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Ill — CAMINHOS INTUITIVOS E INSPIRACAO Em dados momentos de nossa vida, a criatividade parece afluir quase que por si e dotar nossa imaginacéo com um poder de captar de imediato relacionamentos novos ¢ possiveis significados. Representa circunstan- cias especiais, sem diivida importantes, em que nos sentimos mais produ- tivos e mais criativos. Vista em sua dindmica, porém, a criatividade nfo deixa de abranger o processo total de nossa vida, e tanto os momentos que consideramos necessérios ou ‘desnecessirios’ alimentam a nossa sen- Sibilidade com miiltiplas cargas emotivas e intelectuais. © impulso elementar ¢ a forga vital para criar provém de! dreas ocultas do ser. £ possivel que delas o individuo nunca se dé conta, per- manecendo inconscientes, refratrias até a tentativas de se querer defini-las em termos de contetidos psiquicos, nas motivagées que levaram o indi- viduo a agir. Além dos \impulsos do inconsciente, entra nos processos criativos tudo 0 que 0 homem sabe) os conhiecimentos, as conjecturas, as propos- tas, as dtividas, tudo o que ele pensa\e imagina., Utilizando seu saber, o homem fica apto a examinar o trabalho e fazer novas opgdes.) O cons- ciente /racional/nunca se desliga das atividades criadoras; constitui um fator fundamental de elaboragao, Retirar o consciente da criagio seria mesmo inadmissfvel, seria retirar uma das dimensdes humanas.t Processos intuitivos Na verdade, porém, o ser humano nfo pode ser considerado em partes, s6 pode ser considerado como um todo integrande as suas partes. Se decerto nao cabe negligenciar as varias contribuigées especificas nos processos criativos, tampouco cabe atribuir funcio predominante seja ao 1 Essa afirmagdo pode parecer redundante. Mas veja-se, nas artes plisticas, 0 movimento da action-painting, a chamada ‘arte informal’ a iniciar-se na década de 1950, nos E.U.A., em torno do pintor Jackson Pollock (1912-1956). Ainda sob a influéncia do surrealismo europeu ¢ descrente, talvez em conse- qiiéncia da segunda guerra mundial, da racionalidade no homem, esse movimento 55 inconsciente seja ao consciente. O ato criador, sempre ato de integracdo, adquire seu significado pleno sé quando entendido globalmente. Assim como o préprio viver, o criar é um processo_existencial. Nao abrange apenas pensamentos nem apenas emogoes. Nossa_experién- cia_e nossa capacidade de configurar formas € de discernir simbolos ¢ significados se originam nas regides mais fundas de nosso mundo interior, do sens6rio e da afetividade, onde a emog%o permeia os pensamentos ao mesmo fempo que o intelecto estrutura as emogées. Sao niveis continuos ¢ integrantes em que fluem as divisas entre consciente e inconsciente e onde desde cedo em nossa vida se formulam os modos da prépria per- cep¢ao,. Sao os niveis intuitivos do nosso ser. Convém notar que 0 intuitivo néo se confunde com o instintivo. S40 essencialmente diferentes. ~~ : Segundo os conhecimentos de hoje, 0 ser humano é considerado um ser ‘pouco instintivo’. Concebe-se, como heranca genética do homem, certas tendéncias instintivas, predisposigdes, cuja fixagio e codificagao se estabelecem dentro dos contextos culturais em que se desenvolve o individuo. £ precisamente pela auséncia de comportamentos rigidos ins- tintivos que se explica a imensa flexibilidade e .adaptabilidade do homem, em suas reagées face a desafios sempre novos do meio ambiente natural, na aprendizagem cultural e em todas as manifestagdes mentais. A intuigio vem a ser dos mais importantes modos cognitivos do homem. Ao contrério do instinto, permite-Ihe lidar com situagdes novas € inesperadas. Permite que, instantaneamente, visualize e internalize a ocorréncia de fendmenos, julgue ¢ compreenda algo a seu respeito. Per- mite-lhe agit espontaneamente. A agiio espontinea intuitiva ndo é um ato reflexo ante um acon- tecimento, embora eventualmente inclua atos reflexos. Cabe ver, nessa agio intuitiva, mais do que a reagdo de um organismo humano: ela é rea- go de uma personalidade humana; e mais do que uma reagio, ela é sem- Pre uma agio. A acéio humana encerra formas comunicativas que séo Pessoais € ao mesmo tempo sio referidas a cultura. Com isso se dis- tingue 0 ato intuitivo do instintivo. A intuicéo esté na base dos processos de criagao. Postulava 0 automatismo do gesto como premissa e principio de criagdo. O gesto automético, involuntério, era tido como acdo diretamente oriunda do inconsciente e, assim excluindo o consciente, devia garantir a autenticidade espontinea da obra. Aliés, a proposta em si € significativa: ela € impossivel; é impossfvel excluir, volun- tariamente, a vontade. 56 Ordenagées perceptivas O que caracteriza os processos intuitivos e os torna_expressivos é a qualidade nova da percepgao. E a maneira pela qual a/intuigéo) se inter- liga com os processos-de-percepgao e nessa interligagdo reformule os dados cireunstanciaii ° ;, do mundo externo e interno, a um novo grau de essen- cialidade ‘estruturah; de dados circunstanciais tornam-se dados significati- vos., Ambas, intui¢ao e percepgio, sio_modos de conhecimento, vias de buscar certas ordenagées € certos significados. Mas, ao notar as coisas, h& um modo de captar que nem sempre vem ao consciente de forma di- reta. Ocorre numa espécie de introspecc4o que ultrapassa os niveis co- muns de percep¢ao, tanto assim que o intuir pode dar-se a nivel pré-cons- ciente ou subconsciente. Vejamos, porém, primeiro alguns aspectos da percep: Ela en- volve um tipo de conhecer, que é um apreender o mundo externo junto com 0 mundo interno, e ainda envolve, concomitantémente, um_inter- pretar aquilo que esté sendo apreendido. Tudo se passa ao mesmo tempo. “Assim, no que se percebe, se interpreta; no que se apreende, se com- preende. Essa compreensao nio precisa necessariamente ocorrer de modo intelectual, mas deixa sempre um lastro dentro de nossa experiéncia. Enquanto identificamos algo, algo também se esclarece para nés e em nés; algo se estrutura. Ganhamos um conhecimento ativo e de auto- cognicio, uma nogio que, ao identificar as coisas, ultrapassa a mera identificagio. Em