You are on page 1of 148
= SACERDOTISA DA LUA ~ DION FORTUNE ‘Thao do original: ‘Moon Magic Copyright Th Society ofthe Inner Light 1956. CAPA: Desenho de Alden Cole Diretsresecvades EDITORA PENSAMENTOLTDA. Rua Dr. Mério Vicens, 37404270 ~Sio Paulo, SP Fone: 63 3141 “Impreso em nosasoiinas gris. fNDICE CONSIDERAGGES PRELIMINARES . PARTE 1 UM ESTUDO DE TELEPATIA .. Capttulo 1 Capitulo IL Capfalo IIL wee PARTE IL A SENHORA DA LUA Capitulo IV. Capftulo Vv . Capftulo VI. Captealo VIE. 10 Capitlo VI. 118 Capftulo IX - 131 Capitulo X 2154 Capftulo XI 173 Capitulo XIE. 2195 Capftulo XT. 2 Capitulo XIV - 232 Capfalo XV. 2245 PARTE Il A PORTA SEM CHAVE ee Capimalo XVI. = 265 Capttulo XVI 22.622 zr Cepttulo XVI... ee ee zee CONSIDERAGOES PRELIMINARES: Diz-se que o romancista transforma em realidade a situagio ‘que imagina. Seja como for, trouxe & Iuz uma personalidade ‘quando criei o caréter de Vivien Le Fay Morgan, ou Lilith Le Fay, como por vezes costumava se apresentar. Neste segundo li- vyro de que faz parte, ela estf longe de ser um titere em minhas ios, pois assumiu o controle da situaco, ‘Quaiquer escritor de ficgfo sabe que as personagens preci- sam “tomarse reais” e que, s¢ falhar em consegui-lo, o romance que produzir seré inconsistente. Todo leitor, com experiéncia na habilidade do escritor, conhece a diferenca que existe entre um diglogo “transcrito” ¢ um didlogo meramente escrito. O autor verdadeiramente criativo registra 0 diflogo que ouve das perso- nagens. Eu, contudo, resolvi fazer mais do que isso, no caso de Lilith Le Fay: permiti que ele falasse por si mesma. Depois do final de A SACERDOTISA DO MAR, ela no ficou tranqulila na sepultura: seu espirito persistiu em vagar. E 0 fez com tanta in- sisténcia, que me forgot a escrever este livro. ‘Eu ndo tinha uma idéia precisa da trama, Seis vezes comecci a escrever e seis vezes tefiz o texto, até que, por fim, os capitulos rejeitados aicangaram 2s dimensées de um romance mediano. Por isso, decidi finalmente narrar @ histdria na primeira pessoa, e Li- lith Le Fay assumiu a diregao. Eu mesma nio fazia a menor idéia do enredo e tive de es- crever o romance a fim de descobri-lo. Tampouco esperava que 0 livro terminasse como terminou. Talvez algumas pessoas 0 cha- massem texto de escrita automsttica. Nao sei se devo honré-lo com ‘esse nome; tu diria, antes, que expressei as intengGes da persona~ gem principal. De qualquer modo, no me responsabilizo nem 7 pela trama nem pelas personagens — elas se crisram por si pré- prias, ‘Nestas circunstincias, toma-se extremamente diffcil, para ‘mim, julgar seu merecimento. Nao tenho o Livro em alta conta, ‘como literatura: trata-se porém, certamente, de uma raridade psi- colégica. Além disso, contém uma quantidade de conhecimentos ‘bem estranhos. Sobre muitos desses conhecimentos eu nada sabia, ‘até que li algo a respeito nestas paginas. ‘© ponto de vista de Lilith Le Fay 6 puramente paglo; ela é uma rebelde contra a sociedade, inclinada a reforma. Natural- mente, Lilith pode representar 0 meu subconsciente freudiano. ‘Admito que exista muito de mim mesma em Lilith Le Fay, mas ha luma porgio bem maior dela que nfo sou eu. Pelo menos ~ seja como for — ainda nio tenho cento e vinte anos de idade. Malcolm surgiu de muitas fontes. Nunca fui culpada por ter ‘o mau gosto de expor meus amigos ao sarcasmo puiblico. Conheci ‘muitos Maicolms na vida. Provavelmente, creio que conhecerei ‘muitos outros ainda, antes que, como Lilith Le Fay, eu me de~ componha nas particulas de que sou feita, quando a forga que me mantém sair de cena. ‘A casa, entrotanto, é real. Suas portas foram batidas na mi- nha cara ¢ jamais voltarei 16. Apesar disso, trata-se de um local sagrado. Receio que os que lerem esta histéria apenas para se divertir no a achem muito divertida, Este livro no foi escrito visando entretenimento, De fato, eu 0 escrevi para descobrir do que se tratava, Eserevi muito do que esté nele: no entanto, bé nele mais do que escrevi. Poder-se-ia dizer que até mesmo o fato de escre- vé-lo foi uma arte migica. Se for verdade que o que € criado na imaginacéo vive no mundo interior, ento 0 que foi que criei em Lilith Le Fay? Malcolm pode cuidar de si mesmo, neste e no ou- to mundo, Porém quem ou 0 que 6 Lilith? Por que continuou vi- ‘va depois que 0 livro a seu respeito estava terminado? Por que in- siste em aparecer novamente? Serd que forneci a mim mesma um eménio familiar? Lilith se considera uma sacerdotisa da grande deusa Nature~ za, como tal, pode reclamar direitos divinos em face de todas as leis feitas pelo homem. Trata-se de assunto que néo posso julgar 8 por nio entender dele. Apenas sei que Lilith tem um modo fimpar « curioso de viver: vive para os outros, da mesma forma que vive para mim. Pode muito bem ser que para alguns dos leitores ela seja como uma figura obscura, entrevista na meia-Iuz da mente. ‘Quanias outras pessoas sofreram como Malcolm, cruel desnecessariamente, por causa das convengées sociais? Nao have~ 4 também para elas um modo de evadir-se para as montanhas do sonho, da mesma forma como Lilith conduziu o seu amado? Essas so perguntas que todos precisam responder a si mesmos. E como Lilith cantou para um homem exausto: “Esquecidos esto os ca minhos do sono ¢ da noite” — nés bem podemos repetir a oracdo final deste hino de evocag “Abrea porta, a porta que nio tema chave — ‘A posta dos sonhos, pela qual os homens chegam a ti. Paster de cabras, responda-me!” * “+ Open the dor, the door tha hath no key/The door of dreams whereby men come thee Shepherd of goas, Oanswer tou me! PARTE A STUDY IN TELEPATHY Come back 9 me, suzy bye, ll me sith touch of forgoten caresses. One worm dheam clad about witha feasof fe that endures: The delight of hy face. ad the sound of ty feet and the wind of thy weses, ‘And all ofan that regres, and ll ofa maid that ales For thy bosam is warm to my face, and profound as a manifold flower, Thy sience of musi, by oice as an odour that dies v2 fame: ‘Nota dream, nota dream ste ss of thy mouth andthe bound