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a DEBATE Realizagio Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, ‘Thiago Majoloe Vera Zimmermann Birbara de Souza Conte 6 psicanalista,doutora em Psicologia pela Universidade Autonoma de Mac, ‘membro pleno da Sigmund Feud Associagio Pst canalitica e coordenadora do projeto Clinicas do Testerunho (Comissia de Ansa, membro do coletivo ampliado e da Comissio de Dieitos Hu: ‘manos do Conselho Federal de Psicologia Lilia Morite Schuarez 6 professora titular no Depar tamento de Antiopologia da Us? e Global Scholar at Princeton University. autora de varios livros ‘como O espeticulo das ragas, As barbas do impe- ‘ador (prémio Jabut); © sol do Brasil (pr€aio Ja but; Brasil uma biografa. Fo também curedora cde uma série de exposigbes, deve as quais: Um colhar sobre o Brasil e Historias Mesias. Atual- mente & curadora adjunta do MASP na drea de is triage narativas Maria Licia da Silva & psicéloga, psicanalisa, es- ‘pecializada em trabalhos em grupos com recorte de género e raga. € divetora-presdente do Insti- tuto AMA Psique e Negrtude; Coordenadora Geral da Anticulagio Nacional de Psicdlogasios) [Negras(os) e Pesquisadorastes e empreendedora social da Ashoka [Noemi Moritz Kon & psicanalista, membro do Depat- tamento de Psicanilise do Instituto Sedes Sapien- tiae (So Paulo, SP, Brasil); mesree doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de Séo Paulo; Autora de Freud e seu duplo. Reflexdes entre psicanalise arte (Sao Paul, 2. ed, Edusp, 2015): A viagem: dia literatura a psicanlise (S40 Paulo, Companhia das Letras, 2006); Organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant (S40 Paulo, Companhia das Letras, 2009) Barbara de Souza Conte Lilia Moritz Schwarcz Maria Lucia da Silva Noemi Moritz Kon Racismo, este estranho familiar Sco fenémeno de estranhamento constitutive do psiquismo humnano, pode produzir uma sensagdo de alvio ao psicanalista que trabalha com patologias dos priméndios do piguisme por balizar wm resultado de mo- Vimentagdo psiuica em diego a sade mental também: pode cusar-the repiidio se dslcar seu olhar para ceros movimento sociais que trans. {formam 0 mesmo fendmeno em exclusdo ao outro semelbant. Dentre as varias manifestages deste fendmeno que pode ser uma das vias de se entender o preconceito, estaria 0 racismo, que em nossa cultura brasileira assume faceaspartculaes¢ mostra que olaent exis- tente no “bomem, cordial” pode surpreender os desavisados que fazem 4 letura apenas do conteido manifesto. Sérgio Buarque, que tomou 0 termo emprestado do escritor Ribeiro Couto para definir uma caracte ristica tipica do povo brasileiro, mostra que ssa cordiaidade tem a ver com "corgi nto com bondade ou tampiouco com poldez, ingimento ou hipocrisia. Tal “ica de fundo emotive” nos levaria a traduzir o mundo 4 partir dos lagos primordiais vividos no convivio familiar sem sermos atravessados pelas institugdes, pelos rituais ou pelas tradigbessocais. Qu seja, a esfera dos “contrates primérios" dos lagas de sangue e de co- ragio que permeiam a vida doméstica forneceria 0 modelo de qualquer composigdo social entre nés. ‘Historicamente, veremos que a experiéncia da escravidao no Brasil é responsével pr vdvasfacetas da cultura eda sciedade brasil , mesmo apts se término oficial, suas marcas persis de forma prfunda, Na arquitetura social conteimpordnea, a divisio entre ‘éirea de sevice rea Social” insist simbolicamente na separagdo entre a casa grande ¢ a sen- zala. Podemos encontrar na lingua palavrase expressbes como ‘denegrir’ “a coisa esté peta e“passado negro que atestam como a attude ricitas + p. 109-120 : junho de 2015 PERCURSO 54 junho de 2015 PERCURSO 58 esto incorporadas