qualquer situagdo em que nos encontremos, por exem- plo, haverZo de surgir inimeros dados, dos quais alguns talvez j4 nos se- jam familiares, outros novos, alguns talyez desconexos e outros até mesmo. ins6litos. No entanto, de modo aparentemente misterioso, de pronto os unimos. Os dados sero vistos em conjunto, pertencentes a situagio A qual também nés pertencemos. E, em conjunto, serio interligados e ava- liados: os dados, as varias ligagdes conosco, bem como as ligacées entre ligagées. Serfo percebidos como a trama de um evento em cuja ordenagao interior compreendemos consistir 0 contetido da situacao. A titulo de ilustragéo, pense-se numa cena téo corriqueira como entrar numa padaria a fim de comprar uma bisnaga de pio. Jé é tarde, estamos cansados e a padaria estd cheia de pessoas. Quantos momentos diferentes serio captados por nés num simples relance. Momentos ex- ternos e internos, fatos e sensagdes, ainda integrando-se o quase-perce- bido e o mal-percebido. Quantos relacionamentos mentais serio feitos instantaneamente para podermos avaliar os dados existentes na situagao, julgé-los em relagéo a nossos desejos e ‘perceber’, entre outras coisas, se vai ser possivel atrair a atencSo do vendedor e formular nosso pedido. 57 No conjunto de relacionamentos revela-se uma ordem significativa para ns, ela encerra a proposta para nossa acao. Esses relacionamentos men- tais refletem mais do que apenas associagdes. Nao ha divida de que o tenémeno associativo sempre existe, porquanto em qualquer acontecimento de pronto se desencadeia em nossa mente uma série de idéias e-emogdes. como parte integra Contudo, o préprio ato de apreen- der as associagées, no instante em que se d4 a apreenséo de um evento, também ocorre como um processo ordenado. Por isso conseguimos per- ceber as associagées. O que percebemos, entao, é apreendido em ordenagées, e como o percebemos, sao outras tantas ordenagies. Tudo participa de um mesmo | processo ordenador.) O perceber é um estruturar que imediatamente se converte em estrutura. E um perene formar de formas significativas. Imagens referenciais Desde cedo, organizam-se em nossa mente \certas imagens.) Essas imagens representam disposigdes em que, aparentemente de um modo natural, os fendmenos parecem correlacionar-se em nossa experiéncia. Dissemos ‘aparentemente natural’ porque desde o infcio interligamos as disposig6es que se formam com atributos qualitativos que Ihes so esten- didos pelo contexto cultural. ra As disposigées, | imagens di percepeao, compdem-se, a rigor, em grande parte de Valores culfurais/ Constituem-se em ordenagdes ‘caracte- risticas’ e passam a ser normativas, qualificando a maneira por que novas situagdes serfo vivenciadax pelo individno, Orientam o seu pensar e ima- ginar. Forman) imagens referenciais| que funcionam ao mesmo tempo como uma espécie de prisma para enfocar os fendmenos e como medida de avaliagao. Damos a seguir dois exemplos, um do Egito antigo e outro da Africa atual. Em seu livro Before Philosophy, Henri Frankfort comenta?: “O fato central do Egito é 0 Nilo que corre em dirego ao norte. Traz a Agua necesséria A vida. A palavra egipcia ‘ir ao norte’ significa simultanea- mento ‘ir rio abaixo’, enquanto ‘ir ao sul’ significa ‘ir rio acima’, ou seja, contra a corrente. Quando os egipcios chegaram a conhecer um outro rio, o Eufrates, que corria em dirego ao sul, s6 podiam expressar sua 2 Henri Frankfort, Mrs. Henri Frankfort, John A. Wilson, Thorkild Jacobsen, Before Philosophy, Penguin Books, Harmondsworth, Middlesex, 1949, p. 46. 58 surpresa por esse contraste, chamando o rio de ‘aquela agua que corre tio abaixo indo rio acima’.” Para os egipcios da época, portanto, a imagem referencial era a do Nilo. Essa imagem referenciava ndo s6 a orientago no espaco fisico, mas também fenémenos que néo ocorriam no Egito, a chuva, por exemplo. A chuva era tida como ‘um Nilo caindo do céu em terras de estrangeiros, fazendo ondas por cima de suas montanhas e molhando seus campos ¢ suas cidades’. Um Nilo. Nao o Nilo. Sabia-se perfeitamente que ‘o ver- dadeiro Nilo vinha de um mundo subterraneo para os egipcios’.5 O segundo exemplo é retirado do “Estudo do problema de percepgao pictérica em grupos nfo aculturados” (nesse caso, obviamente, cultura ocidental). Entre varias pesquisas feitas por ingleses, psicdlogos educacionais, uma visava A interpretagéo de imagens didéticas. O tema, aqui, é uma campanha de prevengio de acidentes de trabalho. O material testado se compunha de seis cartazes coloridos, executados dentro de varias técni- cas de representagio (cenas simples, miiltiplas, séries, historinhas, etc.). Os cartazes foram apresentados a 250 operdrios negros, na Africa do Sul, procedentes de reas rurais e urbanas. Em termos de escolaridade, havia desde analfabetos até os que tinham terminado os estudos de gindsio. Citamos dois trechos do relatério da pesquisa,® que além de interes- sante 6 engragado: Na Ultima subcena, numa seqiiéncia de comportamentos assinalados como ‘corretos’, um operario é representado recebendo seu saldrio com uma das mos. Para o operdrio negro na Africa do Sul, esse gesto tem conotagdes opostas. E costume receber coisas com as duas mos, e dar com uma mio. Assim, a moral da histéria foi obscure- cida por um lapso acidental, j4 que, no cartaz, o receptor do salério era visto, néo como recebendo uma recompensa pelo trabalho bem feito, mas, ao contrério, como doador de dinheiro. © sexto cartaz mostrava o perigo de ficar embaixo de um guin- daste de porto, carregado. O artista desenhou um caixote dentro de 3 Op. cit, p. 46. 4°D.R. Price-Williams, ed., Cross-Cultural Studies, Penguin Books, Harmonds- worth, Middlesex, 1969, W. Hudson — The Study of Pictorial Perception among Unaccultured Groups. 5 Op. cit. p. 149-150. 