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DOMENICO LOSURDO Stalin Historia critica de uma lenda negra Com um ensaio de Luciano Canfora __ Tradugio: Jaime A. Clasen Rg Editora Revan Copyright © 2010 by Domenico Losurdo igo oii: Sone xe una legged vera ~ Caro Etre SpA. 208 ads oii reseaes no Br pel tor: Roven Lid Ness par esta pub cone ee olan apr tiosmecies,eletnicos 0 ia cpa xo, ee ‘sem a autorizagao prévia da Pditora. Tradugio Jaime A, Clase Revisto da traduplo Giovanni Semeraro Revisao Roberto Teixeira Capa ‘Conforme desenho da etigio original de Carooci editor. Ingres athe nanan 3) Bi papel off 75 aps pt clic cm ipo Ties New Roman, eee Divistio Grifica da Editoca Revan. CIP-BRASIL- Catalogagii na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ L998 Lovato, Dntenio, 1981+ a era de uma fend negra / Domenico Lou; cm a ca de nian Carl; tao de eine A Chis. Rio de aero = Revan, 2010. 2° ediglo, margo de 2011. ep “rad de: Sain stra xc an eggend era Inc itr tie ISBN 97888-7106-4119 1, tin Joseph, 1879-195. 2, Chefs de Esa - Cher de Esa» Gate Soci. Bion 3- Uno Sovdea ria 1925-1953. 1 ‘io sath cpm. 47 084 7 CDU: 94(47457) posi astia0 mason ; : : ' Sumario Prefiicio: A virada na histria da imagem de Stain 9 Da Guerra Fria ao Relatério Kruschiov 9 Para uma comparatistica em todo campo 15 1. Como precipitar um deus no inferno: 0 Relatério Kruschiov 19 2.08 Um “enorme, sombrio, aprichoso, degenerado mostro humano” 19 A grande guerra patritien e as “Invengies” de Kruschiov 72 Uina sérte de campanhas de desinformagéo e Operagito Barbarossa 24 O répido detineamento do fracasso da guerra-relimpago 28 A falta de “bom-senso” e “as deportagbesem massa de populagBes intiras” 35, 0 eulto da personalidade na Riissia de Kerenski a Stalin 4 bolcheviques: do conflito ideolégico A guerra civil 47 A Revolugo Russa e a dialtica de Saturn 47 (0 Ministerio do Exterior “fecha as portas” 49 (0 fim da “economia do dinheiro” ¢ da “moral mnercantil” 55 “Ni fazer mais distingdo entre teu e meu": 0 desapareeimento da familia 63, ‘A condenagio da “politica dos chefes” ou a “transformagio do poder em amor” 65 (© assassinato de Kirov: compld do poder ou terrorismo? 70 ‘Terrarismno, golpe de Estado ¢ guerra civil 75 Conspiracdo, infiltragao no aparclho estatal e “linguagem es6pica” 78 Infiluagiio, desinformacio e apelos 8 insurreigio 83 Guesra civil e manobras internacionais 86 Enwre “derrubada bonapartista”, “golpe de Estado” e desinformagiio: 0 caso Tukhatchevski 91 Tres guerras civis 95 3, Entre século XX ¢ longa duragio, entre histéria do marxismo e histo. ria da Risssia: as origens do “stalinismo” 99 4.0 andamento complexo ¢ contradi 5, Recaleamento da histér como monstros gémeos 181 Uma catistrofe anuncisda 99 (O Estado russo salvo pelos que apoiavam a “extingao do Estado” 104 ‘Stalin e a conclustio do segundo perfoxio das desordens 107 ( Uiopia exaltads ¢ prolongamento do estado de excegaa 109 Do universalismo abstrato’ acusagio de taigio 114 e ‘A dialética da revolugio ea genese do universalism abstrato 117 Universalidade abstrata e terror na Rassia sovigticn 121 (© que significa governar: um atormentado proceso de aprendizagem — 125 io daerade Stalin 131 Do relangamento da “democracia sovisica” & “noite de Sao Bartolomeu 131 Do “democratismo socialists” ao Grande Terror 139° Do “socialismo sem ditadura do proleariado” wo atarraxamento da Guerra Fria 141 Burocratismo ou “fé fervarosa"? 144 ‘Um universo concentracionériorico em contradigbes 151 Sibéria czarista, “Sibérin” da Inglaterra Liberal e Gulag soviétieo 159¢ (0 universo concentracionério na Rissia sovitica eno Ill Reich 161 Gulag, Konzenitrationslager e terceiro ansente 166 * © despertar nacional na Europa oriental ¢ nas coldnias: duas respostas ‘contrérias 170 ‘Totalitarismo ou ditadura desenvolvimentista? 174 e construgfo da mitologia. Stalin e Hitler Guerra Fria e reduetio ad Hitlerum do novo inimigo 181 O culko negativo dos hertis 184 (0 teorema da afinidade eletiva entre Stalin ¢ Hitler 187 ‘O holocausto ueraniano como equivalente do holocausto judaico 198 ‘A carestia terrorista na hist6ria do Ocidente liberal 205 ‘Simetrias perfeitas ¢ autoabsolvigGes: antissemitismo de Stalin? 209 Antissemitismo e racismo colonial: a polémiea Churchill-Stalin 214 ‘Trotski ca acusagio de antissemitismo a Stalin 217 Stalin e a condenagio do antissemitismo czarista enazista 220 Stalin ¢ 0 apoio & fundagio e & consolidagio de Israel 225 ‘A vitada da Guerra Fria a chantager 20 casal Rosenberg 230, Stalin, Israel ¢ a comunidade judsica da Europa oriental 233, A questio do “cosmopolitismo” 237 Stalin na‘orte” dos judeus, os judeus na “corte” de Stalin 242 De Trot i a Stalin, do monstro ‘semita’ ao monstro ‘antissemita’ 245 6. Psicopatologia, moral e histéria na leitura da era de Stalin 247 Geopolitica, terror e ‘paranoia’ de Stalin 247 ‘A ‘paranoia’ do Ocidente liberal 253, Imoralismno ou indignagio moral 256 Arreductio ad Hitlerum eas suas variantes 263 Conflitos trigicos e dilemas morais 269 A Katyn soviética e a ‘Katyn’ estadunidense ¢ sulcoreana 274 Inevitabilidade e complexidade do jufzo moral 277 Stalin, Pedro o Grande e 0 “novo Lincoln” 278 7. A imagem de Stalin entre histéria e mitologia 285 As diversas fontes histéricas da atual imagem de Stalin 285 As vicissitudes altemadas da imagem de Stalin 287 Motivos contraditérios na demonizagio de Stalin 293 Luta polftica e mitologia entre Revolugio Francesa e Revolugio de Outubro 296 8, Demonizagio e hagiografia na leitura do mundo contemporineo 301 Do esquecimento do segundo perfodo de desordens na Réissia ao esquecimen- to do Sécnlo das humilhagées na China 301 0 recalcamento da guerra ¢ a produgio em série dos monstros gemeos de Hitler 307 Socialismo e nazismo, asianos ¢ angloceltas 311 ‘A Naremberg anticomunista e a negagio do principio do tu quoque 315 ‘Demionizagio c hagiografia: o exemplo do “nnaior historiador mederno vivo” 321 Revolugies abolicionistas edemonizagio dos “brancéfagos” edos bésbaros 324 ‘A histéria universal como “groteses vicissitude de monstros” € como “tera login”? 327 De Stalin a Gorbatchov: como acaba um império—de Luciano Canfora 335 Bibliografia 351 indice de nomes 373 ‘ See Prefacio A virada na histéria da imagem de Stalin Da Guerra Fria ao Relat6rio Kruschiov Manifestagéies imponentes de pesar acompanharam o desaparecimento de Stalin, Enguanto ele agonizava, “mithdes de pessoas apinbaram-se no centro de Moscou para prestar a tltima homenagem" ao lider que morria, Em 5 de tmargo de 1953, “milhes de cidadios choraram a sua perda como se Fosse ‘um luto pessoal”.' A mesma reago verificou-se nos recantos mais remotos do imenso pats, por exemplo, numa “pequena aldeia” que, assim que fora informada do acontecido, caiu num Luto espontineo € uninime.? A “conster- hagio geral” difundiu-se muito além das fronteiras da URSS: “Nas ruas de Budapeste e de Praga, muitos choravam”.” ‘A milhares de quilémetros do campo socialista, também em Israel a re- ago de pesar foi getal: “Todos as membros do MAPAM, sem excluir nin- ‘gusm, choraram”, ¢ trataya-se do partido ao qual tinkam aderido “todos os primeiros Ifderes” “quase todos os combatentes”. A dor juntou-se 0 medo. 0 sol se pds” ~ foi a manchete do jornal do movimento dos kibbutz, al Ha- mishmar. Tais sentimentos foram por algum tempo compartilhados por re- presentantes de primeiro escalao do aparelho estatal ¢ militar: “Noventa ofi- ciais daqueles que tinham participado da guerra de 1948, a grande Guerra de Independéncia dos judeus, uniram-se numa organizagdo clandestina armada filo-sovigriea [sentio filo-stalinista] e revolucionéria, Destes, onze se torna~ ram depois generais e um tornou-se ministro, ¢ agora sio honrados como pais da patria de Isracl”.* No Ocidonte, niio foram apenas os dirigentes ¢ os militantes dos parti- dos commnistas ligados & Unio Soviética que prestaram homenagem 20 lider desaparecido. Um historiador (Isaac Deutscher), que era um fervoroso admirador de Trotski, escreveu um necrolégio rico de agradecimentos: 1, Medvedev (1977), p. 705; Zubkova (2003), legendas anexadas &s fotos 19-20. 3 Thurston (1996), pp. xiii-xiv. Pej (1971), p. 31 Nirenstein (1997) No decorrer de trés décedas, 0 aspecto da Unio Soviética transformou-se completamente, O mieleo da acio histérica do stalinismo ¢ este: ele encon- trou a Riissia que arava a terra com arados de madeira e 2 deixou dona da bomba atémica, Blevou 2 Russia ao gran de segunda poténcia industrial do mundo e nio se tratou apenas de uma questio de puro ¢ simples progresso material e de organizagio. Nio se poderia obter um resultado semelhante sem uma vasta revolugéo cultural, no decorrer da qual se mandou para a ¢s- cola um pais inteiro para que recebesse uma insirucdo extensiva, Em conclustio, embora condicionado ¢ em parte desfigurudo pela heranga asiética e despotica da Rdssia czarista, na URSS de Stalin “o ideal socialista tinha uma integridade inata, compacta”. Neste balango histérico hijo havia mais lugar para as acusagées ferozes em seu tempo dirigidas por rotski ao lider desaparecido. Que sentido tinha condenar Stalin como traidor do ideal da revolugo mundial e teérico capitu- lacionista do socialismo num sé pais, num momento em que a nova ordem, social se expandia na Europa ¢ na Asia ¢ a revolugao quebrava “a sua casca nacional" Zombado por Trotski como “pequeno provinciano transferido por brincadeira da histéria para o plano dos grandes acontecimentos mundi- ais”,° em 1950 Stalin se tamara, aos olhos de um fildsofo ilustre (Alexandre Kojéve), encarnacda do espfrito hegeliano do mundo ¢ fora por isso chama- do a unificar e a dirigir a humanidade recorrendo, quando necessdrio, a mé- todas enérgicos e combinando sabedoria e tirania na sua agio.” Fora dos ambientes comunistas, ou da esquerda filo-comunista, apesar de grassar a Guerra Fria ¢ arrastar-se a guerra quente na Coreia, no Ocidente a morte de Stalin estimulou necrolgios em geral “respeitosos” ou “equili- brados”, Naquele tempo “ele era ainda considerado um ditador relativamente benigno e até um estadista, e na consciéncia popular persistia a lembranga afetuosa do “tio Joe”, o grande lider de guerra que tinba guiado 0 seu povo & vitdria sobre Hitler e tinha ajudado a salvar a Europa da barbiérie nazista”.* ‘Ainda nio tinham sumido as ideias, as impressties e as emogies dos anos da Grande Alianga contra o TT Reich e os seus aliados, quando ~ lembrou Deutscher em 1948 — “estadistas e generais estrangeiros foram conquistados $ Deusscher (19724), pp. 167-168. £ Trotski (1962), p. 447. 