Filme Cultura n.40 PDF

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LANCAMENTOS FUNARTE COLECAG ARTE BRASILEIRA CONTEMPORANEA, Os diversos movimeptos de vanguarda ocomr- dos a partir da ExposigZo Neoconcreta no Rio de, Janeiro em 1959 participam de uma preocupago comum — acionar de maneira permanente os mecanismos da experimenta- fo. A produgio nascida da utilizagdo das varias linguagens experimentals correntes, rotuladas como nova figuragio, happening, arte pop, arte cinética, arte conceitual, body art, video art etc, veio se agrupando, de 1959 ai6 hoje, em vérios momentos vanguardistas, alguns jé bem definidos historicamente, como por exemplo a Nova Objetividade ou o ‘Tropicalismo. E propésito desta Coleg documentar a obra Manual da ciéncia popular, A de alguns dos artistas que participaram ativa- apropriagio de objetos populares mente desse periodo, sem se preocupar coma pela arte. Como se faz esse anilise exaustiva dos movimentos mais repre- percurso? Os trabalhos apresenta- sentativos nem com a dissecagio de cada uma dos neste livro sfo portadores de das linguagens.experimentais_mencionadas, um saber popular. homem no se esquecendo de que existem proposi- ‘pritico’, o que reproduz segundo ‘ges que escapam de uma Stica estritamente instrugBes, € convidado a exeroer visual. E como também existem trabalhos « ago ctiadora.Itierério poético ‘que, por sua natureza, tendem 20 desapareci- do ‘sabedor de manuais’ — 0 mento completo, é essencial ressaltar a Manual anula a distincia da ‘importincia da documentagio em lio desta contemplaglo, convidando 0 o¥ ‘produgio especifica. pectador situagfo de produtor. Paes eco can esses ct el a, ean sere do dieons FOV ini ss Rae ver ae fn aon Fete ea nate ce cae FILME CULTURA O NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO 2 O cinema colorido... LL 3 Entrevista com Grande Otelo, osé Carlos Burle, uth de Souza, Léa Garcia, Carlos Dlogues, “Ant6nle Pitenga, Zézimo Bulbul, Zezé Motta, Odllon Lopes, Valter Lima Junior. 8 Cinema e descolonizasao. 23 Metamorfose das mées nag. 28 Filmografia 30 AIMAGEMDO CAIPIRA 32 Filmes sertanejos, musica sertaneja e drama no circo...Pedro DellaPaschoa iénior. 33 Anotacées sobre Mazzaropi antennae None CasorAbres 37 Teixeirinha e o precério cinema gavcho. 42 GLAUBER ROCHA 44 Roteiro tricontinental de Xanglauber..... 45 Obsceno e nacional 50 CINEMA POLICIAL 59 60 CINEMA EROTICO 66 A pornografia é 0 erotismo dos outros... 66 Entrevista com A.P. Galante n O imaginario da Boca 7% CINCO CRITICAS © homem do pau brasil - Cinema inocente - A epso Fros, devs de amor - Cabaré mineiro. 80 attorect da EmprisaBrsira Sects de Reston Coaborarom mete mimero: Sob Cts Aver, otro e Gettin (EMBRAFILME). Jot Cares Rodrigues ko a heme Sraio Uo Minstera de Ecucorsorogramacia Vine André Andres, ornctta no Csr ge Abe, Elia Funeria Stibors AAmonio aves Gury, Jomafie¢curoreagta, momador€ iets ie Cary Jomate Grande Sen Coote men ie davopae Exes Fuko ‘Gey Mal Jorma feat Deeriomento de Asics | Reviako pour: ftmail Xaver, rico, pesqisndor Pero Dia Paschon Junior, Ses cade a dntonlo Cr Morera profesor de cinema pester a Fradusta Gites: Sd Let Panino,psqusador Seo Angst, Jorataa€ Seosde Gara ‘nto Feria rico decnema ee de cinema eaters Caer Gore ¢urtomerarise Stevo Siu creo de eee omen Sidra, en Sng econ Pade — tema in foe coe eet Guiherme Sarmento Joma oes pooguceder Vices Dash, post, eke de Asm Fortier Out Soto tas Vr, et, ‘nema enenrooor os Inpremte; 222 bpestusore profesor de cinema Ses unre Ditch diate So svete reve, eto “Angle Jas (Rd) e Moria tora e nese Masada de Olvera (Se) ‘est Caos Ase, joa ¢ Regrodasesfotogrtom cantata Jost Mow ¢ Fernando Ales 40 O NEGRO NO CINEMA BRASILEIRO O CINEMA COLORIDO ‘Na abertura do seminério Cinema e Descolonizas¥o, em janeizo ultimo em Salvador, Jean-Claude Bernadot props 4 So- siedade de Estudos da Cultura Negra, a organizadora do encon- tro, dseutir antes de qualquer outra coisa porgué o cinema. Discutir de onde surgira o interesse de Seeneb pelo cinema, ‘Uma conversa preliminar, quase um prélogo 