how ‘That mckes me forget what was Sin and would make me forget were it shame, ‘Thine ees that are quiet. hne Bands tha are tender hy Ops that are Loving, Comfort endeoolme as dew it the dawn of a moon like a dream: ‘Andy hear yearn baffled and blind, moved vant towards thee, nd moving ‘athe refuen seaweed moves in the tnguid exuberant stream. Swinburne, (UMESTUDO DE TELEPATIA Volta para mim, fea comigo calenta-me com o toque de esquecida carci, Um tonho afeturo revexda com 9 ardor da vida que resists: ( prazer dana face 0 som dos teas pls, 20 vento de ruse Sevres, (Urs homem que seni saudades, una mulher que seduz Poise seio6 cide para. minha face © proftada como ums flor multiple, “Tex slzecio, como asic, ta voz, come um aroma que morre sa cham ‘io ésoaho, a € soo obeijo dat boca, e abora liberal que me fas eaquecer aque 60 pecdo, e me fara exquecer ve oes vergonba. “Tews clot so tunqilos, us nos so cermas, eus bos, anorosos, Conforam-me ¢ refgeram-me como 0 orvalho da aurora, de ur lua como ut senbo: E meu comgio suspic, rstadoe cago, indo em eu encako, movendo-se (Como as algae refiuentes se movem.aa inguia corrente exubenate | CAPITULO I ‘A bela sala de reuniGes da Escola de Medicina estava lotada para a entrega de prémios. No estrado, embaixo da famosa janela ‘monumental que celebrava a caridade do seu fundador, sentavam- se, em longo semicirculo, personagens vestidos de vermelho, que se destacavam contra a parede de carvalho coberta de pano preto. (Os capuzes das diferentes universidades, rubros, cor de cereja, cor de magenta e em vérias nuances de azul, tomavam a combi- nagio de cores ainda mais surpreendente. Acima dos atilhos dos ‘capuzes, aparecia uma série de rostos, bovinos, rapaces e astutos. No centro, parecendo comparativamente normal em meio & im- pressionante selecio de capacetes que cobriam tantos cérebros de primeira classe, sentava-se o chairman, que naquele instante aca- ara de entregar os prémios. Abaixo, na parte principal do saldo, fa massa escura de estudantes amigos e familiares olhava fixa~ ‘mente para cima, para aquela coleco de aves do paraiso. = Ele nio devia usar aquele capuz colorido com aquela cor de cabeio disse uma velha baixinha, uma camponesa sem divi- da, para o desajeitado jovem doutorando que estava sentado a seu lado, acarinhando um diploma que Ihe permitiria fazer o pior por seus semelhantes. = Ele nio teve opsio. Trata-se do capuz da universidade dele. — Entio, um homem com essa cor de cabelo no devia fre- aqilentar essa universidade. ‘A mistura de magenta e escarlate era certamente uma com- binagfo infeliz de cores para um homem ruivo. Porém, sob um cabelo vermelho, escovado para tris, jé rareando levemente nas témporas, aquele rosto duro e cinzento como granito olhava dis- trafdo e indiferente para o espago. 3 — Parece um agougueiro — disse a velhinha, =~ Esté enganada; ele 6 um dos médico: ~ Eu nfl gostaria que ele tratasse de mim. = Nio acho que pudesse fazé-lo: no departamento dele niio se fazem tratamentos! ~ Ele trata do qué? = Nio trata de nada, H& muitas coisas de que nfo se pode twatar. Algumas vezes, os cirurgides podem operar; outras nio. Ele Ihes diz se podem ou nfo fazé-lo. Ele 6 0 tinico camarada de quem recebem ordens. Se disser: “Operem!” — eles operam: se disser: “Deixem disso!” cles deixam a situago como esté, = $6 espero que me deixe como estou — observou a vetha senhora. = Também espero, mame — concordou 0 filho irreverente, reprimindo o riso. Ele anotou mentalmente a piada para conté-la na sala dos estudantes. Apés cantarem 0 God save thie Queen, cencerrou-se a reunifo, ¢ © homem que motivava o seu interesse aproveitou-se de sua posigio vantajosa, na extremidade lateral do semicireulo, para descer furtivamente ¢ em siléncio do estrado, antes que comecasse a saida apressada dos colegas. Seu lugar no estrado, entretanto, ficava na ponta mais afas- tada do vestidrio. Ele se viu no corredor que levava a0 refeitério ainda vestido com sua vistosa plumagem e mergulhado num mar de gente que corria em busca de refrigerantes. Empurrada contra ele pela multidéo, estava uma velhinha que 0 observava com 0 mesmo interesse absorto ¢ impessoal que se dedica aos guardas montados de servico em Whitehall. Desacostumado com esse tipo de atencfo, 0 homem con- cluiu que devia tratar-se de uma antiga paciente. = Boa tarde, como vai? ~ perguntou, com leve inclinagio de cabesa, “= Vou bem, obrigada — respondeu ela, com mais surpresa do que brandura na voz, obviamente por nio esperar a pergunta = Minha mie, senhor — disse 0 jovem a seu lado. = Hum - pronunciou o homem mais velho deseraciosamente e, de sibito, para surpresa de todos, tirou as roupas vistosas,fi- cando em mangas de camisa. Enrolando os magnificos trajes mi- ma trouxa, ele a confiou as mos do atOnito estudante. 4 = Ponha-a no salo dos veteranos, sim? — ordenou saiu, empurrando a multidio com os ombros ¢ usando impiedosamente 98 cotovelos para abrir caminho. = Que homem engragado! — comentou a velhinia. = Quando se tem uma fama como a dele, pode-se ter a ou- sadia de ser extravagante ~ explicou o filho. = Acho que no gosto dele —considerou a mulher. = Ninguém gosta — afirmou o jovem — no entanto, todos confiamos muito nele. Enquanto isso, o objeto de sua desaprovacio subiu um lance de escadas de pedra ~ trés degraus de cada vez —, entrou num I boratério vazio, pegou um velho blusio axadrezado de ld e, ves- tido dessa forma incongruente e sem chapéu, retirou-se por uma porta lateral, saindo para um escuro pitio quadrangular. Atraves- sou 0 patio, pisando duro no cascalho, e atraiu a atengao de uma enfermeira que, olhando-o por uma janela que dava para o local, acrescentou mais um item A lenda das famosas excentricidades do famoso dr. Malcolm, Este continuou descuidadamente 0 seu ca- minho, através das ruas detrés, até a estacio do trem subterriineo. Lé chegando, lembrou-se de haver deixado sua agenda, sua car- teira ¢ seu bilhete de temporada no bolso de dentro do paiets es- quecido no vestiério; e a coleco variada