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PARIS, CAPITAL DO SECULO XIX* Walter Benjamin As dguas sio azuis ¢ as plantas, rosa; que doce de olhar esta 0 entardecer\ Sai-se a passear, As grandes damas saem a passear, depois delas passeiayt as pequenas damas. NGUYEN-TRONG-HIEP: Paris, Capitale de la France (1897). 1. Fourier ou as Passagens ‘De ces palais les colonnes magiques A amateur montrent de toutes parts Dans les objets qu’étalent leurs portiques Que l'industrie est rivale des arts.” ‘Nouveau Tableau de Paris’ 1828. As passagens parisienses multiplicam-se nos quinze anos seguintes a 1822. A primeira con- dicdo para essa prosperidade é a conjuntura favorivel que atravessa o comércio textil. Os ‘magazins de neuveautés’ que ento comecam a aparecer so os primeiros estabelecimen- tos comerciais que mantém grandes quantidades de mercadorias. S40 0s precursores das grandes lojas de depariamentos. Sobre essa época Balzac escreveu: “O grande poema das exposigdes canta suas estrofes coloridas desde a ‘Madeleine’ até a Porta de Saint-Denis”. As passagens so um centro de coméreio suntudrio: em sua decoragao a arte é posta a ser- vigo do comerciante. Seus contemporaneos ndo cansam de admird-las e por muito tempo serdo um ponto de atragdo para os forasteiros. Um guia iJustrado de Paris anuncia: “Essas passagens, nova invengdo do luxo industrial, sdo galerias, cobertas de vidro e revestidas de marmore, através de blocos de casas cujos proprietdrios associaram-se para essa especu- lagfio. Em ambos lados da passagem, iluminados zenitalmente, sucedem-se as mais elegan- tes ‘boutiques’, de sorte que cada uma dessas passagens constitue uma cidade ou mesmo um mundo, em miniatura.” As passagens foram 0 cenério onde pela primeira vez se pode apreciar a iluminagdo a gas. Outra condi¢do para o surgimento das passagens foi o advento da construgio em ferro. O império viu nessa técnica uma contribuicado 4 renovacdo da arte de construir no sentido da antiga Grécia. O tedrico da arquitetura Bétticher expressa uma opinio geral quando afirma que: “pelas formas artisticas do novo sistema, a sabedoria do principio formal do modo helénico” deve voltar a vigorar. O Império ¢ 0 estilo do Terror revolucionario para © qual o Estado é um fim em si mesmo. Assim como Napoledo resistiu em reconhecer a natureza funcional do Estado como meio de dominagao da classe burguesa, os arquitetos de sua época também pouco reconheceram a natureza funcional do ferro através da qual * Este texto teria sido escrito em maio de 1935 ¢ sua primeira publicagHo data de 1955 (Schiften L. pags. 406 a 422). Traducdo de Ricardo Marques de Azevedo. © principio construtivo assegura sua primazia na arquitetura. Esses arquitetos fazem dos pilares cépias das colunas pompeianas; imitam habitagdes em suas indtistrias e, mais tar- de, fazem as primeiras estagdes ferrovidrias parecerem-se com ‘chalets’, “A construgdo faz o papel do subconsciente”. O conceito de engenheiro, nascido das guerras revoluciondrias, comega a impor-se também inicia-se a disputa entre construtor e decorador, entre Ecole Polytechnique e Ecole des Beaux-Arts. Com o ferro intervém, pela primeira vez na hist6ria da arquitetura, um material artificial, no curso de uma evolugdo cujo ritmo se acelera no decorrer do século. O impulso deci- sivo ocorre quando se constata que a locomotiva, que vinha sendo ensaiada desde fins da segunda década, deveria mover-se sobre trilhos. Estes sdo a primeira pega de ferro susce- tivel de ser montada, precursora, portanto, das vigas metilicas. Evita-se o emprego do fer- ro em residéncias mas utilizam-no nas passagens, sales de exposigGo e estagdes ferrov' rias — construgdes para uso transitério. Concomitantemente, é ampliado o dominio da aplicagdo do vidro na arquitetura, no entanto, as condig6es sociais requeridas para seu em- prego mais extensivo s6 se dardo um século mais tarde. Mesmo em “A Arquitetura do Vi- dro” de Scheebart (1914) ele aparece num contexto de utopia. “Chaque época réve la suivant’ MICHELET: ‘Avenir! Avenir!’ A forma dos novos meios de produgdo, a principio dominada ainda pela dos antigos (Marx), correspondem, na consciéncia coletiva, imagens nas quais 0 novo se interpenetra com o velho. Essas imagens so imagens de desejos e nelas a coletividade busca ao mesmo tempo suprimir e transfigurar a imperfeicao no produto social bem como a auséncia de uma ordem social na produgdo. Intervém também nessas imagens de desejo a aspiragdo a marcar insistentemente sua distancia em relagdo ao antiquado, isto é, Aquilo recém pas- sado. Essas tendéncias reenviam a fantasia imaginativa, sob 0 estimulo do novo, ao passa- do mais remoto, ao primitivo. No sonho em que cada época se representa a que a seguir esta aparece confundida com elementos da hist6ria primitiva, ou seja, a0 tempo de uma sociedade sem classes. Depositadas no inconsciente coletivo, as experiéncias dessa socie- dade, mescladas com 0 novo, dao origem as utopias, que deixam seus tragos em mil con- figuragdes da vida, desde edificagSes permanentes a modas fugazes. Essas relagGes siio perceptiveis na utopia de Fourier, cujo impulso mais intimo vem do ad- vento das méquinas. Essa circunstancia, contudo, nao aparece de forma imediata em seus textos, que partem, antes, do cardter imoral dos negécios no comércio bem como da mo- ral hipécrita posta a servico dessa atividade. O falanstério deve remeter os homens a rela- Ges onde a moralidade seja supérflua: a sua organizagao, de extrema complexidade, tem a configuragdo de uma maquina. As engrengagens das paixdes, a intrincada imbricagdo das ‘passions mécanisfes’ com a ‘passion cabaliste’ so formagGes concebidas por analogia com a estrutura mecanica, adaptada aos materiais psicolégicos. Essa maquinaria humana pro- duz a terra de Cocagne, 0 mais primitivo simbolo do desejo, a qual a utopia fourierista dé nova vida. O arquétipo arquitetonico do falanstério, Fourier encontrou-o nas passagens e sua trans- formagio reaciondria é caracteristica: depois de servir a fins originariamente sociais con- vetem-se, para Fourier, em habitagdes. O falanstério é uma cidade de passagens. No mun- do rigoroso das formas que caracteriza o Império, Fourier introduz 0 idilio colorista do estilo Bierdemeier. Até 0 tempo de Zola, embora atenuado, o brilho de Fourier perdurara. Em seu ‘Le Travail’ Zola retoma as idéias de Fourier e em ‘Thérése Raquin’ ele diz adeus as galerias. Contra Carl Grun, Marx colocou-se em defesa de Fourier e destacou sua “visio gigantesca do homem”. Ele também interessou-se pelo humor de Fourier. Jean Paul em 6 @ tem, de fato, a mesma afinidade que Scheebart em sua ‘A Arquitetura do tem com o utopista Fourier. ou os Panoramas “Soleil, prends garde 4 toil” A.J. WIERTZ: ‘Oeuvres Littéraires’, Paris, 1870. arquitetura, com a construgdo em ferro, comega a autonomizar-se relativamente a arte a, a seu modo, com os panoramas, conhece a mesma sorte. O ponto culminante Zo dos panoramas coincide com o aparecimento das passagens. Por intermédio ti técnicos procurou-se incansavelmente fazer dos panoramas perfeitas imita- de natureza. Esforcam-se em representar as variagdes da luz diurna nas paisagens, 0 da lua, o precipitar-se das quedas d’dgua. David aconselha seus discipulos a de- 8 panoramas em acordo com a natureza. Valendo-se da iluso para representar as na natureza, mais além da fotografia, os panoramas antecipam o cinema e o fil- ©2 aos panoramas desenrola-se toda uma literatura de panoramas na qual-incluem- livre des Cent-et-Un”, “Les Francais peint par eux-mémes”, “Le diable 4 Paris” e de ville”. Nesses livros prepara-se o trabalho literdrio coletivo que, na década de Girardin, tera seu lugar assegurado nos folhetins e que consiste em delinear uma de esbogos cujos aspectos anedsticos correspondem as figuras plasticas situadas no eiro plano dos panoramas sendo seu fundo