ds estrutarassociais mesmo que inconscientemente. Negros sio abordados pela poicia em niimero muito maior do que os brancos e jd 50 considerados suspeitos a priori, ndo s6 pela policia, ‘mas pelo resto da populagio em geral. No livo Brasil: Uma biografia, Lilia Schwartz ¢ Heloisa Sterling mostram como aqui convivem duas realidades diversas: de um lado um pais profunda- mente mestigado em suas crengase costumes, de outro 2 local de um racismo invisivel e de uma hierarquia arraigada na intimsidade. Um siléncio que ajuda a desmobilizar a sociedade e “naturalizar” as desigual- dades. Se no cotidiano brasileiro pairaoslenciamento das diferengas e discriminasoes, sobre a nossa histéria & possivel detectar uma tentativa de brangueamento da populagio, postivada pelos préprios negros. Neusa dos Santos, ao entrevistar pessoas negras para a sua Aissertasto de mestrado, compilou iniimeros relatos de pessoas eujas familias aconselhavam o casamento com pessoas brancas a fim de “branquear” e“melho- rar” a rasa. O velamento da discriminasdo esconde sua violencia econtribui para negativar aidentidade do negro. Restalhe ansiarideais brancos que produ zem identfcagdes de wm Ideal de Ego branco, incom _pativel com seu corpo, que passa a ser tom perseguidor (Costa, 1984) Em sua tese de doutorado, Isildinha Batista [Nogueira (1998) vai além ao afirmar que a expe- riéncia de discriminasto se manifesta para a crianga muito antes de esta sofrer qualquer experién- cia social dediscriminasdo. A criansa negra viveria uma particularidade ao reconhecer-se durante 0 es- tio do espelho, pois, simaltancamente ao fascinio BARBARA DE SOUZA CONTE A violéncia e a meméria sero 0 eixo de minha contribuigio a este debate. Violéncia descrita por Freud em duas teses sobre a guerra, a de que os impulsos primitivos, selvagens e malignos da hu- manidade nio desaparecem no individuo, mas per- manecem no inconsciente; eo afirmar que nosso intelecto é débil e dependente,joguete e insera- mento de nossas inclinagées pulsionais e afetos, ¢ fica marcada assim a ligagao da pulsio de morte com a guerra pelo caminho da destrutividade que a experiéncia produz, haveria uma repulsa d imagem por nao coincidir com o desejo da mae, atra- vessado que esta pelo ideal de brancura.’ Nogueira apoia sua tese na teorizagio do psicanalista Sami- -Ali, para quem 0 horror que a criansa manifesta iante do rosto estranbo faz parte da experiencia da alteridade, quando a crianga se dé conta de que bé outros rostos, diferentes do rosto da mae, o que abre apossiblidade de ela propria ter um rosto diferente to da mae, um rostoestranbo. E nesse processo que 0 sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si, garantida num primeiro momento pela iden- tifcasio com o rosto da mae, se ve afetada pela dimensio de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no estranko, Um ‘estranhamento” que se perpetua nas rela- oes entre domésticas e patroes no ambito de muitas ‘fanslas brasileras, unidos e separados pelos lasos cordiais, que abarcam sentimentos ambiguos de {forma indistinta ede dificil formalizasao ou conten- 40. Tensto belamente retratada no recém-langado Jfilme Que horas ela volea?, de Anna Muylaert A segdo Debates da Revista Percurso con- vida alguns interlocutores a enriquecer 0 debate sobre esse tema. que todos nos vemos forcados a atuar inteligente ou tontamente segundo o que nos ordenam nossas atitudes emocionais eresisténcias internas. (Carta de Freud ao Ds Frederik van Eeden {médico pa- tologista ¢ literato] em 28 de dezembro de 1914)" ica marcada assim a ligacio da pulséo de morte com a guerra pelo caminho da destrutivi- dade, inerente ao homem. Jacques Derrida (2001) » o arquivo teria