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TEXTOS A hipocondria do sonho e o siléncio dos 6rgaos: 0 corpo na clinica psicanalitica Marla Helena Femandes Articulando sonho e hipocondria, este artigo enfatiza a importancia do investimento libidinal como substrato necessario @ atividade perceptiva, o que permite pensar modalidades de escuta dos eventos corporais. s publicagdes psicanaliticas tém mostrado que, nas tiltimas décadas deste século, o corpo vem retomnando ao cendtio da psicandlise apés um Jongo periodo de esquecimento e, porque nao dizer, desprezo. Hoje a questao do corpo aparece, nota Jean Starobinski, “como se nds 0 reencontrassemos apos ‘um esquecimento muito longo: a imagem do corpo, a linguagem do corpo, 2 consciéncia do corpo e a libera- (¢a0 do corpo tomaram-se palavras de ordem. Contagio- samente, os historiadores se interessam por tudo 0 que as culturas anteriores & nossa fizeram com 0 Corpo: ta- tuagens, mutilagdes, celebracées, rituais ligados as di- versas funcdes Corporais. Os escritores do pasado, por sua ve7, de Rabelais a Flaubert, sto tomados como tes- 43 temunhas: no entanto, de repente, percebemos que nao somos 0 Crist6vao Colombo da realidade corporal. Este foi o primeiro conhecimento que adentrou o saber hu- mano: “Eles pefceberam que estavam nus’ (Génese, 3, 7). Depois desse momento, © compo nao pode mais ser ignorado” Starobinski evoca a percepgao da nudez como a evidéncia irrefutavel da corporeidade do sujeito, um folona Fernandes 6 pscanaa,doutora em pcan ogi pa Unvoreidado do Pais Vi, profaeara do Peicossomltica do nstuto Sodes Sapionte, alora de “Uhypocondie ‘re et sence des organes: une clnique peychanaligue du soratiq, Para, Ed. Prossce Uneaten du Sepention 1298. Percurso n’ 23 - 2/1999 TEXTOS sujeito feito de came e 0550, habi- tando 1m corpo. No entanto essa unicidade do corpo imediatamente se transforma numa verdadeira ‘multiplicidade de corpos se o olhar ¢ dirige para o corpo enquanto ‘objeto de estudo” de tao variados campos do conhecimento humano. HA de se reconhecer, entdo, que fa- lar do corpo supde 0 defrontar-se ‘com varios corpos: 0 corpo biolégi- co, 0 corpo filos6fico, o corpo his- L6rico, 0 corpo estético, 0 corpo re- ligioso, 0 corpo social, 0 corpo an- tropolégico e, certamente, 0 corpo. psicanalitico. Ef justamente este cor po, abordado pelo instrumental tes- rico-clinico da psicandlise, que in- teresa aqui. A adverténcia_ um tanto provocativa de Starobinski se diri- Re aos psicanalistas precisamente no inicio dos anos 80, enquando se agitavam na Franca os debates em tomo das questées do corpo na psicandlise. De um lado os autores dia Escola de Paris, fiéis leitores de Freud, prosseguiam suas pesquisas insistindo na afiemagio do campo da psicossomitica psicanalitica. De outro, os autores de inspiracao lacaniana comegavam a tentar sis- tematizar uma produgao te6rica que Ihes permitisse incluir a problems- tica do corpo no campo do analisivel. Diante desse panorama, © lembrete “nao somos 0 Cristvao Colombo da realidade corporal” poderia ser escutado como um con- vite a pensar a problematica do cor- po pelo viés epistemol6gico, tinico guardiao da possibilidade de interlocugao da psicanilise com as demais disciplinas em que 0 corpo também se constitui como objeto de interesse ¢ estudo. ‘A demanda da clinica da atua- lidade defronta macicamente os analistas nao somente com 0 pro- blema da depressio, mas também com uma diversidade de queixas que envolvem diretamente o corpo. A evoluclo da investigacio psica- nalitica ampliou 0 campo tedrico- clinico da psicandlise para muito além das neuroses de transferén abrangendo também as psicoses, perversdes, os casos limite (ou boderlines), as toxicomanias (© ou- tras adicgoes) e a variedade dos quadros de somatizagio. Ao se acrescentar a esse panorama a ten- déncia de alguns pacientes a se sub- meterem a intervencOes cirirgicas de indicacio duvidosa, ou a torna- rem-se vitimas de acidentes mais ou menos graves, ou ainda a sensil dade aumentada de alguns para as doencas contagiosas, nao se deve deixar de constatar que implicar 0 corpo nas respostas dadas aos con- flitos internos € um fato bastante banal naquilo que se pode deno- Aces. poderia apresentar periodos mais ou longos de siléncio, durante o qual nenhum sintoma era detectado. minar a psicopatologia somatica da vida. cotidiana, Como enfatiza Joyce Mc Dougall’, é possivel que a manuten- ‘80 do equilibrio psiquico se reali- ze, na maior parte das situagbes dle vida, muito mais pela producto de sintomas somaticos do que pela producao de sintomas psiquicos, neuréticos ou psicéticos. Essas constatagdes da clinica da atualidade remetem imediatamente uma primeira questao: se 0 corpo bioldgico enquanto tal nio pode ser 44 objeto da psicandlise, existiria en- ‘G0 uma abordagem psicanalitica do corporal? Que corpo € esse que se ‘mostra, as vezes insistentemente, que pode ser acolhido pelo psica- nalista na sua escuta? © corpo em negative “Ha doencas piores que as doen- as, Ha dores que ndo doem, nem na alma ‘Mas que séio dolorosas mais que as outras. 