de moedas no bolso das ccalgas alcancava exatamente a quantia de trés moedas de cobre. ‘Seu temperamento era impaciente demais para fazé-lo voltar a0 hospital. O clima estava excepcionalmente ameno para aquela época do ano, ¢ ele resolveut andar ao longo do Aterro, até seu quarto na Grosvenor Road — uma distincia que ndo era grande para um homem enérgico ¢ ativo como ele. Percorreu 0 caminho de pedras arredondadas do calamento defronte aos armazéns, até subir as escadas do pilar de sustenta~ ‘glo da ponte, prosseguindo pelo Aterro. Estivera chovendo, ¢ a cota usual de mendigos que se retine nos bancos da regiio quando escurece, refugiara-se em abrigos improvisados e em asilos de caridade voluntéria. Havia poucos pedestres aquela hora, e ele tinha, praticamente s6 para si mesmo, a ampla calgada da margem do rio. ‘Malcolm caminhou no seu passo répido habitual, usufruindo © frescor do ar lavado pela chuva, depois de passar uma tarde 1s entadonha no sufocante salfo aquecido. Observou o reflexo das nna dgua ¢ as luzes de ancoragem dos navios fundeados qu! e ali, Um rebocador arrastava com dificuldade suas barcagas ‘corrente acima, ¢ uma lancha da guarda fluvial descia roncando a ‘correnteza, Toda a rotina do rio continuou enquanto 0 homem a ‘admirava, esquecido, por algum tempo, da grande cidade, do ‘grande hospital ¢ da labuta didria do seu cotidiano, que se alter- inava entre Wimpole Street e as visitas aos bairros pobres, ‘Com sua caracterfstica precipitacio de movimentos, parou to repentinamente que um outro pedestre, que seguia répido atrés dele, teve de se desviar para o lado a fim de evitar uma colisio. ‘Apoiando os cotovelos na balaustrada de granito, Malcolm seguiu mentalmente a maré vazante que descia para além das docas e os favios. Pensava em si mesmo ¢ em como seria se houvesse segui- do a carreira de sua primeira escolha, pois teria ido para o mar. ‘Agora ele seria um oficial de navio montando guarda — uma vida dura, sem conforto ¢ mal remunerada. Sua vida atual era dura porque ele era o capataz impiedoso de si mesmo; mas néo era mal Temunerada, ¢ ere confortivel na medida em que tinha o bom sen- s0 de fazé-la assim. Mas isso nfo significava grande coisa. Malcolm nao era um hhomem que soubesse como tomar as coisas confortéveis, quer pa- ra si préprio quer para os outros. Sua esposa, invélida desde 0 nascimento do filho no primeiro ano de casamento, montou casa fnuma estagdo balnedria, onde ele a visitava com razodvel fre- Qiiéncia nos fins de semana, Ela temia essas visitas © ele as odia- ‘va; porém, ele era um homem com um inflextvel senso de dever. ‘Assim, os dois continuaram ano ap6s ano, até que o faiscante ca- belo vermelho comecou a se mesclar de grisalho, a recuar nas témporas, ¢ seu temperamento igualmente se acalmou um pouco; cle se congratulava por ter conseguido 0 domfnio de si mesmo. ‘Os anos de semicelibato nfo tinham sido féceis. Dotado por Natureza de uma integridade ¢ honradez impetuosa, a idéia de tama ligacdo ilfcita parecia-the detestével. Além disso, havia nele © orgulho de sua vontade imperiosa, que o levava a sentir um prazer perverso em lutar com as bestas selvagens de Efeso. E, quanto mais a Natureza tentava forcar a porta do seu c6digo mo- ral, mais firmemente ele a trancava. O resultado era admiravel do 16 pponto de vista moral, mas isso nio adocava 0 seu temperamento, znem 0 tomava um colega mais agradével ou uma companhia mais cordata. Cabelo ruivo néo se adapta bem com repressfo, ¢ uma inquieta irvitabilidade foi a recompensa da virtude. Como se no bastasse, ele nio dormia direito, o que nio melhorava a situacio, somente sua tremenda vitalidade ¢ uma estratura fisica robusta permitiam que desse conta do trabalho no perfodo letivo. 3 alunos o odiavam porque Malcolm 0s intimidava era de uma exigéncia impiedosa, embora pudesse manter uma discussio acirrada com o colega que desse uma nota injusta nos exames. As cenfermeiras tampouco 0 apreciavam porque ele era exigente de- ‘mais; ainda assim, movia céus e terras para favorecé-las com uma licenca para tratamento de satide, quando julgasse necessério © afastamento. Os pacientes se aterrorizavam com seus modos bruscos e dsperos; no entanto, Malcolm néo se poupava, nem a0 hospital, para atendé-los bem. Somado a tudo isso, grande parte do seu trabalho consistia em separar os casos de histeria dos ca- 508 organicos — 0 que ndo contribufa para aumentar-Ihe a popula- ridade, principalmente quando 0 dever 0 obrigava a ordenar 20 Paralftico profissional que pegasse a sua cama e caminhasse. ‘Ano apés ano, ele se acomodava em quartos mobiliados. Li- vwros, papéis e espécimes em varios estados de conscrvacio acu- mulavam-se & sua volta. Malcolm permitia que a senhoria 0 ali mentasse como quisesse ¢ que o alfaiate o vestisse como Ihe aprouvesse. Era menos do que meia vida, porém aquela metade ‘que vivia, embora extraordinariamente estéril para ele préprio, era frutffera para os outros. O cego, 0 coxo, 0 mudo, 0 epilético ¢ © lunético ficavam livres de seu cativeiro ¢ retomavam a uma vi- a normal quando esse homem, que nunca empunhava pessoal- mente um bisturi, cava ao lado do cirurgiio € 0 dirigia até onto exato do cérebro onde estava a raiz do problema que se manifestava de tantas ¢ tio bizarras maneiras. O que ele néo sabia sobre o funcionamento do cérebro nfo .valia a pena saber, mas 0 que ele sabia sobre a mente em si era espantosamente pouco, Malcolm retomou seu passeio caminhando a passos largos, a0 lado da correnteza escura da gua, e imaginando por que nunca the ocorrera usar esse caminho antes, em vez de ir pela passagem subterrinen superlotada, Ele nfo se preocupara em ter um carro W7 Préprio nos tltimos anos, preferindo usar os téxis. Um carro seria luma amolacio intolerével na érea da cidade © no estacionamento do hospital, congestionado pelos magnificos vefculos do corpo docente mais jovem. Esses professores mal podiam manté-los; po- rém tinham de possuf-los a bem do prest(gio, enquanto ele, que possufa todo o prestigio de que