lugar ra falta origindria e estrutural da chamada memoria denomina a pulsio de morte como mal de ar- quivo, como a pulsio destruidora dos préprios arquivos. Situo nesse cruzamento o ponto a de- bater: a meméria como contrapartida do mal de arquivo, da destrutividade. O arquivo teria lugar na falta origindria e estrutural da chamada me sméria: “nao ha arquivo sem um lugar de consig- ago, sem uma técnica de repeti¢io e sem uma certaexterioridade”, Consignar evoca necessaria~ ‘mente 20 outro como aquele com quem se esta- belece algo, a quem se confia, a quem se consagea algo e se recomenda’.Nao hi arquivo sem exterior que assegure a possibilidade de memorizagio, da reprodusio da compulsio de repetigio. Por isso forca da pulsio estaria sempre a servigo da vida e damorte, da meméria e do mal de arquivo. ‘A memeéria pode sex pensada em duas concep- ‘ges: uma histérica, dos acontecimentos, e outra ar- quedlbgica, inconsciente, desde onde se produzem. as cenas imagindrias da experiéncia. A meméria consciente dos fatos nio coincide com a meméria inconsciente do vivido, o que nos faz pensar com Freud que“nada do que se produziu alguma vez desaparece’ ou sejaoinconsciente produz incessan- temente, Mas, para que a compulséo de repeticéo se tome meméria, histéri, ela precisa da exterio- ridade, da alreridade do outro que proporciona 0 5, Feud, (1915), De gue y muerte, Ternas de actualidad, Obras CCompletas, v.14, Buenos Altes, Amorror. J. Derrida, Mal de Arquivo: Uma impressofreudian, Rio de Janeiro, Relume Dumaré, 2001. [Novo Diclonsrio Aurlio, Auréio Buarque de Holanda Ferreira, Rio de Janeiro, Nova Frontera S, Freud (1929), EI malestar en la cultura, Obras Completa, v.21, Buenos Aires, Amorrtu S, Freud (1992), Por qué la guera, Obvas Completa, v.22, Buenos Aires, Amercot IN. Elias, © Processo Civlizador,v. 1; Uma Histria dos Costumes. Rio de Janeto, Zahar, 2011 suporte ao desamparo, 0 olhar constitutivo eo in- terdito imposto pela lei que vale para todos. Repetigées na trajet6ria do homem para se distanciar da barbarie, do ato soberano de matar, que liga a guerra com a morte e ressalta a neces- siria condigio de admitir a finitude, Volto a in- sistis, vale para todos. Freud i afirmar sua possio as vésperas de ou- tra guerra, em 1932 em cortespondéncia com Eins- tein sobre (Porqué a Guerra)’ em que acrescenta ensinamentos a respeito da destrutividade inerente ao homemydo se trata de elimina a inclinagio dos homens para agredit; pode-setentar desvié-laobas- tante para que nio deva encontrar sua expressio na guerra” (p.195). Neste texto abre outras vias para a contengio da deserutividade humana, através dos"vincules que se tem com um objeto de amor, ainda que sem metas sexuais e as identificagies” Os vinculos de amor que permitem que Eros pre- domine sobre Tanatos requerem rentincia das pul- s6es destrutivas por amor ao outro e transposigao de metas sexuais em nio sexuais na sublimagio. Mas 0 processo civilizatétio deve fazer frente; tem vigéncia frente & vida, exige que a lei se imponhaa fim de barrar e controlar a agressio do homem frente a sie a0 outro, Por seu lado a lei é também um ato de violéncia, ao impor uma obrigatéria suspensio da agio, que s6 é admitida quando hé rentincia, delegagio de poder, amor, iddentificagio e sublimagio. Nesse sentido a transformagao da barbérie em civilizagio exige a aceitagio da prépria morte € a rentincia ao incesto ¢ a0 ato de matar. A cul- cura cumpre, dessa forma, a necesséria trans formasio das formas de prazer. Coincido neste ponto com Norbert Elias, socidlogo alemao do século xx, quando distingue civilizagao e cultura, apontando que a primeira refere-se"a sociedade ocidental naquilo que constitui o caréter