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Aetrgin cice ‘Nese sentido, a politica pode existir da mesma maneita que a comunidade existe, 0 que ndo impede os questionamentos, os recuos identitirios, categoriais etc: ¢ preciso comegar sempre a Provocar o apareciment wunidades de paliivra nesses acon- eae Sale hn SOR eae ‘onde pode comerar a politica. Nao sob uma forma transcendental ¢ “eligi, como uma preparagio de das remotes ou miticos, mas i fe miiltipla, como a constituiga0 de uma reaidade presente, do futuro imediaco £ es ago que dade que extd para Yo. Nesses momentos inicia iniciais a rua torna-se da politica ¢ “também dainvencéo culeural Um nfo vai sem o outro; indo além, vido a ese dedobramento, a manifestagio de uaé jf uma dimen- sito da cultira das cidades, E da sua meméria: a Basilha, a praga do “Zocalo ne Mico, a praca Tien An Men em Pequim etc. Nao é a instantes. he 9 OCUPACOES, INVASOES, INSTALACOE FORMAS DO AGIR URBANO* CP: Do ponto de vista das formas de agir na cidade, hd uma diferenca entre as cidades do Sul e que conhecemos na Europa? MA: Isso depende, se vocé esta mais na Africa ou na América Latina, hi enormes diferencas. Mas o cardter geral é que a parte de urbanizagao informal ou de vida urbana marginal € muito importante. A parte de “invasiones’, de favelas, de situagées ‘muito precérias no plano social, material, nao tem comparagio ‘com o que se encontra na Europa. A cidade é esse espago mul- tiforme e muico amplamente precério. A palavra bairro de lata nao funciona; é da cidade, mas autoconstruido, do habitat em taébuas, em telas plastificadas, em papelio etc. £, mesmo assim, aquilo que domina se vocé olha para o conjunto da aglomeragio intrevista com Constantin Peicou ¢ Anne Querrien, publicadainicialmente como ‘elo: “Paltiques urbaines sansauteut, Une anthropologie destuations” Muliudey, 1. 31 (Une micropolitique dela vill: agi urbain), 2008, pp. 51-60, — 183 — ange decal urbanizada. E, de repente, é mesmo preciso descentrarmo-nos. Depois, claro, ha coisas que se podem comparar 3 escala plane- téria no plano da organizagao social ¢ econdmica. Mas, sobre~ tudo, hé coisas comparyeis na maneira como os encontros, os grupos se formam em dado momento, esquecendo um pouco © contexto material, 0 contexto institucional ou econdmico. Hi momentos de comunidade que se formam ¢ isso voct pode comparar porque se formam sempre como critica ou negagio de uma realidade vivida, local e material. Desse ponto de vista, politico ¢ extético, a aproximagio ¢ a comparacio podem fan- cionar. E, além disso, ha empréstimos culturais que se fazem, af, hi efetivamente algo que se unifica. CP: Essa precariedade, essa mobilidade ndo alteram a dimenséo po- Utica como imaginamos, 0 que faz com que talvez néo haja esse tipo de ativismo urbano que se conhece no Norte. MA: E diferente, mas isso ndo quer dizer que nao exista. Em certo sentido, no serd que é muito politico quando um carnaval negro se forma no Brasil? Claro que se pode dizer que tudo “é re- cuperado”, transformado, mas h4 um momento em que qualquer coisa muito politica acontece, ¢ € enorme, do ponto de vista dos nossos critérios de participagio maciga, de violencia ou de agres- sividade no sentido positivo da expresso oral. Mesmo os partidos politicos no Brasil ndo compreendem muito bem como isso se passa, Tentam recuperé-lo, entrar, mas hi um movimento que se passa. Por exemplo, 0 movimento negro existe com demandas muito precisas no plano politico, isso exprime-se no espago do carnaval. Depois, 2 direita ¢ a esquerda tentam se meter nesse movimento ¢ politizé-lo, no sentido da politica dos partidos. Mas ie sien. tai: es gaan esse