informativo equivalente ao fundo na pin- esmo do ponto de vista social essa literatura é panoramica. Pela tiltima vez aparecia rio, fora de sua classe, como pano de fundo de um idilio. mas anunciam uma transformagdo na relacdo entre a arte e a técnica mas ex- m um novo sentimento vital. O citadino, cuja superioridade politica em © camponés se expressa de variadas maneiras no decorrer do século, tenta intro- © campo na cidade. Nos panoramas a cidade se’estende em paisagem, como o fard posteriormente, de modo mais sutil, para o ‘flaneur”. Daguerre é discfpulo do pintor de panoramas Prévost que tinha seu ‘atelier’ justamente na Galeria dos Panoramas. Em 1839 um incéndio destréi o panorama de Daguerre e nesse mesmo ano ele dé a conhecer a in- vengdo da daguerreotipia. Arago apresenta a fotografia em um discurso na Camara: assinala o lugar que Ihe competi- 14 na histéria da técnica e profetiza suas aplicagdes cientificas. Os artistas, pelo contrd- rio, discutem seu valor artistico. A fotografia provoca a ruina da categoria dos retratistas miniaturistas, e isso dé-se ndo apenas por razes econdmicas. O motivo técnico é que o longo tempo de pose exigia do retratado o mais alto grau de concentragao. A razdo de or- dem social deriva da ciscunstancia dos primeiros fotdgrafos pertencerem as vanguardas artisticas, de onde procedia também a maior parte de sya clientela. O avango de Nadar em telagdo a outros profissionais fotdgrafos marca-se por sua iniciativa de fotografar o siste- ma de canalizagées de Paris. Pela primeira vez 0 objeto coloca-se como descoberta e sua importancia € tanto maior pois que relativamente a nova realidade técnica e social per- cebe-se melhor o cardter subjetivo da informagao pictérica e gréfica. Na exposi¢do universal de 1853 dedica-se, pela primeira vez, um ‘stand’ especialmente pa- 1a a fotografia. Nesse mesmo ano Wiertz publica seu grande ensaio sobre a fotografia on- de Ihe é atribuida a missdo de ser o esclarecimento filos6fico da pintura e suas pinturas mostram que ele entendia esse esclarecimento em sentido politico. Wiertz pode ser consi- derado, portanto, como o primeiro que, se nao previu, a0 menos reclamou a utilizacao 7 da montagem fotogrdfica como meio de agitacdo. A importancia informativa da pintura decresce na medida em que se amplia o alcance dos meios de comunicagdo. Reagindo con- tra a fotografia, a pintura comega a enfatizar os elementos cromaticos da imagem. Na pas- sagem do impressionismo ao cubismo ela procura abrir novos dominios onde a fotografia seja incapaz de segui-la. Esta, por sua vez, estende, consideravelmente, desde meados do século, seu 4mbito de consumo colocando no mercado uma massa enorme de figuras, paisagens, eventos desprovidos de valor informativo e que serviam somente como imagens para um particular. Para incrementar seu consumo a fotografia renovou seus temas mot ficando as técnicas de registro segundo modas sucessivas que the determinardo toda sua historia futura. III, Grandville on as Exposicoes Universais ‘Oui, quand le monde enter, de Paris jusqu’en Chine, vin Saint-Simon sera dans ta doctrine, L’ige d’or doit renaitre avec tout son éclat, Les fleuves rouleront du thé, du chocolat; Les moutons tout ratis rouleront dans la plaine, Et les brochets au bleu nageront dans la Siene; Les épinards viendront ou monde fricassés, Les arbres produiront des pommes en compotes Et l'on moissonnerd des carricks et des bottes; I neigera du vin, il pleuvra des poulets, E du ciel les canards tomberont aux navets,’ LAUGLE ET VANDERBUSCH: ‘Louis et le Saint: ‘As exposig6es universais so locais de preregrinacdo ao fetiche mercadoria. Em 1855 Taine escreveu: “L’Europe s’est déplacée pour voir des marchandises’’. Elas foram prece- dias pelas exposi¢des da industria nacional, a primeira delas tendo ocorrido em 1798 em ‘Champ-de-Mars’. Os seus promotores desejaram “divertir a classe trabalhadora, para a qual seré uma festa