espe- cial e de orgulhor o nivel de sua tecnologia, a na- tureza de suas maneiras, 0 desenvolvimento de sua cultura entific’ (p.23) marcando um mo- vimento incessante"para frente’, enquanto a cul- tura “expressa a individualidade de um povo, a identidade de um grupo, suas fronteiras’ (p.24). DEBATES: M, Schwarez « M, Lécia da Silva « Noemi M, Kon : Racismo, este estranho familiar Barbara de S. Conte + junho de 2015 PERCURSO 54 Cultura delimita, da énfase as diferengas nacio- nais e identidade particular de grupos em uma incessante constituigio de suas fronteiras. A cultura de um povo, de um pais, coloca olhar na meméria de sua histéria, na busca de conhecé-la e discuti-la luz dos efeitos do vivido. Visa alargar os horizontes ao se debrusar sobre a constituigio em suas diferencas. Nio 3 toa, esse €0 tema de nosso tempo: come lidar com 0 es- trangeiro que adentra os limites das fronceiras. Nessa perspectiva indagamos a respeito de como pensar a destrutividade de nossos dias sem abrir os arquivos que elucidama origem de nossa contra os negros, o ge- nocidio dos indios ¢o terror de estado permane- ccem desconhecidos e causam efeitos para nosso povo? Como aqueles que promovem a tortura e desaparecimentos forsados nio sio responsabi- lizados e permanecem impunes? Como um pais. desconhece sua histéria e sua meméria? ‘Ao nfo tomar conhecimento da histéria de outro tempo, o sujeito deixa de reconhecer como os estados de excesio ede excessos se repetem na vida atual. Cala-se a histéria em sua necessdria temporalidade. Surge o terror e medo. Terror de Estado que se reproduz na violéncia de Estado em. tum Estado democritico de direito. Histéria oficial queencobre 9 conhecimento da histéria vivida que se tornou calada nas escolas duas geragies interfe- indo na arqueologia da meméria. Hé pessoas que afirmam que vivemos em uma ditadura!!! Desco- nhecem ou nao querem sabet de outra versio da histéria, Nao & 4 toa que a sessio de cinema de tum final de semana de outubro do filme Orestes, de Rodrigo Siqueira, em Porto Alegre, tinha ape- nas duas pessoas. Um filme que trata de maneira original e contundente a conexao entre a violéncia dda ditadura ea violencia de hoje, partir da trilogia agrega de Esquilo, que em Oréstia aborda a questio dda justica frente a um crime cometido. Como néo fazer a ligagio do crescente nit- mero de assassinatos de jovens negros no Brasil ea violencia frente ao racismo ¢ 3 pobreza? De acordo com o Mapa da Violéncia de 2014, 56 mil pessoas foram assassinadas em 2012, sendo 30 cultura, Como a violéncia quando a alteridade/exterioridade ndo se retranscreve, ha um nao sabido, um nao dito mil jovens entre 15 € 29 anos e destes 77% jovens negros. © mesmo relatério aponta também a re- lasio entreo aiimero de mortos ¢ 0 despreparo dos agentes policiais nas abordagens realizadas’. A histéria é subjetiva e coletiva e supée que © reconhecimento do préprio sujeito traz em si aalteridade que 0 coloca frente ao outro em si Quando a alteridade/exterioridade nao se re- transcreve, hd um nao sabido, um néo dito, O feito € traumitico, e nio dé lugar & transforma- sao da compulsio de repetigio. A destrutividade se impée. A lei nao opera como forga de rentincia. Georges Didi- Huberman’, filésofo fran- és, a0 falar do jogo do carretel freudiano, diz que “a crianga vé, no estupor da espera do fundo da auséncia que a racha ao meio, algo a olha. Uma imagem. Fica exposta a um olhar transforma- dor. Um objeto agido sobre ele, ritmicamente agido. O vai e vem de algo perdido e de algo que resta’ (p. 79). Imagem de que algo é perdido e de ,que algo resta. Resta como inassimilivel e como marca, resta como traco do outro em mim que faz lago indissolivel com a