7 Kojeve (1954). * Roberts (2006), p. 3. pela excepeional competéncia com que Stain se ocupava com todos os por- menores téenicos da sua miquina de guerra”? Entre as personalidades favoravelmente afetadas estava também aquele 1, no sett tempo, promovera a interyengio militar contra o pafs nascido da Revolugio de Outubro, isto é Winston Churchill, que a propdsito de Stalin se exprimia respeitosamente assim: “Gosto desse homem’” (J like that man). Por ocasitio da Conferéncia de Teer, em novembro de 1943, 0 esta~ dista inglés saudara 0 colega soviético como “Stalin, o Grande”. Ele era 0 digno herdeiro de Pedro, o Grande, salyara o seu pats colocando-o em com- dig6es de derrotar os invasores."' Averell Harriman, embaixador estaduni- dense em Moscou entre 1943 1946, era faseinado por certos aspectos. Ele sempre tragou do lider soviético um retrato bastante lisonjeiro no plano mili tar: “Considerava-o mais bem informado do que Roosevelt e mais realista do que Churchill, de algum modo o mais eficiente lider de guerra”. Em termos: até enfaticos se expressara, em 1944, Aleide de Gasperi, que tinha celebrado o mérito imenso, histérico, secular, dos exércitos organizados pelo génio de José Stalin”. O reconhecimento do eminente politico italiano nao se Timitou ‘a0 plano meramente militar: ‘Quando vejo que, enquanto Hitler e Mussolini perseguiram os horaens por causa da sua raga, eiaventaram aquela espantosalegistagio antjuaiea que ‘conheceros, ¢ vejo atualmente os russos eompostos por 160 ragas procura- rem a fusto dessas ragas superando as diversidades existent entre Asia © 4 Europa, essa tentativa, esse esforgo para a nificagdo do conséreio hums no, deixai-me dizer: este ¢ eristi, este 6 eminentemente universalisia no sentido do catolicismo,”® Nao menos forte nem menos generalizado era o prestigio do qual Stalin tinha gozado e continuava a gozar entre os intelectuais. Harold J. Laski, que era um expoente de prestigio do partido trabalhista inglés, conversando no outano de 1945 com Norberto Bobbio, tinha se declarado “admirador da Unio Sovietica” € do seu lider, por ele definido como “muito sabio” (erés sage). Nesse mesmo ano, Hannah Arendt tinha escrito que o pals dirigido por Stalin se distinguira ® Deutscher (1969), p. 522. Roherts (2006), p. 273 “Em Fontaine (2005), p. 66; refere-se a um livro de Averell Harriman ¢ Elie Abel. * Em Thomas (1988), p. 78. ® De Gasperi (1956), pp. 15-16. Bobbio (1997), p. 89. pelo “modo, completamente novo e cabal, de enfrentar ¢ resolver os conflitos de nacionalidade, de organizar populagées diferentes na base da ignaldade nacio- nal”; tratava-se de uma espécie de modelo, era algo “a que todo movimento politico e nacional deveria prestar atengao”." Por sua vez, eserevendo pouco antes € pouco depois do fim da Il Guerra Mundial, Benedetto Croce reconhecera a Stalin o mérito de ter promovido a liberdade niio s6 em nivel internacional, gragas 2 contribuigio dada A luta contra 0 nazifascismo, mas também no seu préprio pafs. Sim, quem dirigia a URSS era “um homem dotado de génio politico”, que desempenhava uma fungtio hist6rica positiva em seu conjunto; com respeito A Réssia pré reyolucionéria “‘o sovietismo foi um progresso de liberdade”, assim como, “em relagao ao regime feudal”, também a monarquia absoluta foi “um pro- ‘gresso da liberdade e gerou os ulteriores maiores progressos dela”, As di. vidas do filésofo liberal se concentravam no futuro da Unidio Soviética, mas clas, por contraste, faziam ressaltar ainda mais a grandeza de Stalin: este tinha tomado o lugar de Lénin, de modo que um génio fora seguido por ou- ‘tro; mas que sucessores “a Providéncia” reservava para a URSS?"® ‘Aqueles que, com o delinear-se da crise da Grande Alianga, tinham co- megado a comparar Unio Soviética de Stalin ¢ Alemanha de Hitler, foram duramente rebatidos por Thomas Mann, O que caracterizara o III Reich fora a “megalomania racial” da pretensa “raga dos senhores”, que pusera em ago uma “politica diabélica de despovoamento”, e antes ainda de extirpagio da cultura, nos territérios sempre de novo conquistados. Hitler se ativera 2 mé- xima de Nietzsche: “Se se, quiser escravos, ¢ tolice educé-los como senho- res”. Diretamente oposta era a orientago do “socialismo russo”, que, difun- dindo macigamente instrugo e cultura, demonstrara nfo queter “eseravos”, mas “homens pensantes” ¢, portanto, a serem postos no “caminho da liber- dade”; Entio se tornava inaceitéyel a comparagio entre os dois regimes. Melhor dizendo, aqueles que argumentavam assim podiam ser suspeitos de ‘cumplicidade com o fascismo, o qual declaravam querer conden: Colocar no mesino plano moral o comunismo russo € 0 nazifescismo, como sendo ambos totalitiris, no melhor dos casos ¢ superficialidade, no piot dos casos é fascismo, Quem insiste nesta equiparaczo poxle ber considerar= se democritico, mas na verdade e no fundo do coracio jé é, na realidade, 'S Arencl (1986b), p. 99. ** Croce (1993), vol. 2, pp. 33-34 ¢ 178. coscnmeereoenacnte cisco iascista, © cestamente apenas de modo aparente € no sincero combaterd 0 fascismo, enquanto reservaré todo 0 seu édio ao comunismo.”” E verdade, depois estourou a Guerra Fria ¢, 40 publicar o seu livro sobre 0 totalitarismo, Arendt tinha realizado em 1951 exatamente a operagio denun- ciada por Mann, No entanto, quase no mesmo tempo, Kojéve tinha indicado em Stalin 0 protagonista de uma virada histérica decididamente progressiva ¢ de dimensoes planetirias. Ou seja, no préprio Ocidente a nova verdade ou ‘9 novo motive ideolgico da luta equanime contra as diversas manifestagties do totalitarismo custava a afirmar-se. Em 1948, Laski tinha de algum modo acentuado o ponto de vista expresso por ele tr anos antes. Para definir a URSS, tinha retomado uma categoria utilizada por outra expoente de primei- ra grandeza do trabalhismo inglés, Beatriz Webb, que tinha falado j4 em 1931, ¢ tinha continuado a falar ainda durante a If Guerra Mundial e pouco antes da sta morte, de “nova eivilizagio”. Sim — acentuara Laski ~ com 0 formidavel impulso conferido & promogio social de classes por tanto tempo exploradas ¢ oprimidas, e com a introdugio na fabrica e nos postos de traba- Iho de novas relagées niio mais fundadas no poder soberano dos proprietérios dos mneios de produgio, o pats guiado por Stalin surgira como o “pioneiro de uma nova eivilizagio”. Certamente, tanto uma como 0 outro se tinhar a- pressado a especificar: sobre a “nova civilizago” que estava surgindo pesa- va ainda a “Réssia bérbara”, Ela se exprimia em formas despéticas, mas — sublinhaya particularmente Laski — para formular um juizo correto sobre a Unido Sovietica era preciso no perder de vista um fato essencial: “Os seus Aideres chegaram ao poder num pais habituado apenas @ uma tirania sangui- néria” e eram obrigados a governar numa situagao caracterizada por um “es- tado de sitio” mais ow menos permanente ¢ por uma “guerra potencial ou em. curso”. Alids, em situagdes de crise aguda, também a Inglaterra ¢ os Estados Unidos tinham limitado de modo mais ou menos dréstico as liberdades tradi- cionais."* ‘Ao relatar a admiragio expressa por Laski em relagtio a Stalin e ao pais dirigido por ele, Bobbio escreveu muito mais tarde: “Depois da vitéria con- tra Hitler, para a qual os soviéticos tinham contribufdo de maneira determi- nante com a batalha de Stalingrado, {tal declaragio] nio me causara impres- sto particular”. Na realidade, no intelectual trabalhista inglés os reconheci- ‘mentos tributados 4 URSS e ao seu lider iam bem além do plano militar. Por 4] Mann (1986a), pp. 271 © 278-279; Maun (1986b), pp. 311-312. ‘Webb (1982-1985), vol. 4, pp. 242.6 490 (notas de dirio de 15 de margo de 1931 de 6 de dezembro de 1942); Laski (1948), pp. 39-42 e passim. outro lado, era muito diferente naquele momento a posigio do fil6sofo turi- nense? Em 1954, ele publicava um ensaio que atribufa como mérito da Uni- Fo Sovietica (e dos Estados socialistas) 0 fato de terem “iniciado uma nova fase de progresso civil em pafses politicamente atrasados, introduzindo insti- tuigdes tradicionalmente democréticas, de democracia formal, como o sutré- gio universal e eleigio dos cargos, e de democracia substancial, como a cole tivizagéo dos instrumentos de produgio”; entdo se tratava de derramar “uma gota de leo [liberal] nas maquinas da revolugiio j4 realizada”."? Como se vé, ra longe de ser negativo o jutzo formulado sobre o pats que estava ainda de Iuto pela morte de Stalin. Em 1954, ainda agia em Bobbio a heranga do socialismo liberal. Embora subtinhando com forga 0 valor irrenuncidvel da liberdade € da demoeracia nos ‘anos da guerra da Espanha, Carlo Rosselli tha oposto negativamente os paises Tibctais (A Inglaterra oficial est do lado de Franco, esfomeia Bilbao”) A Unite Soviética empenhiada em ajudar a Repiblica espanbola agredida pelo cismo2” Tampouico se tratava apenas da politica internacional. A um mundo: ccaracterizado pela “fase do fascismo, das guerras impecialistas e da decadéncia capitalista”, Carlo Rosselli opusera o exemplo de umn pafs que, embora estando ainda bem longe do objetivo de um socialismo democritico maduro, tinha dei- xxado 0 capitalismo para tds ¢ representava “um capital de preciosas experién- cias” para quem quer que estivesse comprometido com a construgio de ui sociedade melhor: “Hoje, com a gigantesca experiéneia russa|...] dispomos de ‘um material positivo imenso. Todos sabemos © que significa a revolugao sacia~ lista, a organizagio socialista da produgio”. a Concluindo, para todo um periodo histérico, em cireulos que iam muito além do movimento comunista, 0 pais guiado por Stalin ¢ o pr6prio Stalin puderam gozar de interesse simpstico, de estima e, &s vezes, até de admira gio. E verdade que houvera a grave decepgio provocada pelo pacto com a ‘Alemanha nazista, mas Stalingrado cuidou depois de anuld-la. Por isso, em 1953, ¢ nos anos iimediatamente posteriores, 1 homenagem ao lider desapa- recido unin o campo socialista, parecett a todos reunificar © movimento co- rmunista, apesar das divisbes anteriores, e acabou encontrando de algun mo- do um eco no proprio Ocidente liberal, que estava comprometide numa Guerra Fria trayada por ambos os lados sem exclusdo de golpes. No por caso, no discurso em Fulton, que abriu oficialmente a Guerra Fria, Chur- 18 Bobbio (1997), p. 89; Bobbio (1977), pp. 164 ¢ 280. % Rosselli (1988), pp. 358, 362 € 367, 2 Tbid, pp. 301, 304-306 e 381. aac cops pO chill exprimiv-se assim: “Tenbo grande admiragio ¢ respeito pelo valoses0 ai so © pelo meu corapanhero dos tempos de gers, marechal Stax lin” Nao hi diivida, com o agravamento da Guerra Fria os tons se endure- win cada ver mais. No entanto, ainda em 1952, um grandissimo histori: ar inglés que tinha trabalhado a servigo do Foreign Office, ou s Portanto, “estamos diante de uma marcha triunfal sem precedentes [uk Considero a forga militar dos russos muito baixa, ainda mais baixa do que o Fithrer a considera. Se havia ¢ se hd uma agao segiira, é esta”. Na realidade, a presungio de Hitler nio ¢ inferior; ele se expressara a um diplo- ‘mata bilgaro, algumas semanas antes, a propésito do exército sovietico as- sim: € apenas urna “piada”.” * Ferro (2008), p. 64; Bene’ (1954), p. 151; Gardner (1993), pp. 92-93. © Liddet Hart (2007), pp. 414-415. > Liddel Hart (2007), pp. 417-18. % Goebbels (1992), pp. 1601 ¢ 1609. % Goebbels (1992), pp. 1601-02. » Fest (1973), p. 878 No entanto, desde o inicio os invasores encontram, apesar de tudo, sur- presas desagradéveis: “Em 25 de juno, por oeasiio do primeiro ataque aé- rep a Moscon, a defesa antiaérea se revel to efieaz que desde entio a Luf- waite € obrigada a limitar-se a rafds notumos em quantidade reduzida”.”