alguém pudesse precisar, usava 0 thx. Malcolm gostava de andar. Sempre que descia para ver a mulher, passava o dia numa grande caminhada pelas chapadas gredosas. Regressando a noite, cansado por andar ao ar livre © pelo exercicio a que nfo estava acostumado, adormecia numa poltrona perto da lareira, nunca Ihe ocorrendo a ironia que havia nesse fato, Muitas vezes, ele pensara em tirar umas férias de an- darilho, mas de certa maneira jamais conseguira tirar férias. Quando o hospital tinha seu quadro de funcionérios desfalcado, durante todo 0 més de agosto, Malcolm fazia o trabalho de tés homens — para consternacio de velhos doentes crénicos, acostu- mados com métodos mais civilizados. Ele nao tinha nenhum des- canso nem outros interesses que os de sua profissio e o estudo da literatura internacional sobre a sua especialidade. Era uma vida severa, sem alegria e dirigida com determina fo. A maior parte do seu trabalho consistia em diagnésticos; na sua especialidade pouco tratamento era possfvel. Existira uma época em que ~ to improvével quanto isso pudesse parecer a seus colegas — ele se preocupava com 03 seus casos. Porém, nos Uiltimos anos, comegara a aceitar 0s atos de Deus com certo grau de filosofia, extemando um diagndstico ¢ um prognéstico ¢ tiran- do o assunto de sua mente — exceto quando se tratava de criancas. ‘Algumas vezes, considerou a hipétese de que devia recusar-se a tender criangas; todavia isso no era poss{vel em seu trabalho hospitalar, onde era obrigado a aceitar todos os que viessem. As criangas 0 preocupavam, Ele percebia o primero e mais leve sinal de problema em algum jovem, ainda saudavel, ¢ o futuro surgia diante dos seus olhos ¢ o assombrava durante dias. Conseqiiente- mente, sua maneira de lidar com criangas era ainda mais infeliz do que a de lidar com adultos. A crianca gritando, a mie indigna- da e os estudantes desgostosos formavam um quadro singular- mente desagradavel, sobretudo por se acreditar que do seu julga- 18 mento nio havia apelo a ser feito, nem ao bomem nem a Deus: se ele dissesse que uma crianga cresceria como uma aleijada, assim seria. Algumas vezes, até parecia que ele estava muito mais dan- do uma sentenca do que um parecer. Malcolm era um homem que habitualmente andava depressa, correndo pelos corredores do hospital cuidando de suas tarefas, deixando aos condutores de cartinhos e aos padioleiros o trabalho de se desviarem. Ele estava abrindo caminho na sua maneira ha- bitual, ultrapassando e deixando para tris todos os outros pedes- tes que seguiam na mesma dirego, quando notou que uma figura indistinta diante dele no havia sido ultrapassada, mas mantinha firmemente a distincia. Ele devia ter notado isso inconsciente- mente durante algum tempo, pois quando deu por si, percebeu que a estivera seguindo por uma distincia consideravel. Malcolm ficou intrigado, pois isso se parecia com um sonho que hé anos se repetia, sempre que estava mais extenuado do que 0 normal pelo excesso de trabalho, Nessas ocasides, seu sono, em geral insuficiente, tomava-se insatisfat6rio tanto na qualidade como na quantidade. Malcolm permanecia deitado, entre o sono ¢ a vigilia, num estado curioso de devaneio: nao ficava adormecido o suficiente para aprofundar~ se no sonho ¢ nem suficientemente acordado para saber que se tratava de um sonho. Passava a noite transpondo de um lado para © outro as frontciras do sono. Algumas vezes, sonhava realmente; outras, observava o sonho num estado mais ou menos consciente, ‘admirando 0 espetéculo de sombras como se estivesse assistindo a um filme. Invariavelmente, esses sonhos eam paisagens campestres € marftimas; com freqiiéncia, uma combinagio das duas. Ele atri- bua o fato as suas andancas pelas chapadas quando visitava a es- posa. Nessas cenas, nunca havia ninguém, com excegio de uma ‘ocasional personagem encapotada de chapéu de abas largas. Essa personagem ele relacionava com 0 aniincio de vinho do porto Sandeman, cujas luzes coloridas brilhavam intermitentemente ‘um edificio, em frente ao qual passava, a0 fazer 0 percurso entre seu consult6rio na Wimpole Street e seus alojamentos em Pimlico. Embora a psicologia fosse para ele apenas uma linha lateral, usa- da somente para diagndsticos diferenciados, tudo aquilo Ihe pare~ 19 ola simples e dbvio, Malcolm tinha suficiente conhecimento préti- 00 das teorias psicolégicas a fim de tracar uma série de simbolos para as chapadas gredosas pontilhadas de bangalds atrés da cida- de A beira-mar e outra série para o antincio tantas vezes visto. Um stmbolo ele atribufa a repress sexual — conjectura prudente no caso da maioria dos cidadios respeitaveis uma hipdtese parti- cularmente segura no caso de um profissional na sua situagio. O ‘outro simbolo ele 0 atribufa ao seu desejo subconsciente pelo es- timulante enunciado daquela forma pitoresca — desejo muito com- precensfvel num homem estafado, dado a preocupacdes. Como ambos esses desejos eram reprimidos sem sombra de concesséo, até mesmo o dr. Rupert Annersley Malcolm, neurologista ¢ endo- crinologista, podia entender que estes se revolviam & sua volta, ‘extravasando-se em seus sonhos. Nunca the passou pela cabeca que pudessem fazer mais do que isso. ‘Ver aquela figura de sonho movendo-se diante dele, na ne~ blina que cobria o calgamento molhado de Londres, como ela 0 fizera tantas vezes através das paisagens oniricas, despertou sua curiosidade. E certo, ele sabia que se tratava apenas de uma mu- ther numa capa impermedvel, mas mesmo assim emocionava-o ver sua fantasia subconsciente exteriorizada dessa maneira. ‘A pessoa caminhou umas vinte jardas & sua frente, manten- do a distincia. O dr. Malcolm aumentou a velocidade para empa- relhar com ela e observé-la mais de perto. Contudo, ainda que Malcolm se movesse to répido quanto possvel, esse esforgo nio ‘aumentava a sta velocidade, nem reduzia perceptivelmente a dis- tancia entre ele ¢ a pessoa que agora estava perseguindo ~ pois 0 fracasso em conseguir seu propésito, por causa do seu tempera- ‘mento intrativel, se havia