6.) Hi tanta cousa que, sem existir, Existe, existe demoradamente, E demoradamente é nossa e Fernando Pessoa‘ Confrontei-me pela primeira vez. com a problematica tedrico-cli- nica que abordaret aqui no contex- to do meu trabalho, no Departa- mento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP, onde exercia atividades clinicas, de ensino € de pesquisa, divididas entre 0 ambulat6rio ¢ 0 Hospital Geral, Nesta ocasiao tinha a minha disposicio trés “enquadres de es- cuta” diferentes: 0 ambulat6rio, 0 Hospital Geral €, ainda, 0 atendi- mento psicoterpico em consulté- rio particular. Foi justamente a heterogeneidade dessa pritica que me motivou, através. da especificidade de cada um des ses “enquadres de escuta’, a bus- car distinguir a especificidade da propria psicandlise, orientando as ‘minhas pesquisas em direcao de uma compreensio psicanalitica do corpo. No percurso dirio que me le- vava do ambulat6rio a0 Hospital Geral, um fenémeno me chamou a atengio: em alguns pacientes, uma doenca poderia apresentar periodos mais oui menos longos dle siléncio, durante o qual nenhum sintoma era detectado € assim nada atestava a existéncia de um processo morbido. Quando a doenga nao tinha sido descoberta por acaso, na ocasidio de exames médicos de rotina, aconte- cia de © paciente procurar uma cor sulta médica quando a doenga havia atingido um grau de evolucio bastante avancado para conseguir ser tratada com sucesso. Porém, foi no cotidiano do tra- balho analitico que pude acompa- nhar uma de minhas pacientes a0 longo dos percalcos da evolucao de sua doenca orgiinica que, tendo sido descoberta por acaso, nao havia apresentado, antes do diagndstico, nenhum sintoma. Devo confessar que partilhava com a paciente a sur- presa e 0 choque experimentado pela descoberta absolutamente ines- perada da doenga. Naquela €poca, 0 carter sur- preendente e enigmitico do apare- cimento da doenca ocupou longamente minhas reflexes. Inici- almente, concentrei-me no rearranjo contratransferencial e transferencial que a anilise acabou sofrendo ao verse atravessada pelo evento somatico, Em seguida, interessei- me, gradativamente, pelas vicissitu- des da relagio do sujeito com o pré- prio corpo. Observei que, ao lado da quei- xa somatica insistente de alguns pacientes, também encontrava aque- les que muito raramente faziam re- feréncia a algo da ordem do corpo durante suas sesses. Alguns che- gavam mesmo a dara impressto de que 0 corpo havia ficaco “para fora’ do espaco analitico, como se 0 cor- Po S6 existisse em negativo. Examinarei alguns exemplos que podem ilustrar 0 que acabou por se constituir numa problemati- ca de pesquisa em psicanilise. * ‘Um dos exemplos refere-se a uma mulher de 40 anos que, a0 con- sultar um ginecologista para exames de rotina - 0 que ela nao realizava ha algum tempo - descobre a exis- téncia de um cincer de mama sem que ela tivesse experimentado ne- nhum tipo de sintoma, Ela viu-se, entao, obrigada a continuar as in- vestigacoes para verificar se jé nao havia a presenca de metistases. De fato, foram detectadas metastases no figado € a paciente teve que iniciar imediatamente 0 tratamento quimioteripico. Como essa paciente no havia experimentaclo nenhum tipo de sin- toma antes da descoberta do cin- cer, ela também nao apresentava, na primeira fase da quimioterapia, os sintomas incOmoxos que geralmente aparece nesse tipo de tratamento. Porém, no inicio da segunda série quimioteripica, os sintomas come- ‘aram a aparecer, e todos eles, tan- to 08 oriundos propriamente do cancer como aqueles provocados renal, era visivel, mas a paciente continuou ainda por muito tempo a interpretar todos os seus sintomas como sendo “fabricados” pelo tra- tamento € nao como a expressio vistvel do seu corpo doente Certas doencas tém, de fato, dirio 0s médicos - de uma maneira mais marcante que outras - teristica de se desenvolver em silén- cio. Isso faz com que elas possam ficar muito tempo sem receber ne- nhum diagnéstico. Este é 0 caso, por exemplo, da hipertensao arteri- al e também da maior parte dos ti- pos de cancer. Ora, se de um lado ha o cariter particularmente silen- cioso de algumas doengas, de ou- tro, pode-se pensar que os sinais somiticos existem sempre. Mesmo S: de um lado ha o carater particularmente silencioso de algumas doengas, de outro pode-se pensar que os sinais somaticos existem sempre. pela droga quimica, eram interpre- tados por ela como sendo “fabrica dos” pelo tratamento. A coincidéncia, nesse caso, en- tre © surgimento dos sintomas e 0 inicio da quimioterapia foreceu 0 material necessirio para alimentar ‘uma recusa de contato com a reali- dade do seu estado fisico. O cancer comecou a tomar conta da maior parte das