* Jpastam der dias de guecra para que as cestezas da véspera comecem a entrar emerise. Em 2 de julho, Goebbels anota no seu diério: “Em getal, se comba- te muito dura e obstinadamente, Nao se pode de modo algum falar em pas seio. O regime vermelho mobilizou 0 povo”.” Os acontecimentos se precipi- fam e o humor dos dirigentes nazistas muda de modo radical, como upareee sempre do didrio de Goebbels. 24 de julho: Nao podemos nutrir nenhuma divida sobre 0 fato que o regime bolchevi- uc, que existe hé quase um quarto de século, deinox profundos tragos nos povos da Unido Sovietica (..] Seria, portanto, justo por em evidéneia com ‘grande clareza, diante do povo ales, a dureza da luta que se tava no les- te. E preciso dizer & nagio que esta operagio 6 muito dificil, mas que po- demos superé-lae que.a superareraes.”” 1° de agosto’ [No quartel general do Pubres (..] abertamente se adiite também que se er- ou umm pouco na avatiago da forga militar sovigtca. Os bolcheviques reve- Tam uma resistencia maior do que a que suptinhames; sobretudo os meios rnateriais& sua disposicio sfo maiores do que pensivamos.* 19 de agosto: (© Pubrer est interiormente muito inritado consigo mesmno pelo fato de ter se deixado enganar a tal ponto sobre o potencial das bolcheviques pelos re- Tet6rios [dos agentes alemes enviados] vindos da Unio Sovittica. Sobre- tmdo a sua subestimativa dos eros de combate © da aviagio do inimigo criou-nos muitos problemas. Ele sofren muito por isso. Trata-se de uma eri- se grave [..J. Postas em comparacio, as campanas conduzidas até agora exam como que passes [..J. No que diz respeito 20 oeste, o Fihrer no * Ferro (2008), p. 189. © Goebbels (1992), p. 1619. ** Goebbels (1992), pp. 1639-40. "Goebbels (1992), p. 1645. tem neahum motivo de preocupagio [...J. Com o rigor e com a objetividade nossos de alemties, sempre supervalorizamos 0 inimigo, com a excego nes- te.easo dos bolcheviques.”* 16 de setembro: Calculamos o poteneial dos bolcheviques de mode totalmente errado.® Os estudiosos de estratégia militar acentuam as dificuldades imprevistas com que na Uniio Soviética logo enfrenta uma méquina de guerra poderosa, ex- perimentada ¢ cercada pelo mito da invencibilidade,”* E “particularmente significativa para o éxito da guerra oriental a batalha de Smolensk da segun- da metade de julho de 1941 (até agora permanece, na pesquisa, amplamente coberta pela sombra de outros acontecimentos)”."* A observagio é de um ilustre historiador alemifo, que retata depois estas eloquentes anotagdes de Adidrio escritas pelo general Fedor yon Bock de 20 e 26 de julho: © inimigo quer reconquistar Smolensk 2 todo custo e envia sempre novas forgas. A hipstese expressa por alguém de que o inimigo age sem planes io enicontra verificagdo nos fatos [...J. Constataese que os £1ss0s realiza- ram cm redor da frente construfda antes por mim um novo desdobramento de forgas compacto. Em muitos pontos eles tentama passar a0 ataque, Sur- preendente para um adversério que sofreu tantos golpes; deve possuir uma quantidade incrivel de material, de fato as nossas tropes ainda agora lamen- tam o forte efeito da arttharia inimiga, Ainda mais preocupado, ou antes decididamente pessimista, é 0 almirante Wilhelm Canatis, dirigente da contraespionagem, que, falando com 0 gene ral von Bock em 17 de julho, comenta: “Vejo negro sobre negro”. Nio s6 0 exército soviético nfo debandou nos primeiros dias nem nas primeiras semanas de ataque como, ao contrério, opde “tenaz resisténcia”, sendo também bem comandado, como revela, entre outras coisas, a “decisio de Stalin de deter o avango alemiio no ponto por ele determinado”, Os resul- tados desse astuto comando militar se revelam também no plano diplomséti- co: € exatamente porque “impressionado pelo obstinado choque na drea de ‘Smolensk” que 0 Japlo, ali presente como observador, decide rejeitar 0 pe- © Gochhels (1992), pp. 1656-58 * Goebbels (1992), pp. 1665-66. Liddel Hart (1991), p. 354. * Hillgraber (1991), p. 354 Relatado em Hillgruber (1991), pp. 358-360. dido do IfT Reich de participar na guerra contra a Uniiio Soviética. * A andli- fe do historiador alemao ferrenhamente anticomunista é confirmada plena- mente por estudiosos russos que se distinguiram como campedes da luta contra 0 “stalinismo” na esteira do Relat6rio Kruschiov: “Os planos do Blitz- doreg [ale 1”. Neste contexto iio) jé tinham naufragado em meados de julho! fio parece formal a homenagem que em 14 de agosto de 1941 Churchill ¢ F. 'D. Roosevelt prestam a “espléndida defesa” do exército soviético.” Também fora dos circulos diplomdticos e governantes, na Gri-Bretanha — nos informa ‘uma anotagio de didrio de Beatriz, Webb ~ cidadiios comuns e até de orienta- 0 conservadora mostram “vivo interesso pela coragem e pela iniciativa st preendentes ¢ pelo magnifico equipamento das forgas armadas russas, 0 inieo Estado soberano em condigio de opor-se a0 poderio quase mitico da Alemanha de Hitler” Na propria Alemanha, jé trés semanas depois do inicio da operacio Barbarossa, comegam a circular boatos que colocam radicalmente em diivida a ‘yersio triunfalista do regime. Eo que aparece de um difrio de um eminente intelectual alerito de origem judia: pelo que parece, no leste “sofreremos perdas imensas, terfamos subestimado a forga de resisténcia dos russos”, os quais “Seri- ‘am inexaurfveis em homens e material bélico”.** Durante muito tempo lida como expres militar ou diretamente de confianga cega nos confrontos do Ii Reich, 0 comportamento extremamente cauteloso de Stalin nas semanas que prece- dem 0 inicio das hostilidades aparece agora numa luz totalmente diferente: A concentragaio das forgas da Wehrmacht ao longo da fronteira com a URSS, a violagio do espago aéreo soviético ¢ numerosas outras provocagbes tinham uma tnica finalidade: atrair 0 grosso do Exército Vermetho © mais perto possivel da fronteira. Hitler pretendia vencer a guerra numa tinica gi- gantesca batalha”. Até valorosos generais se sentiram atrafdos para a armadi- Iha e, em previsio da irrupgio do inimigo, fizeram presse por um desloca- ‘mento em massa das tropas para a fronteira. “Stalin tejeita categoricamente o pedido, insistindo na necessidade de manter rescrvas em grande escala a uma distancia consideravel da linha de frente”. Mais tarde, tendo tomado visio dos planos estratégicos dos idealizadores da operagio Barbarossa, 0 mare- chal Georgi K. Jukov reconheceu a sabedoria da linha adotada por Stalin: “O 2 Hitgraber (1991), pp. 372.6360, “ Medvedev, Medvedev (2006), p. 252 im Butler (2005), . 41. a ‘Webb (1982-1985), vol. 4, p. 472 (anotagio de didrio de 8 de agosto de 1941). Klemperer (1996), vol 1, p. 647 (anotagio de diério de 13 de julho de 1941), comando de Hitler contava com um deslocamento geral das nossas forcas para a fronteira coma intengao de cercs Com efeito, nos meses que prect com os seus generais, 0 Furer observa: “Problema do espago russo, A am- plidio infinita do espago torna necessdria a concentragiio em pontos decisi- vos”. Mais tarde, numa conversa ele esclarece o seu pensamento sobre a operagiio Barbarossa jf iniciada: “Na histéria mundial houye até agora ape- nas trés batalhas de aniquilamento: Cannes, Sedan e Tannenberg. Podemos estar orguthosos pelo fato que duas delas foram vitoriosamente combatidas por exércitos alemaies”. Mas, para a Alemanha se revela sempre mais evasi a terceira e maior batalha decisiva e de cerco e aniquifamento desejada por Hitler, o qual, uma semana depois € obrigado a reconhecer que a operagio Barbarossa tinha scriamente subestimado o inimigo. “A preparagio bélica dos mussos deve ser considerada fantistica”.* § transparente aqui 0 desejo do jogador de azar de justificar 0 fracasso das suas previsdes. No entanto, a conclusées no diferentes chega o estudioso inglés de estratégia militar ja citado: 0 motivo da derrota dos franceses reside “no na quantidade ou qua- lidade do seu material, mas na sua doutrina militar”; ademais, age de manei- ra ruinosa a formagio demasiado avangada do exército, que “compromete gravemente a sua flexibilidade estratégica”; um erro semelhante fora come- tido também pela PolGnia, favorecido “pelo orgulho nacional e pela confian- ¢a excessiva dos militares”, Nada disso se verifica na Uniio Soviética.* Mais importante que as batalhas individuais 6 o quadro de conjunto. “O sistema staliniano conseguit mobilizar a imensa maioria da populagio ¢ a quase totalidade dos recursos”; em particular, foi “extraordinsria a capacida- de dos soviéticas”, numa situagao tio diffcil como aquela que se criow nos primeiros meses de guerra, “de evacuar e, depois, de reconverter para a pro- dugio militar um niimero considerével de inddstrias”. Sim, “criado dois dias depois da invasto alema, o Comité para a evacuago conseguiu mudar para 0 leste 1.500 grandes empresas industriais, apés operagbes titanicas de grande complexidade logistica”.”* Aliés, esse processo de deslocamento ja se inicia- ra nas semanas ou nos meses que precedem a agressio hitleriana (infra, cap. © Medvedev, Medvedev (2006), pp. 259-260. Hiller (1965), p. 1682 (tormada de posigio de 30 de margo de 1941), Hitler (1989), p. 70 (conversa de 10 de setembro de 1941) e Hitler (1980), p. 61 (conversa de 17-18 de sctembro de 1941). & Liddel Hart (2007), pp. 404, 400 e 392, $ Werth (20078), pp. 352 € 359-360. 