transformado de um interesse passagei- ro numa firme determinacio. ‘Seu primeiro impulso foi dar uma corrida, mas sabia que es- sa conduta nfo passaria despercebida dos agentes da lei ¢ da or- dem. Malcolm néo desejava ir parar numa delegacia, onde difi- cilmente aceitariam, como justificativa daquele comportamento tltrajante, a explicagéo de que simplesmente analisava um de seus préprios sonhos. Por essa raziio, insistiu determinadamente, seguindo-a passo fa passo de perto, convicto de que poderia, com o tempo, andar 20 mais depressa que qualquer mulher. Malcolm era um homem que néo se interessava pelas mulheres. E as mulheres, tanto quanto sabia, também no se interessavam por ele. Aquela mulher, en- tretanto, continuava a manter-se adiante e, embora estivesse len- tamente diminuindo a distincia entre eles, era Sbvio que, mesmo se as luzes do sinal de transito o favorecessem, seria pouco pro- vével que ele a alcancasse, a menos que o percurso fosse muito extenso. O dr. Malcolm achou que estava dando de si mesmo 0 Ultimo esforgo posstvel sem atrair a atencfo da polfcia. Assim como estava a situacfo, ele notou uma policial, parecendo-se exatamente com a sra. Noé em seu inconveniente uniforme, ob- servando-o desconfiada. Entéo, 0 que tanto temia aconteceu: os fargis deram passa- gem livre para 0 objeto de sua perseguicao, mas mudaram antes que ele pudesse atravessar. Liberado 0 tréfego, passou pela ponte uma massa compacta de carros, ¢ a figura encapotada desapareceu no fog londrino, deixando-o com uma inexplicdvel sensacio de perda, de frustragio e de vazio. Outros cinco minutos em passo mais moderado levaram-no até seus alojamentos na Grosvernor Road, escolhidos por serem baratos, quando ainda lutava para fincar pé em sua profissio, e mantidos por hébito, indiferenca e falta de incentivo para mudar-se. Em seu conforto desleixado, Malcolm se despiu se enxugou, pois transpirara profusamente por causa de seus exerc{cios na amena quentura da noite. Entio, ¢ s6 entio, pensou em maravilhar-se com a cadéncia em que a mu- Iher se movera. ‘Na cama, tarde da noite, ficou imaginando se aquele exces- s0 de cansago seria motivo suficiente para a figura encapotada surgir na paisagem do sonho, no qual caminhara quase todas as noites da tiltima quinzena. Todavia, aquela noite Malcolm passou mpidamente para um sono mais normal do que os que tivera du- ante muitos dias. Era como se todo 0 tédio abafado de sua exis- ‘Sncia insfpida se houvesse desfeito com seu inusitado interesse pela figura de uma mulher desconhecida divisada na penumbra da neblina. ‘Terminado um perfodo letivo, saiu no dia seguinte para ir passar o fim de semana com a esposa. A pobre alma, contudo, estava num dos seus maus perfodos ¢ definitivamente néo deseja- 21 ‘va a eva companhla, Desia forma, o dr. Malcolm ficou livre para dar sua costumeira caminhada ¢ para estendé-la além do limite Ihabitual. Ao anoitecer, voltou exausto para a vila de tijolo ver- malho, pois 0 p.sseio fora indevidamente prolongedo, uma vez que nfo precisava fazer a refeicio notuma com a esposa ¢ sua dama de companhia. Haviam deixado uma garmafa de leite ¢ uns ‘sandufches para ele 20 lado do fogo abafado da fornalha, em seu dormitério. Como os sandu(ches estivessem secos e crestados nas ppontas, ele se contentou em beber o leite. Em seguida, caiu numa sonoléncia inquieta, na poltrona de vime arrastada para perto do fogo. ‘Néo se tratava de uma cadeira especialmente confortivel; ‘além disso, ela estalava com a sua respiragdo e isso o perturbava. Mas, a despeito de tudo isso, Malcolm pereebeu que 0 sonho que o frustrara durante a semana inteira estava para chegar. Resistin~ do 2 todas as tentagées de se mexer © de despertar, pOs-se a ob- servar as imagens que se deslocavam no limiar do sono, forman- do-se, dissolvendo-se tomando a moldar-se em formas cada vez mais definidas. Primeiramente, as figuras relacionavam-se com fragmentos a vida cotidiana: a senhoris; o faxineiro do laboratério do hos~ pital; a dama de companhia da esposa; a mulher mais velha que tera meio enfermeira, meio governanta. Ele esperou pacientemen- te, sabendo que se tratava de um estratagema da sua mente para desoprimir-se das impresses superficiais, antes de se abrir para camadas mais profundas. Algum resquicio retardatério dx mente consciente, disciplinada pelo treinamento cientifico, reparou que cle assistia a uma procissio de mulheres maduras, desgraciosas sem charme, Em seguida, aparece a policial que ele vira no ‘Aterro, e suas esperangas recrudesceram; todavia, ela apenas to- ‘mou seu lugar naquele desfile. Malcolm foi entio despertado por movimentos no patamar da escada, e ouviu a voz débil e queixosa de sua mulher através da porta aberta do quarto. Evidentemente, estavam passando uma noite diffcil. Seu primeiro instinto foi o de entrar e fazer 0 que pudesse, mas sabia por experiéncias anteriores que isso apenas & ‘aborreceria ¢ emocionaria. Quem cuidava dela era um competente médico da regio, que se incumbiria de contar a Malcolm o que 22 aavia de errado. Através dele, Malcolm poderia fazer o que esti- vesse a seu alcance pela infeliz mulher que alternava os seus dias ‘entre a cama, a poltrona e a cadeira de rodas, desde a malograda tentativa de wazer seu filho & luz. AA ligeira perturbagao fora bastante para acordé-lo tempora- riamente do torpor induzido pelo longo dia passado ao ar livre. Ele acendeu um cigarro e ficou olhando para 0 fogo. Sua mente retornou aquela noite, hé vinte anos, que transformara a vivaz, pequena e infantil crianca que ele desposara numa invélida neu- i6tica, obesa e semiparalftica, Malcolm no imprecava contra 0 destino, j4 hé muito deixara de fazé-lo; simplesmente se sentava om 9 cigaro seso eae os dedos manchados de abacoe refi tia sobre 0 caso, ‘Na realidade, ele no culpava o destino. De uma maneira obscura, culpava-se a si mesmo, como se houvesse cometido al- gum grosseiro erro de julgamento em algum diagndstico. Era ver- dade que ambos tinham desejado ardentemente a crianga que cau- sara