de emancipagao”. Esperava-se sobretudo o comparecimento do publi co operdrio. Todavia nao haviam sido constitufdos os marcos para uma indistria da diver- sdo: era isso 0 que visava a festa popular. A exposi¢do é inaugurada por Chaptal com um discurso sobre a industria. Os saint-simonianos, que planejavam industrializar a terra, aco- Iheram a idéia das exposigdes universais. Chevalier, a maior autoridade nesse assunto, ¢ discfpulo de Enfantin e editor do jornal saint-simoniano ‘Le Globe’. Os saint-simonianos previam o desenvolvimento da indiistria mundial mas ndo previam a luta de classes: parti- ciparam de empreendimentos comerciais e industriais em meados do século mas mantive- ram-se indiferentes quanto as quest6es concernentes ao proletariado. As exposicSes uni- versais transfiguram 0 valor de troca das mercadorias criando-Ihes um enquadramento no qual seu valor de uso ¢ secundério. Elas inauguram uma fantasmagoria 4 qual o homem se entrega para deixar-se distrair. A industria da diversdo colabora nisso colocando o homem ao nivel de mercadoria. Ele abandona-se as manipulagdes que lhe permitem desfrutar de sua alienagdo em relagdo a si mesmo e em relacao aos outros. A entronizacdo da mercado- ria com seu brilho circundante de dispersdo sao o secreto tema da arte de Grandville, a0 qual corresponde a cisfo entre o que ele tem de utdpico e o que ele tem de cinico. Seus alambicamentos na representagdo de naturezas mortas correspondem a0 que Marx chama “caprichos teolégicos” da mercadoria, que manifestam-se evidentemente na ‘specialité” — denominagdoque surge nessa época para as mercadorias da indiistria suntudria. Sob o ‘crayon’ de Grandville a natureza inteira é transformada em ‘specialité’. Ele apresenta com © mesmo espirito com que os antincios publicitdrios — ‘réclame’, palavra criada nesse tem- po — comecam a apresentar os artigos que promovem. Grandville acaba no delitio. jonien’, 1832. 8 “Moda: Senhora Morte! Senhora Morte!” LEOPARDI: ‘Dialogo entre a Moda e a Morte” As exposigdes universais constituem o universo das mercadorias. As fantasias de Grand- wille estendem a todo o universo o cardter de mercadoria. Elas 0 modernizam. O anel _ de Saturno converte-se em baledo de ferro sobre o qual, pela tarde, os saturnianos tomam 2 fresca. Os livros do naturalista fourierista Toussenal representam a contrapartida literd- ‘sia dessa utopia gréfica. A moda prescreve o ritual segundo o qual o fetiche mercadoria | per ser venerado. Grandville estende o aleance desse fdolo a todos os objetos de uso coti- iano bem como a todo o cosmo. Ao levé-lo ao limite Ihe desvela a natureza que esta em osicdo ao organico e que acopla o corpo vivo a0 mundo inorganico. No vivo ela percebe 95 direitos do cadaver. Seu nervo vital é 0 fetichismo que est subjacente ao ‘sex-appeal” 9 inorginico. O culto da mercadoria o pde a seu servigo. casio da Exposig¢do Universal de Paris de 1867 Victor Hugo redige um manifesto gido “Aos povos da Europa”. Anteriormente, e de modo menos equivoco, os interes- destes estiveram representados pelas delegagdes de trabalhadores franceses. A primei- | delegacdo participa da Exposigdo Universal de Londres em 1851. Na exposigdo de S02 comparece uma delegacdo composta por 750 representantes que contribuird, indi- ‘te, para a fundagdo por Marx da Associacao Internacional dos Trabalhadores. 