suas fungdes orginicas, a fadiga aumentou muito € o inchago, denunciando © mal funcionamento 45 que sejam extremamente discretos, eles provocam sempre uma pertur- bagao, ainda que essa seja minima. Esta é uma problematica que diz respeito a todo processo de adoecimento: como os sinais de uma doenca sio percebidos pelo sujeito, permitindo que eles se trans- formem em sintomas? No contato com os pacientes somiticos, pude observar que a possibilidacle do sujeito interpretar 6s sinais do seu corpo como algo TEXTOS capaz de anunciar a existéncia de uma doenga pode passar pela vist- bilidade do sintoma. Isto é, 0 fato de haver um reconhecimento visu- al do sintoma no corpo vai permitir A psicandlise amplia a visio do adoecer ao apontar as implicagdes subjetivas que acompanham toda perturbagao orgdnica. uma abordagem do estado de do- ena diferente daquela que 0 sujei- to poderia ter quando nao existe inscricio perceptivel. A nogio de percepcao permite estender 0 sen- tido dessa visibilidade a dor que, embora invisivel, € sentida pelo paciente no seu corpo. Dito de ou- tra forma, mesmo que a dor nao yenha acompanhada de um outro sintoma visivel, 0 que 0 sujeito sen- te o leva a engajar-se na via de uma interpretacao dele mesmo como eventual doente. Chamo a atencio também para a existéncia de um grau ainda mais sutil na questio da percepeao do corpo: trata-se daque- las situacdes em que nao existe ne- nhum sintoma visivel ov doloroso, mas nas quais.o sujeito percebe & descreve um mal-estar difuso, algu- ma coisa que ele sente como sendo esiranha ao seu funcionamento ha- bitual. ‘Nessa variabilidade que vai do sintoma visivel ao mal-estar difuso, passando pela dor, o sujeito dispoe sempre de um sinal que lhe anun- cia que “alguma coisa” de estranha 0 seu funcionamento corporal es acontecendo. Porém, quando exis- te uma auséncia completa de sinais, interpretar-se como doente torna-se uum fato de tal forma abstrato que a dloenga pode ser facilmente negada. Ora, a psicandlise amplia a dio adoecer ao apontar para as implicacdes subjetivas que acompa- nham toda perturbacao orgfinica. P- L Assoun, ao se interessar por essa ‘questio, aponta o papel do incons- ciente como o “lugar de passagem, 0 mesmo tempo necessirio e mis- tetioso, onde, de alguma forma, tor- na-se ‘indecidivel’ a relagao entre o psiquico € 0 somitico’”. Fica, en- io, evidente que a especificidade da contribuicio psicanalitica 20 es- tudo das implicagdes da subjetivi- dade no corpo reside exatamente na teflexao sobre o papel do inconsci- ente nas relacoes entre 0 psiquico € 0 somético, A partir dai, € esco- Ihendo circunscrever os referenciais te6ricos dessa investigacio a0 mo- delo freudiano, uma outra questo se coloca: que vias Freud teria aber- to para permitir explorar as relacoes entre 0 corpo € o inconsciente? Ahipocondria do sonho 0 silencio dos orgios Freud oferece uma pista interes- sante quando convida a refletir so- bre © fato de que “nos sonhos, a doenca fisica incipiente é, com frequéncia, detectada mais cedo mais claramente do que na vida de vigilia’. Apontando para o fato de que no sonho “todas as sensacoes costumeiras do corpo assumem pro- porcdes gigantescas”, Freud diz: que essa amplificacio das sensagoes € de “natureza hipocondriaca” e “de- pende da retirada de todos os in- vestimentos psiquicos do mundo extemo para 0 ego, tomando pos- sivel o reconhecimento precoce das modificagdes corporais que, na vida de vigilia, permaneceriam.inobser- vadas ainda por algum tempo £ interessante notar que, a0 qualificar © sonho de hipocondria- co, Freud Ihe atribui, além do esta tuto alucinatério, um estatuto perceptivo. Essa formulacio supde que 0 sono, pela sua propria regres- io, permite o olhar do sonho so- bre o interior do corpo. O estado de sono, € certamente 0 sonho, so aqui os instrumentos de uma abor- ‘lagem que me pareceu permitir uma compreensio metapsicol6gica do modo de relagio do inconsciente com 0 corpo. Ao chamar a atengao para a natureza hipocondriaca do sonho, Freud oferece um ponto de partida precioso para o desenvolvimento metodol6gico desse trabalho”. Isto 6, a utilidade, para a construcao das hipoteses, de colocar em relagio o excesso de sinais somaticos dos hi- pocondriacos e a completa ausén- ia desses sinais em alguns pacien- tes organicamente doentes. Desta forma, 0 meu interesse centrou-se ‘numa questo aparentemente pro- saica: 0 que leva certas pessoas a demorar muito mais do que outras para perceber os seus sinais somaticos? Tive a ocasiao de encontrar, a0 lado daqueles casos nos quais 0 paciente nada havia sentido até a descoberta da doenga, outros casos em que 05 sinais mérbidos apare- ceram antes do diagndstico, sem que 0 sujeito os tenha reconhecido como tais. Poderia dizer que a vari- abilidade da percepcio do proces- so mérbido vai de uma auséncia completa de sinais até uma presen- ca de sinais somsticos mais ou