movimento existiu, ¢ essa reivindicagio de igualdade agora no Brasil, por coisas que nao se tem na Franga ao nivel ¢ debate sobre a questio racial. No carnaval, em Salvador, diz-se: "a tua é do povo’. Ha uma conquista da cidade, uma ocupagiio do espago que se faz nesse momento ¢ isso mete medo as autoridadles da cidade. O que se passou desde entao € que estas controlaram 0 espago. O que se passa é muito interessante. Na sequéncia desses movimentos que adotaram uma forma subversiva no carnaval, fragbes de espacos foram recortadas no circuito do carnaval. Ago- ra, hi ués circuitos separados, que néo se podem tocar. Ou seja, segmentou-se a festa do carnaval para fazer de modo que “cada tum se sinta em casa”. J4 nao se pode ocupar 0 espaco do outro ¢ mostrar que hi uma diferenga. Antes disso, os negros dos bairros populares desembarcavam nos bairros brancos muito elegantes da orla (beira-mar), era isso que, de repente, metia medo, causava desordem, bagunga. O que ¢ 0 motor, nesse momento, sio os grupos que dizem “ha algo que nao est bem’, sejam eles negros, gays... E isso que faz. com que possa parecer subversivo, Em dife- rentes épocas, durante 0 carnaval, houve coisas assim, ocupamos ‘© espaco que nos € proibido na vida didria. A partir dai, algo que altera a ordem social comum aparece. O que nos ensina a frequentagio de espagos urbanos ou nao ur- banos, africanos ou latino-americanos, mas afticanos, sobretudo, & que nao hé realmente um modelo de cidade. 75% ou 80% da populacio vive num espaco pouco controlado, pouco visto, pouco conhecido, muito reduzido e precério na sua materialidade. Nao quer dizer que seja andrquico, desordenado, apenas quer dizerque nao o conhecemos muito bem. Além disso, temos de admitir que os ‘mecanismos da politica, da tomada da palavra, da ago social nesses —185 — Auer nce ‘espacos sio diferentes dos que temos na Franca, Nesses espagos pode haver certas utilizagdes, apropriagées de recursos que vém da esfera globalizada. Por exemplo, a utilizagio do video nos bairros populares muito pobres. Produzir imagem sai mais barato, afinal, do que urbanizar materialmente. © que se chamou de “cimeras de favela”, por exemplo,” que ha no Brasil, na Colombia, daquilo ‘que conhego. S40 projetos, com televisées de bairro, televisoes Jocais ou comunitarias em que as pessoas mostram a sua situagio a partir de reportagens sobre temas muito localizados. Na Colombia, zuma colina, sobre um bairto, vocé tem uma televisio comunitéria conectada a circuitos e, durante algumas horas por dia, difunde © programa de uma televisio comunitiria. As pessoas do bairro vio contar as suas hist6rias, as associagdes vém promover a sua agio etc. E um pouco como os “gatos”, as ligagées clandestinas & rede elétrica. Durante varias horas por dia, eles entram em outros canais. Depois, no mesmo canal, os telelespectadores encontram canal oficial, legal. CP: Trasa-se de uma criatividade em que 0 conceite de autor é muito ‘menos importante, que é muito mais coletive, que age de uma outra mancina no espago? MA: E.a historia do teatro das townships. .. Trabalhadores negros sob o apartheid, que habitam as sownships ¢ que vio wabalhar nas minas ou na cidade branca ¢ que regressam & township & noite ¢ comegam a representar, contar, a brincar com tudo © que thes aconteceu durante o dia. Parecido com uma pratica muico antiga, a danca de “gumboots”, as botas de borrachas, as dangas T Ver ereg Ls caméns de fae. Pais Editions de FA, 1998. 