2 Exposicao Universal de 1867 que a fantasmagoria da civilizacdo capitalista atinge desempenho mais brilhante. O império est4 no auge de sua pujanga. Paris afirma-se © capital do Tuxo e da moda. Offenbach impde seu ritmo A vida parisiense. A opereta sirdnica utopia de uma duradoura dominaggo do capital. ¥ Louis Philippe ou o Interior ‘Une téte, sur la table de nuit, repose Comme une renoncule.” BAUDELAIRE: ‘un Martyre’ Louis Philippe 0 homem privado acede ao cendrio histérico. A ampliagdo do apara- emocratico resultante de um novo direito eleitoral coincide com a corrup¢ao parla. . organizada por Guizot, que privilegia a classe dominante. Esta faz a historia © seu negocios. Para incrementar o capital investido em agOes 2 corrupgao parla- ir favorece a construcdo ferrovidria. A burguesia apoia o reinado de Louis-Philippe governo do homem de negécios. Com a Revolugao de Julho ela realiza seus fins (Marx). ira vez 0 dominio da vivéncia do homem privado se opée a seu lugar de traba- em privado situa-se em seu interior; para ele o lugar de trabalho é complemen- comércio o homem privado deve ser realista; a seu interior reivindica o entre- ito de suas ilusdes. Necessidade tanto mais premente quanto nao lhe ocorre esten- nbito social a reflexdo que efetua enquanto homem de negécio. Para a configu- © Seu ambiente doméstico ele rechaga sociedade e negdcio: assim so constituidas as do interior. Para 0 homem privado seu interior representa o universo ¢ ‘0 longinquo e o pretérito. Seu saldo ¢ um camarote no teatro do mundo. ‘sobre o ‘Art Nouveau’. Com ele se completa, ao final do século, 0 choque que © interior. No entanto, o ‘Art Nouveau’, por sua ideologia, parece dar acaba- interior: a transfiguracao da alma solitaria comparece como sua meta. 0 indivi- 2 sua teoria. Com Van de Velde a residéncia se presenta como expresso da - A ornamentagZo est para uma residéncia como a assinatura para uma pin- 9 tura. Mas essa ideologia ndo expressa a real significagao do ‘Art Nouveau’. Para a arte, in- vadida pela técnica em sua torre de marfim, esse estilo representa a derradeira tentativa de evasio. Ele mobiliza todas as reservas de interioridade, expressadas através da lingua- gem meditinica das linhas e da flor como simbolo da natureza em sua nudez vegetal por oposiggo a um ambiente munido das armas da técnica. O ‘Art Nouveau’ interessa-se pelos novos elementos de construgao e pelas formas portantes procurando, por meio da orna- mentagao, reconquistar essas formas para 0 territério da arte. O concreto lhe torna dispo- niveis novas perspectivas de configuragdo plistica para a arquitetura. Nessa época o lugar de trabalho é 0 verdadeiro centro de gravidade do espago vivencial. O homem, esvaziado, faz de sua moradia um reftigio. O resultado final do ‘Art Nouveau’ é esse: tentativa do individuo de basear-se em sua interioridade para enfrentar 0 desafio da técnica 0 leva a sua perda. “Je crois. . . 8 mon ame: la Chose: LEON DEUBEL: ‘Oeuvres’, (Paris, 1929) O interior € 0 recinto onde a arte se refugia e 0 colecionador é seu verdadeiro ocupante. Ele procura transfigurar as coisas. Sua tarefa é a de Sisifo: ao possuir as coisas ele as deve despojar de seu cardter de mercadoria. Mas em lugar de seu valor de uso ele no pode em- prestar-Ihes sendo um valor afetivo. O colecionador nfo sonha apenas com um mundo dis- tante ou passado mas também com um mundo melhor no qual os homens estardo tao desprovidos de suas necessidades como nos tempos correntes mas as coisas estar‘o dispen- sadas da serviddo de serem tteis. 0 interior no é somente o universo do homem privado mas também seu repositério. Vi- ve significa deixar marcas e o interior nelas coloca a énfase. Imaginam-se massas de gual- drapas e fronhas, bainhas ¢ baiis, onde os objetos de uso cotidiano deixam suas marcas. © habitante imprime seus sinais no interior. A “Filosofia do Mobilidrio” tanto quanto suas novelas policiais creditam Poe como 0 primeiro fisionomista do interior. Os erimino- sos dos primeiros romances policiais no sdo nem ‘gentlemans’ nem ‘apaches’, mas ho- mens privados, burgueses. V. Baudelaire ou as Ruas de Paris “Tout pour moi devient Allégoric’ BAUDELAIRE: ‘Le Cygne’ O engenho de Baudelaire, nutrido de melancolia, é alegérico. Com Baudelaire Paris torna- se pela primeira vez objeto de poesia lirica. Essa poesia nfo é uma arte regional; 0 olhar do alegorista pousado sobre a cidade é antes um olhar de quem se alienou. E 0 olhar do ‘flaneur’ cuja forma de vida encobre ainda com um brilho