa em suspenso o quanto género e raca so categorias do tipo “interativo humano”” Seu argumento é de que as estu- diosas de género se atém pouco as discussdes da drea biolégica, aquela ‘aslo. Nio sb so, segundo ele, 58 podemos ter Wenidad se estamos comprometidey,sibamos ov 80, ‘om questées de valor moral-Ou sa, com o que ns apsca a defni-o que & nportante pore nos Tet \dentiade nesse sentido, concere nertanto so qe oct ox, mar a0 Toga’ use erence O set Ssntido de quem nés somos igo ao todo que nos € dado solamente, baseado er trades, pitas ompartinads,nsttugce, magia sociale nfo apenas em escaha pesioelsow por meio autre xo, Asin, como pessoas, "ne teros apenas eseos, mas dees sobre unt Sees te (09) Desse Forma, a autinterpretagiowenttdna nao seis algosomentecnscente Tefen, mas incr ambien ‘lmentos de saber, prices corpora «emagSes, Ness sertide crate de “tos humnenes” tem come tum dosloging effects interpelarideridadesAo mesma tempo, pracasineicionose madangas mates podem mbar aso que se dedica aos fenémenos da categoria tipo natural. O autor parece ter permanecido na segunda onda de debates feministas (a qual ve- remos no préximo capitulo), na qual sexo é entendido como categoria irredutivel corporal e género como construcao social. Aqui é necessério apontarmos nossa divergéncia em relaco a esse autor. A prépria com- preensao bindria do sexo ja é uma leitura de género, histérica e cultural- mente localizada, cujos efeitos se fazem sentir na prdpria construcao da corporeidade vivida e de suas performances. Ou seja, género deveria ser pensado como categoria do tipo “interativo humano", cujo looping effect atua desde os primérdios da concepcao, passando pela escolha do nome a0 imaginario gendrado que recobre o advir daquele futuro bebé. Volta- remos a esse ponto mais adiante no livro. Na definigio de Hacking, diagnésticos psiquiatricos em geral per- tencem, portanto, & categoria do “tipo humano", assim como os ob- Jetos psicolégicos, da Psicologia” (Brinkmann, 2005). Tanto diagnésticos quanto conceitos psicolégicos dao sentido &s vivéncias e ao sofrimento da pessoa, ao mesmo tempo em que validam esse sofrimento ("isso me acontece por que sou bipolar, obsessiva"; "é meu superego” etc.), alte- rando a vivéncia do sujeito em relagao a ele ea si mesmo. Em outras palavras, os “transtornos mentais” sdo criagdes culturais que possuem efeitos performativos: prescrevem formas de sofrimento que sao passiveis de serem reconhecidas, validadas e amenizadas com terapéuticas também culturais, ou etnoterapias" (Zanello & Martins, 2012; Zanello, Hésel, Soares, Alfonso & Santos, 2025). Nao se trata de negara biologia, mas de pensar em uma interface complexa entre mente, cérebro, corpo, cultura. Como apontam Gone e Kirmayer (2010, p. 35), “os transtornos psiquiatricos refletem o resultado de interagdes, entre 608 processos biolégicos e 0 meio social, mediadas por mecanismos psi- coldgicos sobre a trajetéria de desenvolvimento de uma vida humana’. Cultura aqui deve ser entendida em termos semiéticos. Nas pa- lavras de Geertz (2008), ‘© homem & um animal amarrado @ teias de signiicados que ele ‘mesmo teceu, assume acultura como sendo essa telas e sua andlise; Portanto, nfo como uma ciéncia experimental em busca de leis, mas ‘como uma ciéncia interpretativa, a pracura do significado" (p. 4). ® Segundo Brinkmann (2005), Freud foo rel dos loopes! 