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jacessivel & andlise critica. Confrontar as memérias de outros e ser mo- icadlo nesse encontro é didlogo; desistir das nossas, sem pensar, & ca- lagao. 24 de agosto. Chove, mas minhas flores permanecem lé. .O jornal de hoje diz que “por pelo menos dois meses, sudsticas maculam 0 monu- mento aos mértires da Resisténcia em Ostia, enquanto o distrito nada faz a respeito”. O distrito de Ostia (subuirbio de Roma a beira-mar) é governado por (ex?) fascistas da Alleansa Nazionale. O noticidrio nacional do. mesmo Jornal informa que um juis na Argentina negou a extradigao de Eric Priebke, torturador nazista ¢ oficial no massacre das Fossas Ardeatinas. Ele nunca te- ve de pedir perddo a ninguém. Capitulo 9 A geragéo* Jean-Francois Si Zz IE} uma tarefa singularmente complexa tentar responder a questo colocada pelos organizadores do semindrio: a geracao 6 uma peca da “engrenagem do tempo”? Ou, para formular a pergunta de outra for- ‘ma, a geracio um padrio — no sentido do metro padréo — que per- mite dividir © tempo? Em outras palavras, para ir uma outra metifora, serd ela uma espécie de metrénomo que marca com regulari- dade 0 tempo que passa? De fato, tal questo certamente merece ser colocada, pelo menos Por duas razées, Por um lado, entre a década e 0 século, a geracio, ou melhor, a sucesso das geragées acaso no co fui uma respiragio in- termediria? Por outro lado, essa respiragdo teria ainda, como elemento de “periodizaciio", uma vantagem aparente sobre 0 século ou a déca Estes siio produto de uma ra — como, em uma civilizagio dada, se divide 0 tempo — e, logo, dados rel inserco do homem na profundidade nos @ primeira vista — que é 132 sos # ABUSOS oA HistONIA OrAt parimetro invariével, de uma época ou de uma sociedade a outra, para icio da duracao. Sendo assim, surgem vétias dificuldades que tomam delicado 0 uso de tal padrao. Portanto, convém primeiramente fazer 0 seu inventério, Nem por isso essas dificuldades impedem, como veremos depois, que se defenda a pertinéncia do fator geragdo na andlise da divisio do tempo. Restrigdes e obstaculos A primeira dificuldade € historiogréfica. Por muito tempo, a pté- pria nogo de geracio foi considerada suspeita por numerosos historiado- res, fazendo-se néo raro restrig&es ao seu uso. A suspeita se devia ao fato de que todo pesquisador que se interroga sobre os fenémenos de geracio se sente, a priori, ameagado por pelo menos dois perigos: a banalidade e fa generalidade do propésito. Banalidade porque a sucesso das faixas eté- ras € a propria esséncia das sociedades humanas; generalidade porque, por essa mesma razio, 0 uso da nogéo de geracio fica as vezes na super das coisas, sendo antes elemento de deseri¢io do que fator de anélise. Jd as restrigées provinham do fato de que, por definigéo, a no- Gio de gerago associava as de tempo “curto” e de acontecimento. Ora, pelos cAnones dominantes da historiografia, esse tempo curto, simples ar- quejo, se mostrava singularmente desprovido de interesse em um momen- to em que apenas as respiragdes de longa ou média duraci dignas de interesse, Da mesma forma, o importante papel do fato ou acontecimento — inaugurador ou assinalador — na identidade de uma ge- ago bastava para desqualificar 0 estudo desta tiltima, em um tempo em que “factual” rimava com arcaico. Mas seria exagero dizer que a geragio constituiu-se em tabu no dominio do historiador nas tiltimas décadas. Seria mais correto dizer que sua condigio € incerta, Prova disso so as afirmagdes contrastantes dos dois fundadores dos Annales, Lucien Febvre e Mare Bloch. Se o primeiro aconselhava, em 1929, que “é melhor abandoné-la”, 0 segundo viria a ab- em 1941: “Cada vez la parece destinada a servir de marco 1 para uma andlise fundamentada das vicissitudes humanas”. " febvre, Lucien. Générations. Bulletin du Centre International de Synthise. Section de Synthése ‘istorique, 7, juin 1929, suplemento da Revue de Synthise Historique, 21 (13941):37-83 (ci- taglo p, 42); Bloch, Mare. Apologie pour histoire, Paris, Armand Colin, 1974, p. 151 A ceaacho. 