mé fos evidentes, mas que sio, de al- guma forma, negados pelo sujeito, ‘Um outro exemplo diz respeito a uma mulher, médica muito respei- tada em seu meio profissional que, desde a adolescéncia, tinha regras ‘abundantes. Depois de ter tido dois filhos, ela decide por um DIU’e os sangramentos menstruais aumentam ‘muito. No momento em que é apro- vada num concurso para uma vaga de professora universitiria, € obri- sgaca a realizar uma série cle exames meédicos, constatando-se, nessa oca- sido, uma anemia pronunciada e uma hipertensio arterial, Decide-se, entao, por retirar 0 DIU e segue 0 tratamento para a hipertensio. AS hemorragias menstruais, porém, continuam e ela afirma que “esque~ ceu o problema” © que, apesar da intensidade das hemorragias, “se adapta” utilizando todo més fraldas lingua recebeu a tradugio de “recu- sa (da realidade)” pela sua telacio com 0 fetichismo e as psicoses - re- cebeu uma atengio considerivel da parte dos psicanalistas, a questio mais especifica de uma “recusa (da realidade)" dos sinais somaticos niio thes despertou até hoje um in- teresse particular. Essa questio é freqientemente assinalada, mas muito pouco estudada; provavel mente porque ela faz aproximar, de maneira excessiva, a observagao médica da observacao propriamen- te psicanalitica."” Esses fendmenos de uma recusa da realidade pocem Div inutse poténcia corporal faz parte da condigao de doente, também faz parte da realidade do envelhecimento, comum a toda existéncia humana. para adultos no lugar dos absorven- tes habituais. Dez anos depois, uma biopsia uterina constata uma hiperplasia endomettial. A recusa da realidade, nesse caso, se traduziu pela negligéncia com a qual essa aciente tratou os sinais somticos evidentes no seu corpo, marca de uma espécie de surdez ao que esse corpo tentava insistentemente “di zer’. Fendmenos como esse, de re cusa da’ realidade dos. sinais somiticos, niio escaparam aos ob- servadores mais atentos entre psi- quiatras, psicdlogos e psicanalistas. Se o fenémeno que Freud designow como Verleugnung - que em nossa ir de uma simples surclez em rela- Ao aos sinais sométicos, mais ou ‘menos evidentes, até uma recusa da realidade claramente psicética. A partir de tudo isso, suponho que, em alguns pacientes, a recus da realidade abrigaria um fantasma de indestrutibilidade do corpo, ‘como se 0 sujeito se recusasse a ver- se como vulnerivel. Neste sentido, © sentimento de onipoténcia € a re- cusa da realidade parecem manter entre si relagoes estreitas, combinan- dose, as vezes, com um ideal de ego bastante poderoso que leva o indi- viduo a tentar manter-se na ilusio de um corpo inatingivel ¢ de uma satide perfeita a7 Insisto no fato de que certos fenémenos de recusa da realidade 10 muito frequentes na psicopa- tologia somética da vida cotidiana de cada um de nés, Nao temos 0 habito de refletir dessa forma cada ver que negligenciamos seguir um tratamento médico até o fim, ou ain- da quando nos expomos @ peque- ‘nos riscos no cotidiano. Para que possamos nos ocupar do nosso pro- rio compo, € preciso que sejamos capazes de nos imaginar como po- dendo fi jogo aqui é a dimens: do sujeito, que evidentemente esti ‘em relacao com a castragao, com a possibilidade de aceitar a realida- dee das limitagoes do corpo. Se a li mitagio da poténcia corporal faz parte da condigao de doente, ela também faz parte da realidade do envelhecimento, constituindo-se, assim, num momento comum 3 toda existéncia humana Freud freqiientemente enfati- zava 0 quanto os deslizes entre 0 normal € © patolégico podem ser sutis. Em 1937, ele afirma que: “O aparelho psiquico nao tolera 0 desprazer; tem de desvid-lo a todo custo, € se a percepcao da realida- de acarreta desprazer, essa percep- gio - isto é, a verdade - deve ser sactificada. No que se refere a peri- gos extemos, 0 individuuo pode aju- dar-se durante algum tempo através da fuga e evitando a situacio de perigo, até ficar suficientemente for- te, mais tarde, para afastar a amea a alterando ativamente a realida- de, Mas niio é possivel fugir de si proprio; a fuga nfo constitui aux lio contra perigos intemos. E, por essa 1azo, os mecanismos defensi- vvos do ego esto condenados a fal- sificar nossa percepgio interna € a nos dar somente uma representagio imperfeita e deformada de nosso proprio Id.” Fica evidente, entao, © quanto a percepeio, intema ou externa, est4 submetida aos mean- dros do prazer/desprazer, revelan- do, assim, 0 reinado da subjetivi- TEXTOS dade, mesmo quando se trata de operacoes claramente ligadas a consciéncia, como € 0 caso da per cepcio, Para melhor circunscrever essa problematica, restrinjo-me a ques- tio que denominarei o fendmeno do silencio das drgdos", isto €, Aque- les casos em que observa-se uma auséncia completa de sinais somiticos, deixando sob a égide da recusa (da realiclade) (Verleugnung) (08 casos nos quais os sinais Morbi: los aparecem como