conciliador a vida do metropo- litano, destinado a em breve j4 nZo conhecer mais nenhuma consolagdo. O ‘flaneur’ hesi- ta ainda nos limiares da metrépole e da classe burguesa. Nem uma nem outra subjugou-o ainda e em nenhuma delas sente-se a vontade. Busca asilo na multidgo. Com Engels e Poe encontramos as aportag6es iniciais para uma fisionomia da multiddo. A multidao é um véu através do qual a cidade habitual dé uma piscada para o ‘fléneur’ como uma fantasma- goria. Nesse véu a cidade aparece como paisagem e como vitrine. Uma e outra constitui- go, em seguida, a loja de departamentos que usard da ‘flanerie’ para vender mercadorias. O magazine € o passo final do ‘flaneur’. Na figura do ‘flaneur’ a inteligéncia vai ao mercado. Aquilo que se imagina como espe- tdculo ¢ artificio para encontrar compradores. Nesse estado intermediério — quando ainda hd mecenas mas jd comega-se a atitude de mercado o ‘flineur’ aparece como boemio. Ao 10 ter indeciso de sua situagdo econdmica correspnde a indecisdo de sua fungdo poli- Essa inquietagdo comparece de modo palpdvel no caso dos conspiradores profissio- que aderem a boémia: a principio militares; a seguir pequenos burgueses e ocasional- ente proletérios. O ‘Manifesto Comunista’ determina o fim da existéncia politica desses . A poesia baudelaireana tira sua forca do ‘pathos’ de revolta prdprio a esses agrupa- entos. Baudelaire coloca-se nos lados dos associais. $6 conhece realizagdo sexual com prostituida. ‘Focilis descensus Averni? VIRGILIO: ‘Eneida’ singularidade da poesia de Baudelaire estd em que nela as imagens da mulher e da mor- ‘interpenetram-se em uma terceira: a de Paris. A Paris de seus poemas é uma cidade a, mais submarina que subterranea. Neles se exprimem os elementos ctonicos da : sua formagao topografica, o velho leito abandonado do Sena. Em Baudelaire, no lio mortal’ com a cidade € decisivo um substrato social, substrato moderno. O moder- ao € o acento fundamental de sua poesia. Apresentando-o como ‘spleen’ ele dé um golpe ral no ideal (‘Spleen et idéal’). Mas justamente a historia moderna cita sempre a historia origens devido a ambigitidade que caracteriza as relag6es ¢ produtos sociais dessa épo- ‘A ambigiiidade ¢ a imagem figurada da dialética, a lei de dialética sem o movimento. sa imobilidade € utépica e a dialética, conseqiientemente, uma imagem onirica. E uma z que situa a mercadoria em sua pura e simples realidade como fetiche. E a imagem ‘que se transverstem as galerias, simultaneamente casas ¢ estrelas. Imagem que a prosti- ata expde sendo, concomitantemente, vendedora e mercadoria. ‘Le voyage pour connaitre ma géographic’ ‘Anotagoes de um louco’, Paris, 1907. iltimo poema de ‘Les Fleurs du Mal’, ‘Le Voyage’: “O mort, vieux capitaine, il est . levons l'ancre”. A altima viagem do ‘flaneur’: a morte. Seu objetivo: 0 novo. “Au d de ’inconnu pour trouver du nouveau’. O novo é uma qualidade que independe do de uso de uma mercadoria. ¢ a origem do inalienavel mascaramento nas imagens pro- wzidas pelo inconsciente coletivo. E a quintesséncia da falsa consciéncia, da qual a moda faz agente infatigdvel. Como um espelho em outro essa aparéncia de novidade se reflete ‘aparéncia do sempre igual. O produto desse reflexo é a a fantasmagoria da “historia da dizagdo” onde a burguesia goza as delicias de sua falsa consciéncia. A arte que comega questionar-se acerca de sua missio e que cessa de ser “‘inséparable de Putilité” (Baude- =) deve fazer do novo o seu supremo valor. O ‘snob’ passa a ser para ela o ‘arbiter no- rerum’. O ‘snob’ estd para a arte assim como 0 ‘dandy’ est para a moda. século XVIII a alegoria tornou-se o ‘canon’ da imagindria dialética: no século XIX a ade assume esse papel. Contemporineo ao advento dos ‘magazins de nouveautés’ aparecimento dos jornais. A imprensa organiza o mercado dos valores espirituais pro- cando sua valorizagdo especulativa. Os inconformados rebelam-se contra uma arte en- ao