Professional Documents
Culture Documents
1
Janice Inchauspe Pereira
Resumo: A partir do exame da fábula “O cavaleiro preso na armadura” e do conceito de herói, propõe-
se o estabelecimento de um paralelo entre a jornada descrita na fábula e as jornadas de trabalhadores-
estudantes das áreas exatas e humanas, de uma instituição privada de ensino superior. O objetivo é
estimular reflexões sobre os sentidos e aprendizagens que se produzem através das experiências vividas
assim como destacar a necessidade de manter contato com o herói interno e convidá-lo a fazer-se cada
vez mais presente nas jornadas de individuação. A síntese da fábula é entremeada por
descrições/depoimentos de alunos que abordam os temas: idéias/sentimentos relacionadas ao início da
jornada; principais obstáculos da jornada e suas reações; satisfação com a jornada e identificação de
aspectos satisfatórios; prioridades na jornada. A análise do material obtido evidencia que nossos ‘heróis
atuais’ vivem situações e experimentam sensações bastante semelhantes as do cavaleiro: definem-se
através do trabalho; lutam para conciliar demandas internas e externas; procuram controlar seus
sentimentos e evitam sua expressão autêntica, que é associada a descontrole; lutam contra e com o
tempo e investem, corajosamente, na busca de conhecimento e superação.
1
Psicóloga, Mestre em Educação, Doutora em Psicologia, Coordenadora do Curso de Psicologia da
Faculdade IBGEN-Instituto Brasileiro de Gestão de Negócios. E mail: janice@gmail.com
2
Além da fábula que inspira essa reflexão, está implícita a concepção de que
o herói simboliza o criativo, a coragem de ser fiel a si mesmo, aos desejos, fantasias e
valores; é aquele que se atreve a viver a vida e não fugir dela, que supera o medo do
estranho, desconhecido e novo; é quem
(...) trilha caminhos que, por um lado tememos mas que, por outro,
percorreríamos prazerosamente em segredo (...) não se deixa desviar do seu
propósito pelas advertências de outros, nem pelos seus próprios medos e
sentimentos de culpa, mantendo-se aberto e disposto a aprender, capaz de
suportar conflitos, frustrações, solidão e rejeição (MÜLLER, 1997, p. 9).
Jung (apud MÜLLER, 1997) considera que um dos símbolos que pode ser
utilizado para compreender o que move o herói, é o da “criança heróica” que:
1 A FÁBULA
Sua esposa escrevia poesias, dizia coisas sábias e gostava de vinhos. Tinha
um filho e esperava que, um dia, ele viesse a se tornar um corajoso cavaleiro. Via
pouco a esposa e o filho pois estava sempre ocupado: quando não estava no campo de
batalha, matando dragões ou resgatando donzelas estava experimentando e lustrando
a armadura.
Penso que tenho muito a fazer, que terei que dar conta de tudo de alguma
forma, talvez não almoce... Preocupação com filhos, saúde e bem estar
dele... Mas preciso me focar no trabalho. Sentimentos e pensamentos se
misturam o tempo todo. São muitos compromissos que, no meu caso, sendo
mulher, mãe, trabalhadora, filha, irmã, amiga e estudante, tenho a realizar e
muitas vezes estou esgotada.
Sempre que possível, almoço com alguém que gosto muito: uma amiga,
filhas, marido, mãe... Isso é importante. Não gosto de almoçar sozinha.
O cavaleiro decidiu que não queria perder a esposa e o filho e resolve tirar
a armadura. Mas a armadura estava emperrada! Recorre ao ferreiro que, depois de
muitas tentativas, não consegue descolar a armadura do corpo do cavaleiro.