exterioridade, com 0 social, coma culcura. Como desmentir essa ima- gem que coloca todos os sujeitos ligados a ou- tros sujeitos e submetidos A mesma lei? Como desmentir que hé uma assimetria a ser supérada através de reniincias pulsionais e de transforma- ¢40 dos ideais,ilusio do ser tinico e imortal? Q desmentido de nosso tempo continua sendo a aceitagio da diferenga, sob a forma de“inca- pacidade do individuo em renunciar a0 egoismo A vantagem pessoal em troca da prioridade do bem comum” (Freud, 1929). Ai se inscreve 0 ra- cismo, como uma das formas de intolerincia a0 diferente. Dai advém a violéncia de estado e as. lucas didrias por politicas de nao repeticio. » « & sempre boa ideia anotar como o presente anda lotado de passado LILIA MORITZ SCHWARCZ Ultimo pais a abolir a escravidao mercantil no Ocidente, © Brasil recebeu 40% das popula ses africanas que sairam compulsoriamente da Africa, ramo is Américas, gerando a maior diés- pora humana conhecida desde Roma. © Brasil também financiou o mais persistente, longo een- taizado sistema escravocrata, uma vez que nio existia local do territério gue nao contasse com mio de obra cativa. E, de tio disseminada, a ins- tituigo deixou de ser privilégio de grandes se- nhores, Padres, militares, fanciondrios piblicos, artesios, comerciantes, pequenos lavradores e até libertos possufam esctavos. Por essas e por ou tras é que a escravidio foi mais que um sistema econémico: foi uma linguagem que moldou con- dutas, definiu desigualdades sociais, fez de raga e cor marcadores de diferenca fundamentais, or- denou etiquetas de mando e obediéncia e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo por uma hierarquia estrita. ‘Mas nio ha como apenas jogar a culpa no passado. E sempre boa ideia anotar como o pre- sente anda lotado de passado. © Brasil é ainda ‘campeio em desigualdade social e pratica um ra- cismo silencioso, adscrito ao outro, mas igual- mente perverso, Apesar de nao existirem formas de discriminagio no corpo da lei, os pobres e 50- bretudo as populagées negras sio ainda os mais culpabilizados pela justiga, os que morrem mais cedo, tém menos acesso 4 educagio superior pti blica, ou a cargos mais qualificados no mercado 7 Matériaveiculada dia 15/08/2015 no site do Conselho Federal de Psicologia 8 G. Didi-Huberman, © que vemos, 0 que nos aha, Rio de Janeiro, Editora 34,2010. de trabalho, Rasa e teorias raciais so conceitos implementados apés o final do sistema escra~ vocrata, mas ainda fancionam como um’plus, diante dos dados que apontam um modelo geral de gaps sociais, e elevados. “Também subsiste uma consciéncia culpada acerca do passado’e que leva a um profundo si- Iéncio sobre a questéo. No Hino da Reptblica, criado um ano meio apés a aboligfo ~ em 1891 ~ os brasileiros cantam orgulhosos ( tal- vez sem notar):“nés nem cremos que escravos outrora tena havido em tio nobre pais’ vidio mal acabara e jé ninguém “acreditava’ que cla havia existido? Sabemos que histéria, como mostra Walter Benjamin, é operacio de lembrar, mas também de esquecer, ¢ esse, durante muito tempo, foi quase um “nio tema” no pais. Outro exemplo: em pesquisa nacional feita pela Uni- versidade de Sio Paulo, no ano do centendrio da abolisio da escravido, em 1988, quando pergun- tados se tinham preconceito, 97% dos respon- dentes disseram que nao. Jé quando indagados se conheciam quem tivesse preconceito, 99% alegou que sim, ¢,além do mais, apontou para amigos € parentes préximos, Por isso mesmo a conclu- so informal da pesquisa era que"todo brasileiro se sentia uma ilha de democracia racial cercado de racistas por todos os lados’: O problema ¢jo- gado para o“outro’, e assim se liquidam culpas ambivaléncias. E certo que desde