133 A essa incerteza quanto a condigdo acrescenta-se uma segunda quase por esséncia, se esquiva quando ganha con- De fato, se considerarmos que um estrato demografico 6 se forna uma geracio quando adquire uma existéncia autonoma e uma identidade — ambas geralmente determinadas por um acontecimento inaugurador —, as vezes esse processo 6 se verifica em um setor bem determinado. Aliés, Raoul Girardet notou que, por isso mesmo, a nocéo de geracio era empregada sobretudo “em relagio a um grupo parti da comunidade nacional”.? Ao mesmo tempo, medimos os limites da ge ragdo como elemento de “periodizagio”. Se, em certos casos, esta perde sua consisténcia, fundindo-se aos demais aspectos de uma sociedade, co- como marco da insergo dessa sociedade na du- Conseqiientemente, como dificuldade suplementar, a nocio de “periodizagao” remete a de regularidade. Ora, os fatos inauguradores se sucedem de maneira forcosamente irregular e por isso existem ge- ragées “curtas” ¢ geragdes ngas”.? E assim como o econémico, 0 so- _ndo avancam no mesmo passo, e as lio a esses diferentes registros, so de geometria va- idade também existe ve geragées, em ri ridvel, tal ph po. salmente em rela ao tem- Acrescentemos uma iiltima objegdo posstvel ¢ haveremos de con vir que 0 uso da geracdo como padtao exige vigikincia ¢ precaugées, Essa objesio provém precisamente de tudo o que precede. Certamente a ge- Tago, no sentido “biol6gico”, & aparentemente um fato natural, mas tam- bém um fato modelado pelo acontecimento e por outro derivado, as vezes, da auto-repre sentido, a geracio é sifica e rotula, ® Girardet, Raoul. Du concept de génération & Modeme et Contemporat Tomo emprestada de Mate Bloch. Sobre esse ponto sobre 0 uso da nogio de geraglo, ver notadamente © meu artigo Gé litique. Vingiéme Sidle, Revue d'Hisoire de modo mais geral, inration et histoire po- 134 Utos 4 Arusos DA WierOHiA Onat rt 135 Virtudes “periodizantes” P6e tanto mais que a geracdo, como ja assinalamos, também é de ‘Seometria variével, segundo os setores estudados — econdmico, social, po- Itico ou cultural. Néo 6 pode exist defasagens entre eles — 0 que nao induz forcosamente a ritmos diferentes — como hé também arritmia. Sen. do assim, de qual desses setores a gera¢io marca 0 compasso? Portanto, e preciso defender, no final das contas, a geraéo con- cebida como uma escala mével do tempo. O que limita, certamente, suas Virtudes de “periodizacio”. Mas, uma vez. admitidos tais limites, a nogdo de geracdo, em vez de se dissolver como nao-objeto de histéria, perma. nece fecunda para a anélise histérica e, notadamente, para as respiragdes do tempo. Caberia entéo negar a geracio qualquer virtude “periodizante”? Isso seria um equivoco, pois a geragio é de fato uma pega importante da “engrenagem do tempo” e como tal deve ser tratada, com a condiglo, to- davia, de estabelecer desde logo dois limites desse padrdo. Primeiramente, ele eldstico, devendo-se banir qualquer visi tagérica das geragies. De fato, estamos longe dessas eonstrugées aritmé- ticas que satisfazem & vista, mas sem grande significacio histérica. Alids, Herédoto jé observara que um século corresponde a sucesso de trés ge- ragOes.+ Mas, em geral, a observacio consttui um artifeio de apresenta- Gao: assim, Jacques Bainville propos em 1918 fazer a crOnica dos “nets”, dos “pais” e dos “avés’, de Waterloo 4.1 Guerra Mundial, em uma Historia de trés geragies Em histéria econémica, por exemplo, entre as duragées longa e média, caras a Fernand Braudel, e a crise, em geral breve, existem pro- vavelmente ritmos intermedi “‘ciclos” e “tendéncias”. Assi Mesmo supondo que essa visio tivesse fundamento no século XIX — 0 que é pouco provivel, leando-se em conta a densidade que t- nha entfo a histria nacional francesa —, esse ritmo temdrio® parece bem poueo adaptado as geragées “curtas” ¢ irregulares do séeulo XX Als, Henri Massis, que Ievou & pia batismal, pouco antes de 1914, a “geracio de Agatio”, escreveu um quarto de século mais tarde: “Esses retratos ge- néricos (que sem dtivida tém o defeito de ndo se assemelharem a nin- guém por quererem se assemelhar a todos) deve ser refeitos a cada 15 no que se refere ao estudo das mental dades econémicas, a abordagem por meio das geracdes provavelmente se. ria preciosa. Mas aqui jé estamos em um outro terreno, o cultural. Ha muito que Albert Thibaudet propés uma divisio da histéria literdria fran- cesa em geragées: assim, as de 1789, 1820, 1850, 1885 e 1914 marcaram sua Histdrid da literatura francesa de 1789 a nossos dias, Publicada pos- tumamente em 1936. E 0 tema das “geragdes literdrias” foi ainda mais ex- Plicitado por Henri Peyre em 1948. E embora tal abordagem provenha de uma generalizagio que apresenta falhas, sua repercussao e seus resultados ‘mostram que aj existe mesmo uma pista a ser explorada. Assim, € valido passar da histéria propriamente literdria para a histéria das “idéias”, Essa passagem é também visivel na obra de Claude Digeon, refletindo-se notadamente nos “divisores comuns”, “temas funda- mentais e novos” em torno dos quais se articulam geracées sucessivas, 9 Tanto nesse campo da histéria das “idéias” como naquele, correlato mas distinto, da histéria das “culturas politicas”," a nogao de gerac uma escala estratigréfica operatéria. Falta espaco aqui para mi estudos de casos. Mas ¢ evidente, por exemplo, que a atitude dos inte- Vimos portanto que, a histéria ritmada pelas geragées é uma atando-se ou encolhendo-se ao sabor da freqiién- lores. E a relativizagio do papel de padrao se im- “histéria em sanfona’ cia dos fatos inaugut to estabelecido e traduzido por Ph. &. Legrand (Pars, 1, Paris, Nowwelle Librairie Natio ne i} ‘ Peme, Henri. Les générations titéraires. Pais, Boivin, 1948, 2660, * Digeon, Claude, La crise cilemande de ta pene frangise (1870-1914), Paris, PU 1959. P. 7. 