todo 0 transtomo, mas isso nilo parecia fazer qualquer dife- renga. No fim, a responsabilidade fora sua: nio fosse por ele, no teria havido a erianga —a I6gica desse fato era irrefutével. Contu- do, de nada adiantava pensar no que poderia ter sido. Esse era um deleite dispendioso que reclamava 0 seu prego em dias de depres- . Apenas por um rigoroso controle mental ¢ da imaginagfo, as, bestas-feras de Efeso podiam ser dominadas. Ele descobrira 0 es- tratagema por si prdprio, anos atrés, e sempre se surpreendia pelo fato de que isso nunca tivesse ocorrido a seus colegas do depar- tamento de psiquiatria. Para desviar a mente do tema perigoso, ele levou & meméria a imagem do Aterro do Témisa numa suave ¢ mida noite de in- yerno, As iiltimas folhas caidas das rvores formavam desenhos no chiio, ¢ 0 rio corria rapidamente, sombrio e cheio de remoi- hos. Ele reviveu o incidente na imaginaco, retrocedendo mais ¢ mais em diregio A formatura, a medida que a recordagio lhe vinha 2 mente. Podia ver a cena da entrega de prémios aos estudantes — ‘5 alunos subindo para pegar seus diplomas — inexperientes e de- sajeitados, garotos imaturos, encarregados de responsabilidades grandes demais para serem licitamente atribuidas a qualquer ser humano capaz de errar. Malcolm considerou os seus rostos € 23 de saber em quantos deles confiaria para armar uma ra- ftoalra, 20 fossem deixados a sds para assumir a responsabilidade palo desfecho de vida e de morte. Fora um célculo errado da parte do seu prépriv jrofessor de obstetricia que havia resultado em rufna no quarto 20 lado. Malcolm tornou a concentrar-se no passado © pensou na fa- co intrigada da velhinha, quando a confundiu com uma de suas pacientes, ¢ no rosto debochado do filho dela, bem consciente de ‘algumas das implicagées de sua especializacio, que exigiam uma mudanga da rotina. Lembrou-se de como, com os nervos em fran- galhos, ouvira o professor de obstetricia desculpar-se, atribuindo f causa do desastre a alguma predisposicéo — quando, na verdade, esta fora precipitada por sua falta de cuidado. E refletiu com amargura sobre os ideais e 0 autocontrole de sua adolescéncia © primeira juventude, que nfo serviram para poupar-lhe nem humi- Ihagées nem autocensura. Mais uma vez, arrastou a mente de volta, mantendo-a sob controle, e imaginou o rio, o Aterro ¢ a répida e indistinta forma fem movimento. Segundo um floreio qualquer de pena de alguma escola poética, ele a denominou de “a formosa que acena”, em- bora Deus soubesse que ela nfo Ihe acenara, ¢ ele ficaria muito indignado se ela o tivesse feito. Além disso, ele se preocupava em imaginar se sua aparéncia lhe parecera menos sofrivel. Fle imaginou-se 2 andar atrés dela como fizera naquela noite. Desta vez, porém, néo houve sensago de pressa ¢ de fra- ‘caso, apenas 0 transporte veloz do sonho, © Aterro e as suas Iu- zes diminufram, e ele estava, uma vez mais, na ampla paisagem do sono, sem cor como 0 indistinto prateado da luz que banha 0 ‘campo ou o mar. Entretanto, néo havia visio. Ela havia desapare- ‘cido, Mantendo-se de maneira desesperada no limiar do sono, ele tentou conscientemente produzir uma forte impresso na paisagem indistinta, mas ela o burlou e ameagou tomar-se um pesadelo. Entéo, o encanto rompeu-se pela voz da dama de companhia de sua esposa tentando fazer-se ouvir ao telefone do vestibulo, ¢ ele se viu novamente bem acordado. (0 dr. Malcolm esperou. Ouviu um carro na mua, passos na escada, um murmirio de vozes no aposento ao lado; contudo, no se mexeu, Apenas quando escutou a porta do quarto se abrir uma ‘vez mais, ¢ um passo pesado no patamar das escadas, levantou-se , movendo-se sorrateiro como um gato, abriu a sua prépria porta. Silenciosamente com um aceno, pediu para seu colega médico entrar. Entio, na ténue claridade do fogo que se consumia, pois no ocorreu a Malcolm acender a luz, os dois homens se encara- © outro, entretanto, conhecia o marido de sua paciente hé anos ¢ estava bastante acostumado a varias das suas menores ex- centricidades de que era inconscientemente culpado. Ele apenas péde ver na penumbra o pélido contomo quadrado da face bem talhada, a linha alta do cabelo escovado para tris ¢ o brilho dos penetrantes olhos claros. Quando Malcolm estava pensando, seus olhos lembravam os de uma serpente prestes a dar o bote. A per- pétua vivacidade do homem sempre pareceu ser a sua qualidade mais notfvel agora, as duas horas da madrugada, num quarto escuro em que evidentemente estivera cochilando, ele estava tio stento como sempre. — Bem ~ disse Malcolm, imperturbado pela necessidade de qualquer uma das pequenas cortesias comuns aos relacionamentos Todavia o dr. Jenkins estava habituado a isso. — Nada de grave — respondeu ele. ~ Sobretudo os nervos, mas naturalmente isso agrava os outros sintomas. Se néo se importa com a minha franqueza, penso que foi a perspectiva da sua visita o que a con- trariou. Na verdade, isso acontece cada vez que voc8 vem. Sé que, geralmente, nio chega ao climax senio depois da sua parti- da. Se eu fosse vocé, restringiria as visitas as imprescind{veis, como o Natal, o aniversério dela, ¢ assim por diante, vocé sabe. — Percebo ~ respondeu 0 outro secamente. — Muito bem, fa- rei como diz. Despediram-se, ¢ o dr. Malcolm voltou & sua cadeira diante do fogo que se apagava, imaginando por que nunca Ihe sugeriram snteriormente a solucdo desse purgatétio mensal. ‘Na manhfi seguinte, a sra. Malcolm ainda estava num sono provocado por medicamentos, quando se aproximou a hora de 0 marido partiz. O dr. Malcolm trocou algumas palavras com a da- ma de companhia. Suas explicagées foram aceitas com tal ar de devota satisfagio que ele sentiu um violento golpe de consciéncia 25 {quanto 20 fato de haver se empenhado tanto em tomar suas visitas aoeitéveis. COlhando pela janela do trem em sua viagem de volta & cida- de, perguntou-se 0 que poderia ter feito ¢ 0 que nfo fizera, Ho- nestamente, pensava no ter feito nada de reprovavel no decurso de todos esses longos anos. Por fim, desistiu do