16g Oca trac, intl: forms do air bam de mineiros que imitavam a maldade do contramestre contra os nnegros, a danca era uma caricacura da equipe de trabalho na mina, ‘nos anos 1930. E, no teatro das wownships, sio os trabalhadores hegros que voltam & casa ¢ que, entre si, contam e gozam com o poder que os submete durante o dia. Comegam a fazer comédias na rua, ¢ essas comédias tornam-se cada vez mais sistemiiticas até se tornarem uma forma de teatro. Efetivamente, nao hé autor no sentido ocidental. E uma criagao muito politica, mas, no fim das contas, aquilo se torna uma forma teatral. Peter Brook fez um livro, apresenta as encenagées, exporta-o... aquilo torna-se © teatro das townships como forma de teatro.? O teatro popular €o teatro da township. E é possivel falar da mesma mancira dos “gumboots” que sio dangas em que se bate com os pés com muita forca, grandes botas de minciros e de dancarinos. As botas fazem ‘um barulho de percuss6es, hd gritos em que os dangarinos imitam as relagdes autoritérias na mina... e 0 “gumboot" torna-se uma danga que circula, espetaculos tém lugar em Paris e noutros luga- tes no mundo. Hoje, quando se visita uma cownship no Soweto, na Africa do Sul pos-apartheid, bandos de jovens epresentam um espetéculo de “gumboots” como sendo a cultura tradicional da township, por conseguinte, completamente deslocada em relagéo 0 que era, a seu inicio, ao que deu essa ctiagdo. Tornou-se uma performance dos jovens das townships. Tudo isso se transforma, se diferencia, torna-se uma forma estética destacada do contexto € do sentido que havia no inicio dessas criagdes artisticas, Ey no Brasil, a forma do samba em sua origem é também uma festa (0 batuque) que se passa na rua; essa festa de rua, de passeio mes- P.Brook, “Prefice’, in Afrique du Sud, Thitredestserships. Arex: Actes Sud, 1999, pp.7-10, aie geen hk mo, est na origem da festa de samba. Pessoas reencontram-se € ‘comegam a contar as histérias, a cantar, a tocar as percussbes © depois... & isso que esti na origem do samba. CP: Parece-me que ese tipo de priticas do cotidiano, de comunicagées, de comentarios, de interrogacbes do cotidiano é muito interessante ‘mas néo seri que se perde, quando uma parte desses pessoas chega ao Ocidente?* MA: E toda a questio do espago, é 0 que também leio no seu projeto, isto é, os espacos potenciais suscetiveis de serem rea- tivados temporariamente como espagos ptiblicos. E necessirio que haja um espaco comum que nio € 0 espaco privado mas que também nao é um espago estranho, onde vocé sinta-se eventual- mente vulnerivel, nao livre. E isto 0 espago de liberdade da festa, no sentido em que o momento de liberdade ¢ de inventividade precisa de um espago piblico nem demasiado privado nem de- masiado estranho, ¢ que se pode criar temporariamente. Por isso, no penso que seja impossivel na Europa. E verdade que para nés nio é evidente ver a rua como este espago de liberdade... mas basta ver onde se inventam, por exemplo, as cenasde rap, em que lugares... sio os jovens das cidades que “aguentam as paredes” a0 pé de um edificio ¢ que comegam a desafiar-se... No fim de contas, ha realmente uma coeréncia antropoligica no sentido em que sio ainda espacos entredois, nem demasiado dentro nem demasiado fora. © que nos leva 3 ideia de rua, nao ao fato em si mesmo da rua mas d ideia de rua como intetmedidria entre a grande praca andnima e 0 lar doméstico. 