evidentes. Essa testriglo supde, naturalmente, a idéia de que, em relacio a recusa da realidade, 0 siléncio das drgdos parece designar um momento ante- rior. No siléncio dos érgdos, 0 corpo € colocado em siléncio, nao faz ne- nhum barulho, nao “fala”; na recu- sa da realidade, 0 corpo “fala” mas nao é escutado, testemunhando, assim, de uma espécie de surclez em relacdo aos sinais que se mostram. ‘A minha questio poderia, en- Wo, ser formulada claramente assim: © que permite a0 corpo existir en- quanto objeto psiquico? O modelo do investimento hipocondriaco do corpo Tomando como princfpio metoclol6gico 0 que Freud ensinou com 0 seu método de construcio te6rica, ou seja, a necessidade de “reencontrar a aparente simplicid- de do normal através de conjecturas a partir das distorgées e exageros do patolbgico™ pode-se dizer que 2 hipocondria interessa na medida em que pode ser compreendida como 0 "exagero” patolégico de uma escuta do corpo. Seri através desse “exagero” que tentarei com- preender os mecanismos em jogo na percepcio dos sinais somticos, Deixando entrever que uma certa situagao libidinal estaria na’ base da “amplificagio” das sensa- g0es corporais no sonho, Freud observa que € sob 0 efeito de uma regressio, prépria ao adormecer, que 0 corpo pode ser informado, pelo seu erotismo intemmo, de mo- dificagdes corporais incipientes “que, na vida de vigilia, perman ceriam inobservadas ainda por al- gum tempo”. Para Freud, € sufici- ente assinalar esse estado libidinal proprio do sono. £ nessas condi- Ges que Freud fala de um reconhe- Cimento precoce, pelo sonho, das ‘modificagoes corporais que tém lu- gar no interior do corpo. Com o conceito de pulsio, Freud coloca em evidéncia a distin- ‘cdo entre um corpo anatémico ¢ um corpo libidinal. Do ponto de vista da psicandlise, 0 corpo é, entio, 2 sede de conflitos pulsionais. Sendo assim, quando falamos cle uma abot dagem psicanalitica do corpo podemos estar nos referindo aquilo que a escuta do analista reconhece € acolhe enquanto um corpo cuja “anatomia” é constru‘da a partir dos investimentos libidinais mediati- zados pela alteridade e pelos fan- tasmas. Ora, quer seja na compreensio do cariter hipocondriaco do sonho ou da hipocondria em toda a sua diversidade de concepgdes te6rico- clinicas, © ponto que Freud salien- ta em primeiro lugar remete direta- mente 2 teoria da libido, ou seja, a0 desenvolvimento da libido nos seus momentos auto-erstico e narcisico. De fato, 0 investimento que opera © hipocondriaco no seu préprio corpo permitiu a Freud utilizé-lo como um modelo privile- giao do tetomo da libido sobre o go, 0 que me conduziu a formular a hipotese de que o investimento libidinal é um substrato necessario a atividade perceptiva Se no inicio Freud atribuiu aos otificios do corpo o estatuto de 20- nas erdgenas, ele vai defender, 1914, que a erogeneidade é uma propriedade de todos os érgiios. Essa segunda versio da eroge- neidade a descreve como generali- zada 2 todo 0 corpo e, por isso mes mo, suscetivel a aumentos ¢ dimi- nuigdes em cada parte desse mes- mo corpo. Freud explicard assim a hipocondria como 2 modificagao da erogeneiciade de certos rgiios, que corresponcle a uma modificacio dos investimentos da libido no ego."* Desde 1911, no texto sobre Schreber, Freud havia descrito trés ‘momentos no desenvolvimento da libido: 0 auto-erotismo, 0 narcisis- N. siléncio dos orgdos 0 corpo € colocado em siléncio, nao faz barulho, nao “fala”; na recusa da realidade, 0 corpo “fala”, mas nao é escutado. ‘mo € amor objetal. O narcisismo era, antes de tudo, um estégio in- dispensivel a esse dlesenvolvimen- to, mas também um momento no qual a libido passa do auto-erotis- ‘mo ao amor objetal. Em 1911, ji encontramos a idéia de que o nareisismo retine “em uma unidade as pulsdes sexuais que trabalham auto-eroticamente”. A unidade em questo € antes de tudo “o si mes- ‘mo, o proprio corpo""*. O amor que experimentamos por nés mesmos cconstituiria assim um ponto de pas- sagem necessario para atingir 0 amor objetal. No que diz. respeito a0 auto-erotismo, vale salientar que em 1905 Freud j4 0 apresentava como 0 protétipo da sexualidade infantil em oposi¢io a uma ativida- de sexual adulta caracterizada pela escolha de objeto” Em 1914, Freud enfatiza que 08 objetos que inicialmente assegu- ram_a conservacio do individuo tor- nam-se, em seguida, os primeiros objetos sexuais © 0 alvo do investi- ‘mento libidinal". Lembremos que aqueles que tomam o corpo como um objeto singular de investimen- tos. Em se tratando da hipocondria, fica-se tentado a falar de um auto erotismo negativo em razio do desprazer que ele provoca. Entre- tanto, no caso da hipocondria, mes- mo se 0 prazer € travestido pela dor, permanece a presenca de um investimento libidinal, enquanto N. hipocondria, mesmo se o prazer é travestido pela dor, permanece a presenca de um investimento libidinal, enquanto o