os anos 1980, com o recru- dlescimento do movimento negro, das politicas de agdes afirmativas e do avanco das investigagées sobre o tema da escravidio e das teorias raciais, anda mais dificil negar o preconceito. Porém, ainda hoje no pafs, e para usarmos os termos do historiador Trouillor, impera uma espécie de “indizivel’ quando o tema retoma o passado es- cravocrata e praticas de racismo presentes atual- mente. Essas interrogagSes continuam a dialogar com o conceito de impensével definido por Mi- chel Trouillot,em sua analise sobre o siléncio que paira acerca da revolugio no Haiti. Segundo ele: “O impensivel é aquilo que alguém nao consegue conceber entre a gama de alternativas possiveis, escra- DEBATES. Barbara de S. Conte « Lilia M. Schwarcz + M, Lcia da Silva « Noemi M, Kon : Racismo, este estranho familiar junho de 2015 PERCURSO 54 aquilo que perverte todas as respostas porque desafia os termos nos quais as questées foram feitas”, Pois bem, brasileiros nio tém lidado bem com “essas suas questées’, e por isso tratam do tema no presente ora como auséncia, ora como ‘uma questio naturalizada"e, sendo assim, resol- vida. Em censo étnico realizado na usp, muitas respostas vinham com 0 enunciado “no tenho esse problema’: Ora, quem anuncia’nao ter” éjus- tamente aquele que o tem e se nega a vocalizar a contradigao. Portanto, interessa teter como con- tinuamos a produzir ressignificar no presente, escruturas que vém do passado. Marca forte e renitente, a heranga e a atua- lidade da escravidio no Brasil condicionam também a cultura, com o pais se definindo a partir de uma linguagem complexa pautada em cores sociais. Nos classificamos em tons e meio tons e até hoje sabemos que quem enriquece, quase sempre, embranquece, sendo o contrario também verdadeiro. Se a fronteira de cor & de fato porosa entre nds, e brasileiros nio se reco- nhecem por critérios bioldgicos estritos; se no paisa incluso culeural é uma realidade e se ex- pressa em tantas manifestagdes que singulari- zam o pais — a capoeira, o candomblé, o samba, 6 futebol ~; se nossa miisica e nossa cultura so mestigas em sua origeni e particularidade, nao thé como esquecer também dos tantos proces- sos de exclusao social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes a ganhos estruurais no lazer, no emprego, na infraestrutura, nas taxas de nascimento, no afastamento sistematico de populagdes negras de clubes, teatros e restau- rantes de elite (onde nem ao menos o gargom é negro) ou mesmo nas intimidagées e“batidas” cotidianas da policia, mestre na discriminagio desse tipo de'régua de cor". Cor no Brasil é linguagem, mas também reiterasio do passado e certeza presente de hie- rarquia interna. Por aqui é possivel “manipu- lar e agenciar cores’, assim como se muda de bairro, Até pouco tempo casar com alguém mais branco, melhorat de vida, ter um titulo superior ou subir na hierarquia de poder era sinénimo até 0 censo nacional é classificado por cor. Mas 0 critério mais revelador 6 0 quinto termo: pardo de “embranquecimento’:E verdade, também, que essa situagio vem sendo alterada, mas nio a rea- lidade de como se negociam cores a depender da situagdo em que se encontram os individuos: no trabalho, no lazer, diante da policia. Na favela de Helidpolis, por exemplo, ha um jogo de futebol aque ocorre todo final de ano que se chama"Pre- tos x Brancos’. A novidade do jogo, entretanto, a maneira fluida como seus componentes tro- cam de time: ora jogam para o preto, ora para 0 branco a depender dessas variantes que acima apontévamos. ‘Até 0 censo nacional é classificado por cor. Brasileiros podem ser brancos, pretos, amarelos, até pouco tempo vermelhos (hoje, classificados como indigenas). Mas o