2“ Aspalcoterpias formas de etnoterspise VerZenallo etal (2038) aye 2 Um exemplo, utilizado pelo autor, a partir da leitura de Ryle (flbsofo briténico), trata da diferenca entre um tique involuntario e uma piscadela conspiratéria a um amigo. Ou ainda, a imitag3o de uma piscadela conspi- ratéria com a intengo de enganar alguém. A descrigao fenomenolégica “superficial” (de superficie) nao bastaria para diferenciar uma das demai Confundi-las seria incorrer em um erro no qual o sentido especificamente simbélico, semiético, humano, escaparia: é necesséria uma “descrigao densa”. O autor conclui: “Contrair as pélpebras de propésito, quando existe um cédigo publico no qual agir assim significa um sinal conspira~ t6rio, € piscar. E tudo que haa respeito: uma particula de comportamento, um sinal de cultura e—voild- um gesto” (Geertz, 2008, p. 5). E necessario, portanto, descrever, conhecer as estruturas de significacao. Isso vale também paraas expresses humanas consideradas ‘ou nao como sintomas pela psiquiatria. "O que devemos indagar é qual & ua importncia: o que esté sendo transmitido com a sua ocorréncia e através de sua agéncia” (Geertz, 2008, p. 8). Como aponta Ryder, Ban e Chentsova-Duttonl (2022), ha um némero finito de sintomas disponiveis para expressar 0 sofrimento ou a aflicao, legitimamente validados e re- conhecidos, passiveis de serem “decodificados” e tratados em deter- minada cultura. Essa expressao é, portanto, mediada, configurada pela/ nna cultura, ancorada no corpo vivido. Gone e Kirmayer (2010) apontam as seguintes caracteristicas para cultura: & social, € configurada, é historicamente reproduzida e é sim- bélica, A cultura compreende padrées compartilhados de atividades, interacdes e interpretacdes, sendo a linguagem o principal sistema se- midtico mediador da reprodugao cultural transgeracional. Outro aspecto a se destacar é que as culturas séo investidas e in- vvestem certos grupos com poderes e autoridade de forma desigual (Gone & Kirmayer, 2010). As hierarquias s80 configuradas na histéria daquele povo: © poder ligado a sistemas culturais especificos e comunidades deriva de uma histéria de dominagdo e controle préprios, 2 qual deve continuar a exercer efeitos na forma de pensar mesmo depois que a maquinaria de dominagSo tenha sido desafiada ou ddesmantelada" (Gone & Kirmayer, 2010, p. 40) 0 desempoderamento, em certo grupo social, tem sido apontado por autores tais como Good e Kleinman (1985) e Littlewood (2002) como um dos principais fatores relacionados ao que comumente denominamos x0 usa ana de transtornos mentais comuns (TMCs- depressio e ansiedade). Segundo co autores, a incidéncia desses quadros é bem mator (mundo afora) entre mulheres, individuos que ocupam status sociais de relativa falta de podere (05 economicamente marginais. Seus comportamentos e sentimentos de veriam assim ser compreendidos mais como respostas plausiveis, quando contextualizados, do que como sintomas psiquidtricos. Ha “dindmicas de protesto e de resisténcia” (Kirmayer, 2007, p. 25). ‘Além disso, a prépria nogdo de “pessoa” é cuituralmente variavel No ocidente, hd uma tendéncia a compreender a pessoa de modo indivi- dualista, nos limites de seu préprio corpo e com uma constancia identitaria ‘temporal. Em sociedades indigenas, aqui mesmo no Brasil, encontramos rnog6es diferentes, mais coletivistas e fluidas (Viveiros de Castro, 1996; Vi- vveiros de Castro, 2002; Seeger, Da Matta & Vivelros de Castro, 1987). Esse tema foge ao escopo deste livro. No entanto faz-se mister destacar que ‘essa concepcao de pessoa, presente em cada cultura, ¢ imbuida de valores € ideais prescritos socialmente e constantes em varias camadas, desde as mais explicitas (como leis etc.) aos ritvais e a0s valores invisibilisados*. Kitayama e Park (2007) apontam que, ao longo da histéria cons- truida transgeracionalmente, so selecionadas praticas culturais (tais como scripts) e significados publicos em referéncia a certa visio privile- giada do que é/deve ser uma pessoa. Configuram-se assim tendéncias motivacionais nos