7, § 3), 0 que € mais uma confirmagio do caréter fantasioso da acusagio langada por Kruschiov. "ainda hd mais. O grupo dirigente soviético tina de algum modo intuido as modalidades de guerra que surgiam no horizonte j4 no momento em que promo- via a industilizago do pais. Com uma radical viravolta com respeito & situa 0 anterior, ele tnba idenificado “tum ponto focal na Réssia asistica”, Longe e to abrigo dos presumiveis agressores.”” Stalin tinha, de fato, insistido repetida vyigorosamente nisso, Em 31 de janeiro de 1931, impunha-se a “eriago de una indistria nova e bem equipada nos Urais, na Sibéria, no Cazaquistio”. Poucos anos depois, o Relatério lide em 26 de janeiro de 1934 ao XVII Congresso do PCUS tinha com satisfago chamado a atengo para o paderoso desenvolvimen- to industrial que se verificara nesse meio tempo “na Asia central, no Cazaquis- Go, nas Reptblicas das buriates, dos tértaros ¢ dos bachires, nos Urais, na Sibé- ria oriental e ocidental, no extremo-oriente, etc.”** As implicagdes disso tudo io tinham eseapado a Trotski que, alguns anos depois, 20 anlisar os perigos de guerra e o grau de preparagio da Un . © 40 sublinhar os resultados conseguides pela “economia planificada” no ambito “lita, obscrvara: “A industrializagio das regides remotas, principalmente da Sibéria, confere as gran- des distncias das estepes e das florestas uma importincia nova”."’ S6 agora os grandes espagas assumiam todo 0 seu valor ¢ tornavam mais problemética do {que nunca a guerra reldmpago tradicionalmente desejada e preparada pelo esta- 40 maior alemaio, E exatamente no terreno do aparetho industrial edificado em pre’ da guerra que o TIT Reich é obrigado a registrar as surpresas mais amargas, como surge de dois comentérios de Hitler. O de 29 de novembro de 1941 “Como é possivel que um povo tio primitive possa aleangar semelhantes avangos técnicos em tio pouco tempo?" O de 26 de agosto de 1942: “No. tocante a Ruissia, é incontestavel que Stalin elevou o nivel de vida. O povo isso niio passava fome [no momento do desencadeamento da operago Bar- barossa]. Em geral, é preciso reconhecer: foram construidas inctistrias da importancia das Hermann Goering Werke onde hé dois anos niio existiam Senio aldeias desconhecidas. Encontramos linhas ferrovsrias que nio estio indicadas nos mapas” 2 Tucker (1990), pp. 97-98 & Statin (1971-1973), vo. 13, pp. 67 © 274 2 Troiski (1988), p. 930 (= Trotsk, 1968, p. 207) © Dewm coléquio com Fritz Todt, relatado ex Irving (2001), p. $50, ® Hitler (1980), p. 366 (conversa de 26 de agosto de 1942), Acessa altura, convém dar a palavra a tés estuciosos entre si bastante dife- rentes (um russo € os outros dois ocidentais). O primeiro, que foi diretor do Ins- tituto Soviético de Histéria Militar e que participou do antistalinismo militante dos anios de Gorbatchoy, parece inspirado pelas intengdes de retomar e radicali- zar a requisitéria do Relat6rio Kruschiov. No entanto, pelos resultados da p quisa ele se sente obrigado a forraular um juézo bastante mais matizado: sem sex um especialista € muito menos o génio pintaco pela propaganda oficial, ja nos ‘anos que precedem ao inicio da guesra, Stalin se acupa infensamente com o problemas da defesa, da indistria da defesa e da cconomia de guerra no seu onjanto. Sim, no plano estritamente militar, s6 através de tentativas © exros também graves e “gragas & dura prética da vida militar cotidiana”, ele “aprende gradualmente os principios da estratégia". Noutros campos, porém, 0 seu pen- samento se revela “mais desenvolvido do que o de muitos Ieres militares sovi- ‘icas”. Gragas também A longa prética de gestio do poder politico, Stalin nunca perde de vista 0 papel central da economia de guerra e contribui para reforgar a resisténcia da URSS com a transferéncia das indistras bélicas para o interior: “é quase impossivel supervalorizar a importiincia dessa empresa”. O lider sovieti- co presta, enfim, grande atenco para a dimensfo polftico-moral da guerra, Nes- se campo, ele “tinha ideias totalmente fora do comum", como demonstra a deci- sio “corajosa e militar de celebragio do aniversério da Revolugio de Outubro em 7 de novembro de 1941, numa Moscou sitiada € acossada pelo inimigo na- vista, Em sfatese, se pode dizer que, com respeito aos militares de earreira e a0 circulo dos seus colaboradores em geral, “Stalin mostra um pensamento mais universal”. E é um pensamento — pode-se acrescentar ~ que nijo descuida de nenhuum dos aspectos mais diminutos da vida ¢ da moral dos soldados: informa- do de que eles estavam sem cigarros, gragas também & sta capacidade de despa- cchar “uma enorme carga de trabalho”, “no momento crucial da batalla de Sta- lingrado, ele [Stalin] encontrou tempo para telefonar para Akaki Mgeladze, chefe do partido da Abedsia, a regio de cultive do tabaco: “Os nossos soldados fio podem fumar! Sem cigarros, a frente niio funciona!"© Na avaliagio positiva de Stalin como lider militar, dois autores ociden- tais vao ainda além. Se Kruschiov insiste nos transtornantes sucessos iniciais da Wehrinacht, 0 primeiro dos dois estudiosos aos quais fago referéncia ex- prime esse mesmo dado de fato com uma linguagem bastante diferente: nio ® Wolkogonov (1989), pp. 501 e 570. © Wolkogonow (1989), pp. 501, 641 ¢ 570-72. © Wolkogonow (1989), pp. 597, 644 © 64. © Montefiore (2007), p. 503. é de assombrar que a “maior invasio na histéria militar” tenha conseguido sucessos iiciais; a recuperagio do Exército Vermelho depois dos golpes devastadores da invasio alemi em junho de 1941 foi “maior empresa de armas que o mundo jam iu”. © scgundo estudioso, professor numa academia militar estadunidense, a partir da compreenstio do conflito na pers- pectiva da Longa duragio ¢ da atengiio reservada tanto & retaguarda como & frente ¢ dimensio econdmica e politica como aquela mais propriamente militar da guerra, fala de Stalin como de um “grande estrategista”, antes como do “primeiro verdadeiro estrategista do século XX”. & um julgamen- to global com o qual também o outro estudiaso ocidental aqui citado concor- a plenamente; sua tese de fando, sintetizada na orelha do livro, identifica em Stalin o “maior lider militar do século XX". Podemos obviamente disen- tir ou matizar esses julgamentos tZo lisonjeiros; é verdade, porém, pelo me- ros no que diz respeito ao fema da guerra, que © quadro tragado por Krus- chiov perdeu qualquer credibilidade, ‘Tanto mais porque, no momento da prova, a URSS se revela bastante preparada também de outro ponto de vista essencial. Demos de novo a pala- yra a Goebbels, que, ao explicar as dificuldades imprevistas da operagio Barbarossa, remete, além de ao potencial bélico do inimigo, a outro fator: Era quase impossfvel que nossos homens de confianga ¢ nossos espites po- netrassem no interior da Unido Sovitica. Eles nfo podiam ter um quadro preciso. Os boleheviques se empenharam diretamente em nos enganar, De 1uma série de armas que eles possufam, sobretudo armas pesndas, mio t ‘amos nenhuma ideis, Exataente o contro daquilo que se veificon na Franca, onde sabjamos na pritca ado e niio podfamos de modo algum ser surpreendis* A falta de “bom-senso” e “as deportagées em massa de populagées inteiras” Autor em 1913 de um livro que 0 consagrara como tesrico da questo nacio- ‘al, comissério do povo para as nacionalidades logo depois da Revolugéo de Outubro, pelo modo como desempenhara o seu cargo Stalin ganhara 0 reco * Roberts (2006), pp. 81 ¢ 4. 2 Schneider (1994), pp. 278-79 ¢ 232. Goebbels (1992), p. 1656 (anctago de dirio de 19 de agoxto de 1941). nhecimento de personalidades tio diferentes entre si como Arendt e De Ga peti. A reflextio deste titimo sobre a questo nacional consta num ensaio sobre a linguistica empenhado em demonstrar que, longe de desaparecer apés a reviravolta do poder politico de uma determinada classe social, a lin- gua de uma nagio fem uma notivel estabilidade, assim como a nagio com que ela se exprime goza de uma notdvel estabilidade. Também esse ensaio contribuira para consolidar a farna de Stalin como te6rico da questo nacio- nal, Ainda em 1965, embora no Ambito de uma posigio de dura condenacio, Louis Althusser atribuird a Stalin o mérito de se ter oposto & “loucura” que pretendia “a todo custo fazer da Iingua uma superestrutura” ideoldgica: gra- gas a estas “simples paginetas” ~ concluird o filésofo francés ~ “percebemos que © uso do critério de classe ndo era sem limites”.°A dessagragio- liquidagio em que em 1956 Kruschiov se empenba nao podia deixar de vi- sar, para ridiculatiz6-lo, o te6rico e politico que dedicara particular atengio & questo nacional. Ao condenar “as deportagdes em massa de nacionalidades inteiras”, o Relat6rio Secreto sentencia: Nao € preciso ser murxisti-eninista para perceber que qualquer pessoa de bom-senso se pergunta como & possivel tornar nagdes inteiras responsdveis por atos hostis, scm excecéo das mulheres, criancas, velhos, comunistas & ‘membros do Komsomol [a juventade comunista), chegando ao pento de u- sar contra eles uma repressiio geral, langando-os na miséria e no sofrimento sem outra causa que a vinganga por algum delito perpetrado por individuos ‘ou grupos isoladas.”” Esté fora de discussa0 o horror da puniglo coletiva, da deportagao imposta a populagdes suspeitas de escassa lealdade patriética, Infelizmente, bem longe de referir-se & loucura de um tinico indivituo, esta pritica earaeteriza pro- fundamente a segunda Guerra dos ‘Trinta Anos, a comegar pela Riissia cza- rista que, embora aliada do Ocidente liberal, durante o primeiro contlito mundial conhece “uma onda de deportagdes” de “dimensies desconhecidas na Europa”, em que esto envolvidas cérca de um milho de pessoas (sobre- tudo de origem judia ou germinica).”" De dimensGes mais reduzidas, mas muito mais significativa, é a medida que durante o segundo conflito mandial atinge os americanos de origem japonesa, deportados e encerracos em cam pos de concentragito (fia, cap. 4, § 7). Althusser (1967), p.6. ® Kruschiov (1958), p. 187. 7! Graziosi (2007), pp. 70-71. ‘Acexpulsio e deportagio de populagdes inteiras, além de ter como fina- lidade 0 afastamento de uma potencisl quinta coluna, pode scr promovida em fungio do refazimento ou da redefinigao da geografia politica. Durante a primeira metade do século XX, esta prétiea grassa a nfvel planetirio, desde 0 Oriente Médio, onde os judeus que tinham acabado de eseapar da “solucio final” obrigam drabes ¢ palestinos a fugir, até & Asia, onde a separagtio entre India e Paquistio do Império inglés passa através da “maior migragio forga- daa nivel mundial do século”.” Permanecendo sempre no continente asi cc, vale a pena dar uma olhada no que acontece numa regido administrada por uma personalidade ou em nome Ge uma personalidade (0 14° Dalai La- na), que depois conseguiria o prémio Nobel da paz.