20 semi nério proprismente dito, para tentar descobrir de que modo ‘cinema pode servir a uma sociedade empenhada no estudo e defesa das manifestagdes de cultura negra, de que modo 0 ck nema (enquanto modo de pensar © mundo, e nfo enguanto [produto feito para ser consumido nos cinemas comereiais e na {elevisio) pode trabalhar com uma sociedade empenhada em reafirmar que & possfvl falar de um processo civilizatério ne- {ro africano da mesma forma que costumamos falar de um rocesso civilizatorio europeu, sta proposta, esclareceu Jean-Claude, estava Sendo fet ‘ta a partir da sensago de que as formas de representagio do ‘mundo eriadas pela cultura negra eas formas de representagio sugeridas pelo instrumental einematogrifieo pareciam seguir ccaminhos diferentes, esencialmente simbélica ume, besice- mente realista a outra, Tratavase entio de descobrir onde se encontrariao ponto comurm. ‘A proposta foi logo abandonada, » conversa tomou outro rumo. Mas ali, naquele breve intervalo entre a fala de abertura e a intervengio de Marco Aurélio Luz, ficou no ar ‘uma sugestdo para imaginar um cinema a partir da montagem de algumas imagens feitas por cineastasafricanos com outras feitas por cineastas brasleitos. Uma sugestio para buscar um onto comum entre o cinema e a cultura negra brasleza, © sonhar coin ums cinematografia inspirada na poética do candomblé, ‘A sugestfo ficou no ar de modo impreciso. Como um plano aberto que dura pouco na tela e nfo nos deiea ver tudo (0 que se encontra na imagem. Como um plano que a gente per cebe sem ter tempo de perceber por inteiro, como coisa per cepbida 5 como uma divide, Talvez no candomble, a0 se sex vir de pedras,drvores,folhas de palmeira, conchas ¢ penas, de coisas amrancadas da natureza enfim, como material de base para montar suas ropresontagOes do mundo, tlver ata cultura negra i esteja fazendo um pouco de cinema. Talvez os filmes dos afticanos Sembene, Maldoror, Balogun, Traore ¢ Faye e dos brasileros Pitanga, Onofre e Quim Negro estejam trabalhando bbem na fronteira entre uma expressfo simbélica e uma outra naturalists. Talvez uma certa forma de relaeo com 0 cinema 4 que esteja impedindo que este trabalho se dé em maior pro- fundidade. éiassoltas, sugestoes para secem pensadas em conjun- to, durante 0 semindri, questOes impreciss, todas estas coi- 25 contidas na proposta de abertura foram abandonada,e a discussio tomou outro rumo, Na intervengio de Marco Auré- lio Luz © que tivemos foi uma afirmaedo de que o cinema bra- sileiro tom se comportado de maneira francamente racist Depois de um breve resumo historico do, tajeto do negro do final do século passado até hoje, 0 eaminho da escravidgo até 1 condigio de cidadso de segunda classe, seguiram-se alguns cexemplos da atitude reaciondriae preconceituosa do filme bra- sei, 3 JOSE CARLOS AVELLAR Deus ¢ 0 diabo na terra do sot mostra um personagem ‘negro, © Santo Sebastio, matando uma ecianga branca e canta {ue o sertfo vai vir mar sem dizer 0 que serd este mar — 0 ‘mar, explicou Marco Aurélio, €exatamente o sistema que sur- ‘gi em 1964, Bye bye Brasil mostra 0 personagem negro, 0 ‘Andorinha, como uma forga bruta a servigo do homem branco, Tenda dos milagres procuta mostrar que'o negro tem salvapo nna medida em que se ease com urna branca, Xica da Siva, este entZo parece ser 0 mais grave dos casos, mostra uma person: ‘gem desrespeitosa e apressiva com a mulher negra, E, para mostrar que o preconceito se estende também 03 indios, tomou ainda como exemplo Ajuricaba, onde se afirmaria que a salvagSo do fadio esté em sua transformagto ‘num operério. Estas conclusOes, apresentadas assim como Marco AU rilig fez no seminério, como coisa afirmada com toda a cer teza, de modo absolut, sem qualquer ponta do divida, soam ‘como grossa bobagem. Digo isto sem querer ser agrssivo. Digo assim s6 para matcar logo 0 absurdo desta iterpretag6es, que ‘nfo tém nada a ver com 0 que estes filmes efetivamente pro- ‘euram dizer, © marcar logo este absurdo como una bobagem ‘provoeada por uma concepeto colonizada de cinema, ‘Com