568p. 2 Sobre ¢ ditngto entre Os dois ives, ver Sirinell. Génération et hisote politique (1989). Nesse artigo, mencionel alguns dos pontos brevemente desenvolvdos aqui 136 sos & AnUtos oA HisTOMA ORAL lectuais franceses durante a guerra da Argélia nio pode ser esclarecida uunicamente & luz da clivagem direita-esquerda. No seio da esquerda, 0 fosso das geragSes desempenhou um papel essencial e acarretou um ver- dadeiro choque de culturas politicas.” Pelo viés das culturas politicas, & portanto o dominio politico que também € aferado pela geracfo. No seio de um partido, por exemplo, coabitam varias geragées que despertaram para 0 debate politico em con- textos diferentes. A cultura politica dos dirigentes, sobretudo, geralmente foi forjada no tempo de sua juventude, mais de um quarto de século an- tes de sua chegada ao primeiro plano. De modo endégeno — para as re- lagées numa determinada época entre os diferentes estratos demogréficos do partido —, assim como para o estudo da evolugéo global desse par- tido ao longo das décadas, a geragéo é pois as vezes uma “unidade de medida”.'% Existe, de resto, uma outra area em que essa “unidade de me- dida” & ainda mais operatéria: a hist6ria social — tanto para a demo- grafia, evidentemente, quanto para o estudo da mobilidade social. A histéria social da Terceira Republica francesa, aliés, difcilmente pode dis- pensar essa unidade de medida; e 0 papel entdo desempenhado pela Es- cola nos mecanismos de capilaridade social, notadamente, deve ser analisado pelo prisma da geragio.!* De modo geral, aliés, é 0 conjunto desses mecanismos que deve n sua tese, Jean-Luc Pinol, ser analisado especialmente por esse prisma. entre outras abordagens, acompanhou a trajetéria de 750 lioneses nasci- dos entre 1872 e 1875 e de outros 750 lioneses nascidos entre 1899 1900, e a pista se revelou preciosa.'> Para o estudo da imigracéio, igual- mente uma pista como essa € importante. Ela é até mesmo determinante imelleervels fran- sais. Les eahiers de 1 perstei, Serge les, Complexe, ur une histoire politgue. Paris, Seuil, |, Jean-Frangois. Des boutsers conquérants? cole et “promotion lque, In; ersten, Serge. & Rudelle, Odile (dis.). Le modale épublican. Pari 2 pinol, Jean-Luc. Mobiles et immobilismes dune grande ville frangaise: lyon de ta fin de XIKe sidcle & la Seconde Guerre Mondiale. Lyon tl, 1989. A cetacho 197 quando analisamos os processos de integragio, e a linguagem corrente, além disso, ratificou expressdes tais como “imigrado de segunda geracio”. ‘As breves observagdes precedentes conduzem a uma conclusio matizada. Obviamente, existem varias hipdteses sobre a geracio. Devemos or isso confind-la em uma espécie de prisio historiogréfica, considerando mais 0 peso das acusacées? Certamente que nfo, e a soltura, como vimos, J4 aconteceu. Ninguém contesta hoje a fecundidade do uso da geracao em histéria. Ela € incontestavelmente uma estrutura que a andlise histérica deve levar em consideragao, 0 que, diga-se de passagem, contribui — se & que isso € preciso — para reabilitar 0 acontecimento. Em vez de ser apenas a espuma de uma vaga formada pelas estruturas sécio-econdmicas, este também pode ser gerador de estruturas: por exemplo, as geracdes criadas ou modeladas por um acontecimento inaugurador. A geracio existe, portanto, no territério do historiador, a0 mes- ‘mo tempo como objeto de histéria e como instrumento de anélise. Pode la entéo ser um instrumento de medida do tempo, para voltar questio central do seminério? Do que foi dito antes, destacaremos dois pontos. Por um lado, seguramente a geragdo-padro nao existe: em nenhum caso podemos distinguir nela uma estrutura cronologicamente invariével, que twanscende “as épocas e 0s paises. Por outro, e sem que haja contradicéo com a primeira observacdo, a geracio é seguramente uma peca essencial, da “engrenagem do tempo”, mas cuja importéncia pode variar conforme 05 setores estudados e os periodos abordados.

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