¢ se tornaria sinénimo de nto-violéncia: “Em julho de 1949 todos os han residentes (hi muitas gera- {goes} om Lhasa foram expulsos do Tibete”, seja para “enfrentar a possibili- dade da atividade de uma quinta coluna”, seja para tornar mais homogénea ‘a composigdo demografica.”” Estamos diante de uma prética nfo s6 realizada nas mais diferentes &- reas. geogrificas e politico-culturais, mas naquelas décadas explicitamente tcorizada por personalidades de grande relevo, Em 1938, David Ben Gurion, 6 futuro pai da patria em Israel, declara: “sou favordvel & transferéncia for~ ‘gada [dos arabes palestinos]; niio yejo nada de imoral nisso”.”' De fato, ele porii coerentemente em prética esse programa dez anos depois. Mas aqui é preciso concentrar a atengio na Europa centro-oriental, on- de se verifica uma tragédia recaleada, mas que est entre as maiores do sécu- lo XX. No todo, cerca de dezesscis milhdes e meio de alemées foram obri- gados a abandonar as suas casas ¢ dois milhdes ¢ meio nfo sobreviveram a gigantesca operagao de limpeza ou contralimpeza étnica.” Neste caso é pos- sivel fazer uma comparagio direta entre Stalin, de urn lado, ¢ os estadistas, ‘ocidentais e filoocidentais do outro. Que posigio estes tiltimos tomaram em tal citcunstancia? Analisamos isso sempre a partir de uma historiografia que nio pode ser suspeita de indulgéncia para com a Unio Sovietie: Foi © governa britinico que desde 1942 estimuloa uma transferéneia geral de populagées dos territérios alemies orientais e dos sudetos (..]. Mais do que todos empenhou-se o subsecretério de Estado, Sargent, que pediu uma ® Torti (2000), p. 617. © Grunfeld (1996), p: 107. 7f Bra Pappe (2008), p. 3. ‘MacDonogh (2007), p. 1. pesquisa sobre “se a GrieBretanha nfo deveria encorajar a wansferéncia pa~ ra Siberia dos alemes da Prissia orientale da alia Silésia”." Intervindo na Camara dos Comuns em 15 de dezembro de 1944 sobre a pro- gramada “transferéncia de diversos milhdes” de alemies, Churchill esclare- cu assim 0 seu pensamento: Pelo que conseguimos compreender, a expulsio € o método mais satisfats- rio e mais duradouro, Nio haverd mais mistura das populagdes para provo- ‘ear desurdeus scun fin como acontevea no caso da Alsécia ¢ Lorena. Seré feito um corte claro, Nao estou alarmado com 2 perspectiva da separagio de populagses como também no estou alarmado com as transferéncias em Targa escala, que nas condigtes modernas sio muito mais faceis do que for ram no passado,”” F. D. Roosevelt aderiu aos planos de deportagaio depois, em junho de 1943; “quase no mesmo momento Stalin cedeu as presses de BeneS para a expul- so dos alemies dos sudetos da Tchecoslovaquia a restaurar”.”* Um historia- dor estadanidense acha entdo que deve tirar esta conclusto: Afinal, sobre a questio da expuilsio dos alemies na Tehecostovéquia ow ma Pol6nia pés-guerra néo houve, na prética, nenhuma diferenga entre politicos comunistas ¢ niio comunistas; sobre este tema, Bene e Gottvald, Mikola- jesyk ¢ Beirut, Stalin e Churchill felavam todos 2 mesma lingua.” Esta conclusio j4 bastaria para refutar a oposigio em preto e branco implici- ta no Relatério Kruschioy. Na realidade, pelo menos no que diz respeito aos alemaes da Europa oriental, quem tomou a iniciativa das “deportagdes em massa de populagées inteiras” niio foi Stalin; as responsabilidades nao foram distribuidas de modo igual. © mesmo historiador estadunidense anteriormen te citado acaba reconhecendo isso. Na Tehecoslovéquia, Jan Masaryk expri- miu a convicedo segundo a qual “o alemfo nfo tem alma, ¢ as palavras que entende melhor so as rajadas de metralhadora”. Tratava-se de uma posigao que no era absolutamente isolada: “Até a Igreja Catélica tcheca fez ouvir @ sua pr6pria voz. Monsenhor Bohumil Stasek, cénego de Vyselirad, declarou: “Depois de mil anos chegou o momento de ajustar as contas com os alemies, que sio maus e para os quais 0 mandamento “Ama o teu pr6ximo’ no se "© Billgraber (1991), p. 439. 7 Churchill (1974), p. 7069, Hillgnaber (1991), p. ® Naimark (2002), p. 134. jae aplica”.® Nessas circunstancias, uma testemunha slem recorda: “Muitas veres tivemos que pedir ajuda aos russos contra os tchecos, o que fizeram inuitas vezes, desde que nfo se tratasse de pOr as mifos nas costas de uma 'Hé mais, porém. Demos de novo a palavra ao historiador estadu- “No ex-campo nazista de Theresienstadt, os alemiies internados se perguntavam o que thes teria acontecido se o comandante Tusso local niio os tivesse protegido dos ttchecos”. Um relatério soviético secreto envindo a ‘Moscou, 20 Comité Central do partido comunista, relatava pedidos feitos as tropas soviéticas para que ficassem: “‘se 0 Exército Vermeiho for embora ‘estamos acabados’. As manifestagdes de ddio para com os alemiies so cla sas. [Os ttchecos] no os matam, mas os atormentam como s¢ fassem ani- ‘mais, Consideram-nos animais”, De fato — observa sempre 0 historiador que aqui estou seguindo ~ “o tratamento horrivel infligido pelos ttchecos levou ‘ao desespero. Segundo estatisticas tchecas, apenas em 1946 foram 5.558 os alemiies que se suicidaram”.* Algo semelhante acontece na Poldnia, Em conclustio: Os alemies acharam o pessoal militar russo muito mais humano e respon- séivel que os ttchecos ¢ que os poloneses locais. Ocasionalmente, os russos dram de comer is eriangas stems com fome, a0 passo que 0s tchecos os deixararm morrer de inanigto, As vezes, as tropes sovitieas davaim 205 e- xaustos alemfes uma passegem em seus vefculos durante as longs eami- hacks para sair do pai, enguanto os tchecas ficavam olhandovos cam des- prezo e indiferenca.® O historiador estadunidense fala de “tchecos” ou de “‘poloneses” em geral, mas de modo nao totalmente correto, éomo surge do seu préprio relato: A questo da expulsto dos alemies colocou os comunisias tchecos — e de outros paises — em séria dificuldade. Durante a guerra, a posigdo dos comu- nistas, articulada por Geogi Dimitrov em Moscou, era de que os alomies responséveis pela guerra e pelos seas crimes devessem scr provessados ¢ condenados, enquanto os operirios ¢ os camponeses alemies eram reedu- ads. 2, Naimark (2002), p. 136, {2 Naiimark (2002), pp. 137-38. © Naimark (2002), p. 139. ' Naimark (2002), p. 138. ™ Naimark (2002), p. 133. Com efeito, “na TTehecoslovéquia foram os comunistas, uma vez. conquis- tado o poder em fevereiro de 1948, que puseram fim & perseguigio das pou- cay minorias étnicas que tinham restado”. Ao contrério da insinuago de Kruschiov, em comparago com os diri- gentes burgueses da Europa ocidental ¢ centro-oriental, pelo menos neste caso no so Stalin e o movimento conunista dirigido por cle que se revelam menos desprovidos de “bom-senso”. Isto no acontece por acaso. Se, com o fim da guerra, F. D. Roosevelt declara estar “mais do que munca sedento de sangue dos lemées” por causa strocidades cometidas por eles e chega até a acariciar, por algum tempo, a ideia da “castrago” de um povo to perverso, a posigo de Stalin é bern diferente, pois logo depois do desencadeamento da operagio Barbarossa declara que a resisténcia soviética pode contar com o apoio de “tados os melhores homens da Alemanha” e até do “povo alemio escravizado pelos chefes hitierianos”.™ Particularmente solene é a tomada de posigio de teve- reiro de 1942: Seria ridfeulo identificar a eanaritha hitlerista com © povo alemio, com 0 Estado alemfo, As experiéncias da hist6ris demonsiram que os Hitler Vio e vém, mas que o povo alemfo, o Estado alemiio permanece. A forga do E> xército Vermetho reside no fato de que ele no nntre nem pode nutri ne- nnhum édio contra outros povos ¢, portanto, nem sequer conta © povo ale- info; ele & educado no espitito da igualdade de todos os povos e de todas xs agas, no espitito do respeito e dos dircitos dos outros povos.** Até um anticomunista inflexivel como € Ernst Nolte é obrigado a reconhecer que a posigdo assumida pela Unido Soviética em relago ao povo alemio no presenta aqueles tons racistas, que as vezes se encontram nas poténcias ocidentais.* Para concluir este ponto pode-se dizer: se nfo esté igualmente distribuida, a falta de “bom-senso” estava bem difundida entre os lideres politicos do século XX. ‘Até aqui me ocupel com as deportagdes provocadas pela guerra e pelo perigo de guerra ou do refazimento e da redefinigdo da geogratia politica Pelo menos até os anos 1940, nos Estados Unidos continnam a grassar as * Deak (2002), p. 48. © Stalin (1971-1973), vol. 14, pp. 238 ¢ 241 © Stalin (1971-1973), vol. 14, pp. 266-67. ‘CE. Losurdo (1996), cap. 4, §2 (para Nolte) e cap. 4, § $ (para F. D, Roosevelt ea “casiragio” dos alemies) deportagdes realizadas dos centros urbanos que querem ser, como avisam os cartazes colocados na sua entrada, para whifey only. Além dos afroamerica- hos, so atingidos também os mexicanos, reclassificados como iio brancos ‘com base num recenseamento de 1930; par isso so deportados para o Méxi- cco “milhares de trabalhadores e as suas familias, inclusive muitos estaduni denses de origem mexicana”, As medidas de expulsio e deportagio das ci dades que querem ser “apenas pata brancos” ou “s6 para caucasianos” nao poupam sequer os jndeus.” O Relatério Secreto descreve Stalin como um tirano tio desprovido de senso da realidade que, ao tomar medidas coletivas contra determinados ‘grupos étnicos, no hesita em atingir os inocentes ¢ os préprios cormpanhei ros de partido. E 0 caso de pensar nos deportados alemies (na maioria, ini migos declarados de Hitler) que, logo apés o infcio da guerra com a Alema- ‘nha, so encerrados em bloco nos campos de concentragao franceses (infra, cap. 4, § 7). Mas é inttil querer buscar um esforgo de andlise comparada no discurso de Kruschiov. Ele procura virar no seu contrério dois temas até aquele momento di- fundidos nao s6 na propaganda oficial, mas também na publicistica ¢ na opiniiio pliblica internacional: 0 grande lider que contribusta de modo decisi- vvo para 0 aniquilamento do III Reich se transforma assim num grande dile- tante que tem dificuldade em orientar-se no mapa-mtindi; 0 eminente tesrico dda questo nacional exatamente neste campo se revela desprovido do mais clementar “bom-senso”. Os reconhecimentas até aquele momento tributados 4 Stalin so todos colocados na conta de um culto da personalidade que ago- 1a se trata de liquidar de uma vez para sempre. O culto da personalidade na Riissia, de Kerenski a Stalin ‘A denincia do culto da personalidad & o carro-chefe de Kruschiov, No en- fanto, no seu Relatério esta ausente a pergunta que deveria ser obrigat6ria: estamos diante da vaidade e do narcisismo de um Ider politico singular, ow de um fenémeno de cardter mais geral que aprofunda as suas raizes num Contexto objetivo determinado? Pode ser interessante ler as observagées feitas por Bukharin enquanto nos Estados Unidos fervem os preparativos ara a intervengtio na I Guerra Mundial: Loewen (2006), pp. 42 ¢ 125-21. Para que 2 méquing estatal esteja mais preparada para os assuntos militares, ela se transforina por si mesma numa organizagao militar, em eujo coman- do esté um ditador. Esse ditador € 0 presidente Wilson. Poratn-the conced dos poderes excepcionais. Tem um poder quase absoluto, E se procura talar no povo sentimentos servis para com o ‘grande presidente’, como aa antiga Bizincio onde tinham divinizado o monarca deles.” Em situagées de crise aguda a personalizagio do poder tende a entrangar-se com a transfiguragio do lider qne o detém. Qnando, em dezembra de 1918, 0 presidente estadunidense vitorioso pisa na Franga, é aclamado como 0 Sal- vyador, e os seus 14 pontos sia comparados ao Discurso da Montanha.”