59) uma rede de quatro cordas, com uma das cordas j4 rompida. De- baixo se encontrava a figura de um operdrio, com os bragos levan- tados, e petrificado de horror ao ver,-presumivelmente, que o cai xote cairia em cima dele. A parte inferior do operdrio nao era mostrada. Ademais, 0 artista contornou o cartaz com uma larga margem oval, em vermelho, e iluminou partes do rosto do operério com um marrom ayermelhado. Isso foi infeliz. Em primeiro lu- Sar, 0 caixote nao era visto caindo. Trés cordas ainda o mantinham claramente em seu lugar. Portanto, o perigo deveria encontrar-se em outra parte. A cor vermelha tem valor simbélico para o negro na Africa do Sul. Em quantidades grandes, significa fogo. Em quantidades menores, significa sangue. No caso do cartaz, o ver- melho era interpretado como fogo, e 0 operdrio como encontrando-se no meio de um terrivel holocausto. Ainda essa interpretagio seria reforgada pela cor de seu rosto. Mas o fator decisivo nisso era o fato de que nao se via a parte inferior do seu corpo. Obviamente, j4 tinha sido consumida pelas chamas. Essas interpretagdes nao se devem A mera ignordncia. Devem-se ao fato de a imagem dos cartazes, tanto nas situagdes representadas como na maneira de representé-las, ndo se identificar_com imagens _referen- ciais que fossem vigentes para o negro sul-africano. Suas imagens refe- renciais estabelecem outras conotagées para determinados gestos, para cores, até mesmo para as situcdes em si. Envolvem também outro tipo de raciocinio. Outro esquema de valores. As imagens referenciais néio sio herdadas.¢ Nao sio esteredtipos de Percepcao, nfo sao conceitos. Formam-se, basicamente, de modo intuiti- vo. Configurando-se em cada pessoa a partir de sua propria experiéncia © como ‘disposi¢o caracteristica’ dos fendmenos, isto é, como imagem qualificada pela cultura, sua visio é ao mesmo tempo pessoal e cultural. Naturalmente, isso nfo significa que, embora funcionando como visio teferencial, ela se cristaliza logo a ponto de nao poder ser subseqiiente- mente elaborada; depender4 do individuo e dependerd de como a cultura formula suas normas e suas aspiracées. E bem provavel que, num con- texto cultural que fosse predominantemente mégico, as elaboragdes sub- seqiientes reiterassem aspectos mAgicos, ao passo que no contexto de uma sociedade moderna industrial se formassem novos aspectos racionalizados. 6 Nao nos estamos referindo as imagens ‘primordiais’, os arquétipos no incons- ciente coletivo, que ocupam uma posigio central no pensamento de C. G. Jung. 60 Mesmo assim, um individuo, cuja estrutura de personalidade seja a de um intelectual, possivelmente tenderia, em todas as culturas, a racionalizar © enfoque de sua experiéncia acima do comum a outros individuos menos intelectualizados. 2 s Como parametro, as| imagens referenciais| se formam, em cada um de nés, j4 impregnadas de valores, Por isso, um psicélogo inglés, traba- Ihando na Africa, conhecendo seus costumes e a maneira de pensar, co- nhecendo também as imagens referenciais e compreendendo o porqué das interpretagdes africanas, ainda assim o compreenderia em termos ra- cionais. Para ele, as imagens referenciais africanas nfo representariam uma linguagem afetiva, e sim uma linguagem intelectualmente adquirida. Seria dificil interioriz4-la a ponto de espontaneamente estruturar os pré- prios enfoques de vida e as intimas valorizagées. As imagens referenciais sfo, portanto, ordenagées internalizadas. Intui- tivamente, estruturamos em nés uma imagem referencial dos estados de Animo. Nao precisamos dards 0 trabalho de especificar todos os dados que entram nessas complexas manifestagdes. Quando, por exemplo, encontramos alguém e percebemos que est4 alegre, sabemos perfeitamente como referir os varios detalhes de seu comportamento. Em nossa mente, j4 existe uma ‘imagem’ da alegria.” A qualquer objeto também _corresponde_uma imagem. referencial estruturada em nds, que abrange todo um contexto de qualificagdes. Assim, quando pensamos em ‘mesa’, j4 a pensamos em termos de uma determinada configurago, um tampo quadrado ou retangular ou redondo € com quatro pés, o préprio objeto dentro de um dado ambiente e com dadas valorizagdes do meio cultural, de utilidade doméstica, padrdes fun- cionais e de conforto, de materiais usados, do sentido estético, etc. Quando vemos uma mesa, espontaneamente comparamos a mesa, objeto-real, 4 mesa internalizada, imagem-referencial. Constancia de imagens Alimagem referencial liga-se a um fenémeno de percepcao que ainda & pouco elucidado, mas cuja importancia é indiscutivel, tanto para as ordenagdes que fazemos, como para 0 sentido que as formas tém para nés. Trata-se do fenémeno da /constancia) Ainda ao nivel da transmisséio de estimulos, existem em nés, aparen- temente, mecanismos de ajuste que de certo modo ‘alteram’ os dados externos. 7 Aqui apenas renovamos a ressalva de que a comunicacio deve referir-se a um contexto cultural comum para validar os referenciais, 61 Citamos:* “O olho como érgéo receptor pode ser comparado a uma climara fotogrdfica. Essa analogia se desfaz imediatamente quando anali- samos 0 processo global de visao. A diferenga maior € a do fenémeno da CONSTANCIA. Numa pelicula, assim como também na retina, os objetos se registram de acordo com o Angulo em que aparecem no campo visual. Entiio, um objeto do dobro de seu tamanho normal a uma distancia dupla, ndo se registraria diferente do mesmo objeto em tamanho normal localizado no primeiro plano. Um homem que avanga para nés se transformaria de um ando em um gigante. Nada disso, porém, acontece.” Ilustramos com uma fotografia. Veja-se na fotografia como o chapéu no primeiro plano parece desproporcionalmente grande. Equivaleria esta A imagem percebida por nés caso nossa imagem mental se identificasse apenas com o registro na retina. Mas, de fato, nfo vemos assim. Mesmo focalizando alguém bem 4 nossa frente e com a mo quase a nos tocar (uma crianga brincando e pulando no colo), continuamos a ver a pessoa em tamanho normal, o brago e a mao dentro das proporgGes naturais do corpo e ainda integrados perfeitamente dentro da escala do espaco ambiental. A todo instante, nossa visio deve perfazer cAlculos e cémputos com- plicadissimos. Nao é s6 uma quest&o de nossos olhos possuirem lentes méveis e instantaneamente ajustéveis, com as quais nenhum sistema de lentes mecAnicas se compara. O fato € que, embora pelo fenémeno da constincia em nossa vista se nivelem imimeras diferenciagdes, somos