problema, consi- derando-o insolvel. Dirigiu-se, portanto, para o hospital, onde, ante sua presenga, os alunos se dispersaram como gansos ame- drontados, © um secretirio clinico deixou cair o Iépis e se pos & rmisturar stabalhoadamente os papéis, por puro nervosismo. Os pacientes foram tratados um pouco melhor, mas nfo muito. De- pois de uma manhé exaustiva para todos 0s envolvidos, Malcolm fomou uma xfcara de café ¢ comeu um sandufche no bar da esta fo subterrinea do trem. Voltou entio para os seus aposentos na Wimpole Street, onde, com algumas variantes, a rotina da manhi foi repetida. Alguns médicos afirmam que os pacientes que tém no hospital recebem exatamente o mesmo tratamento que oS pa- cientes particulares. O dr. Rupert Malcolm possivelmente nio po- deria fazer mais por nenhuma das duas classes do que j fazia, ‘mas uma das caracterfsticas do homem era que ele agia precisa ‘mente da mesma maneira, sem sequer pensar nisso. O principe te- tia de entrar e sair das suas roupas com a mesma presteza que 0 pobre, ¢ ele extrafa da princesa as mesmas confissdes relutantes que as da faxineira, e com os mesmos métodos implacéveis. CAPITULO 1 AA tinica distragio social do dr. Rupert Malcolm consistia em ouvir ou em dar palestras sobre a sua especializacio, ou sobre as- suntos correlatos, diante de sociedades de eruditos. E, como inva~ lavelmente ele se retirava ao findar a parte douta do evento para ter infeio a parte social, divertia-se muito pouco. Contudo, os modos bruscos, intimidativos e 0 semblante severo tornavam im- provavel que se divertisse muito mais se resolvesse ficar. (© longo dia que se seguiu 20 retomo da praia culminou nu- rma dessas noites de cdificagio mitua entre eruditos. Malcolm saiu tio logo péde fazé-lo com decéncia, tomou uum téxi e voltou aos seus aposentos, para onde subiu exausto pelas escadas cente- nirias. A senhoria atual era sobrinha da anterior, porém a situa- ‘slo havia permanecido a mesma. Ocasionalmente, cla tentava ar- rumar os cémodos do médico, mas retirava-se intimidada pela sua carranca. Entio, contentava-se em pinté-los por partes, nas oca- sides em que ele se ausentava para ir & cidade, a beira-mar. Malcolm nem olhou a0 entrar naquele eémodo encardido com a mobflia fora de moda. Arremessou o chapéu, a maleta e, logo em seguida, 0 sobretudo sobre a mesa. Acomodou-se na ‘gasta poltrona ao lado da larera, avivando com a ponta do sapato © fogo para o qual se pés a olhar. Desde que safra do trem, era o primeiro momento em que tinha tempo para pensar no seu pro- biema insolivel. Ficara admirado com o fato de a sua libertaco daquilo que sempre aceitara como um dever a ser rigorosamente cumprido ndo ter feito 0 préprio chio se abrir sob seus pés. Havia suportado todos aqueles Jongos anos de um casamento de meatira, sustenta- do pela certeza de que sua esposa necessitava dos seus cuidados. E, agora, descobria que essa era uma crenca infundada. Sabia que 27 devia sentir-se aliviado, mas em vez disso sentia-se como um cio ppardido. © bomem que lhe dissera aquelas poucas palavras seu fatas, no quarto iluminado pela lareira, nem de longe imaginava 0 fefeito que elas haviam causado no seu ouvinte. Nem o tom da vor, nenhum estremecimento do rosto o trafram: seu semblante mantivera-se inalterado, duro como granito. Entretanto, com 0 término de uma vida, teria de encontrar os meios que Ihe permi- tissem comecar uma nova. Rupert Malcolm sentiu-se como um arco & deriva, sem remos e sem Ancora, a mercé dos ventos. Seu ‘e6digo de honra ainda lhe impunha essa fidelidade inflex‘vel. ‘Agora sabia que tudo o que a invélida da cidade praiana desejava feram os confortos proporcionados liberalmente pelos seus rendi- mentos. Do homem, nada queria, a no ser que a deixasse em paz. ‘0 cachorrinho, os periquitos australianos e a fiel dama de compa~ nhia satisfaziam-lhe todas as necessidades emocionais. Quando lum cachorro morria, ou de vez em quando um periquito, eles feram substitufdos. E, depois de um breve intervalo repleto de 1é- grimas, a vida continuava como sempre na agraddvel casa ensola- rada que dava para o mar. A tinica influéncia perturbadora ~ ele préprio ~ agora fora removida. Eo dr. Malcolm podia imaginar as ‘duas mulheres cantando o hino “*Agora agradegamos todos ao Se- hor”, como faziam todas as noites. [A janela de cortinas corridas deixou-o irritado. Atravessou 0 quarto e puxou aos arrancos a sarja verde empoeirada para fe- ch-la. Deteve-se com a mio na segunda cortina, olhou para a lua brilhante e para o rio sombrio. Exatamente do lado oposto dos seus alojamentos, na outra margem do rio escuro, um beco sem aida desembocava na continuacio do Aterro. No fim desse beco, notou algo que nio havia pereebido antes ~ a fachada iluminada de uma pequena igreja. Malcolm podia ver o contorno circular da jjanela que dava para o ocidente, porém se ostentava 0 vidro colo- Fido de uma religiio exética ou o vidro transparente de uma reli- giflo singela, isso nfo podia discernir Aquela distincia. Imobili- zow-se fitando a igreja ainda segurando a cortina. E imaginou que jgostaria de conhecer 0 tipo de fé cujos adeptos cumpriam suas devogGes religiosas aquela hora da noite. Ele supunha que fosse tuma igreja catélica, pois 0s protestantes cumprem os deveres reli- giosos durante as oito horas do dia, Olhando para a facha- 28 4a iluminada, atrés da qual, presumivelmente, as pessoas estariam adorando 0 Criador, maravilhou-se com 0 fato de as pessoas obte- rem algo da religido. Ele achava que elas conseguiam algo, caso contrério néo se apegariam a uma crenca. Contudo, a natureza desse algo estava além da sua compreenséo. A seguir, enquanto observava, a luz se apagou na fachada distante e, aceitando a su- gestio, ele mesmo foi dormir. Na cama, percorreu novamente a regio cinza-prateada que fica entre 0 sono e a vigflia, mas nfo teve companhia. © fato de ficar com os fins de semana livres deixou Mal- colm com uma vaga sensacio de liberdade ¢ alfvio. Como sentisse falta dos passeios pelas dunas, pensou em viajar para 0 