critério mais revelador 6 0 quinto termo: pardo. Dificil achar quem de- fina essa cor de forma definitiva, Por isso mesmo, pardo vira uma espécie de coringa do censo, um sonoro etc, um incémodo “nenhuma das ante- riores’, Pardo pode ser também categoria de acu- sagio — ninguém se define como tal ~, além-de representar um escandaloso silénci tade de no dizer com todas as letras. Ressonincias também esto presentes na arquitetura brasileira que ainda guarda “insti- tuigdes" como o elevador de servigo, com sua entrada separada (e sabemos que eles servem. para a entrada de cargas, mas também para os “servigais’,em sua imensa maioria negros ou morenos), ¢ 0“quarto de empregada’: em geral apartado da esteutura social da morada, e ape- “nas conectado A cozinha e as areas de servigo. Como se vé, paita no Brasil, ainda, um claro preconceito contra o trabalho ~ sobretudo ma- nual ~ e todo tipo de"servico’, numa reiteragio sonora dos tempos da escravidio. Nao se passa » oe « esse 6 um pals, portanto, que mistura de forma perversa inclusao cultural com exclusao social impune por um sistema que supunha, como di- zia o Padre Antonil, que os escravos “eram as mios e 0s pés do Brasil’ Por isso, talvez a maior “lembranga ativa" da forca da sociedade escravo- crata entre nés seja a violéncia, Padres vindos do passado e recondicionados no presente fa- zem do Brasil um pais marcado por uma socia- bilidade violenta e hierarquizada, que vai desde os ambientes privados e intimos, até nossa ma- neira de desrespeitar 0 espaco piblico, aos nos- sos elevados indices de criminalidade e taxas de mortalidade por crime e assassinato. Claro esté que nao existem bons racismos; todos sio igualmente perversos e carregados por todo tipo de sofrimento. Essas omiss6es e proces sos de humilhagio coletivos representam grandes doses de constrangimentos, consolidados no pais. ‘Tudo funciona como se existissem lugares sociais tigidos, posiges jamais questionadas pelo tempo ¢ pela histéria. Essas sio, justamente, as natura- lizagoes que a sociedade prepara ou como a so- ciedade trapaceia com a natureza. A bastardia Juridica que grassou durante os tempos da escra- vidio ~ quando um liberto poderia ser facilmente reconduzido ao cativeiro por falta deserventia’ “por deslealdade’ a seu antigo senhor ou auséncia de documentos comprobatérios ~ encontra ainda conivéncia emocional, com o pafs lutando para entrar na linguagem dos direitos civis,e fazer va- ler o diteito a diferenga; a diferenca na igualdade, 9 M-R Teoullo, Michel-Rolph, Sling the past Power and the pro- duction of history, Boston, Beacon Press, 1995, p. 62. 10 Vide wwwslavevoyages.og Assim, de tanto misturar cores, nomes, re gides e costumes, fizemos da mestigagem uma es- pécie de representacio nacional, por muito tempo consensual. De um lado, a mistura se consolidou a partir de praticas violentas, da entrada forgada de povos, culturas e experiéncias. Dados atuais apontam paraa chegada de 3.800.000 africanos”, que aportaram no territério para trabalhar nas, coldnias agricolas do continente americano, sob regime de escraviddo. Hoje, com 60% de sua po- pulagio composta de pardos e negros, 0 Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso pais africano, depois da Nigéria. De outro lado, porém, é forcoso reconhecer como essa mesma mescla gerou uma sociedade definida por unises, ritmos, artes, esportes, aromas, culindrias e lite- raturas mistas. Nossos varios rostos, nossas di- ferenciadas feigSes, nossas muitas maneiras de pensar e sentir o pats sao prova dessa mescla pro- funda que criou novas culeuras, porque hibridas de tantas experiéncias. Esse é um pafs, portanto, que mistura de forma perversa incluso cultural com