sujeitos, influenciando substantivamente suas emogies, bem-estar e saiide. Priticas e sentidos que sao congruentes com a visio predominante de self, valorizada em determinada cultura, tendema ser preservados ¢ os que sao conflitantes, eliminados. Um tema muito debatido nesse campo diz respeito ao valor da independéncia ov da interdependéncia na configuragio e afirmacao do self Ryder et al. (2022) sublinham o papel de intermediacdo que esses scripts culturais possuem. Eles tanto refletem as estruturas de sentido/ significado na mente quanto agem como guias priticos comporta- mentais no mundo: SS ee ee rn pant go hi tanbiratcondéncarficanas em rego ao hardeas braslero qe posse Une ‘oxo coltvta de pessoa, Seginco els pode er consatado rosters “esa expen ene Indo dos terior preserva noo celetvae praise pessoa (SI. "etre americana sea mom exemplod per cao, aracerzando-e como. acidade ai individuals rerpelando valorando eroghes as como autodeo, ealuaeo, pode ava erg) 2 passa queos aponesesrepresentaram osegundo, una sodedade mas ollivstafinterpand emogBe, {atscomocanformidde,terdependénca, harmon secal-tais com Semimentasarstosor= Ul) sA0D€ WENT CERO EDSPOSTIOS: Cate pracss esbhngso 3s (0) scripts se referem a unidades organizadas de conhecimento {que codificam e propagam significadosisentidos e praticas. Eles servem como mecanismos que permite uma recuperacio automitica rdpida e 0 uso da informagio adquirida a partir do ‘mundo enquanto configuram 0 modo como a informacio & per- cebida, Prescritos como comportamentos, scripts so observavels 295 outros e vem a ser parte do contexto cultural, configurando ‘suposigdes sobre o que os outros pensam, e expectativas sobre ‘como eles se comportarao.(p. 264-265) Em sociedades em que 0 género ¢ fator estruturante (nas quais tomnar-se pessoa significa tomar-se homem ou mulher, marcado pelo binarismo), podemos questionar sobre os scripts e as expectativas nor- mativas diferentes sobre o que é ser uma “pessoa”, seja homem (ser um homem “de verdade"), seja mulher (ser uma mulher “de verdade”) Dimen (1997) afirma, nessa direcdo, que hi uma diviséo de tra- bbalho emocional em sociedades patriarcais. O patriarcado” “denota uma estrutura de poder politico disfargado em sistema de diferenga natural” (Dimen, 1997, p. 46). Segundo a autora, a divisao de trabalho emocional sugere que aos homens é interpelada a individualizago e a autonomia, ov a independéncia; ja &s mulheres, a ligago e 0 cvidado, ov seja, a in- terdependéncia. Aquiénecessério pensarnos processos por meio dos quais.a cultura participa e configura certos tracos, perfomances e afetos, socialmente valorizados, inibindo outros que, quando expressos, causam conflitos sociais para o sujeito. Trata-se de uma pedagogia dos afetos ou coloni- zaco afetiva, pois os contextos culturais provém também as pessoas com scripts sobre como devem sentir e expressar emogGes. Apesar de sempre haver a agéncia e possibilidades de contestagio dos valores dominantes, o prego a se pagar pode ser caro. A ideia chave & que toda experiéncia humana é culturalmente constituida. £ mesmo ‘as emogées so respostas culturalmente condicionadas, configuram-se na interface entre o sentido, as sensagBes corporais e 0s significados cul- turais (Leavitt, 1996). {Todararvezes que uileros temo *ptracede" na decorer dest i, estamos nos eerindo a um sistema seveignere no qual ha uma forma especies do dominio masculine (enzo ecessaamente da ‘ura pater), Como sponta Paterna 9), abanonso terme “paarcado” representa perda pla ‘ora lis ferinata do isa conceit gus oe eer expeccamente bsjelgSo da mulher «que single ‘a forma de ie police qv todos os homens exer pal fata deserem homens” p39), 2 aseazaeo Nesse campo precisamos fazer