! ‘0 que pensar sobretudo os processos politicas que se verificam nos Estados Unidos no perfodo que vai da Grande Crise até a Il Guerra Mundial ‘Tendo chegado & presidéncia com a promessa de remediar uma situa econdmico-social bastante preocupante, F. D. Roosevelt é eleito por quatro mandatos consecutivos (embora tenha morrido no infcio do quarto mandato), ‘um caso tinico na histéria do seu pafs. Além da longa duragdo dessa presi- déncia, sdo fora do comum as expectativas e as esperangas que a cercam. Personalidades autorizadas invocam um “ditador nacional” convidam o neopresidente a dar prova de toda a sua energia: “Torna-se um tirano, um déspota, um verdadeiro monarca, Durante a Guerra Mundial aprisionamos a nossa Constituigio, a pusemos de lado até o fim da guerra”. A permangncia do estado de excegio exige que niio nos deixemos impedir por excessivos esertipuios legais. O novo lider da nagio & chamado a ser ¢ jé definido como “uma pessoa providencial”, on, segundo as palavras do cardeal O'Connell, “um homem mandado por Deus”. As pessoas comuns escrevem € se dirigem a F. D, Roosevelt em termos ainda mais enfiticos, declarando olhar para ele “quase como se olha para Deus” e esperar poder um dia colo- cé-lo “no Pantefio dos imortais, ao lado de Jesus”. Convidado a comportar- se como ditador e homem da Providéncia, 0 novo presidente faz uso muito amplo do seu poder executivo jé no primeiro dia ¢ na primeira hora do scu mandato, Na sa mensagem inaugural ele exige “um amplo poder do Execu- tiyo [..] tio grande como seria aquele concedido a mim se fssemos real mente invadidos por um inimigo estrangeiro”.” Com o inicio das hostilida- des na Europa, antes ainda de Pearl Harbor, F. D. Roosevelt comega, por stia °° Bukharin (1984), p. 73 ° Em Hoopes, Brinkley (1997), p. 2. Schlesinger Jr. (1959-1965), vol. 2, pp. 3-15. * Nevins, Commager (1960), p. 455. iniciativa, a arrastar o pais para a guerra ao lado da Inglaterra; em seguida, com uma ordem executiva emanada de modo soberano, imp3e a reclusao em. Campos dle concentragio de todos os cidadios americanos de origem japone- fa, inclusive mulheres e criangas. & uma presidéncia que, se por um lado goza de uma difundida devogao popular, por outro lado faz gritar o perigo Motalitirio” ((otalitarian): isso acontece por ocasitio da Grande Crise (quan- do é particularmente © ex-presidente Hoover que faz a acusagio™) ¢ sobre- tudo nos meses que precedem a intervengio no segundo conflito mundial (quando o senador Burton K, Wheeler acusa F. D. Roosevelt de exereer um “poder ditatorial” e de promover uma “forma totalitiria de governo”).”* Pelo ‘menos do ponto de vista dos adversérios do presidente, totalitarismo e cult da personaidade tinham atravessado 0 AtKantico, ; Certamente, o fendmeno que estamos investigando aqui (a personaliza- ‘gdo do poder e o culto da personalidade ligado a ela) se apresenta apenas de forma embrionéria na repiblica estadunidense, protegida pelo oceano de qualquer tentativa de invasio e com uma (radigZo politica bem diferente da tradigfio da Rissia, E neste pais que se deve concentrar a atengao. Vejamos 0 {que acontece entze fevereiro e outubra de 1917, portant, antes da ascenstio dos bolcheviques ao poder. Impelido pela sua vaidade pessoal, mas também pelo desejo de estabilizar a situacdo, Kerenski “toa Napolezio come mode- Jo”. Passa em revista as tropas “com o brago enfiado na parte dianteira do ‘casaco”. Por outro lado “‘no seu gabinete no Ministério da Guerra sobressala ‘um busto do imperador dos franceses”, Os resultados desta encenagio niio tardam a se manifestar: florescem as poesias que rendem homenagem a Ke- renski como 0 novo Napoledo.™ Na véspera da ofensiva de vero, que deve- ria reerguer a sorte do exército russo, 0 culto reservado a Kerenski (em cer~ tos cfrculos restritos) chega ao ponto mais alto: PPor toda parte era aclamado como um het6i, os soldads o levantavam nas costes, 0 bombardeavam com flores, jogavam-se aos seus pés. Uma enter rmeira inglesateve ocasizo de asisir, espantada,& cena de homens de tropa que “beijavam a ele, o sen carro e 0 cho em que pisava. Muitos cafam de Jocthos ¢ rezavar, outros choravam" 7 Johnson (1991), . 256. 5, Ein Hofstadter (1982), vo. 3, pp. 392-93. s» Figs (2000), pp. 499-500, Figes (2000), pp. 503-504. Como se vé, nio faz muito sentido explicar, como faz. Kruschiov, com o narcisismo de Stalin a forma exaltada que, a partir de certo momento, o culto da personalidade assume na URSS. Na verdade, quando Kaganoviteh Ihe propée substituir a expresso marxismo-eninismo pela de marxismo- Icninismo-stalinismo, o lider ao qual é dirigida tal homenagem responde: “Vocés querem comparar o caralho com a torre dos bombeiros”.” Pelo me- nos se for comparado com Kerenski, Stalin parece mais modesto. Confirma isto a atituce assumida por ele no final de uma guerra vencida realmente € io apenas na imaginago, como no caso do dirigente menchevigue amante das poses napolednicas. Logo depois do desfile da vit6ria, um grupo de ma- rechais entra em contato com Molotov e Malenkov: eles propéem solenizar 0 triunfo conseguido durante a Grande Guerra Patristica, conferido o titulo de “her6i da Unifio Soviética” a Stalin, o qual, porém, declina a oferta.” O lider soviético foge da énfase retérica também por ocasizo da Conferéncin de Potsdam: “Tanto Churchill como Truman arranjaram tempo para. passear centre as rainas de Berlim; Stalin no mostrou o mesmo interesse, Sem fazer barulho, chegou de trem, ordenando até a Jukov que cancelasse qualquer eventual plano de dar-lhe as boas-vindas com uma banda militar e uma guarda de honra”."” Quatro anos depois, na yéspera do seu septuagésimo aniversério, ocorre no Kremlin uma conversa que vale a pena relate: Ele {Sialin) convoca Malenkov e the avisa: “Nao venhas ma frente honrar- me de novo com uma ‘estrela™, “Mas, camarada Stalin, num aniversétio desses! © povo niJo entenderia”. “Nao te refiras ao povo. Nao tenho a in claro, cana tengo de brigar. Nenhuma iniciativa pessoalt Entendeu’ rada Stalin, mas os anembros do politbird so da opinigo...” Stalin interrom- pe Malenkov e declara o assunto encerrado. Naturalmente, pode-se dizer que nas circunstfincias aqui relatadas 0 cdlculo politico joga um papel mais ow menos grande (e seria muito estranho se no © jogasse); é um fato, porém, que a Vaidade pessoal nfo leva a vantage. Menos ainda ela leva vantagem quando estao em jogo decisies vitais de cariter politico ow militar: durante a II Guerra Mundial, Stalin convida os seus interlocutores a se exprimirem sem rodcios de palavras, discute anima- damente ¢ alterca até com Molotov, que, por sua vez, embora evitando por em discussio a hierarquia, continua a manter a sua opinido. A julgar pelo > Em Marcucci (1997), pp. 156-57. % Wolkogonow (1989), p. 707. °° Roberts (2006), p. 272. testermmho do almirante Nikolai Kusnezoy, o lider supremo “apreciava de modo particular aqueles camaradas que raciocinavam com a sua cabega € ‘nfo hesitavam em exprimir o seu ponto de vista sem concessoes”."* Interessado como esti em apontar Stalin como o tinico responsavel por todas as catéstrofes que se abateram sabre a URS, longe de liquidar 0 culto da personalidade, Kruschiov se limita # transformé-lo num eulto negativo. Continua firme a visfio com base na qual in principio erat Stalint Também ‘o enfrentar 0 capitulo mais trégico da histéria da Uniiio Soviética (0 terror e ‘0s expurgos sanguindrios, que grassaram em larga escala e no pouparam de ‘modo algum o partido comunista), 0 Relat6rio Secreto nao tem diividas: & jum horror a ser colocado na conta quase exclusiva de um individue com sede de poder e possuido de uma paranoia sanguindria, 'S Wolkogonow (1989), p. 707 (para o coléquio entre Stalin ¢ Malenkov); Montefi te (2007), pp. 498-499. 2. Os bolchevique: do conflito ideolégico a guerra civil A Revolugdo Russa e a dialética de Saturno Na visio de Kruschiov, Stalin esti manchado de crimes horrendos contra os seus proprios camaradas de partido, desviando da estrada real do leninismo ¢ do bolchevismo e traindo os ideais do socialismo. Mas ¢ exatamente a ncu- sagiio reciproca de traigdo que, estimulando ou aprofundando as divisées internas no proprio grupo dirigente protagonista de outubro de 1917, contri- bui de modo bastante importante para as tragédias que se abateram sobre @ Riissia soviética. Como explicar essas divisdes? A dialética com base na ‘qual “Satumno devora os seus filhos” niio é certamente uma caracteristica exclusiva da Revolugio de Outubro: a unidade coral que preside a derrubada de um regime antigo agora malquisto pela a maiotia da populagio incvita- ‘velmente se racha ou dispersa no momento em que se trata de decidir sobre a nova ordem a estabelecer. Isto vale também para as Revolugdes inglesa e estadunidense.' Mas essa dialética se manifestou na Riissia de modo particu- lannente violento e prolongado. Ji no momento do colapso da autocracia Czarista, enquanto se sucedem as tentativas de restauragtio monérquica ou de instauragio de uma ditadura militar, no Ambito do alinhamento daqucles que, ‘mesmo decididos a evitar a volta ao passado, de qualquer modo se impem opeies bastante dolorosas: empenhar-se em primeiro lugar pela paz ov, co- ‘mo sustentam os mencheviques, continuar ou até intensificar os esforgos de uerra, agitando agora também na Riissia as palavras de ordem do interven- Gionismo democrético? ____ O delinear-se da vitéria dos bolcheviques nio poe certamente fim A dia- letica de saturno, mas a intensifica. © apelo de Lénin para a conguista do Poder c a transformagdo em sentido socialista da revolugdo parece um desvio CE. Losurdo (1996), cap. II. intolerdvel do marxismo na visio de Kameney e Zinovicv, os quais poem os mencheviques a par da situagdo e por isso atraem sobre sia acusagiio de taigio langada pela maioria do partido bolchevique. E um debate que ultra- passa as fronteiras da Ruissia e do préprio movimento comunista. Os social- dcmocratas so os primeitos a gritar contra o escindalo do abandono da