frequéncia ss pessoas se reunem para discutir 0 cinema brasileiro sem diseutir antes — sem discuti a0 mesmo ‘tempo ~ o que cada uma delas entende por cinema, Discutem ‘como se cinema fosse uma coita s6 ja acabada, como sores: tasse ao filme brasileiro nfo inventarse livremente mas sim ajustar-se ao padifo corteto jé existente. A idéia de que existe uma formula, ou gramtica, ou estrutura, ou modo de fazer cinema que sea claro e universal, ‘compreendido por todo 0 mundo, em qualquer parte do mun: do, foi plantada na cabega das pessoas ié longo tempo pola frande inddstria, e ainda hoje esta idéia torta dd dests frutos szedos, As dscuss6es de filmes com frequéneia parte dai, ¢ ‘nfo de uma idéia de cinema que tenha crescido natural, do ‘ontato com 0 quadro social em que vivem a5 pessoas que Giscutem, que tenha crescido natural do imagindrio criado neste quadro social. Daf « stualidade de um debate sobre ci nema e descolonizagio. (0 padrao de cinema gerado pela grande indistria se serve de personagens exemplares, no sentido de tipos que mos- tram na tela o exernplo 2 ser seguido ou a ser recusado. E se serve ainda de um estilo de narragio em que as stuagdes se ‘explicam pela sua imediata aparéncia, eda sensapéo de reali de passada pela imagem ¢ o som em movimento na tel. (Sen- sagGo que vem de onde? Da atitude da camera, que imita 0 ‘comportamento do olho humano? Das dimensOes da tla, que cerca e domina a visio do espectador? Do escuro da sala e da imobilidade do espectador, que se vé assim levado a reagir come mum sonho, meio controlador meio eontrelado pelo filme? Sensaggo que vem do que conscientemente identifica- mos como reprodugGes de coisas vivas de verdade? Ou que vem do que se recebe pelo inconsciente — um signo que nos ‘pega sem que tenhamos consciéncia disto?). O modelo de ci nema imposto pela grande indistria se serve destascoiss,e se serve com uma finalidade s6, a de manter com o espectador ‘uma relagio de mando, a de fazer do filme uma voz antorité- ria (mas de aparéncia suave) que nos explica o mundo (mas a gente quase nem percebe que & assim, porque vemos com ‘lusfo de ver com 0s pr6prios olhos). ois bem, o cinema brasleizo que surgiu na década de 60 se voltou exaiamente contra este modelo exiado pela gran- de indistria, O cinema que surgia aqui como todos os cine ‘mas jovens que surgiram entio em diversos outros pontos. Tra- ‘ava'se de criar uma ligagdo mais aberta com o espectador, de raat do filme uma forma determinada pela relaggo com area: lidade, de fazer do filme um estimulo para pensar a realidade, 4ée inventar um novo cinema, (0 quadro social de entao (estévamos 20 mesmo tempo ‘no centzo e no fim de um processo de abertura) sugeria uma iscussfo do pafs como um todo, ¢ as formas de narrapio ale- ‘Boricas que surgiram foram uma conseqiéncia direta desta ‘ontade de falar da sociedade de modo geral, e no do parti- cular, de buscar as caracteristcas que nos sfo eomuns. O qua- dro especifico do cinema ento, movido por uma atitude do- ccumentéria (que no se traduziu em filmes necessariamente documentérios, mas que esteve presente na estrutura mesmo dos filmes de ficpo) buscava construir ums dramaturgia prO- ria, Foi, na realidade, de uma vontade de conhecer de agir sobre 0 cotidiano (e nffo de uma vontade de conhecer ou de agit sobre as formas de produgdo cinematogrifica entfo fm uso), de uma vontade enfimn nfo colonizada, poderiamos dizer, que surgiram as propostas de ficed0 que s¢ realizaram nos anos seguintes, com maior ou meno folicidade, Nem sem- pre os filmes conseguiram se manter to independente dos mo- elos de narraedo jd existentes quanto o desejavam. Nem sem- pre a reflexZo e o reflexo, da sociedade brasiloiranestesflmes foram suficientemente justos e amples, apesar das formas de representagdo serem dietamente inspiradas em dados do coti- iano, E nem sempre estes filmes conseguicam modificar a vi- slo do espectador, ou pelo menos nem sempre conseguiram ‘modificar tanto quanto desejavam. ‘A eabega. dis pessoas que v#o a0 cinems continua ‘mesmo a ser feita pelo