siléncio dos orgdos parece denunciar uma anestesia do corpo libidinal mais tarde Freud vai colocar a ‘autoconservacio ao lado da sexua- lidade, sob a égide de Bros ou pulsio de vida, em opo: pulsio de morte, Sendo a: salientar que o papel do qual estio revestidos os primeitos objetos se- xuais € niio somente o de assegurar a conservagio do corpo mas tam- bém, por conseqtléncia, o de pro- mover a sexualidade enquanto tal. Isso coloca em evidencia o fato de que € 0 outro, a ateridade, 0 eixo constitutive da subjetividade, que se encontra na origem do investi- ‘mento libidinal do corpo. A nogao de auto-erotismo, tal como foi enunciada por Freud nos ‘Trés ensaios, apesar de ter sido re- lativamente deixada de lado em fun- ¢40 do narcisismo, mantém aqui todo seu interesse, sobretudo no que diz respeito A compreensao psi- canalitica tanto da hipocondria como de certos pacientes somiticos, silencio dos érgdas parece denunci- ar um fendmeno de anestesia do corpo libidinal. Sea libido quando se retira dos objetos retorna a0 ego, pode-se pen- sar que isso esclareceria 0 apego do hipocondriaco ao seu érgie doen- te, da mesma forma que esclarece- ria 0 mecanismo da natureza hipo- condrfaca do sonho. Isto é, durante © sono, o investimento libidinal no go permitiria ao sonho “amplificar” as sensacdes corporais minimas. Porém, para que isso seja possivel, € preciso que 0 corpo esteja inves tido de uma capacidade erdgena minimamente suficiente. Dando pro- vas dessa capacidade, o hipocond aco retira 0 seu investimento libidinal dos objetos para concentré- Jo quase inteiramente sobre 0 6r- gio ou a funcio orginica que o pre- ocupa, Ja naqueles pacientes nos quais observamos o fenémeno do siléncio dos 6rgdos, na auséncia de 49 um investimento libidinal suficien- te, tem-se a impressio de estar di- ante de uma espécie de sono do corpo, porém um sono sem sonho. Isso permite supor que um minimo de investimento "hipocondriaco” do corpo € necessario a toda organiza- Gio psiquica. Seguindo literalmen- tea pista de Freud, vale a pena in sistir que 0 uso que aqui se faz da hipocondria atribui a ela um inte- resse muito além daquele que se pode ter pelo sintoma hipocondria- co ott pela doenga hipocondria pro- priamente dita A fecundidade semantica da palavra “hipocondria” coloca no horizomte da atualidade muitas questdes: quando falamos de hipocondria estamos falando de uma sindrome ou de um sinto- ma? Da neurose ou da psicose? Tra- tase de um modo de organizagao psiquica temporario, que poderia aparecer em diferentes periodos da existéncia (por exemplo adolescén- cia, menopausa, terceira idadey? Estarialigada a determinados mo- mentos da andlise? Faz ela referén- cia a um mal-estar psiquico, que na cultura atual parece tracluzir-se mais facilmente por uma queixa somética? Ou seria ela uma forma de anteci- pacao de uma doenga ainda nao identificada? Toda essa variedade de ques- tes testemunha o interesse no es- tudo da hipocondria com 0 objeti vo de permitir uma maior compre- ensio de alguns dos fendmenos com 8 quais nos deparamos no cotidia- no da clinica psicanalitica atual. Como Freud mesmo salientou nos seus Estudos sobre a bisterict: “atti- buir palavra hipocondria apenas © sentido restrito de ‘medo de do- encas’ é limitar em muito sua aplicabilidade”® , Articulando sonho € hipocondria, procuro enfatizar um certo modelo de escuta do proprio corpo que pode nos ajudar a pen- sar também as modalidades de es- cuta dos eventos corporais no inte- rior da situagao analitica. Do “corpo de sensacdes” a0 “corpo falado” No inicio da vida do bebe, s as sensagdes Corporais que ocupam, © primeiro plano. Aquelas sensa- gOes que causam desprazer vao constituir uma demanda e, quando © bebé chora, esté, a sua maneira, exprimindo uma queixa. A me res pond a esse apelo apaziguando as sensacdes corporais desagradaves. Para que ela possa escutar © corpo do bebé ¢ interpretar os sinais de lum corpo que niio pertence mais a0 seu, ela precisa dlar provas de um preciosos. Ela salienta, primeira- mente, a relacao da mae com o seu proprio corpo como “lugar do pra- zer” e, em seguica, chama a aten- Ao para o prazer que a mie pode experimentar no contato com 0 cor- po do bebé, o prazer de nomed-lo € de dar assim a0 bebé um conheci- mento da existéncia desse corpo. Esses dois niveis de prazer funcio- nariam, segundo Piera Aulagnier, como as condigdes iniciais que per- mitiriam a crianca, mais tarde, con- ceber 0 seu corpo como um espaco unificado. Ela salienta, ainda, a im- portancia, nesse trabalho de N.. pacientes em que se evidencia uma auséncia completa de percep¢io dos sinais somaticos, a experiéncia do corpo parece ter ficado ancorada num tempo anterior ao auto-erotismo. funcionamento psiquico, por assim dizer, suficientemente “hipocondri aco” - nem a mais, nema menos. O trabalho de escuta e interpretagao 86 € possivel quando existe um in- vestimento da