or- todoxia, a qual exctafa a revolugto socialista num pais que ainds nifo tinha pasado pelo pleno desenvolvimento capitalista; enquanto quem condena como um abandono do caminho do socialismo a aceitagio leniniana da pala- vra de orcem da terra aos camponeses sto, de um lado, Karl Kautsky e, do outro lado, Rosa Luxemburgo. Aqui, porém, convém concentrar-se nas divis6es que ocorrem no interi- ‘or do grupo dirigente boichevique propriamente dito, As expectativas messi- nicas suscitadas por um entrelagamento de circunstancias, objetivas e subje tivas, explica a forga particularmente devastadora que a dialética de Saturno assume. O temor € a indignagio universalmente difundidos pela enorme carnificina e pelo configurar-se dos diferentes Estados em luta quais Moloc sanguindrios, decidides a sacrifiear milhGes e milhdes de homens no altar da defesa da patria e, na realidade, da competigio imperialista pela hegemonia mundial, tudo isto estimula a reivindicagio de um ordenamento politico: social totalmente novo; tratava-se de cortar de uma vez para sempre as raizes dos horrores que se tinham manifestado a partir de 1914. Alimentada ulteri- ormente pot uma visio do mundo (que com Marx ¢ Engels parece invocar ‘um futuro sem fronteiras nacionais, sem relagées mercantis, sem aparclho estatal ¢ até sem coergio juricica) ¢ por uma relagéo quase religiosa com os textos dos pais fundadores do movimento comunista, essa reivindicagie niio pode ser decepcionada & medida que a construgio da nova ordem comega a tomar corpo. Por isso, bem antes de isromper no centro da reflextio e da dentincia de Trotski, depois de se ter manifestado j4 no momento do colapso da autocra- cia czarista, o tema da revolucdo traida acompanha como uma sombra a bis ‘ria iniciada com a subida dos bolcheviques ao poder. A acusagiio ou a sus peita de traicio surge em cada curva dessa revoluedo particularmente tortuo- sa, impelida pelas necessidades da ago de governo a repensar certos temas ‘utépicos arigindrios e obtigada a avaliar as suas grandes ambigdes com a extrema dificuldade da situagiio objetiva, O primeiro desafio enfrentado pelo novo poder é aquele representado pelo desmanche do aparclho estatal ¢ pela difusdio de um anarquismo irredu- tivel entre os camponeses (ainda aquém de qualquer visio estatal e nacional, Portanto, substancialmente indiferentes ao drama das cidadcs, privadas de aquaisquer recursos alimentares) e propensos a fundar efémeras “repdblicas Zamponesas”, € entre os desertores, agora relutantes a toda diseiplina (como Ceonfirmado pelo surgimento, num distrito da Bessarabia, de uma “Repibli- ca Livre dos Desertores”). Neste caso, quem € rotulade como traidor & ‘Trotski, que, enquanto dirigente do exército, est & frente da obra do restabe~ tecimento do poder central e do préprio prinefpio do Estado: entio sfio os camponeses, os desertores (entre os quais niio faltam os desertores do Exér- cito Vermelho), os safdos da maltidao que invocam 0 “verdadeiro” socialis- mo € os “verdadeiros” soviets, que choram Lénin (que tina endossado ou cestimalado a revolta contra o poder estatal) ¢ identificam em Trotski ¢ nos judeus as usurpadores vulgares.” Nesse mesmo contexto pode ser colocada a revolta dos marinheiros de Kronstadt em 1921. Pelo que parece, nessa ocasitio Stalin se teria pronunciado por uma abordagem mais cautelosa, ou seja, pela espera do esgotamento dos viveres € do combustfvel 8 disposigiio da fortale- 1m sitiada; mas, numa situag%o em que nfo tinhain ainda desaparecido os perigos da guerra civil interna e da intervengio das poténcias contrarrevolu- ciondrias, acaba impondo-se a solugio militar imediata. E de novo, o “poli- cial’, antes o “marechal” Trotski & que ¢ classifieado como “sustentador da ‘organizagio burocratica”, “ditador” e, em tiltima anélise, traidor do espirito original da revolugio. Trotski, por sua vez, suspeita que Zinoviey tenha ali- ‘mentado por semanas a agitaglo que desembocou depois na revolta, bran- indo demagogicamente a bandeira da “democracia operdria [..] como em 1917"? Como se vé, a primeira acusscio de “traigo” marca a passagem, inevitdvel em toda revolugao, mas muito mais dolorosa numa revolugio feita em nome também da extingio do Estado, desde 0 momento da derrubada do Antigo regime até a construcdo da nova ordem, desde a fase “libertéria” até a fase “autoritéria”. E, naturalmente, a acusago ou a suspeita de “traigio se entrelaga com as ambigGes pessoais ¢ a luta pelo poder. O Minisiério do Exterior “fecha as portas” A retorica cheia de patriotada € os ddios nacionais, em parte “espontineos”, ‘ein parte sabiamente atigados, tinham desembocado na matanga da guerra imperialista, A exigéncia de acabar com tudo isso se apresenta imperioss. Surge assim em certos setores do movimento comunista um internacionalis- | Werth (20072), pp. 49-50. Broug (1991), pp. 274-75. ‘mo totalmente irrealista, que tende a liquidar como simples preconceito as diferentes identidades nacionais. Vejamos em que termos, no infeio de 1918, Bukharin se opde niio s6 a paz. de Brest-Litovsk, mas a qualquer tentativa par parte do poder soviético de utilizar as contradigdes entre as varias potén- Cias imperialistas, estipulando acordos ou compromissos com uma ou coin ‘outra: “O que estamos fazendo? Estamos transformando o partido num mon- te de estrume [..]. Sempre dissemos [...] que, antes ou depois, a Revolugio Russa colidiria com o capital internacional, Esse momento chegou”.* Compreendem-se bem a decepgiio ¢ 0 mal-estar de Bukharin que, cerca de dois anos antes, tinha contraposto a perspectiva de uma humanidade fi- nalmente unificada e fraternizada & guerra até a sltima gota de sangue entre as grandes poténcias capitalistas ¢ entre os diversos Estados nacionais e & virada chauvinista da socialdemocracia, gragas a “revolif¢ao social do prole- tariado internacional que & mao armada derruba a ditadura do capital finan- ceiro". Derrotudos, junto com a burguesia, “os epigonos socialistas do mar- xismo” (responsdveis por terem esquecido ou reprimido “a conhecida tese do Manifesto Comunista”, segundo a qual “os proletérios nfo tém patria"), “a- caba assim a tltima forma de limitagdo da concepgio do mundo do proleta- riado: a sua limitagio nacional-estatal, o seu patriotismo”; “surge a palayra de ordem da aboligio das fronteiras estatais e da confluéncia dos povos mu- ma tinica familia socialista”. > Nifo se trata da ilusiio de uma personalidade solitaria. Ao assumir 0 car go de comissério do povo para Assuntos Exteriores, Trotski declarara: “Pu- blicarei algum decrcto revoluciondrio aos povos do mundo, depois fecharei as portas”." Com a chegada, sobre as ruinas da guerra e na onda da revolugio ‘mundial, de uma humanidade unificada a nivel planctério, o primeito minis- tério a revelar-se supérfluo teria sido aquele que normalmente conduz as relagdes entre os diferentes Estados. Com respeito a essa perspectiva tio excitante, como pareciam medfocres ¢ degenerados a realidade € 0 projeto politico colocados em evidéncia pelas negociagdes de Brest-Litovsk, com 0 ressurgimento das fronteiras estatais e nacionais e com o reaparecimento até éa razio de Estado! Nao poucos militantes e dirigentes bolcheviques vivem esse acontecimento como 0 colapso, ou antes, como 0 abandono vil e traigo- iro de um mundo inteiro de ideais ¢ de esperangas. Certamente, no era fécil resistir ao exército de Guilherme Il, mas ceder ao imperialismo alemio * Em Cohen (1975), p. 75. 5 Bukhari (1966) pp. 329-331. © Ex Carr (1964), p. 814. <6 porque 0s camponeses russos, mesquinhamente apegados aos seus inte- esses € ignorantes dos deveres impostos pela revolugtio mundial, se recusa- ‘yam a continuar a combater, nflo era essa a prova da incipiente “degeneragio camponesa do nosso partido e do poder soviético"? No final de 1924, Bu- Karin desereve o clima espiritwal nos tempos de Brest-Litovsk dominante centre “os commnistas de esquerda ‘puro sanguc™” e nos “ambientes que si patizavam com 0 camarada Trotski": distinguiu-se particularmente o “com- panheiro Riazanoy, que agora saiu do, partido porque em sua opinidio tinha- nos perdido a purcza revalucionéria”." Além das personalidades indiviuais, so importantes organizagées de partido que declaram: “No interesse da revolucto internacional, ulgamos oportuno admitir a possibilidade de perder 6 poder sovistico, que esta se tornando agora puramente formal”. Tratase de palavras “estranhas e monstruosas” aos olhos de Lénin*, que, porém, num Certo momento, sendo acusado ou suspeito de traigdo, parece ser 0 alvo de umn projeto, embora vago, de golpe de Estado acariciado por Bukharin,” E necessiirio todo o prestigio e toda a energia do grande dirigente revolu- cionirio para superar a crise, Mas ela se apresenta de novo depois da alguns ‘anos, Com a derrota dos impérios centrais ¢ a irrupgdo da revolugao na Alema- tha, Austria, Hungria e a sua aparigo prepotente em outros pafses, a perspec va pela qual os bolcheviques foram obrigados a abandonar Brest-Litovsk parece adquirir nova vitalidade ¢ atualidade, Na conclustio do I Congreso da Interna- ional Comunista, ¢ 0 préprio Lénin que declara: “A vitéria da revolugao prole- {ria em todo o mundo esté garantida. Aproxima-se a fundagiio da Reptiblica Soviética Internacional”."° Portanto, a iminente derrota do capitalismo em escala ‘mundial teria sido rapidamente seguido pela fusdo das diversas nagdes ¢ dos diversos Estados num tinico organismo: de novo, 6 Ministério dos Negécios Estrangeiros estava a ponto de tomnar-se supérfiuo! 0 caso dessa ilustio coincide com a doenga ea morte de Lénin, A nova tise é mais grave ainda porque agora, dentro do partido bolchevigue, falta uma Autoridade indiscutida, Do ponto de vista de Trotski ¢ dos seus aliados e segui- ores, niio pode haver mais dtivida, Quem ditava a escolha do “socialist num ‘86 pats”, com o consequente abancdono da ideia le revolugio mundial, nio eram © realismo politico e o céloulo das relagdes de forga, mas apenas a rotina baro- Critica, 0 oportunismo, a covartia, em tiltims andlise, a traigio. { Bukharin (1970), pp. 104-105 e nota. } Lenin (1955-1970), vol. 27, pp. 54508. {Conquest (2000), p. 35. Lénin (1955-1970), vol. 28, p. 479. ‘em primeiro lugar, era o alvo dessa acusagio, pois desde 0 inicio cle tinha reservado uma atengio toda particular & questo nacional tendo em vista a vitéria da revolugio a niyel internacional, mas primeiro na Rissia. Entre fevereiro ¢ outubro de 1917 ele tinha apresentado a revolugie proleti- ria por ele auspiciada como o instrumento necessério nao s6 para edificar um novo ordenamento social, mas também para reafirmar a independéncia na- ional da Rilssia, A Entente procurava obrigé-la com todas os meios a conti- nuar a combater e a sangrar ¢ visava de qualquer modo a transformé-Ia “‘nu- ma colénia da Inglaterra, da América € da Franga”; pior, comportava-se na Reissia como se estivesse “na Africa central”.'' Dessa operagdo eram ctim- plices os mencheviques que, com a sua insisténcia sobre a continuagio da guerra, aceitavam o Diktat imperialista, eram propensos 2 “venda gradual da Ruissia aos capitalistas estrangeiros”, conduziamn o pais “2 tuna” ¢ se revela- ‘vam, portanto, como os verdadeiros “traidores” da nagao. Cont revolugio a ser feita nio s6 promovia a emancipago das classes populares, mas também desentulhaya “a estrada para a libertagéo efetiva da Riissia”.? Depois de Outubro, a contrarrevolugio, desencadeada pelos brancos apoiados ou agulados pela Entente, fora derrotada também gracas a0 apelo dos bolcheviques ao povo russo para rechagar a invasdo das poténcias impe- rialistas decididas a reduzit a Ruissia a coldnia ou semicol6nia do Ocidente; é nessa hase que tambétn oficiais dos estratos nobres tinham dado o seu ap ao novo poder soviético."