capazes de discernir essa8 diferenciagdes“junto~com-o-nivelamento, Faze- mos ambas as operagées ao mesmo tempo. Olhando, de um modo geral nao nos enganamos a respeito do homem que em nosso campo visual avanga e, por outro, igualmente distinguimos entre um anao que por- ventura se encontre a um plano préximo e uma pessoa de altura normal a certa distancia. Se a imagem visual é dificil de alcancar em sua complexidade como fato fisico, mais ainda o é a imagem como um fato mental. Em realidade, porém, nenhuma imagem 6é, para nés, inteiramente fato fisico. Ao apre- ender qualquer tipo de estimulo, j4 0 apreendemos configurando, isto é, j& o apreendemos dentro de ordenagdes que se estabelecem no proprio ato de apreender. Vivenciamos na percep¢do um processo orientador e orientado. A partir dos diversos fatores que interagem na percepgio ¢ mutuamente se influenciam — a imagem referencial, a constincia de 8 Dr. Peter R. Hofstiitter, Psychologie, Fischer-Biicherei, Frankfurt, 1960, p. 141. 62 Ilustragio VI HOMEM COM CHAPEU imagem com os nivelamentos ¢ as simultdneas diferenciagdes — nao somente cada imagem visual surge de inicio imbuida de significados, como também surge imbufda de valoragées. © fato de yaloragdes acompanharem toda forma que percebemos ¢ toda forma que criamos, é, na verdade, um fato inevitével. Ainda que talvez nao a conscientizemos, representa uma atitude elementar de avalia- Go que esta presente em cada instante de nossa vida. A essa atitude elementar se prende, por exemplo, o problema, no século passado, de, ao ver a obra dos pintores impressionistas, 0 ptiblico ter-se chocado tao forte- mente. No entanto, 0 que haveria de téo chocante? A pintura impressionista funda sua pesquisa numa atitude que é basicamente fenomenolégica, isto é, indaga a esséncia do ser em termos de fenémenos percebidos. O fendmeno, no caso, era a atmosfera luminosa. A realidade desse fenémeno devia ser transcrita do modo mais fiel, mais direto e mais objetivo. Obseryando minuciosamente os reflexos da lumi- nosidade que ocorriam nas superficies e nas tessituras dos objetos, os pintores traduziram os reflexos dpticos em pequeninas manchas de cores vivas. Havia, também, uma racionalizagdo e uma proposta em torno desse procedimento. Procurava-se decompor o ato de percepgdo em estdgios preliminares, destilar, dese ato de simultanea apreensio-compreensio, os ingredientes ‘puramente sensoriais’, as ‘SensagGes’, os proprios estimulos da visio. Com isso, os artistas se propunham alcangar niveis mais elementares da experiéncia humana. Quando pintavam em seus quadros a cor de um rosto, usavam miiltiplos tons de azul, amarelos, verdes, vermelhos, laranja, roxo. Entretanto, embora os tons fossem observados no modelo, e prova- velmente muito bem observados, nao era possivel ligd-los A imagem refe- tencial da pele humana nem decorriam do nivelamento de dados que se d4 na constancia da percepgio. Dai a perplexidade do piblico e dos criticos. Ressentiram-se da quebra de um referencial comum e cultural- lo como se fosse a-quebra de um esquema de valores. —o que, alias, foi. Nesse ressentimento encontramos o motivo da atitude agressiva do piblico em relagdo aos artistas, a perda pesando mais, na época, do que os ganhos, as cores brilhantes e luminosas, tio luminosas quanto a prépria luminosidade atmosférica. O rompimento de uma valorag%o cultural foi a razéio principal de tamanha hostilidade, pois, quanto ao teor expressivo das obras impressionistas, este jamais 6 violento ou agressivo, nem mesmo critico, é um teor invariavelmente lfrico. O que nos importa mostrar no Impressionismo, para o nosso trabalho aqui, é sua preocupagao com o modo de perceber. Constituiu-se numa espécie de programa cientificista peculiar ao clima mental do século passado. Os artistas se propunham a objetividade de uma observagiio 64 igorosa (também no Pontilhismo, com Seurat, Signac, etc.). No fundo, porém, nao deixavam de participar das tendéncias romanticas da époen, tanto por imaginar algum tipo de objetividade nfo-valorativa, como pela nogao de qualidades ‘mais auténticas’ a serem identificadas com niveis de experiéncia considerados mais elementares. Evidentemente, resta saber s¢ de fato dé-se a decomposigio da percepgfio em niveis anteriores e se tail niveis seriam mais elementares. Se é de todo possivel ao ser humaho decompor a percepgiio. A percepgdo constitui_uma sintese. Como veremos mais adiante, o processo de sintese vai de uma integragaéo para outra integragao. Nao retrocede no tempo. Sem dtivida, porém, o Impressionismo criou um novo tipo de codi- ficagdo. Nova imagem referencial com valoragées novas, uma maneira de ver as coisas que agora, para a maioria das pessoas, ja se tornou inteira- mente familiar. Seletividade Num primeiro relance feito ao redor de nés, recebemos um informe Sobre © verossimil das coisas. Antes dos detalhes, vem-nos a visio de um contexto geral, isto é, de um conjunto de pdssibilidades que in seguida verificamos. Como um processo sempre ativo, d com o ambiente, perceber é, de certo modo, ir ao encontro do que no intimo se quer perceber. Buscando as coisas ¢ rélacionando-as, procuramos: vé-las oriénitadas em um mé4ximo grau de coeréncia interna, pois que nessa coeréncia elas podem ser referidas por nés, podem ser vividas ¢ tornar-se significativas. Reencontramos aqui 0 principio da seletividade interior. A seletivi« dade opera, dinamicamente, em tudo o que nos afeta. Entre outros, ela prevalece também no caso da constancia da percepgio bem como nas imagens referenciais. E facil ver que do nivelamento dos dados reais para dados ‘constantes’ resulta uma aproximagio ao que em nés jd est& codificado como imagem referencial, ou se reforga o que se estiver codifi- cando. Integrando-se as imagens referenciais, os fenémenos novos pod surgir para nés em contextos j4 parcialmente assimilados e j4 enc! nhando-se a eventuais significados; por mais inesperados que sejam fendmenos, eles nunca seriam desligados. E& importante que assim acont Encontréssemos aspectos sempre insdlitos ao redor de nés, aspectos relacionados ou nao-relaciondveis em contextos, a todo