mae no corpo da cri- anga, Ora, esse investimento supoe que ela é capaz de experimentar um razer ao ter contato com 0 corpo da crianga ¢ a0 nomear para ela as partes, as fungOes © as sensagbes desse corpo. Este investimento su poe que a mae € capaz de transfor- mar esse “corpo de sensagdes” em uum “corpo falado” A. esse propésito, Piera Aulagnier fornece alguns elementos nominagio do corpo, da palavra da mle no reconhecimento do prazer que a crianca experimenta no seu proprio corpo, pois sio esses prazeres parciais do comeco que Preparam o acesso a0 gozo sexual, se esse corpo pode tornarse um espaco unificado. Piera Aulagnier insiste ainda que € também 0 pra- zer que a mie experimenta na sua relacao com 0 pai que garante a cri- anga, mais tarde, além dos prazeres parciais da sexualidade infantil, 0 aicesso a sua prépria procura ce pra- zer objetal. Antes mesmo que a cri- anca adquira a nocao de um corpo unificado, sto esses diversos ele- 50 mentos que permitiriam, ainda na experiencia de dispersao do corpo, a constituiclo do auto-erotismo € abritiam, em seguida, a passagem em ditega0 ao narcisismo, com a constituicao de um corpo unificado, € assim em direcao ao amor objetal.” Enfatizarido que no comeco da vida € a mae que escuta ¢ interpre- ta 0s sinais do corpo do bebé, e que se trabalho de escuta e interpre- taco 56 € possivel se existe da par- te dela um investimento libidinal nese corpo, saliento, de acordo com Freud, que papel da mie nio € simplesmente o de assegurar a conservacao da vida, mas, simulta- neamente, o de permitir 0 acesso a0 prazer através da promogao da se xualidade, Portanto, a vida sexual se onganiza a partir desse substrato que € a satisfacio das necessidades isicas. A constitui¢ao do auto-ero- tismo supde originalmente a exis- téncia de um objeto maternal que assegurou a satisfacdo das primei- ras necessidades; 0 auto-erotismo ven’ apenas em resposta a perda desse objeto. © acesso a0 corpo sexuado, promessa de prazer, su- poe, entéo, a existéncia de um pri- ‘meio tempo no qual as necessid des bisicas foram satisfeitas Na falta de um investimento necessirio, a experiéncia do corpo ficaria ligada necessidade, priva- da da descoberta desse corpo de prazer - num primeiro momento objeto clo investimento libidinal da ‘mae e, num segundo tempo, objeto do investimento libidinal do proprio sujeito. Minha hipotese salienta que naqueles pacientes em que se evi- dencia uma auséncia completa de percepeao dos sinais somiticos, a experiencia do corpo parece ter fi- cado ancorada no registro da neces- dade, num tempo anterior ao auto-erotismo. Neste sentido, 0 fe- némeno do siléncio dos érgdas de- nuncia, de uma certa forma, uma falencia da erogeneidade e, por con- sequiéncia da autopercepcao. © corpo na clinica psicanalitica Para que as construgoes te6ri- cas tenham, de fato, um interesse, 6 preciso imaginar 0s possiveis des- dobramentos no sentido de uma transformagio da prépria clinica, no sentido de uma abertura da nossa escuta. Em psicandlise a teorizagio exige, como em nenhum outro do- minio, a pesquisa dos seus funda- mentos metoclol6gicos nos ecos que emanam da especificidade da sua clinica. Sendo assim, o objetivo da pesquisa em psicandlise € permitir, em tltima instincia, pensar a situs Ao analitica tal como ela é, a sa- ber, duplamente caracterizada - en- quanto método de trabalho te6rico € enquanto método terapeutico. Se até aqui me detive nas vicis- situdes do investimento libidinal para tentar compreender 0 que se passa quando 0 corpo nao conse- gue se representar enquanto objeto psiquico, seria interessante tentar agora refletir um pouco sobre a maneira como os investimentos libidinais se organizam no interior da situagio analitica, onde, muitas vezes, 0 corpo do analista € do p: ciente, 0 corpo de ambos, € solici- tado enquanto moeda de troca, atra- és da palavra Como salienta Pierre Fédida, “se 0 médico pode se abstrair de seu corpo € permitir assim que 0 doen- te faca o mesmo, para que possa se exercer sobre ele um saber © um poder, © analista no pode esque- cer que seu corpo € 0 cenario no qual vém atuar os fantasmas do pa ciente, ou ainda, o lugar imag nario dos desejos de acordo com a economia primitiva da troca com 0 corpo dos pais”. Pode-se dizer, entio, que a aventura psicanalitica comega ld onde acaba a clinica mi dica, No corpo do analista se ence- ‘nam os jogos apaixonacos da infain- cia, que nao poderiam deixar de se atualizar na transferéncia. E € isso precisamente que faz da situagao analitica o lugar por exceléncia ca- paz de abrigar essa intensidade libidinal que constitui 0 motor da cura analitica, Na situacio analitica, em prin- cipio, a expresso que 0 sujeito da Aquilo que se passa com ele é uma expresso verbal e metaférica, per mitindo, desta forma, o desenrolar do trabalho analitico na tessitura fina dos meandros da linguagem. O contato com os pacientes soma- TN