7" Ocidenee pena aqsi deforma bastante “eurocéneica’ (NT) 468 — Ocupecs, iain isnt forme do i erbam CP: Faltam espagos intermediarios.... MA: Com efeito, o que é um problema sio os espagos entre ambos, vai para além de uma mera questo arquiterdnica, urbanistica, ‘gcognifica, Isso tem uma dimensio antropolégica. E a questo de saber onde se passa a imaginagio ritual ea liberdade de criagio. E sempre nos espagos entredois, éa ideia do limiar, ¢ essa ideia do limiar, na antropologia dos rituais, é central. No ritual, duplica-se, criam-se outras identidades imaginadas e comunidades imaginadas, Se estames nas politicas urbanas duras que dizem que hd apenas 0 piilico ¢o privado e nada entre os dois, precisamente porque esse entredois € instivel, indefinido e, por conseguinte, dificilmente controlivel, entio nao se tem limiar, nao se tem este espago que corresponde ao limiar para o ritual. & por isso que ha ocupagées de espasos em certos momentos, a dimensio temporal é impot- tante, em dado momento a ordem “ou é privado ou é piiblico” transforma-se porque deixa de ser aceitével. Hd uma ocupagio que diz “nao, aquilo é um espago que nao é nem privado nem ptiblico, que esta entre dois” € utiliza-o como espago de criago, de liber dade, de ritual. E necessitio poder criar uma dimensao ritual, ow scja, extrai-la de um cotidiano ainda que seja para falar dele, para denunciar uma injustica, Hé sempre um espago de passagem, ritual, ‘no qual nos transformamos. A tomada da palavra pode se fazer com formas delocugio diferentes, mascarando-se, desfilando, em grupo, falando coletivamente, enfim, a experiéncia mostra-nos que hé uma quantidade incrivel de formas de tomar a palavra e de ritualizagbes associadas a este espago intermedifrio, Numa palavra, eu ditia que © que ha de comum nessas tomadas de palavra e nessa criatividade, © que € 0 seu fundamento comum, é o fato de se ter, ao mesmo tempo, um espago-tempo entredois ¢ uma ritualizacao, —19— wemgetca aane Se nos questionarmos sobre o operador da mudanga, 0 que faz surgir um movimento, uma politica, enfim, um gesto politico, uma ago, um movimento que transforma, entdo, a minha expe- rigncia ¢ a leitura que tenho de outros trabalhos fazem-me dizer quecerta tradigio da antropologia & muito itil, a que se interessa pelo ritual, pelo nao cotidiano, pela transformasio do cotidiano numa fonte de imaginagio que precisa sempre de um espaco fora do cotidiano, Podcmos voltar a Van Gennep ao século XIX ¢ is suas anélises sobre as fases preliminares, liminares ¢ pés-liminares do ritual.‘ © que permite uma leitura que se pode sempre atua- lizat para perceber como € feita uma manifestagio, o que € uma manifestagio bem-sucedida, © que ¢ uma manifestacio falhada, segundo esse ponto de vista, ou o que € uma festa com sucesso, 6 que é uma festa fracassada, Quando é que um assunto surgiu, quando uma tomada de palavra aconteceu? Nessa altura pode-se poltizar e operacionalizar aanilise da antropologia tinda que possa parecer, por vezes, tebrica e desligada do presente. AQ: Mesmo assim, tenho a impresséo de que os ancropiloges née gostam da maneira como o mundo muda. Vejo um hiato nessa dupla presenga dda crita que descreve 0 mundo a desestrunurar-se ¢ da capacidade ‘ou mesmo do prazer em viajar como observador nesses mundos que se desestruturam. MA: Concordo bastante com seu comentirio, O hiato que voce evoca existe no scio da antropologia existe, sem diivida, em cada antropélogo que vé o que desaparece ao mesmo tempo que o que aparece. Algo se decide nessa clivagem que nao ¢ s6 individual, 1 Ver A. Van Gennep, Le rites de pasage. Pais: Picard, 1909 (1981). —19— | | Ocapesies imac. inal: forma agi rts € te6rica e é muito politica, também, no sentido em que isso tem efeitos na mancira de se comprometer face as experiéncias vividas, as suas ou as dos outros, Por um lado, existe uma ver- so passadista da antropologia, agarrada ao que morre, ao que desaparece, estando 0 antropdlogo encarregado de encontrar os vestigios, fazer reviver os vestigios do passado, por exemplo, as velhas identidades comunitarias “em vias de desaparecimento”. ‘Mas