7
Percebendo sua aflição, o ferreiro pede que ele retorne no dia seguinte para nova
tentativa. A esposa, exaurida, não acredita na decisão do cavaleiro e o hostiliza. Ele
constata que, depois de usar a armadura por tanto tempo, tornou-se insensível: o
ferreiro o havia golpeado com martelo e ele nem tinha sentido. Depois de tanto tempo
com a armadura, percebeu que ela o impedia de sentir muita coisa. Ele e o ferreiro
ficaram dias empenhados em retirar-lhe a armadura. Sem sucesso. A cada dia ele
ficava mais desanimado e a esposa mais distante. Não sabia mais o que fazer. Pensou:
em algum lugar deve ter alguém que possa me ajudar a retirar essa armadura. Mesmo
sabendo que sentiria falta da esposa e do filho, resolveu partir em busca de ajuda.
Onde quero chegar? Como vou chegar? Do que terei que abrir mão? Isso vai
valer a pena?
Merlin recomendava paciência, afinal fazia muito tempo que ele a usava a
armadura. Relembra que ele não nasceu com ela e questiona sobre os motivos de usá-
la. O cavaleiro justifica que usava a armadura para se proteger nas batalhas. Merlin
pergunta sobre quem havia determinado que ele deveria batalhar. O cavaleiro
acreditava que tinha que provar o quanto era bondoso, gentil e amoroso.
Fico satisfeita quando vejo resultado efetivo naquilo que faço e quando isso
impacta ou desencadeia outras ações. Fico muito satisfeita quando consigo
levar soluções e ajudar os outros a remover seus próprios obstáculos,
mostrando atalhos ou, simplesmente, um ponto de vista diferente. Procuro
sempre encontrar um sentido maior no que estou fazendo, que possa ser
benéfico a todos.
Merlin o confronta: “Se você era mesmo isso, porque tinha que provar?”
(FISCHER, 2001, p. 31). O cavaleiro, evitando a questão, foi dormir. Se assusta quando
percebe que pode conversar com esquilos. Quer ir embora da floresta. Merlin explica
que isso mostra que ele está se tornando sensível o bastante para perceber as
vibrações dos outros. Ele sente saudade da mulher e do filho e, mesmo com a
armadura, quer voltar para casa. Merlin pergunta: “Como você pode tomar conta deles
se não consegue tomar conta nem de si mesmo? (FISCHER, 2001, p. 35).
A principal preocupação que encontro é ter que me dividir entre ser mãe e
todo o resto. Sinto uma grande necessidade de ter contato com meu filho e
esposo e considero que tudo que for feito por mim irá impactar na vida
deles. Isso me faz pensar muito mais nas minhas atitudes.
9
Por muito tempo estive satisfeita com a minha jornada. Um tanto rotineira
mas satisfatória... Porém, com o tempo, me percebi entediada e
desmotivada, precisando de novos desafios.
sem estar montado em seu cavalo. Os animais alimentaram o cavaleiro que, logo,
adormeceu. Acordou com a luz do sol e o frescor do ar. Podia sentir isso porque parte
da viseira tinha caído. Quando chorou, ao receber a carta vazia do filho, suas lágrimas
molharam a viseira e a enferrujaram. Concluiu que os sentimentos o libertariam da
armadura e continuou montanha acima junto com Esquilo e Rebeca. Os animais
visualizaram o castelo do Silêncio, que bloqueava completamente o caminho. O
cavaleiro estava desapontado: era um castelo como qualquer outro da região. Rebeca,
considerando que os animais aceitam e que os seres humanos têm expectativas, disse:
“Quando você aprender a aceitar em vez de ter expectativas, seus desapontamentos
serão menores...” (FISCHER, 2001, p.32).
Quando planejamos algo, não temos como prever tudo. Procuro, na medida
do possível, aceitar os imprevistos e, mesmo com as dificuldades que
surgem, faço o que posso da melhor maneira possível. Hoje me permito não
acertar sempre e já não morro de culpa quando erro. Simplesmente aceito
os fatos.
Os animais informam que não vão entrar com ele no castelo. O cavaleiro
fica desapontado pois, afinal, estava aprendendo a amar e confiar neles. Mas vão
esperá-lo na saída do castelo, no outro lado da estrada. O cavaleiro tirou a chave
dourada do pescoço, encaixou na fechadura e entrou no castelo.