produto da grande indistria intems- onal (@ rigor, a cabega do pafs como um todo ¢ feita pela grande inddstria multinacional). F assim, quando a imagem de lum filme bate na tele ela jé chega previamente interpretada pelas leis do cinema produzido pela indstela norte-america- rna. A aositagio mais ffeil ou diffol desta imagem depende ‘poueo de sua liagio com o teal que a inspizou e a0 qual ela se ‘efere, ¢ muito de sua ligaeo com o modelo de representacso ‘conhecida » aceito, No debate que se seguiu 2 intervenggo de Marco Auré lio, por exemplo, se disse que 0 negro brasileiro s6 conegue se reconhecer no cinema nos seriados que a televsto importa ‘dos Estados Unidos, sventuras policiais onde 0 negro aparece ‘como médico, como advogado, como juiz, como detetive, ‘como personagem integrado na fociedade. O que acontece de ato nestes filmes ~ a estrutura autoritiria que comanda a pro- ‘dugdo cinematogrifiea abre sium certo espayo para mostrar ‘em primeico plano personagens habitualmente relegados a po- sigdes secundétias ~ no modifica a coisa viciada, falsa e pre- ‘conceituosa que se encontra na bese. Mas o expectador no vé 2 estrutura. Esté acostumado a ela, nfo a percebe, ou a percebe ‘como coisa natural, como forma justa ¢ inquestionével; passa por ela e v8 apenas 6 imediatamente visivel, 0 personagem, que ‘Paroce enti tolto pars spi lvremonte ag Cente nde Score et nen cin teow anal t be iti ea Sind emia? 1Na cabega da gente a imagern que fia do Santo Sebas- tigo de Deus ¢ 0 diabo na tera do sol nao € a de um homem negro, € muito menos a imagem da crianca sacrificada n0 inte- rior escuro do templo no & a imagem de uma crianga branca. Fica na cabegt & a imagem de um homem e de uma erianga. Ou melhor, nem fica imagem alguma, mas s6 a idéi, 0 con ceito, um homem e uma crianga. Na cabeva da gente 0 que fica de Ajurieata nfo & x conclusto de que 0 indio deve se integrar na cidade e se tansformar num operdvio, mas sim a afiemass0 ‘posta, a de que a forga de resisténcia do indio no moree, permanece, se transforms, e 6 uma forea igual & de qualquer ‘grupo de pessoas vitimas de um qualquer sistema opressor fan: tasiado de agente da civilizapao. ‘Talver a visto formada num determinado estilo de na apo — sei ld — talvez.o hito do ver 56 0 personagem, sem sentiz a presenga da cimera que toma o personagem vive, talvez isto possa levar um espectador 2 se orienta io equivo> ‘eadamente diante das imagens do Santo Sebastizo'e do indio ‘Ajuticaba, a ver tals imagens como sc os realizadoresestives- ‘s8m mesmo querendo marear 0 santo como um negro, 3 crian- ‘¢2 como um branco e 0 indio como um elo perdido, a nfo ser {ue se vite em operdrio, Sei ls. Talvez a visGo formada ou de- formada pelo produto industializado, talvez ums certasatis- fagdo de ver 0 poder cinematogréfico aparentemente disposto a acsitar a existencia de um her6i negro, leve a pessoas agi assim: aoeitar 0 sistema injusto e preconceituoso que criou 0 hher6i esbranquigado das aventuras policias da tevé e recusar cestrutura mais aberta e justa, que tenta dar do real uma ima- ‘gem de cores mais vivas, Talver isto, talver. a dificuldade de Aescolonizar os sentidos, 0 que nfo se controla racionalmente, love a uma visfo distorcid, Talvez isto e uma cera coisa mas, Um certo jeito de pensar a cultura negra. Deixemos de lado as afirmagOes feitas na primeira in- tervenglo do semindrio. Elas me parecem o resultado de um ‘conceito pensado antes ¢ aplicado depois sobre os filmes, e nfo ‘uma idéia surgida da andlise dos filmes. Se encaixam mal mes- ‘mo, como expresses forgadas por quem esté& procura de um dado real para demonstrar uma teoria formulada a prior, Pro- ‘curemos examinar alguns filmes para tentar entender de que modo 0 homem negro 6 mostrado e se mostra no cinema. (0 que primeira me vem & cabega quando penso nas, fmagens usads pelo cinema brasileiro para falar do homer ne- ‘gro € um personagem criado por Grande Otelo numa série de filmes. No o personagem cdmica que ele fez com Oseaito,re- sultado de uma tradicio algo esquisita que vem desde as