oss do analista se encenam ‘os jogos apaixonados da infancia, que nao poderiam deixar de se atualizar na transferéncia. ticos® rapicamente ensina que a expressio verbal € metaférica freqiientemente utiliza 0 corpo como imagem, solicitando do ana- lista um olhar € uma escuta capaz de figurar essa imagem e descrevé- la em palavra. Esses pacientes, entre alguns outros, colocam em evidéncia a li- mitagio da escuta do analista se esta tenta se guiar pelo modelo clis- sico, em que o trabalho analitico visa desvendar os sentidos ocultos do sintoma. Esses pacientes parecem necessitar que 0 analista os acom- panhe na busca das palavras capa- 51 zes de acolher os detalhes os mais fortuitos da sua fala e colocé-los em telagdo com 0 que se passa no seu corpo, permitindo, desta forma, que uum sistema simb6lico possa ir len- tamente se estabelecendo em tomo do evento somatico. Justamente onde © sujeito s6 pode mostrar seu corpo através dos processos psiqui- cos, isto €, através da palavra, € a escuta do analista que pode acolher a emergéncia do evento somitico na vida do paciente, reinventando-lhe uma trama. Esse acolhimento s6 é possivel se anal der nas ressonan ferénciais de suas proprias represen- tagoes frente 4 doenca somitica apresentada pelo paciente, Ora, sabe-se que 0s eventos somiticos, talvez pela sua carga de realidade muitas vezes inexorivel € cruel, afetam mais ou menos inten- samente © analista. A intensidade dessa afetacao interfere, certamen- te, na condicao psiquica determi- nante da escuta do analista, uma condigio que se instaura e se des- faz sem cessar. A violencia com a qual as vezes © corpo imrompe 0 espaco analitico dificilmente pode deixar 0 analista indiferente. Se os ‘males do corpo tém o poder de a terar tragicamente os destinos de uma vida, o que dizer dos pretensos deestinos de uma andlise? Uma jovem de 25 anos, at6nita pela descoberta inesperada de uma doenga grave, disse: “A doenga mudou meu dis- curso!” Fica claro que 0 discurso € aqui patamar da subjetividade. Uma subjetivicade inexoravelmente transformada pelo evento somatico. A intensidade dessas experién- cias solicita do analista a delicade- za de tentar manter-se no espago de um “entre”, isto é, nao cedendo cegamente as demandas imediatas e nem se ausentando demais num si -m eco, tentando perma~ necer no espago suspenso e aberto da palavra, Um siléncio rigido do analista pode enviar o paciente a muda, remetendo-o a TEXTOS U.. sil€ncio rigido do analista pode enviar o paciente a um solidao muda, remetendo-o a sua propria morte € incapacidade de lidar com os ¢ragos traumaticos de sua propria historia. sua propria morte € 2 incapacidade de lidar com os tragos trauméticos de sua propria historia. Nao € a-toa que esse tipo de paciente tem ne- cessidade de constatar a presenca viva do analista; & essa presenca que Ihe assegura que o analista nao esta “morto”. F interessante notar que simples expresses sonoras que emanam do analista muitas vezes sio suficientes para reassegurar 0 paciente, permitindo assim 0 desen- rolar do trabalho associativo. Nessas condigdes, 0 trabalho analitico pode funcionar como um. reorganizador da libidinizagao do corpo, como salienta Joel Birman: “A presenga viva do analista é ne- cessiria para que ele possa acolher © impacto das forgas pulsionais, se constituindo assim como esse Ou- ‘ro através do qual a libidinizacao toma-se possivel” ® Ora, no inicio da vida, quem acolhe o impacto das forgas pulsionais, procurando dar- Ihes nome e sentido, é a mie (ou seu substituto). Trata-se, aqui, nio apenas de acolher, mas de acolher enomear; € esse acolhimento e essa nomeacio que dao ao bebé a expe- riéncia da presenca da mae. Conforme salientei, para que a mie possa escutar o corpo do bebé e interpretarhe os sinais, ela pre- cisa dar provas de um funcionamen- to psiquico que qualifico de “hipo- condriaco”, justamente por colocar em evidéncia a presenga de um in- vestimento libidinal nesse corpo. Necessirio a toda organizacio psi- quica, esse investimento “hipocon- driaco” & 0 que permite & mae “es: cutar” um corpo que nao pertence mais ao seu, tomando-se capaz de interpretar esse corpo, nomeando- Ihe as demandas. * ‘Tomando o funcionamento “hi- pocondriaco” da alteridade mater ‘na como um modelo de escuta dos eventos corporais na sitacao ana- Iitica, posso concluir enfatizando que € 0 Outro-analista que, justa- ‘mente enquanto outro, pode inv tir 0 compo mudo e, através dessa complexa operacio de presenca, tentar acolher © nomear as sensa~ ‘ges desse corpo, transformando-o num “corpo falado”, Reinventando a trama da lin- ‘guagem, a situago analitica permi- te a emergéncia de um corpo que encontra, na experiéncia engendra- da pela escuta, a possibilidade de existir enquanto objeto psfquico. Na andlise, € pela palavra que 0 corpo se toma novamente habitado. NoTAS 1. 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