A hora que chego em casa e consigo ficar um tempo com meu marido, seja
para conversar, ver um filme, não tem preço. Também me satisfaz caminhar
um pouco sozinha, com tempo, para pensar nos meus objetivos.
11
O cavaleiro exclamou: não quero ficar aqui sozinho! Mas o rei seguiu o seu
caminho, não sem antes aconselhar o cavaleiro: “Este é um novo tipo de cruzada para
você (...) requer mais coragem do que todas as outras batalhas que você já enfrentou.
Se conseguir mobilizar a força necessária para ficar aqui e fazer o que tem de fazer,
essa será sua maior vitória” (FISCHER, 2001, p. 61).
Minha jornada começa cedo e acaba tarde. Como bom gaúcho madrugador,
acordo às 6h... levo minha esposa até seu trabalho e chego por volta das
7h30min no escritório. Preparo o mate, leio as notícias do dia e começo
minhas atividades. Vejo que essa rotina me tranqüiliza pois é meu tempo de
despertar...
Não saio sem tomar meu café com leite. Sento e aproveito este momento
mesmo que esteja um pouco atrasada. É um ritual do qual não abro mão.
Falou sobre como era quando criança, sobre como gostava dos livros,
sobre como falava impulsivamente com qualquer pessoa que encontrasse pela frente.
De repente, percebeu que tinha falado tanto a vida inteira para evitar se sentir
sozinho. Outra porta abriu-se. Era uma sala ainda menor que a anterior. Sentou no
chão e continuou a pensar. Constatou que durante toda sua vida falava sobre o que
tinha feito e sobre o que iria fazer. Nunca desfrutava o que realmente estava
acontecendo. Assim, mais uma porta apareceu. Conduzia a uma sala ainda menor que
as anteriores. Desta vez o cavaleiro sentou-se e ouviu o silêncio. Pensou que na maior
parte de sua vida, nunca tinha realmente ouvido alguém ou alguma coisa. Nem o
sussurro do vento, o som da água dos córregos... o som triste da voz da mulher... Ao
lembrar da solidão que a mulher podia sentir, sua dor e sua solidão emergiram. Ele a
havia forçado a viver em um castelo de silêncio. Começou a chorar. Outra porta se
12
abre para uma sala ainda menor. Porque será que essas salas vão se tornando cada vez
menores, ele pergunta? Porque você está fechando o cerco sobre si mesmo, falou sua
voz, seu eu verdadeiro, para surpresa do cavaleiro. Era a primeira vez que o cavaleiro
ficava quieto o bastante para escutar a si mesmo. Perguntou a voz sobre quem era.
Ouviu que não poderia aprender tudo de uma vez. Sam seria o modo como o cavaleiro
chamaria a voz ou a si mesmo. Lembrou de Merlin antes de mergulhar num sono
profundo e sossegado. Quando acordou, encontrou Esquilo e Rebeca sentados sobre
seu peito. Já estava do lado de fora do castelo. Havia concebido a saída. Surpreso,
percebeu que o elmo havia se desprendido e que podia tocar a própria face. Rebeca
contou ao cavaleiro que ele havia permanecido muito tempo no castelo do silêncio.
Incrédulo, o cavaleiro chamou Merlin que confirmou as informações de Rebeca assim
como seu encontro com Sam, “um eu mais verdadeiro do que aquele que você tem
chamado de eu durante todos esses anos” (FISCHER, 2001, p. 71).
Sua porta era feita de ouro e era maior que o castelo do silêncio. Tinha
apenas uma ampla sala já que o conhecimento não é dividido em compartimentos. O
cavaleiro perguntou a Rebeca e Esquilo se iriam deixá-lo entrar sozinho no castelo.
Rebeca explicou que iriam juntos pois “o silêncio é para um; conhecimento é para
todos” (FISCHER, 2001, p.75).
Tenho o maior prazer em assistir as minhas aulas à noite. Sou muito curiosa
e adoro conhecer cada vez mais e sobre tudo. A troca de experiências com
professores e colegas me faz muito bem.