® E Stalin tinha se distinguido novamente em pro- mover essa linha; ele descreveu assim a aposta durante a guerra civil: tudo isso, a A vit6ria de Denikin-e de Kolichak significa x perds da independéncia da Rés- a, a tansformagaio da Russia numa copiosa fonte de dinheiro para os eapitalis- tas anglo-franceses. Nesse sentido, o governo Denikin-Koltchak € 0 governo mais antipopular ¢ mais antinacional. Neste sentido, © governo soviético & 0 i- nico gaverno popular ¢ nacional no melhor significado deste termo, porque ele Teva consigo nfo apenas 2 libertaco dos traballiadores do capital, mas também a libertacio de toda a Russia do jugo do imperialismo mundial, a tansformaca0 dda Riiscia de colfnia a pats Tivree independente."? ° Sealin (1971-1973), vol. 3, pp. 127.6269 (= Stalin, 1952-1986, vol. 3, pp. 16l © 324). ® Stalin (1971-1973), vol. 3, pp. 197 ¢ 175-78 (= Stain, 1952-1956, vo. 3, pp. 243 220-22), " Figes (2000), pp. 840 ¢ 837. Scalin (1971-1973), vol. 4, p. 252 (= Stalin, 1952-1956, vol. 4 pp. 312-13). Nos campos de batalha se enfrentavam, de um lado, “oficiais russos que se ven eram, se esqueceram da Rissia, perderam a sua honra ¢ estio prontos a passat 11 0 lado dos inimigos da Raissia operdria e camponesa”; do outro lado, os Foldados do Exéreito Vermelho, conscientes de “Iutar nfo pelos lucros do c tal, mas pela libertago da Riissia”."" Nessa perspectiva, luta social ¢ luta nacio~ pul se entrelagavam: substituindo a “unidade imperialista” (ou a unidade baseada ‘pa opressio nacional) por win unidade fundamentada no reconhecimento do principio da igualdade entre as nagSes, a nova Russia soviética teria acabado om a “desagregaciio” e a “completa rufna” que estava em aga0 na velha Russia ‘gazista; por outro lado, aumentando a sua “forga” e o seu “peso”, a nova Ris ica teria contibuido para o enfraguecimento do imperialismo © para a ‘causa da vitéria da revolugao no mundo." Todavia, quando a guerra civil e # luta contra a intervengio estrangeira melhoraram de aspecto, difundiu-se a ilusiio de uma répida expanstio do socialismo na esteira dos sucessos do Exército Vermelho do seu avango para muito além das fronteiras estabelecidas em Brest-Litovsk. Gragas 40 seu realismo e sobretudo & sua agucada sensibilidade pela questo nacional, ‘Stalin fizera notar os perigos que derivavam de entrar profundamente no territério polonés: As retaguardas dos exéreitos poloneses [..] diferem notavelmente das de Koltchak e de Denikin, com grande vantagem para a Polonia, De modo di- forente das retaguardas de Koltchak ¢ de Denikin, as das tropas polonesas io homogéneas ¢ de uma tinica nacionalidade. Daf a sua unidade e estabi- lade, No espitito das suas populagdes predoraina o “sentimento patriéti- co”, que se transmnite & frente polonesa por numerosos eanais, gerando nas divisSes a unidade nacional e a firmeza. ‘Ou seja, uma coisa era derrotar na Riissia um inimigo desacreditado também ro plano nacional, outra coisa era enfrentar fora da Riissia um inimigo na~ cionalmente motivado. Portanto, os apelos a uma “marcha sobre Vars6via" ¢ as declaragdes segundo as quais se podia “aceitar apenas uma ‘Varsdvia vermelha, soviética’™ eram expressdes de “gabolice” vazia e de um “sentido de autossuficiéneia prejudicial & causa”."” *S Stalin (1971-1973), Vol. 4, pp. 236 ¢ 131 (= Stalin, 1952-1956, vol. 4, pp. 293 ¢ 166) * Stalin (1971-1973), vol. 4 pp. 202, 199, 208 (= Stalin, 1952-1956, vol. 4, pp. 252, 248, 258. "Stain (1971-1973), vol. 4, pp. 286 € 293 (= Stain, 1952-1956, vol. 4, pp.3 4 © 363). 0 fracasso da tentativa de exportar 0 socialismo para a Polénia, que, no entanto, até aquele momento fizera parte do Império ezarista, reforgara Sta- lin nas suas conviegSes, Em 1929, cle manda tomar nota de um fenémeno em grande parte insuspeito por parte dos protagonistas da Revolugéio de Ou- tubro: “a estabilidade das nagdes 6 grande em escala colossal”. Elas par ‘am destinadas a ser uma forea vital por um longo perfodo histérico. Portanto, por um longo periodo histérico a humanidade continuaria a estar dividida no s6 entre diversos sistemas sociais, mas também entre diversas identida- es lingafsticas, culturais, nacionais. Que relagso teria sido instituida entre clas? Em 1936, numa entrevista a Roy Howard (do Times), Stalin declara: A cxportagio da revolugao ¢ uma falicia. Cada pais pode fazer a sua revo- ugao sc © desejar, mas se ndo quiser, no haverd revolugso. O nosso pais quis fazer uma revolugao e a fez. Escandalizado, Trotski comenta: ‘Citamas textualmente, E natural a passagem da teoria do socialismo num s6. pafs para a teoria da revolugdo num s6 pats (..). Proclamamos infinitas ve- 20s que 0 proletariado do pafs revolucionsrio vitorioso é moralmente obri- gado a ajudar as classes oprimidas em revolta, isto ufo s6 no terreno das ideias, mas também, se possivel, com as armas na mio. No nos contenta- ‘mos em declarar isso. Apoiamios com a forca das armas os operérios da Fin- lindia, da Est6nis, da Gedrgia. Tentamos, 20 fazer os exéreitos vermelhos marcharem sobre Vars6via, oferecer ao proletariado polonés a ocasivo para uma insurreigio.” Tendo chegado ao fim a perspectiva do advento rapido da “Reptiblica Sovié- tica Internacional”, com o desaparecimento definitive das fronteiras estatais € nacionais, Stalin fazia valer o prinefpio da coexisténcia pacifica entre pai- ses com regimes sociais diferentes. Mas esse novo prinefpio, que era o resul- tado de um processo de aprendizagem ¢ que garantia & Unido Sovietica o Gireito a independéncia num mundo hostil € militarmente mais forte, 20s olhos de Trotski aparecia como traigio do internacionalismo proletirio, co- Ino desergto da obrigago da ativa solidariedade reeiproca entre os oprimi- dos ¢ os explorados do mundo todo. E incansdvel a sua polémica contra a mucanga da politica “internacionalista-revolucionsria” original numa poltti- ca “nacional-conservadora”, contra “a politica externa nacional-pacifista do Stalin (1971-1973), vol. 1, p. 308 ® Trotski (1988), pp. 905-06 (= Trotski 1968, pp. 186-87). ‘overno sovigtico” contra o esquecimento do prineipio em cuja base o Esta- {fp opetiro singular deve sozinho desempenbar a fungio de “cabega de pon- te da revolugiio mundial”. Em todo caso, como nao é pensdvel « passagem ica do capitalismo para o socialismo, “assizn wm Estado socialista pacificamente integrar-se ¢ desenvolver-se (/rineinwachsen) no armbito fo sistema capitalista mundial”, E uma posigo que Trotski acentua ainda ‘em 1940: teria sido melhor nao iniciar a guerra contra a Finléndia, mas wma vyez. comecada, ela deveria ter sido “travada até o fim, isto 6, até a sovietiza~ ao da Finlandia”. pacific O fim da “economia do dinheiro” e da “moral mercantil” [A dialética de Satuno se manifesta em numerosos outros campos da vida politica e social, No plano interno, como devia ser entendida a igualdade que o regime nascido em Outubro era chamado a realizar? A guerra ea pentiria tinham produrido um “comunismo” fundamentado na distribuigao mais ou menos igualitiria de rages alimentares bastante miserdveis. Com respeito a essa pritica e d ideologia que se tinha desenvolvido sobre tal base, é pertur- badora a onda de choque provocada pela NEP [Nova Politica Econémica), com o surgimento de desigualdades novas, gritantes, tomnadas possiveis pela tolerincia concedida a certos setores da economia capitalsta. A sensagio de “ieaigio” & um fendmeno de massa, ¢ ele afeta pesadamente o partido bol- chevique: “Em 1921-22, literalmente dezenas de milhares de operérios bol- cheviques rasgaram suas carteiras de filiagio, pois estavam desgostosos da NEP, que tinham rebatizado como Nova Extorsio do Proletariado”.”” Tam- bbém fora da Ressin sovistiea vemos um dirigente comunista francés resig- nar-se com a mudang2, mas ao mesmo tempo acrescentar, ao escrever em. Humanité Hio capitalista que tinha desaparecido totalmente no tempo do comunismo de gucrra As veres se tem a impressio que niio sao aspectos determinados da rea- lidade econémica que so olhadas com desconfianga ou com indignagéo, mas ‘essa mesma realidade no se conjunto. E preciso no perder de vista a expecta- tiva messidniea que caracteriza as revolugses que envolvem os extratos mais q Trotski (1997-2001), vol. 3, pp. 476, 554 ¢ 566. ag Totski (1988), pp. 1001 © 1333. 3 Flas (2000), p. 926. Em Hlores (1990), p. 29. profundos da populagio c que chegam depois de uma crise de longa duragio, Na Franga de 1789, antes ainda do assalto & Bastilha, j4 a partir da reuniio dos estados gerais e da agitagio do terceiro estado se desperta “no espirito ‘popular o antigo milenarismo, a ansiosa expectativa da revanche dos pobres ¢ da felicidade dos humilhados; a mentalidade revolucionéria estara toda profundamente impregnada disso”. Na Russia, estimulado pela opresstio czatista ¢ sobretudo pelo horror do primeiro conflito mundial, © messianismo tinha se manifestado com forga j4 por ocasido da Revolugio de Fevereiro. Saudando-a como a Pascoa da Ressureigao, cffculos c portantes da sociedade russa tinham espetado dela uma regeneragio total, ‘com o surgimento de uma comunidade intimamente wnificada e com o desa- parecimento da divistio entre ricos € pobres, ¢ até do furto, da mentira, do Jogo, da blasfémia, da bebedeira.™. Desiludidos com a politica menchevique € com 0 prolongamento da guerra e da carnificina, essa expectativa messia- nica tinha depois inspirado niio poucas adesbes 2 revolugo bolchevique. E 0 caso, por exemplo, de Pierre Pascal, um catdlico francés que ficou profun-

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