outra maneira de fazer antropologiaé interessar-se nio pelos vestigios do passado mas sim pelas emergéncias. A antropologia das cmergéncias, do contemporineo, é a que vai descobrir 0 que nasce, o que se transforma, o que esti em proceso. E toda a contribuicio da antropologia situacional que se descnvolveu aproximadamente nos anos 1950 quando a antropologia estru- tural dominava ji. © conceito de situacio desenvolveu-se um pouco por toda a parte, em arquitetura, em filosofia também com as “situagées” de Sarcre, ¢ em politica até a “internacional situ- acionista”. Houve uma contemporaneidade. Na mesma década apareceram 0 situacionismo filoséfico, 0 politico, o artistico ¢, poder-se-ia dizer, 0 antropolégico. Essa contemporaneidade dos diferentes conceitos de situacio é interessante. Nao significam completamente a mesma coisa mas, mesmo assim, do ponto de vista da antropologia é dada uma atencao nao 8 “contraestrutura’ como na versto de Victor Turner,’ mas uma outra abordagem alternativa 4 antropologia estrutural surge. Por conseguinte, na etnografia urbana, por exemplo, nao se diz “tudo se resume a politicas insticucionais”, sborda-se, olha-se 0 mundo a partir de acontecimentos ou situagées ¢ nao a partir de uma representagio FVerWTumer, op. cit, 1990 [1969] b —11— Mane dca externa das estruturas... que, de resto, nio se veem. Creio que se conduziu demasiado a andlise estrutural, a partir de Durkheim e, seguidamente, de Lévi-Strauss, para uma representagio jé dada, jé existente, da sociedade como estrutura social. Mas nunca se veem as estruturas sociais! Veem-se e vivem-se situagies e, a partir dai, tecem-se os fios para compreender... ¢ isso a antropologia das situagées. Por isso, néo hd duas antropologias, mas sim maneiras diferentes de fazer antropologia com objetos diferentes ¢, portan- to, campos diferentes, manciras de pesquisar diferentes etc. CP: Volto a estrutura social. Falamos, hd pouco, das novas situagies de familias disperses no mundo, de familias disperas. Poderiamos defini-las, renomear também como uma desterritorializagéo social que pode ser muito interessante, de um ponte de vista econémico, mas ‘que pode, valvez, criar problemas de um ponto de visia cultural, Quer dizer, que as pessoa: vivem em novos contextos, novos valores, novas representacies ¢ penso que hd muitas coisas que se jogam ao nivel do imagindrio. Vive-se a distancia, hd imagens fortes, dos dois lados, de resto, Interrogo-me se o imagindrio ndo tem um papel importante ¢ ‘penso também no novo centro de cinema na India, Bollywood, ou Nollywood na Africa. Exses flees repetem todos, pouco mais ou menos, ‘os modelos burgueses, quase como Dallas com um novo décor. Nido send isso “perigoso” pela relacdo com essa pritica do cotidiane? ‘MA: Creio que é sempre preciso saber medir 0 momentoem que se est num processo cultural. Porque hé sempre um momento cem que alguma coisa aparece como esses fendmenos que voce menciona através da televisio, do cinema, Um momento em que as coisas chegam e parecem sempre estrangeiras, em seguida ha um ‘momento em que as pessoas se apropriam, transformam, fazem —12— | | | | | | | | Oca ase, italien: frm oa ens alguma coisa ¢ diz-se: “é uma criag4o” ou entio “é uma tradigio” enquanto aquilo foi refeito ¢ inventado ontem ou anteontem. A bem da verdade, hii sempre bricolagem, ha sempre um momento em que algo foi agarrado ¢ incorporado, é um pouco a ideia brasilei- rada cultura antropéfaga, mas todos o fazem, agarra-se, recebem-se vrias informag6es, imagens, palavras, conceitos, valores ¢ depois transformam-se ¢ faz-se uma outta coisa, sempre & maneira local. Entio isso depende de onde nos situamos