mercado e agregam-se sob o lema de ‘Tart pour ’art’. Dessa palavra de ordem a concepedo da obra de arte total, que pretende proteger a arte face 4 invasdo s técnica. Os ritos de iniciago com os quais se celebra esse culto sio 0 contraponto da Zo que transfigura a mercadoria. Ambos fazem abstragdo da existéncia social do _ Baudelaire acaba por sucumbir a seducdo de Wagner. W VI. Haussmann ou as Barricadas ‘Tai le culte du Beau, du Bien, des grandes choses, De la belle nature inspirant le grand art, Qu’il enchante loreille ou charme le regard; Jai l'amour du printemps en fleurs: femmes et roses.” BARON HAUSSMANN: ‘Confessions d'un lion devenu vieux” ‘A floragdo das decoracdes, O encanto da paisagem, da arquitetura E de todos os efeitos cénicos repousam Somente sobre a lei da perspectiva’ FRANZ BOHLE: ‘Theater-Katecismus’ © ideal do urbanismo haussmanniano consistia em construir amplas vistas perspectivas através de extensas aberturas. Esse ideal corresponde a uma tendéncia recorrente no de- correr de todo o século XIX: enobrecer as necessidades técnicas atribuindo-lhes finalida- des artisticas. Nessas transposigGes nos tragados das avenidas as instituigdes pelas quais se afirma, secular espiritualmente, o reinado da burguesia encontrardo sua apoteose. As ave- nidas eram cobertas com um manto que era descerrado na sua inauguracéo, como faziam com monumentos comemorativos. A proficiéncia de Haussmann adequa-se ao idealismo napoleénico que privilegia o capital financeiro. Paris vive 0 pleno florescimento da especulagdo. A Bolsa herda da sociedade feudal as formas do jogo de azar. As fantasmagorias do espago a que se entrega o “flaneu” correspondem as fantasmagorias do tempo em que se deixa levar o jogador. O jogo faz do tempo uma embriagués. Laforque viu nele a imitagdo miniaturizada dos mistérios da con- juntura. As expropriagdes feitas por Haussmann estimulam a especulacio fraudulent. As sentengas do Tribunal de Cassacdes, inspiradas pela oposicao burguesa e orleanista, au- mentam 0 risco financeiro das operagdes de Haussmann, que ainda tenta garantir sua tira- nia submetendo Paris a um regime de excegdo. Em discurso perante o legislative em 1864 ele expressa seu Sdio contra a populagdo desarraigada da metropole. Populacdo essa que seus empreendimentos mesmos nfo cessam de incrementar: 0 encarecimento dos aluguéis expulsa 0 proletariado para a periferia; 0s bairros parisienses perdem sua fisionomia pecu- liar; nasce o cinturdo vermelho. Haussmann alcunha-se a si proprio “artista demolidor”. Ele sente sua obra como vocago e insiste nisso em suas ‘Mémoires’. No entanto, ele faz. de Paris, para seus proprios habitantes, uma cidade estranha, estrangeira. Os pari- sienses no se sentem mais como eles mesmos e comegam a tomar consciéncia do card- ter inumano da metrépole. Dessa consciéncia nasce a obra monumental de Maxime du Camp, “Paris”. As “Jérémiades d’un Haussmannisé” lhe dao a forma de uma lamentagao biblica. O verdadeiro objetivo dos trabalhos de Haussmann era a defesa da cidade contra a guerra civil. Ele desejava impossibilitar definitivamente a construggo de barricadas em Paris. Foi com essa mesma intengao que Louis-Philippe introduzira 0 uso de pavimentos em madei- ra mas, contudo, as barricadas tiveram sua importancia na Revolugdo de Fevereiro. Engels interessou-se pela técnica da luta de barricadas. Haussmann pretendeu impedi-las por dois modos: a largura dos ‘boulevards’ inviabilizaria seu levantamento e 08 novos percursos es- tabelecidos encurtariam a distancia entre os quartéis e os bairros operdrios. Os contempo- rancos batizam o empreendimento de “embelezamento estratégico”’. “Fais voir, en déjouant la ruse, O République, 4 ces pervers ‘Ta grande face de Méduse 12 Au milieu de rouges éclairs.’ ‘Cangao de operdrios, por volta de 1850. Com a Comuna as barricadas reaparecem mais fortes e mais firmes do que nunca. Esten- dem-se pelos ‘boulevards’ atingindo amitide a altura do primeiro pavimento e dio cober. tura as verdadeiras trincheiras. Do mesmo modo 0 “Manifesto Comunista’ poe fim a0 pe- tiodo dos conspiradores profissionais a Comuna desmistifica a fantasmagoria que pesa so- bre a liberdade dos trabalhadores. Ela destr6i a iluso de que a revoluedo do proletariado, associado 8 burguesia, viria a completar a obra da Revolugfo de 1789. Esse engodo perma- nece por todo o periodo entre 1831 ¢ 1871, desde o levante de Lyon até a Comuna, mas a burguesia jamais partilhou desse equivoco. J4 na Grande Revolugdo comega a luta con- tra os direitos sociais do proletariado e coincide com 0 movimento filantrépico que diss mula essa Iuta e que sob Napolego III tem seu desempenho mais significativo. A obra mo- numental que indica a orientaco desse movimento aparece nessa época: ‘Les Ouvriers Européens’ de Le Play. A par com a luta escamoteada representada pela filantropia a bur- guesia ndo arrefeceu em momento algum o combate aberto de classes. JA em 1831 ela o reconhece nesta frase do ‘Jornal des Débats’: “Cada industrial vive em sua fabrica como 0 Proprietério de uma plantagdo em meio a seus escravos. Se a maldigdo das antigas revol- {a operdrias é ndo contar com uma teoria tevoluciondria que lhes indique o caminho, es. sa € também, por outro lado, a condigdo de sua forga sem mediagoes e do entusiasmo com que acometem a introdugo de uma nova sociedade. Esse entusiasmo, que tem seu pice por ocasido da Comuna, desloca para 0 campo dos operarios os melhores elementos da burguesia mas também acaba por tornar submetido aos piores elementos desta o proletariado insurgente. © incéndio de Paris coroa dignamente a obra destruidora de Haussmann. “Meu bom pai esteve em Paris” KARL GUTZKOW: ‘Cartas de Paris’, 1842 Balzac foi o primeio a falar das ruinas da burguesia mas quem primeiro as contemplou com 0 olhar liberado foi o surrealismo. O desenvolvimento das forgas produtivas arruinou 0s simbolos de desejo do século passado bem antes que desmoronassem os monumentos Que Os representam. No século XIX a evolucdo emancipou do jugo da arte as formas estru. turais assim como no século XVI as ciéncias se desvincularam da filosofia. A arquitetura como construgo de engenharia abre o caminho. Vem em seguida a fotografia como re: Produedo da natureza. A criacdo imaginativa prepara-se para tornar-se prética como erafi- ca publicitéria. Através dos folhetins a literatura é submetida a montagem. Todos esses Produtos tem o designio de apresentarem-se ao mercado como mercadorias mas relutam ainda em seus umbrais. Dessa época datam as galerias e os interiores, os pavilhdes de expo- sigdo € os panoramas. Sao reliquias de um mundo onitico. A utilizagdo ao despertar de elementos sonhados é um exercicio do pensamento dialético. Por isso 0 pensamento dialé. tico € © Srgio do despertar historico. Cada época ndo sonha apenas aquela que a seguir mas, sonhando, esforga-se por acordar. Ela contém em si seu proprio fim e ~ como Hegel jd houvera reconhecido — desenvolve e desvela esse fim pelas sendas da astiicia. Com a desagregaco da economia mercantil comegamos a reconhecer que, antes mesmo de sua derrubada, os monumentos da burguesia so ruinas Traduedo: Ricardo Marques de Azevedo a partir da traducdo francesa de Maurice de Gandillac em Walter Benjamin — “Oeuvres Il ~ Poésie et Revolution” (Les Lettiss Nowralee Paris, 1971, paginas 123 a 138) cotejada com a traduedo para o espanhol de Jestis Aguirre em Walter Benjamin - “llwsine. Ciones II — Baudelaire” (Taurus Ediciones, Madrid, 1972, pags. 171 a 190). Foi consultada tambema {raducdo para o espanhol de Roberto J. Vernengo em Walter Benjamin — ““Sobre el Programa de le Filosofia Futura y Otros Ensaios” (Monte Avila Ed., Caracas, 1970, pigs. 125 a 138). A edi¢do do or ginal alemdo é da editora Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1961, 13

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