campo, mas de certa forma nunca chegou a fazé-lo. No sabia para onde ir, ow 0 que fazer, ou como comecar. Assim, limitou-se a se re- volver numa érbita ainda mais limitada. Fez uma tentativa fracas- sada de se distrair com a leitura de um romance modero, porém logo achou melhor deixar as coisas como estavam. Foi A National Gallery, mas se surpreendeu estudando o equilfbrio endocrinol6gi- co dos nus. Dessa maneira, decidiu que tudo deveria prosseguir ‘como antes e aceitaria a vida como Ihe viesse, pensando nela 0 menos possfvel. Ainda sonhava com paisagens, apesar de a Es- cola de Medicina estar fechada para as férias e, por conseguinte, 0 trabalho ser consideravelmente mais fécil. Isso 0 preocupava um pouco, pois se agora se sentia assim, como seria quando 0 novo erfodo letivo estivesse no auge? Subitamente, ocorreu-lhe que a fadiga adicional por causa das aulas e conferéncias poderia servir para trazer de volta a figu- 1m encapotada dos seus sonhos. Com estranheza, se surpreendeu sguardando ansiosamente 0 infeio das aulas, contando os dias. E percebeu o quanto a idéia da mulher, cuja face jamais vira, estava ‘tomando conta de sua imaginagdo. Ela até mesmo o estava con- solando por ter arremessado suas pobres pérolas para quem no teriam qualquer serventia. (© dr. Malcolm descobriu que a melhor maneira de adorme- cer era imaginar aquela caminhada pelo Aterro, perseguindo a mulher encapotada. Nunca tentava alcancé-la e ver seu rosto — re- ceava fazé-lo —; na verdade, tinha a certeza de que ficaria decep- cionado, No entanto, sentia que na figura encapotada havia en- 29 ‘ecatrado uma eapécie de guia para atravessar o emaranhado da vida pois, om esséncia, ele era uma alma simples, a despeito de seu ofrebro privilegiado. ‘A fantasia da mulher encapotada assumiu proporgées cada ‘ver maiores, & medida que, noite apés noite, com infalfvel regula- Hdade, ele seguia o mesmo percurso no reino do sono ~ 0 cami- tnho a0 longo do Aterro do Timisa com as érvores desfolhadas de tum lado ¢ a escura correnteza cintilante do outro. E sempre, mais cedo ou mais tarde, a figura encapotada surgia na dianteira ¢ ele ‘a seguia com intenso alfvio para dentro do pafs do sono. ‘Em breve, percebeu um fato curioso. A ilitima coisa que fa- ia antes de se deitar era abrir as cortinas para deixar entrar 0 ar. ‘Quando olhava para o outro lado do rio, via que nem sempre 2 fachada da igreja do lado de Surrey estava iluminada. Parecia nfo hhaver uma explicagSo para 0 hordrio em que ela ficava com as lu- zes acesas. Isso acontecia freqientemente & uma ou As duas horas da madmagada. Notou que nessas ocasiGes nunca podia dormir en- quanto a luz do outro lado do rio nfo se apagasse. Algumas ve- zes, quando o sono queria venct-lo, soerguia-se na cama até con seguir olhar para fora da janela. Observava ¢ ficava esperando. ‘Assim que a luz se apagava, deitava-se nos travesseiros na ¢ pectativa: ¢ entio, em mais ou menos vinte minutos, seguia a ti- tha da figura que caminhava & sua frente ¢ adormecia. Reparou que, quando dormia dessa maneira, 0 sono era especialmente re- vigorante. As vezes, acordava com uma estranha sensagio de fe~ licidade — uma sensagdo que hé muito tempo deixara de sentir. "A medida que os dias se passavam, Malcolm tomou-se cada ‘vez mais obsedado na busca da mulher encapotada. Nunca dese~ jou alcancé-la, todavia, se a noite transcorresse sem que avistasse ‘sua figura indistinta, ficava agitado ¢ sentia-se miserével durante todo o dia seguinte. Apenas quando a fantasia tomava a se mani~ festar 6 que a paz de espirito Ihe era restitufda. ‘Mas tratava-se de algo mais do que uma simples fantasia. Ele podia retratar para si mesmo o Aterro na neblina, com a pla~ nicie cheia de drvores e com o remoinhante rio correndo. Imagi- nar, entretanto, a figura indistinta e encapotada nada significava; isso $6 the trazia satisfago quando ela aparecia espontanesment® fem seu devaneio, Nesse caso, por tanto tempo quanto pudesse 30 manter-se no limiar do sono — nem completamente desperto, nem ‘aldo na inconsciéncia -, sentia uma alegria que se transformava fem éxtase, pelo fato de manté-la sob suas vistas. Depois dessas noites, achavam que ele estava mais distrafdo no hospital e que cra mais féeil lidar com ele. Finalmente, as férias terminaram. O perfodo letivo teve inf cio outra vez, ¢ ele se pés a trabalhar com uma energia frenética, tentando cansar-se a ponto de a visio aparecer de verdade em seus sonhos. Entio, quando estava fazendo o trabalho de quase tues homens comuns, um colega adoeceu e ele assumiu os clientes particulares dele. Os dias estavam se alongando, mas o trabalho extraordinério o hospital mantinha-o ocupado até tio tarde que parecia que ja- nnais chegava em casa a nfo ser & luz do dia. O dr. Malcolm pro- netera a si mesmo que, assim que estivesse um pouco menos ccupado, todas as noites iria andando até sua casa, substituindo assim as caminhadas pelas dunas as quais se havia acostumado. Mas, de alguma forma, parecia nunca ter a devida energia para is- 50, depois de ficar de pé nos plantdes ou nas salas de conferén- cias durante horas intermindveis. Dessa maneira, a primavera se adiantou sem que ele notasse Entio, certo dia, saiu para 0 pétio quadrangular do hospital ¢ viu a estrela da noite, a grande Vénus, baixa no céu iluminado relos uitimos raios do pér-do-sol. Com stibita resolugio, decidiu caminhar até sua casa pelo Aterro, embora estivesse exausto. No entanto, alguém o alcangou ¢ retardou; havia papéis do ambulaté- rio que deviam ser assinados. Por isso, quando afinal subiu as es- cadas da ponte que levava a0 Aterro, Vénus jé havia desapareci €o na névoa da noite ¢ a escuridio se insinuava por toda parte. "Malcolm caminhou como se estivesse sonhando. Tantas ve- zes imaginara aquela caminhada que dificilmente saberia, nessa roite, se era fantasia ou realidade. Perscrutando a escurido que 0 envolvia, procurot a indistinta personagem encapotada, porém ela teimou em néo aparecer. Finalmente, desapontado e com os pés

You might also like