momento rfamos inundados de informagées estranhas. Estarfamos perdidos d de eventos que se sucedem e que seriam irreconheciveis na vasta cot xidade de seus detalhes incidentais. Seriam, para nés, eventos di incontrolaveis. Relacionados os dados, as coeréncias e os significados que encon- tramos, sfio coeréncias ¢ significados seletivos. Foram elaborados a partir daquilo que j4 conheciamos e do que queriamos ‘conhecer. Com efeito, a seletividade represer e so de economia, pois a nossa tendéncia é inteirar-nos daquilo que nos seria stificiente para resolver uma situagdo ou tarefa em que estejamos interessados. Resolvé-la e torné-la significa- tiva para nés. O resto dos eventos ‘foge’ & nossa atengio. Nessa busca de coeréncias e significados, a nossa seletividade tam- bém pode enganar-nos (embora, no fundo, nenhum engano seja aleatério). Partindo de um referencial anterior em si relativo, vivemos a percepgio dos fenémetos de modo igualmente relativo, tanto assim que em deter- minados momentos de ambigiiidade no ambiente ou dentro de nés, talvez fiquemos em divida de como avaliar a situagio, como interpreté-la.2 Contudo, devemos sempre ter em mente que nem os nossos sentidos nem as operagdes da percepgdo se organizaram em fungio de momentos espe- ciais, ¢ sim para permitir-nos lidar com os acontecimentos comuns essencialmente identificdveis, que perfazem o contexto didrio de nossa vida. E deles que extraimos os significados. Portanto, se procuramos compreender as coisas a fim de poder controlé-las, nés as procuramos do modo mais direto e simples, e na maior coeréncia, porque nessa simplicidade e coeréncia elas fazem sentido para nos. A criatividade se vincula, sem dtivida, 4 nossa capacidade de seletivamente intuir a coeréncia dos fenédmenos e de conseguir formular, sobre aquelas coeréncias, situagdes que em si sejam novamente coerentes. Insight i oN Do mesmo modo que a 'percepgo, a intuigio é um processo dind- mico e ativo, uma participacio atuante no meio ambiente. E um sair-de-si i e um captar, uma busca de contetidos significativos. Os processos de per- ceber e intuir so processos afins, tanto assim que néo sé o intuir est& ligado ao perceber, como o proprio perceber talvez nfo seja senio um continuo intui Em todo ato intuitivo entram em fungao as tendéncias ordenadoras da percepga4o que aproximam, espontaneamente, os estimulos das imagens referenciais j4 cristalizadas em nds. Igualmente em todo ato intuitivo ocorrem operagées mentais instantaneas de diferenciagio e de nivelamento, 9 Também nas situagées ambiguas intencionais: nos laboratérios de pesquisas, nas famosas imagens reversiveis, nas vistas ilusérias construfdas para testes, nos puzzles, 66 c outras ainda, de comparagio, de construgao de alternativas e de con- clusio; essas operagdes envolvem o relacionamento e a escolha, na maioria das vezes subconsciente, de determinados aspectos entre os muitos que existem numa situagio.0 & sempre uma /escolha valorativa visando a algum tipo de ordem. Parte-se, no fundo, de uma ordem jé existente para se encontrar outra ordem semelhante, uma vez que se indaga sobre os acontecimentos segundo um prisma interior, uma atitude, por mais aberta que seja, j orientada e, portanto, orientadora. Nessas ordenagées, certos aspectos sao intuitivamente incluidos como ‘relevantes’, enquanto outros so excluidos como ‘irrelevantes’. Selecionados peia importncia que tém para nds, os aspectos sao configurados em uma forma. Nela adquiriraéo um sentido talvez inteiramente novo. As conclusées muitas vezes nos surpreendem como um resultado original. O seu sentido novo pode até mesmo ser inesperado e, no entanto, formula uma visfio de certo modo pressentida. Confirma essa visio. Senti- mos que a/ordenagao concreta @ que chegamos abrange a razio de ser da situagio, abrange toda sua ldgica intima, o verdadeiro sentido. E o insight, a\ Visio intuitiva. Sabemos de repente, temos inteira certeza, que desde o inicio era esse o seu significado. E verdade que até agora os processos intuitivos se mostraram ina- bordaveis por investigagées racionais e fogem mesmo A auto-anilise. Surgindo de modo espontaneo das profundezas do ser, nao é possivel explicar 0 como e porqué do caminho.'! Trata-se, contudo, de processos dos mais complexos estruturados dentro do ser humano, pois no insight estruturam-se todas as possibilidades que um individuo tenha de pensar e sentir, integrando-se nogGes atuais com anteriores e projetando-se em conhecimentos novos, imbuida a experiéncia de toda carga afetiva possivel & personalidade do individuo. E nao ha como nao ver o carater dindmico e criativo do insight; o conhecimento é novo, a maneira de conhecer renovando-se dentro do préprio ato de conhecer, também renovado. ©) conhecimento intuitivo imediato |repercute em nés como um re-conhecimento imediato. As memérias de situagées anteriores j4 vividas servem de referencial aos dados novos. Estes, em novas integragées, por sua vez se transformam em contetidos referenciais. Sempre nos reencon- tramos e nos reconhecemos. 10 Naturalmente, a seletividade se estende tanto a fatores sensoriais como a nfio- sensoriais. 11 Aparentemente, mesmo em descobertas cientificas a intuigdo precede a indu- gio, no sentido de um alvo alcangdvel, embora o caminho ainda seja ignorado, Nas ciéncias, é verdade, 0 caminho pode ser repetido € verificado, 67 O momento da visao intuitiva é um momento de inteira cogniciio que se faz presente. Internalizamos de pronto, em um| Tmomento siibito, instan- tfineo mesmo, todos os Angulos de relevancia e de coeréncia de um fend- meno, Nesse momento apreendemos-ordenamos-reestruturamos-interpreta- mos a um tempo s6. & um recurso de que dispomos e que mobiliza em nds tudo o que temos em termos afetivos, intelectuais, emocionais, cons- cientes, inconscientes. Embora nao sejam visiveis nem racionalizdveis os niveis intuitivos, bem sabemos de sua acio integradora. Em situagées dificeis de nossa vida pode dar-se em nés esse tipo de reestruturagao de dados, produzindo nova medida de ordem e permitindo-nos novamente compreender e controlar a situagdo. Intuigao, forma A intuigiio caracteriza todos os(processos criativos.