histd- ries om quadrinhos que suspiam na primeira metade do séeulo, do Chiguinho e Benjamim e do Reco-Reco, Bolfo e Azeiton de 0 Tico-Tico, tradiggo que vem até hoje, até a televiso, com. ‘© Mustum dos Trapalades, ‘Norma Benge, Antoni Planes ea do men 7974 de ‘eet com implies ca Mari do Ronit Nascimento ‘Siva, Avoldo de Oye, Valdr ‘Gnojpe As aventras toro ‘Scum paleo "1973 de Pair Dnojre Umea igo ste do Skibo cari © que primeiro vem a cabega € 0 personagem que atta- vessa filmes tio diferentes entre si como Amei um bichero, Rio zona norte, Assalto ao trem pagador ¢ Lucio Flavio, 0 pas- sageiro da agonia. 0 Grande Otelo bicheiro que morre sufoce- 4o durante uma batida da policia, o pingente que despenca da porta do trem da Central quando volta para a favels,dstraido, ppensando num samba para sua escola;o bébado que canta com Yor rouca e desequilibrada “quero essa mulher assim mesmo" 1a porta de um botequim, enquanto na rua pasa o enterro de ‘uma exianga; ¢ o velo favelado que a polfcia agara, ¢ sperta a cabega contra o tampo de mérmore da mesa de um bar, © obri- 12 a beber cachaga at6 ndo poder mais (0 que primeiro vem & cabeca ¢ este personage. O fl. sme as vezes se ocupa dele em especial, is vezes 0 apanha s6 de passagem. Nao importa. O que o ator consegue expressar nes- les momentos ¢ to forte, ¢ num ou noutro caso mesmo mais forte, do que o que se expressa no filme como um todo, NEo ‘importa qual seja a funedo destes personagens dentro das hist6- sas contadas nestes filmes, Nestes momentot o personage parece como uma posioa viva de verdad. O ator se expresta por inteiro e vive mesmo a situagdo que representa. Na plaéia demos sentido como pessoa, individ, gente particular. De um certo modo, a preocupagao de discutir 0 pats como um todo, a tendéncia a falar numa linguager aleg6rica © a ulilizapdo de personagens representativos de um conjunto dde pessoas, de um sentimento ou ida coletivos, nfo individu lizado, diminuiu a possibilidade de que os interpretesfizeserm assim como Grande Otelo nos filmes citados. E deste modo ot personagens negros de boa parte de nosso cinema, mesmo nos filmes em que aparecem como uma justa imagem de uma par cela do nosso quadro social, nfo existem como individualida- 4es, como pessoas, como gente particular; nfo exstem, enfim, ‘como negros. Sfo, lgumas vezes representaghes de problemas que nem 586 vividos pela maioria da populaedo negra, outras vezes representagOes quebradas, incompletas, porque’ jeito natural do intéxprete esbarrava no modo fantasioso, nada ex- pontaneo, sugerido pela estrutura alegbrica do roteiro. ‘Ao filmar Compasso de espera, onde 0 protagonista é uum poots nogro que vive afastedo da familia e dividido entre dduas amantes brancas, Antunes Filho estava muito provavel- mente mais interessado em diseutir a questio do intelectual ‘brasileiro do comero da década de 70 do que em discutir a ‘questfo particular de um intelectual negro. ‘Ao filmar Na boca do mundo, onde o protagonista & uum jovem negro da provincia que se deixa conquistar por uma ‘mulher brance que vern da cidade grande, AntOnio Pitangx fstava, muito provavelmente, mais interessado em viver 0 per- fonagem como gents de verdade do que em seguir as indice 6ts alegdricas contidas no roteiro, onde o negro e 2 branca, mais do que individualidades, mais do que isto que s90 4 pri- moira vist, funcionam como referéncias da cidade grande da provincia, ‘Ao filmar As aventuras amorosas de um padeiro, onde uum dos protagonistas é um negro baisno artista e marginal que vive no subirbio, que foge com a amante branca sonha em interprotar Hamlet, Waldir Onofre ndo estava propriamen- te interessado em discuti a questio do negro que vive ma pe riferia da grande cidade, mas sim em falar indiretamente do quadro estreito de oportunidades para o intelectual negro 10 {quadro artistic, 'Néo sei se observagdes assim podom dar a impressto de que Se esteja querende dizer que a razso e o sentimento negros. everiam se expressar através de personagens ¢ hist6rias mais ‘ou menos naturalistas ou documentirias. Espero