um adendo, pois ha um grande debate sobre se as emocdes so “naturais", fruto apenas do processo evo- lutivo (seriam internas e expressao direta da evolucio filogenética), ou se configuram-se e expressam-se de acordo com a constituiggo da cultura. A perspectiva naturalistica, derivada do estudo da expresséo das ‘emogdes em animais, por Darwin, pensa as emoges como inatas, uni- versais ¢ invariantes. Primeiramente elas esto “no” sujeito e somente depois se expressariam nas interagdes. Um importante exemplo dessa perspectiva so os estudos de Paul Eckman (2021). Segundo esse autor, cada emocdo gera um padro Unico de sensagdes em nosso corpo, 0 qual apresentaria “sinais Unicos, principalmente na fisionomia e na voz" (Eckman, 2021, p. 15)". Esses sinais seriam universais. Eckman descreve da seguinte maneira a relagao entre emogdes e palavras: ‘As palavras sio representagbes das emogies endo as proprias, lemogies. A emaglo é um proceso, um tipo especifico de avalia- 80 automitica, influenciado por nosso passado evolucionista e pessoal, em que sentimos que algo importante para nosso bem- ‘estar esta acontecendo e um conjunto de mudangas fsioldgicas e comportamentas emocionaisinflvencia a situagso. As palavras so uma maneira de lidar com as emogBes. (Eckman, 2033, p. 33) ‘As emogGes existiriam em e por si mesmas, independentemente da cultura, Segundo o autor, haveria temas universais (que constituem gatilhos emocionais) e, por outro lado, variagdes desses temas que se desenvolvern nas experiéncias individuais. Os primeiros seriam dados, os demais adquiridos. As formas para lidar com essas expresses também seriam mediadas pela cultura. O autor conclui: “Ficamios emocionados a respeito de questdes relevantes para nossos antepassados e a respeito do que achamos importantes em nossas préprias vidas” (Eckman, 2023, p. 242). Esse modelo explanatério de base biolégica assume que a lin- {Par Eman a0), o expresses acs sb 0 mais reve ds sinasemaconas. lm dso, prale,0 Sistema de sina pimario pan emote telzesseianvoxenio face. Aquiserainerssantecitara camp ‘de estos das emo com aqueles da pscafondtic, realizado por Foray (2571983). Ness at, fre mister deracar om exempodad pel pp autor-o controle de expressio das ro {es por prt dos omens. "tla entana ato de um homem no querer demonstar ses sentiments ‘io gnes qos ele ters sce, Propostadamerte, uae um homem no paseo anton poe 0 (cata sentiments) mas camum entre os homens embora na sea deforma enum, una reg erie ‘shortens ov desconbecid de mulheres” (cksran, az, 308). Eckman desace que at receterente, Las de rena ov angina eraminal de fraqacza em homens autor es Tusa Em scadades ex ‘tas, poreals como abaslea ess sents parece no terse engu. — 3 {guagem e outros sistemas simbélicos tém uma fungio puramente refe- rencial, sendo as emocdes experiéncias transculturais. Ja paraa perspectiva construtivista, préxima a que adotamos neste livro, as emogées s8o configuradas nas interagées sociais e, portanto, dependem do contexto cultural, da linguagem e da construgio de signi- ficados. Leavitt (2996, p. 526), afirma que: (..) deveriamos ver as emogées nem como sendo primariamente significado, nem como sensacSes psicobiolégicas, mas como expe- riéncias aprendidas e expressas no corpo em interacéessocias atra- vés da mediagio de signos, verbals e ndo-verbais. Nés deveriamos vé-las como fundamentalmente socais, ao invés de simplesmente de natureza individual; como expressas ordinariamente, ao invés de inefavels;e como culturasesitvacionais. Mas deveriamos igual- ‘mente reconhecer na teoria 0 que todos nds assumimos em nossos cotidianos: que as emocées sSo sentidas na experiéncia corpora, ‘no somente conhecida, pensada ov avaliada Para Leavitt (1996), 0 debate sobre as emoces nao caberia na di- cotomia corpo e palavra, significado e psicobiologia, pois elas envolvem sentido e sensagao, mente e corpo, e cultura e biologia. Um exemplo dado pelo autor é a experiéncia de um “remexido" no sistema digestivo. Como consigo diferenciar que é ansiedade e no apenas o resultado de um lanche infeliz que fiz agora ha pouco? O autor responde: “estar an- sioso é ter uma sensagao associada a um sentido/significado” (Leavitt, 1996, p. 535). A cultura cria assim experiéncias reconhecidas que en- volver sentido/significado e sensac3o corporal. A linguagem usada no cotidiano é extremamente esclarecedora e aponta para uma ponte entre co dominio corporal ¢ 0 conceitual™ Nessa perspectiva, a linguagem é entendida nao apenas como mera etiqueta sobre uma experiéncia universal, mas como processo mediador, simbélico, que permite que certas experiéncias (corporais e mentais) venham a se configurar e ocorrer de determinada forma. O préprio corpo é compreendido, portanto, como sendo situado e socia~ lizado, diferentemente de uma visio do corpo como o “iltimo nivel” biolégico e universal, indiferente & cultura. O corpo, apesar de limitado, 6 pléstico. Os corpos existem em interago, mais do que entidades iso- * As metforasexercem acui um papel fundamental tal como jé desenvolvemos em nossa tese doutoral (Zane, 2007). ver tang Lalo Jonson S86) 3A usta ano ladas. Nesse sentido, a base biolégica seriaresponsavel ndo apenas pelas similaridades entre diferentes culturas, mas também o que tornaria pos- sivel a enorme vatiedade de linguagens, culturas, padres sociais. Geertz (2008) pode ser aqui esclarecedor: Entre o padrao cultural, 0 corpo eo cérebro, fol criado um sistema de realimentacéo (Feedback) positiva, no qual cada um made- lava o progresso do outro, um sistema no qual a interagao entre (0 uso crescente de ferramentas, a mudanga da anatomia da mao @ a representacio expandida do polegar no cértex é apenas um dos exemplos mais gréficos. Submetendo-se ao governo de pro- 4gramas simbolicamente mediados para a produsao de artefatos, forganizando a vida social ov expressando emosées, 0 homem determinou, embora inconscientemente, os estagios culminantes do seu proprio destino biolégico. Literalmente, emnbora inadvert- ddamente, ele préprio se criou(..).As mudangas muito maisimpor tantes e dramaticas foram as que tiveram lugar, evidentemente, ro sistema nervoso central. Esse foi o periodo em que o cérebro hhumano (Homo Sapiens), principalmente sua parte anterior, alcan- ou as pesadas proporcies atuais(..). O que separa aparente: mente os verdadeiros homens dos proto-homens no é a forma corpérea total, mas a complexidade da organizacio nervose, O periodo superposto de mudanca cultural e biolégica parece ter Consistido numa intensa concentracio do desenvolvimento neu- ral (.). Grosso modo, iso sugere nao existir o que chamamos de rnatureza humana independente da cultura. Os homens sem cul- tura (..) Seriam monstruosidades incontrolaveis, com muito pou- os instintos dteis, menos sentimentos reconheciveis e nenhum Intelecto (..)". Como nosso sistema nervoso central -e principal- mente a maldigdo e gléria que 0 coroam, 0 néocortex- cresceu, ‘em sua maior parte, em interago.com a cultura, ele &incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experléncia sem «a orientacio fornecida por sistemas de simbolos signifcantes, Geertz, 2008, p.35) Para ele, tantos as ideias, quanto “as préprias emogGes sio, no homer, artefatos culturais” (Geertz, 2008, p. §9). Leavitt (1996), nesse mesmo sentido, afirma que as emogdes no so, portanto, primaria- ® Suprimimos “verdes casos priquitrcor” por acedtumeos ter sido uma inflidade do ator our deve