\ Ao ordenar, intui- mos. AS opgdes, as comparagées, as avaliagées, as decisdes, nés as intui- mos. Intuimos as visdes de coeréncia. _ Intuindo, usamos um modo -verbal,)nao-conceitual. J4 abordamos esse assunto no primeiro capitu S-aquitornamos a menciond-lo, cons- tatando que a intuigio nio’é verbal, é porque queremos pér em evidéncia © seu carater “Os processos intuitivos se identificam com a forma, ou, ainda, os proeessos criadores sio essencialmente processos formativos, processos configuradores. Ainda que se configurem palavras ou pensa- mentos, é preciso distinguir entre os componentes do processo e 0 pro- cesso em si; os componentes podem ser de ordem verbal ou conceitual, mas o processo criativo intuitive é sempre de ordem formal. Esse aspecto merece destaque especial. Quando lidamos com um conceito,\lidamos com uma ordenagdo de pensamentos ou de nogdes. Ou ‘Seja, determinadas nogdes foram interligadas de uma maneira determi nada; coordenadas nessa maneira especifica formam o conceito. Logo, a partir de uma ordem interior, qualquer conceito também representa uma configuragéo, ainda que seus componentes sejam abstratos. Qualquer conceito é, portanto, uma forma face A sua estrutura. De fato, observe-se que, enquanto estrutura! (nao no contetido especifico dos pensamentos, mas no modo de se organizarem e encadearem os pensamentos), 0 con- ceito 6 referido ao nosso sens6rio e é também interpretado por nés em termos sensoriais: em termos de coordenacio de partes, de proporgdes, 12 Veja-se novamente o depoimento de Einstein, no capitulo 2. 68 de desenvolvimento interior, de equilibrio e de totalidades. Nesse sentido, o conceito é uma forma. Mas, se 0 conceito também é forma, a reefproca nao é verdadeira. A [forma nunca é um conceito. A forma se caracteriza por sua fatureza sensorialyEnquanto forma, e ordenagao que ela constitui, cla nao “pode ser absitaida, reduzida, traduzida, transposta ou desvin- culada de seu especifico carater material sem de imediato perder a esséncia do ser. Dai tiramos uma conclusdo que diz respeito aos contetidos expres- sivos da agfo criativa. Os! processos intuitivos| ocorrem de modo nao- conceitual, séo processos de forma.) Quando se intui, intui-se uma forma expressiva, isto é, nfo se trata de definir um fenémeno por meio de nogdes intelectuais (mesmo quando se trata de matérias abstratas, de pensamentos ou palavras). A ag&o, abrangendo o intelectual, é mais ampla. Ao intuir| procura-se alcangar um\ novo modo de ser essencial do fenomeno, através de estruturas que se configuram dentro da materialidade especifica desse fenémeno. (Portanto, os|componentes podem ser concei- tuais ou sensoriais.) Nesse preciso sentido, a forma nao traduz, ela é; ela capta o mais exclusivo do fenémeno porque jamais sé desvincula da matéria em questio. Formar, fazer Intuindo, procura-se estabelecer relacionamentos significativos — significativos para uma matéria e para nés. Seja qual for a érea de atuacio, a criatividade se elabora em nossa capacidade de(selecionar, relacionar € integrar os dados do mundo externo e interno, de transforma-los com 0 Propésito de encaminhé-los para um Géntido) mais completo. Dentro de fossas possibilidades procuramos alcangar a forma mais ampla ¢ mais precisa, a mais expressiva. Ao transformarmos as matérias, agimos, faze- mos. Sio experiéncias existenciais“—/processos de criagio”— que nos | envolvem na globabilidade, em nosso ser sensivel, no ser pensante, no ser atuante. Formar_é mesmo fazer. & experimentar. E lidar com alguma ‘materialidade e, ao experimenté-la, é configuré-la. Sejam os meios senso- riais, abstratos ou tedricos, sempre é preciso fazer, Enquanto o fazer existe apenas numa intengGo, ele ainda nao se tornou forma, Nada poderia ser dito a respeito de conteddos significativos nem mesmo sobre a proposta real. Sem a configuragiio dos meios nfo se realiza 0 contetido significativo, Essa problemftica nfo é afastada da realidade social em que vivemos nem suas implicagdes seriam sem importincia. Como ilustracao, veja-se uma corrente no campo da arte contemporanea, a chamada ‘arte concei- tual’, Na arte conceitual nao existe o fazer concreto, nao existe a forma dada a uma matéria, por serem considerados ‘supérfluos’ & obra. A obra. 69 we realizaria ¢ se esgotaria como proposta jé ao ser concebida. As vezes, 08 artistas apresentam a idéia por meio de uma programacdo através de diagramas ou fotografias, mas nao sé a programagio € optativa, e, portanto, dispens4vel, como também cla nada tem a ver com a materialidade espe- cifica da agao. Na colocagio tedrica e pratica da arte conceitual, de considerar desnecessario configurar uma matéria, refletem-se avaliagdes do relacio- namento HOMEM x TRABALHO. Assim como todo tipo de compor- tamento, também essa colocagao de considerar desnecessério agir e fazer, e dar forma adequada ao fazer, deve ser vista no que tem de expressivo. Nao é apenas a ago artistica que na visio da arte conceitual seria supér- flua; a ac¢do humana, como ago, € exonerada de sentido. Conseqiiente- mente, o que resta ao homem é ter intengdes, vontades, idéias — niaio sendo necessdrio executé-las. Esvazia-se o homem existencialmente. E também se 0 aliena do seu poder, considerado dispensdvel e insignificante, de participar, através do trabalho como experiéncia vital, direta e ativa- mente das transformagées sociais e culturais e da natureza da vida em geral. (Nota-se que, na arte conceitual, néo ha a mais leve atitude de critica social a respeito da ‘impossibilidade de acdo’. A impossibilidade 6 tranqiiilamente assumida e é clevada ao nivel de uma pesquisa pura.) Elaboracéo No trabalho, o homem intui. Age, transforma, configura, intuindo. O caminho em toda tarefa seri novo e necessariamente diferente. Ao criar, ao receber ‘sugestées da matéria!? que est4 sendo ordenada e se altera sob suas maos, nesse processo configurador o individuo se vé diante de encruzilhadas. A todo instante, ele teré que se perguntar: sim ou nao, falta algo, sigo, paro... Isso ele deduz, e pesa-lhe a validez, eventual- mente a partir de nogdes intelectuais, conhecimentos_que ja incorporou, contextos familiares 4 sua mente. Mas, sobretudo, ele decidiré baseando-se numa empatia com a matéria em vias de articulacéio. Procurando conhecer a especificidade do material, procuraré também, nas configuragées pos- siveis, alguma que ele sinta como mais significativa em determinado estado de coordenagao, de acordo com seu préprio senso de ordenaco interior e 0 préprio equilibrio. Seré uma busca que nfo se esgota na _ 28 Usamos aqui uma metéfora. Lembramos que nos termos ‘matéria’ e ‘mate- rialidade’ nos referimos a todas as freas de comunicagio ao nosso altance. Assim nunca se excluem das atividades formadoras do homem as areas psiquicas e espiri- tuais. Também so matérias do fazer humano. 