que no. Nao sei também se podem sugerir que a 20 ¢ 0 sentimento ne- gras deveriam sor passados em filmes que se ocupassem s6 dos rnegtos, © nfo em filmes assim como 05 que so feitos com re ‘gularidade, misturando questdes ¢ personagens,ndo se ocupan do especialmente de um ou de outro. Espero que no. ‘Acho apenas que a falta de personagens negros que apa regam na tela com a forga de gente viva de verdade é mais sen- tida, 2 gente nota mais, talver porque ndo exista no conjunto das nomsas manifestagGes culturais um espago para que esta representagdo deta e viva se realize. E certainente esta carén- cia contribui para que se veja com maior simpatia ainda ura fil ime de intengbes e de realizagdo tf ingénua quanto Um criow- 1 brasileiro, de Quim Negro, A confissio & simples, mas feta na primeira pessoa, quase como anotaeso incompleta de um Gidtio intima. Nos filmes mais contruidos (talvez sej isto) alguns resquicios de uma construgio clissicatiram a natural dade desejada ¢ presento todo o tempo neste curta metragem. ‘Uma imagem de Ne boea de noite como exemplo, aquela da cena de amor de Antonio e Clarice na prais. Sob & luz do contraste suave e de tons alaranjados do entardecer, © sob 0 ruido manso das ondas, os amantes, bem de acordo cam (© que diz 1 cangfo tema de Jorge Ben cantada por Cactano, se peeam, se abragam, se apertam, se beijam e rolam na areia até-a beita do mar, Tudo acontece entao mais ou menos como jf aconteceu em muitos filmes antes. ‘Antonio e Clarice se olham nom instante com msior pixdo, x tocam e se deixam cair na areia. A cimera, que co rmegata a descrever a aco bem perto dos personagens, sentada mm areia a0 lado dales, desce até quase tocar o cifo para ver 0 abrago, 0 bei eo inicio do movimento em diregao ao mar. Os famantes rolam na areia © comevam a sar do quadro, mas antes ‘que a tela fique inteiramente varia a cimera dé um salto para tds, Surge tm outro plano, com os personagens pequenos no {quadro rolando até serem alcangados pelo mar, A cimert fica af durante algum tempo, sobre os amantes que brincam na bel- ra d'dgua, depois gira sobre seu prOpro eixo, e esquece os ‘ersonagens para ver s6 0 mar, as ondas que batem na area, 8 linha distante do horizonte. Dentro da historia que est sendo contada esta ima- gem 9 rigor quase nem cabe. E um entreato. Uma pauss ro- rmintica que nfo tem rauito a ver com 0 encontro de Clarice, 1 mulher rica e angustiada que deixou a cidade grande para buscar vida nova aum lugar ainda ngo contaminado pela ci- vilizagd0, com Antonio, © negro pobre, empregado do posto de gasolina de um vilarejo de pescadores, pressionado pela na- rmorada a buscar vida nova na cidade grande, Nao fot exata ‘mente movido pela necessidade de retratar com maior exati> ‘dio 0 comportamento de seus dois personagens que Antonio Pitanga flmou a cena de amor entre Antonio ¢ Clarice deste ‘modo. O que existe af & um pouco de cinema mesmo, de cinema puro, quise se pode dizer, ou de cinema impuro, se (qusermos tomar como referéncia a realidade que levou 30 filme ¢ ndo a tradiggo cinematogrific. De tepente nfo é mais Atafona, a cidadezinha em que foi mado Na boce do mundo, fnem mesmo o confito central da hist6ria (a mulher que foge da cidade grande ¢ o homern empurrado pela namorads para fa cidade grande) que funcionam como impulso gerador das imagens. 0 que impulsiona é 0 cinema, é a vontade de viver lgumassituag0es cldssicas do mundo do cinema. [Em As aventuras amorosas de wm padeiro, quando Saul lamenta choraso para Rita sva impossbiidade de representar ‘Hamlet (“jamais deixario um negro interpretar Hamlet, terei de passar a vida fwzendo Otelo”) existe um pouco deste mesmo sentimento, Tratado de modo meio brinealhao, é verdade, mas {que reflete uma vontade muito comum de entrar, de partici par, ¢ de se afirmar numa forms de coltura eldsica, ou numa Torma de expresso cultural zcsita e consagrada pelo conjunto social. Vontade que se manifesta de um certo modo no tom dos proprios filmes, Vontade que se manifesta, muito provavel ‘mente de modo inconsciente, porque © projeto declarado dos ‘lmes parece ser outro, Dividido também entre um projeto consciente e um ou- tro que surge sem ter sido planejado ou descjado, Compasso de espera, no personage de Jorge discute também um pouco esta questo, ‘ No comego 0 filme se anuncia como uma clara conver: sa sobre as relates entre pretose brancos, 20 mostrar o poeta negro interpretado por Zézimo Bulbul repetir numa entrevista de televiséo a irdnica frase de Millar Fernandes, “no Brasil nfo existe preconceito de cor porque o negro conhece seu lugar” A historia parte exatamente deste personagem preto que deck dia desconhecer 0 seu lugar, ainda que para isto, com ele mes mo confess, se veja “obrigado a engolic sapos’24 horas por Gia”, Educado quando erlanga por um millondsio sem filhos, sustentado depois de adulto pls amante branca, dona da agin. cit de publicidade em que ele trabalna, Jorge oscile entre-« condigto. média do negro brasileiro, representada no filme pela mge e pets irm& (ou pelos tes operrios que ele encontra 40 aca80 20 sair de uma festa, de madrugada, meio bébado), uma atitude intelectual representada por Asi, que se inspira na Inte dos negros americanos e defende a sepragdo entre bran- £08 pretos. Na praia, numa das primeiras cenas do filme, os flhos de Ema, a amante de Jorge, pedem que ele nf0 apareya em ppablico a0 lado da mie, a fim de evitar comentésios desagre- ‘iveisesituagdes embaragosas para todos, Mas tarde, também numa praia, Jorge e Cristina, sua nova namorada, so humilha {dos ¢ surrados por um grupo de pescadores que nfo aceite © namoro entre um preto e uma branca. Um pouco antes, na en: trovista na televiso, Jorge perguntara a seu entrevistador se por acaso ele deixaria a sua filha casarse com um preto. Antes ainda, durante uma conversa na agéncia de publicidade, Jorge ‘ouve uma afiemagdo de “absoluta falta de preconceito de cor" ‘por parte de um empresirio que confess tr, além da rmulher branca em casa, “uma negsinha formidével como amante”. Nio ercio que se deva tomar a freqtneia destashist6- rias de amor entre negros e brancas, ou negras e brancos ata- vés de uma leituradirta, como se 05 realizadoresestvessem af ‘quetendo reafirmar um intresseafetivo ou sexual que os bran- ‘os exercem sobre os pretosevie-versa, Tratase simplesmente de uma forma de resumir uma questao mais ampla, de discutir 4 atragio ¢ as dificuldades sociais encontradss pélas pessoas pretas para participarem da sociedaée branca. Quaseinvarave mente quando un filme se propde a dscatir as relagSes entre prelos © brancos na sociedade brasileira redux a questio § maior ow menor aceitaga0 do negro pelo branco. Os casos de amor aparecem entfo como uma situagSo limite e capaz de ‘egar 0 espectador exatamente ld onde os filmes costumam Pegar com eficiéncia: na emogéo, no sentimento. ‘A argumenta¢d0, na maioria dos casos, € sincera lim ‘pa, mas nem por isto capaz de revelar corretamente o proble tha. A dliseriminaySo conira os pretos nao esté na difculdade de acesso 20 mundo dos brancos. Aqui a sociedade brasileira € possivelments bem mais aberta que outras. Os problemas go so asi t80 definidos, a quesido existe em tons meis einzas (0 que no a toma menor, mas simplesmente mais d- fei! de localiza), A questio se enconta, de fato, na dificul- dade encontrada pelo mundo nepto pata se expressar enquan- to tal. 0 que importa nao € barreia (we € que se pode falar em barreira) encontrada por Saul para interpretar Hamdet, mas sim as barreias encontradas pels manifestagdes de cultura ne {ara se expresarem e serem acetas assim como costuma ‘mos aeeitar Hamlet. 