Olho para traz e vejo como estou me conhecendo melhor hoje, como posso
amar mais, dar mais de mim e receber mais, sem culpa, sem muitas
13
cobranças. Sinto que se inicia um novo momento em minha vida. Estou feliz
demais, minha jornada é muito compensadora. Amo a vida que tenho!
Nesse momento Merlin apareceu mesmo sem ter sido chamado. Disse ao
cavaleiro que às vezes não sabemos quando é hora de pedir ajuda. Rebeca levou o
cavaleiro até um espelho. Ele viu uma nova imagem de si mesmo. Viu beleza e
inocência, seu potencial segundo Sam. Percebeu que havia escondido seus
sentimentos: acreditava que não gostariam dele se dissesse o que pensava ou fizesse o
que tinha vontade... Se deu conta que passou toda a vida tentando fazer com que as
pessoas gostassem dele, tentando provar que era bondoso, gentil e amoroso. Mas ele
era e não precisava provar nada! O cavaleiro já estava indo embora quando Rebeca
contou que o castelo tinha um pátio com uma macieira no meio. Ainda era necessário
aprender sobre ambição: a que vem da mente, pode render lindos castelos e belos
cavalos; a que vem do coração é pura, não fere nem compete com ninguém. A
macieira amadurece e se enche de frutos que dá a todos livremente. Quanto mais
maçãs retiram dela, mais ela cresce. Está fazendo exatamente o que macieiras devem
fazer: realizando seu potencial.
Era mais alto do que os outros e suas paredes pareciam mais grossas.
Entrou no castelo com os animais e se deparou com um imenso dragão. O cavaleiro,
tremendo, chama Merlin que não aparece. Ele reclama, pois o mago prometeu que
não haveriam dragões no caminho. Controlou-se e mandou embora o dragão do medo
e da dúvida. Lembra que o auto-conhecimento (verdade mais poderosa que a espada)
pode matar esse dragão. Faz uma nova tentativa de enfrentá-lomas o dragão o fez sair
em disparada, todo chamuscado. Rebeca e Esquilo lembram o cavaleiro de sua
coragem. Partindo do princípio que medo e dúvida são ilusões, o cavaleiro torna a
enfrentar o dragão.
Não estou satisfeita com a minha jornada pois, devido a demanda muito
grande de atividades diárias, que necessitam de tempo para serem
realizadas, não consigo dar conta da imensa maioria. Fico bastante
preocupada com o acúmulo de tarefas e acabo priorizando aquelas que tem
mais urgência.
Tenho que tomar cuidado com a ansiedade. Preciso reorganizar tudo várias
vezes, para evitar que as coisas saiam do controle.
ele responde: “cada vez que voltar eu estarei mais forte e você mais fraco (FISCHER,
2001, p. 103). Então, como já possuía coragem e ousadia, o castelo desapareceu.
Primeiro eu! Hoje me preocupo com o que gosto de fazer, com o que me
dará mais prazer. Sempre arranjo tempo para mim. Faço coisas simples
como: parar para tomar um cafezinho, fazer uma massagem no meio da
tarde (se der é claro). Minha saúde física e mental são muito importantes.
Leio mais, quero saber mais das coisas, abrir meus horizontes, não ficar
bitolada. Quero envelhecer com saúde e, há algum tempo, mudei minha
alimentação. Nada radical mas quero ser mais saudável e viver com
qualidade.
Reconheceu que ele era a causa e não efeito. Sentia-se conectado consigo
mesmo. O medo do desconhecido embotara seus sentidos mas agora ele era capaz de
experimentar tudo com clareza. Havia descoberto o amor. Mais lágrimas quentes
derreteram o que restava da armadura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FISCHER, Robert. O cavaleiro preso na armadura. Rio de Janeiro: Nova Era, 2001.
MÜLLER, Lutz. O herói: todos nascemos para ser heróis. São Paulo: Cultrix, 1997.