70 palavra, por mais Iticida que seja, pois é uma busca que integra formas de ser. Essa mesma busca, 0 individuo nao sabe quanto poderd durar nem exatamente aonde ela o levard. Conquanto exista uma predeterminagio interior que o impulsiona e também o orienta, algo que, ao iniciar o trabalho, o individuo mais ou menos pressupde_e imagina, ha ainda, e sempre, uma enorme distancia entre aquilo que se imagina e os fatos concretos que o trabalho apresenta. A todo momento e na medida que modificam a matéria, esses fatos também se modificam, até fisicamente. Todo processo de criagio compée-se, a rigor, de fatos reais, fatores de claborago do trabalho, que permitem/optar]e/ decidir, pois, repetimos, ao nivel de intengdes, nenhuma obra pode ser avaliada. Como obra, ainda nio existe. Vale dizer, entéo, que a criagio exige do individuo criador que atue. Atue primeiro e produza. Depois, o trabalho poderd ser avaliado com critérios e interpretacées. ANatividade criativa consiste em transpor certas possibilidades latentes para o real. As varias acées, frutos recentes de opgdes anteriores, j4 vio ao encontro de novas opgdes, propostas surgidas no trabalho, tanto assim que continuamente se recria no préprio trabalho uma mobilizagao inte- rior, de considerével intensidade emocional. Nessa mobilizagao esta inserido um senso de responsabilidade. As opcdes se propdem quase que em termos de principios, de ‘certo ou errado’ e, no caso das artes, 0 quanto custa decidir uma pincelada, a exata tonalidade de uma cor, 0 peso de uma palavra, uma nota certa, todo artista bem o sabe dentro de si. Quem, no entanto, haveria de definir o certo ou o errado? Nem mesmo o artista poderia explicar para si o porqué de suas_agées e decisdes, ou talvez defini-lo em conceitos (€ claro que nao ha necessi- dade de fazé-lo, pois na obra o artista se define inteiramente). Propondo, optando, prosseguindo, ele parece impulsionado por alguma forga interior a induzi-lo e a guid-lo, como se dentro dele existisse uma biissola. Esta lhe diz: va adiante, revise, ajunte, tire, acentue, diminua, interrompa! So ordens que, ao recebé-las, 0 artista sente como imperativas, as quais deve irrestrita obediéncia, tao absolutamente essenciais se revelam ao seu proprio ser.!¢ Trabalhando, cle continuaré—até um dado momento em que a biissola interna possa indicar-Ihe* pare, Jas alternativas se abrevia- 14 Beethoven comenta a respeito de suas sinfonias: “Tenho medo de iniciar esas grandes obras — uma vez dentro do trabalho, nio h4 como fugir.” J. W. N. Sullivan, Beethoven: His Spiritual Development, Vintage Books, Random House, New York, 1952, p. 102. 7 tam, as coisas nfo so possiveis apenas; ao contrério, tornaram-se neces- sarias,'5 £ © momento) final do trabatho}| Somente a prépria pessoa pode estabelecé-lo para si, momento critico este onde o individuo sente ter logrado aproximar-se de uma resolug%o inequivoca, sem redugSes e sem tedundancias. A resolucdo refletiré em tudo seu equilibrio interno pois a biissola nao era senfo ele mesmo.6 £ um momento de entendimento de si. No processo de trabalho, entre a abertura e o fechamento da obra, © individuo se determinou e veio a reconhecer-se. E, se o caminho muitas vezes foi acompanhado de ansiedades, de impaciéncias e de conflitos interiores que pareciam nunca mais querer resolver-se, vivenciar esse momento de determinagio é viver um momento de profunda felicidade. Inspiragao Talvez seja esse momento final 0 momento da inspiragdo. E sem dévida um momento sumamente decisivo e criativo — o desfecho do fazer. Nascido do trabalho, das tentativas que o precederam, das lutas dos anséios intimos, o-final“é indissolavel dos momentos anteriores porque conseqiiéncia necesséria, Momento inspirado, mostra-nos o quanto os momentos anteriores também foram inspirados; talvez até mesmo certos erros no trabalho foram inspirados. Pensar na inspiragio como instante aleatério que venha a desencadear um processo criativo, é uma nogéo romantica. Nao h4 como a inspiracio possa ocorrer desvinculada de uma 18 No trabalho nfio-artistico, os varios momentos podem ser vistos dentro de um quadro metodolégico especifico, seguindo as etapas uma ordem mais conhecida. Ha todo o acervo cultural de informagées, de conhecimentos e métodos que o pes- quisador cientifico, por exemplo, usaré de modo menos pessoal do que o artista. Todavia, na avaliagio das diversas fases do trabalho, dos resultados, de eventuais necessidades que surjam para reformular certas partes ¢, principalmente, na avaliagio das hipéteses do trabalho, o cientista procederé em caminhos andlogos aos do ar- tista, Ambos estao configurando, ambos estdéo criando essencialmente através de sua intuicao, 16 Ha uma ressalva a fazer: 0 momento ‘final’ talvez seja colocado como muito determinado. Nao precisa ser sempre assim. Na prdtica, mesmo sentindo que o tra- balho esteja concluido porquanto nao haveria outro modo de conclui-lo, encerrando-se Por uma necessidade interior, ainda podem perdurar perguntas. O problema as yezes do se esgota numa s6 obra. Hé certos Angulos que propdem outtas opcées e im- plicam as vezes o empreendimento de nova obra, eventualmente com outras Tespostas. Por isso, © proceso de criagio nunca se esgota; permanece um processo aberto. 