exclusio social e que, a cada momento, mostra uma des- sas faces, as quais, no limite, sio basicamente a mesma. Diversidade expressa’quig4 uma das grandes realidades desse pais, cotalmente mar- cado e condicionado pela separagio, mas também da miseura que resulta desse processo longo de mestigagem e de uma experiéncia profunda, dolo- rosa e persistente diante do sistema escravocrata. Se 0 pais vai se afirmando no jogo da democra- cia — com as instituigées fortalecidas, eleigées realizadas nas urnas — ainda estamos apanhando nos valores republicans; aqueles que lidam com © que é piblico e de todo. Desigualdade social & heranga do passado, mas ¢ também desafio do presente ede todos nés. DEBATES. Barbara de 8. Conte «Lilia M. Schwarcz + M. Lica da Silva « Noemi M. Kon : Racismo, este estanho familiar junho de 2015, PERCURSO 58 MARIA LUCIA DA SILVA [Nenbum valor é neutr, pois espelha as convicyées eas, crengas de um sistema particular ~ & uma significagéo {jd estabelecida, Ngo basta, assim, afirmar a evidéncia . {17 Aiguns étimos textos, excegSo ao que parece ser regra, como 0s de Neusa Santos Souza, urandir Freire Cosa, foram disponibilizados 10 site do Departamento de Psicanslse, como Texts introdutrios, fo evento O racisno e 0 negro no Bras: questBes para a psicand- Tse (2012), hitpwwn sede. org befDepartamentosPsicanalsein- dex phpimpe=07.08.6. Vale conhecer, ainda, a integra da tse de tloutorado de Iildinha Nogueira Baptista, mencionada no texto de abertura dessa secio Debates, Signifcagdes do corpo negro (Pus, 1988) acessvel pelo link hipfpsicologiaecorpo. com. braid ‘shabe20Baptista%o2oNogueicaSignificacoes?20d0%20Corpo%20 NNegro-1.pal. So muitas as contribuigdes de Falvia Rosemberg: 0 portal Geledes disponibiliza uma bela entrevista com ela acessvel {em hitp/larquivo.geledes.org befarcas-deatuacan/educaccoleotas pare-negros/12853-flva-rosemberge-preciso-mais-negros-na-uni versidade-para-amplia-seu-espaco-ocial 18M Foucault, A ordem do dscurso,Sio Paulo, Loyola, 1996, p. 10-11 Mas, sabemos, também, que essa mesma lin- guagem que nos faculta a capacidade de distin- guir e nomear percepges e afetos nao o faz de forma neutra; enteda a experiéncia da imediatez dos sentidos e a organiza na ordem do discurso, na ordem do poder. Como na cango Comsida, dos Titas"Bebida € agua/ comida é pasto/ vocé tem sede de qué?/vocé tem fome de qué?’ ‘Como constituintes de nossas capacidades inatas efuncionais de estabelecer determinagdes € distingdes na diversidade da experiéncia, a lingua- gem e aalteridade instituem uma pensabilidade, ‘ou seja, um principio de funcionamento mental que incide sobre tais habilidades e define, por sua vez, e desde sempre, nosso modo de querer e nosso modo de pensar, delimitando também 0 campo do que deve ser (ou nfo) pensado e do que deve set (ot nao) desejado, Temos sede e fome da- quele objeto que foi estabelecido culturalmente, civilizatoriamente, como sendo o que deveria nos saciar; temos desprezo, aversio ¢ édio aquilo ou Aguele que foi estabelecido culeuralmente,civili- zatoriamente, como sendo o que deveriamos evi- tar, diminuir ou exterminar. Esta éa brecha pela qual se insinua insidiosamente o preconceito ~ € no caso brasileiro o racismo antinegro ~, entre a capacidade inata e necessiria de discriminar € 0 estabelecimento no e pelo discurso de valores e ideologias que formatam nosso desejo e, por con- seguinte, sus objetos de satisfagio ou de repiidio. or mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdigbes que o atingem revelam logo, rapida- ‘mente, sta ligagio com o desejo ecom 0 poder. Nisto nao ‘hd nada de espantoso, visto que o discurso — como a psi- ,

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