no processo. Em dado momento, tudo isso nao é nada bonito, nao nos agrada, parecem imitagées, a uma recepsio passiva. E depois pode-sc pegar nesse Proceso em outro momento, mais criativo ¢ af isso avanga, agrada- os © esquecemos que a origem era uma enésima versio de... Dullas, E-se um antropélogo conservador quando se diz que as coisas desaparecem, que acultura desaparece e que isso empobrece. Nio penso que isso empobrega, isso transforma-se. De novo, pode-se estabelecer uma ligago entre a maneira de con- ceber e ocupar os espagos da cidade, a proximidade entre proceso cultural e processo urbano. Por exemplo, no caso das “invasbes” «que esto na origem das favelas, Em dado momento chega alguém € ocupa o espaco. Depois chega outro ¢ diz “bem, pode ocupar 0 espaco na condicio de estarmos de acordo nisto € naquilo, vocés s4o a minha clientela eleitoral”, “sim de acordo, seremos a sua clientela cleitoral mas com as seguintes condigées” etc,; ha uma negociagao, portanto, E preciso que alguma coisa se movimente, ‘em certa altura, pessoas que chegam e dizem “vamos ocupar”. No caso dos refugiados em campos, na Africa, a pergunta do espago € também muito forte. Hi um momento em que os refugiados ‘vio ocupar um espago, vio recusar uma racio alimentar, vém 150 4 sala do ACNUR ¢ dizem: “nés todos somos vulneriveis, nao ip erp da cde ha razdo para uns serem mais do que outros” ¢, nese momento, irrompe algo diferente. © momento politico surgiu quando 150, 200 ou 250 refugiados disseram: “recusamos ser tratados como tuma categoria x ou y, nés somos cidados, reivindicamos coisas” cetc. E nessa altura tem a sua frente alguém que diz: “bom, de acordo, vamos ver, vamos negociat”; todos tém medo da “riot”, do motim no campo, é a obsessio dos gestores dos campos porque se trata de um espago que pode ser explosive. Ha sempre duas formas de comentar esse tipo de situagées. A forma a posteriori e exterior que consiste em dizer que “finalmente, tudo é politico”, at razao impoe-se e todos se reencontram. E hé uma outra maneira de compreender quem se poe no interior da propria situacio, na experiénciase que viveu, que consiste em descrever como, em dado ‘momento, as pessoas disseram “aqui hé uma injustiga, nao estamos de gcordo, nao somos refugiados, somos cidadaos” ou “nao somos marginais, temos direito a um alojamento” etc., mesmo que, mal ‘ocupem um espago, cheguealguém que lhes diga “de acordo, deixo- (5, mas vocés so a minha clientela” etc. Essa é a negociagio que ‘vem apés o primeiro movimento, o da invaséo. O que para mim € importante reter ¢ compreender é esse agir politico ¢ urbano, é (© que marca uma linha de divisio entre 0 antes ¢ 0 depois. Uma fotografia de Sebastido Salgado & muito interessante desse ponto Ge Vines. Fo xapmnerizo era us os sera-terra chegain, yé-se ume ‘massa que chega em certo espago, eé esse movimento, exatamente, ‘que é mostrado pela fotografia, Cruzam uma espécie de barreira, voct vé 0 movimento € o que vé nesse momento é uma conquista do espaco.“ Apés o que hé a negociagao, esse segundo tempo é 0 © Forografia itculada “Les Sans-Terre prennent poseason de la ferme Giacometi Frat de Parand, Brésil, 1996", in S, Salgado, Tera. Pars: La Martiniéee, 1997. Pit ees Ocapagien, asi, isa: forms do agi ebm da negociagio, da combinacio, da divisio de poderes sobre um territério, mas isso quer dizer que Ihes reconheceram 0 seu ato coletivo e que foi esse ato que criou uma nova situagao. CP: Vocé é um antropdlogo muito otimista... jim € nao. Nao porque tendencialmente, historicamente vai-se para mais apartheid, & escala planetéria e, portanto, para o

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