expose eda vst que ness captlodefenderorjrtarents qe moto pacientes pases ce serem paquataados produzam singomar corposise ate plenos de sentido. pepsin de sbeinge 3s mente nem sentidos (meanings) nem sensacbes (feelings), "mas experi- éncias aprendidas e expressadas no corpo, nas interaces sociais através da mediacao dos sistemas de signos, verbal e nao-verbal” (p. 526). Como aponta autor, associagées afetivas, assim como semanticas, sao tanto coletivas como individvais; elas operam por meio de experincias comuns ou similares de membros de um grupo vivendo em circunsténcias pare- cidas, mediante esteredtipos culturais da experiéncia, e a partir de ex- pectativas, memérias e fantasias partilhadas. Nessa mesma perspectiva, Boiger e Mesquita (2026) ressaltam que as emocGes so engajamentos em relagdes sociais que estao continva- mente em mudanga. Mais do que entidades internas, “separadas”, trata- -se de processos em curso, dindmicos, interativos, e que s0 social mente construidos. Ou seja, as emogdes quase sempre ocorrem em interagées sociais € relagées. Dessa feita, o contexto social constitui, molda e define as emogées, as quais retroalimentam as interaces e as relagées. Segundo os autores, é a avaliagio da situaco interacional/socil vivida pela pessoa que organiza sua emogGo, ou seja, qual sentido esta possui Pelos menos trés contextos precisam ser levados em consideracso na formacao/configuracéo das emocées (Boiger & Mesquita, 2022): as in- teragdes momento a momento; as relacdes estabelecidas; e 0s contextos socioculturais. Os autores sublinham que a construgao social da emogao é um processo iterativo e em curso “que se desdobra desde as interagdes relacées, ederivam sua forma e sentido das deias epraticas prevalentes do largo contexto cultural” (p. 222). Assim, “interagdes e relacdes sao sempre enquadradas pelas ideias, significados e praticas prevalentes sobre o que 6 uma pessoa e como se relacionar com os outros, que também est re- ferido a modelos culturais" (Boiger & Mesquita, 2012, p.225). Como ja sublinhamos, em uma cultura sexista, 0 tornar-se pessoa & sempre estruturado pelo binarismo do tornar-se homem ou mulher. Como 0 género marca este enquadramento cultural, no qual as inte- rages ocorrem e so sempre gendradas? Ainda que essa nao seja, em ‘momento algum, a questdo para os autores, eles mesmos apontam para respostas possiveis: "Modelos culturais informam valores centrais, pro- pésitos, preocupagdes fundamentais da pessoa e isso constitui o pano de fundo contra o qual as avaliagbes (dela pelos outros e por si mesma) = interessante apota aplsemia do termo "sentido: pode ser no aspect cognitive, corporate de dies. \Wirbika (994) subina que ax das prmeasacepgdes so vidas para vacua. 36 ‘uss zao so formadas” (Boiger & Mesquita, 2022, p. 237). Se as qualidades das emogdes derivam das interacdes em que elas ocorrem, as quais sao elas mesmas significadas em um quadro/contexto cultural, ese as interagées so gendradas, faz-se necessério pensar se hd e quais seriam as emocées interpeladas diferentemente em homens e mulheres. Em suma, que emogées sao permitidas e legitimadas como sendo de mulheres e de homens? Como afirmam Kitayama e Park (2007), as tendéncias pessoais motivacionais sdo adquiridas mediante anos de so- cializago, as quais comecam muito cedo, desde os primeiros anos de vida, e S80, em consequéncia, automatizadas, performadas e incorpo- radas. A cultura € tacita e, portanto, altamente poderosa no proceso de configuragao da experiéncia emocional, dos processos psicolégicos e mecanismos subjacentes a eles. No préximo capitulo vamos discutir os processos gendrados de subjetivacdo. ‘sAdoe en cen Ess cata presees debnvcte ”

You might also like