0 que importa no é a intolerincia dos fihos de Ema ou dos pescadores que agtidem Jorge, mas sim. ‘ seu afastamento da familie a zanga da ira 0 projeto declarado do filme de Antunes Fiho s¢ mo vimenta af, na discussdo das relagdes entre pretos brancos, tentando examinar de que modo um valor individual negro costuma ser acrito numa sociedade dominantemente branca, ‘Mas dentro deste projeto escolhido conscientemente existe um outro, inseparivel do primsio, ¢ que &s veces até se afirma em primeiro plano: diseuti a geragdo de intelectusis do mo- mento em que esta hitéria foi filmada e sua telagio com so dade dominantemente intolerante,discutir 0 intelectual que foi impeaido de spit ou que ndo soube agi corretaments, Os personagens falam muito, ¢ de um certo modo os Ailogos € que comandam a imagens! NBo se tata de uma com versa natural, mas de uma faa especialmente importa, win texto postico, que o espectador euve sempre em primeco pla 10, ngo importa qual sejas cena. O rufdo corre por buxo, quase nem Se ouve. A misica corre também por baixo, quase 86 nos entreatos, A cimera pode estar perto ou longe dos per sonagens em eena, «cena pode serum apo natural edescon- traida ou um encontro mais solene — 0 tom dos didlogos ¢ sempre 0 mesmo, as pessoas falam de forma rebussada e tensa. ‘A igor no existe uma conversa, AS pesous em een nfo fs. Jam umas com as outras. Flam para fora da cena. Falam para a cimera,seexplicam para o espectador. O espeticnlo ¢ mito falado,explicou o dretor no lan- gamento do filme (sis anos depos do realizado, 1976) porque “a veborragia€ « qulidadenegativa de wma geraefo em crs, que nfo podendo ou nfo conseguindo air, deita fala pelos Totequins da vida". A palvta singe, doste modo, em lugar da G30, © a referéncis a Sartre, a Luther King, Malcom X e aos Pantera Negras aparecom como representaydes de formas de agi. Sartre © Malcom X nfo sfo proptiamente ests pessoe de verdade, mas palvras, imagens que representam um compor- tamento.E Jorge, igulmente,deixa de ser aquilo que é visivel na tela, um homem negro, para see também uma imagen do intelectual brasileiro do comego da década de 70 — 0 que nso pode ou nfo soube como agit, de acoxdo com Antunes Fuho, ‘A queso que se poe entio é media efcitncia ea jus. teva da representapto, Sena este problema comurn Amaia da populasio negra no Bras? Quer dizer, « questo & difill de formular com exatio, porque de um certo modo a resposta € evidentemente afimativa, naguele momento a pressfo era mesmo de ordem gor, Ma, um detale talvez, mas um dete Ihe a considerar:exstem caras questbesexpecificas do homem preto, qustoesespcifca ou pelo menos um modo espectico de sentir e pensar a quesides gras, 0 que se pode perguntat se uma tal tepeesentapho tflete com justza este modo, Se é necesirio apresentar esta coisa espectfica destacada, como se la exists solta, ou se 0 que import ¢ fazer mesno assim ‘como pretendem estes filmes, conversando sobre tudo de uma 56 ver, pegando um segmento da realidade a0 mesmo tempo ‘como um reflexo daquela precisa poredo € como uma tepre- sentagfo do geal ‘Talvez um sentimento imprecio formado por esta vor- tade de se afimar como coisa particular e especie, pela vontede de se ver aceito peo sistema, talvez este sentimento Imprecio asociado 8 idéia de cinema pussada pelo produto industrial feito para consumo popular, leve a interpretacdes ‘quivocadas asim como as que se expressram no seminirio ‘Cinema v Descoloizagfo, na recusa de Deus eo dbo por cista, no encantamento com 0 mocinho colorido de preto des filmes americanos de tev. E se assim realmente for, 0 curt: mettagem de Joaquim Teodoro, o Guim Nogro, funcion como um bom ponto de pata para ums reviso do problema. ‘Um crioulo brasileiro & wma conversingénua mesmo. Mais ou menos dez minutos em que o realizador pereorre com 4 limera a pasagem em que vteu e vive. A paisagem real ea palsigem imagingria.O seu mundo e o mundo do cinema. Usa uma lente de pequena profundidade de campo, VE s6 0 que est perto. lta para una casa e vé mesmo sb uma cass, Otha pata uma arvore ¢vé s6 uma drvore. Ingénuo sim, mas bem particular, bem diretamente ligado a uma coisa material viva, bem determinado por uma pesos em especial. Nem um het, rem mesno aiguém com a postura de um intelectual que pre tende ie além do registro de seu cotidiano mum espelho mel. Mas este tavezseja mesmo o melhor ponto de partid, tomar @ cinema como um espetho moval, 38 olhar nee, eobvar tam bem o que aparece por tx

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