72 elaboragéo j4 em curso, de um engajamento constante e total, embora talvez nfo consciente.1? Ocorrem momentos em nossa vida, momentos conscientes, pré- conscientes, inconscientes, de grande intensidade emocional. Eles podem induzir em nds novas forgas, estimular todo nosso ser, trazer novas idéias, reorientar-nos na vida. Podem oferecer propostas de trabalho, hipéteses de ordenagao. Mas igual a outras, também essas id¢ias, propostas, hipé- teses teriam que passar por um processo de elaboragao subseqiiente a fim de evidenciarem sua validez. Talvez tenham sido idéias inspiradas, e talvez nao, E possivel, porém, que o proprio conceito de uma inspiragio seja equivocado, e dispensavel. Se partimos de uma sensibilidade alerta, afetiva, motivada para determinadas tarefas e dirigida"para um fazer espécifico, ese Sensibilidade se basta’ Podemos entender todo fazer do homem como sendo inspirado se 0 qualificamos pelo potencial criador natural, pela inata capacidade de formar e intuir, por sua espontnea compreensio das coisas. O ser sensivel € como um espelho d’4gua encrespando ao mais ligeiro vento e onde uma pedrinha jogada ao acaso traga ondas em cfreulos sempre crescentes. Tenséo psiquica Aqui voltamos ao problema da’tenséo psiquical Em’ qualquer campo de criagio, o individuo teria que.ser capaz ‘de sustentar um estado de 17 No podemos resistir & tentagio de citar Jofio Cabral de Melo Neto: “& uma escrita lacdnica, a deles, lenta, avangando no terreno milfmetro a milfmetro. Estes poetas jamais encaram o trabalho de criagio como um mal irremedidvel, a ser redu- vido ao minimo, a fim de que a experiéncia a ser aprisionada nfo fuja ou se eva- pore. O artista intelectual sabe que o trabalho € a fonte de criacko © que a uma maior quantidade de trabalho corresponderé uma maior densidade de riquezas. Quan- lo & experiéncia, ela nio se traduz neles, imediatamente em poema. Nao hé por isso 0 perigo de que fuja. Eles nio sio jamais os possessos de uma experiéncia. Jamais criam debaixo da experiéncia imediata. Eles a reservam, junto com sua ex- periéncia geral da realidade, para um momento qualquer em que talvez tenham de empregé-la, Nao seré de estranhar que muitas vezes esquecam essa experiéncia como tal, © que ela, a0 ressuscitar, venha vestida de outra expresso, diversa completa- mente. Também o trabalho nesses poetas jamais ¢ ocasional ou repousa sobre a riqueza de momentos melhores, Seu trabatho é a soma de todos os seus momentos, melhores © piores.” Trecho da conferéncia pronunciada por Joio Cabral de Melo Neto, na Biblioteca de Siio Paulo, em 13-11-1952, num curso de poética promovido pelo Clube de Poesia do Brasil. Gilberto Mendonca Teles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1976, p. 331-332. 73 tensio, de concentracao espiritual e emocional, de conscientizagao de si, de um longo esforgo de producio, por semanas, meses, anos, pelo tempo que possa durar um trabalho. Durante esse tempo, nos diferentes planos do viver, talvez no trabalho profissional também, hao de ocorrer os inci- dentes mais variados, sucessos, fracassos, alegrias, tristezas, amor, nasci- mentos, mortes. Produzirio emocées e pensamentos diversos, possivel- mente até contraditérios. Poderio afetar 0 individuo no cotidiano da vida ou até atingi-lo em regides intimas do vivenciar, nas aspiragdes e em sua identidade mesmo. Continuando a trabalhar, o individuo recolhe esses miltiplos momentos e os transforma em contetidos psiquicos, nos con- tetidos de sua experiéncia de vida. Eles talvez venham a ser reconheciveis em certos detalhes da obra criada, ou talvez se tornem irreconheciveis, transpostos e absorvidos que foram pela proposta essencial do trabalho. O que queremos mostrar é que a criagéo deriva de uma atitude_ basica da pessoa. Nao se trata de momentos singulares, ‘momentos de inspiragao’, nem fora nem dentro do trabalho. Mesmo quando o inte- Tesse imediato centra no problema da expressio de uma experiéncia sub- jetiva emotiva, ainda se trata da atitude basica da pessoa. A maior impor- tancia, por isso, deve ser dada A qualidade do engajamento interior do individuo e 4 sua capacidade renovadora, isto é, A sua capacidade de se concentrar e de ao retomar o trabalho poder retomar o estado inicial da ctiagao, alcangar é{manter a atengdo) nesse nivel profundo de sensi- bilizagao. E o que conta. Significa reencontrar a ‘tensio dinimica da intencionalidade,\motriz do fazer. O individuo no precisa ‘buscar inspi- ragdes’. Ele se apéia em sua capacidade de intuir nas profundezas de concentracdo em que elabora o seu trabalho. A capacidade de intuir espontaneamente e ao mesmo tempo susten- tar a tenséo psiquica em niveis mais profundos, ser4 determinante para a criagéo. Seja na drea artistica ou cientifica ou tecnolégica. Seja em qualquer atividade do homem, é a tensio renovada que renova o impulso criador.'8 18 O que distingue a arte dos adultos, da arte infantil ¢ também da arte inggnua, so justamente os niveis possiveis de tensdo psiquica e de concentragéo. NAS CRIANCAS, a expresso artistica equivale a um experimento direto, Con- quanto ocorra na frea do sensfvel, o fazer néo se coloca para a crianca num plano diferente de qualquer outra experiéncia de vida— apenas 6 feita com materiais que Por nés siio considerados ‘artisticos’. Assim, a tensio psfquica correspondente A ex- periéncia, a crianga a extravasa no momento da aciio. Nio h4 uma atencfio seletiva, no sentido de procurar reconhecer aspectos do trabalho realizado e de) resguardé-los,) conscientemente, para o futuro. Pelo menos, essa atenciio ndo existe TO~fazer diteto. Mais tarde, é evidente, o efeito seletivo se faré sentir. Tampouco ha a continuidade da concentragdo anterior como carga a a 74 Caminhos Ao retomar a obra em vias de ser criada ¢, no ato, recuperar todo um clima afetivo e mental, de \tensio_dirigida,) 0 individuo exerce sua seletividade interior. De acordd com sua personalidade, sua estrutura intima sensivel, seré o préprio individuo a determinar as possibilidades as formas em que efetua a retomada do trabalho. Sera ele, dentro de sua seletividade, a discriminar 0 caminho, os avangos e os recuos, as opgdes e as decisdes que o levarao a seu destino, Sua orientago interior existe, mas o individuo nfo a conhece. Ela 86 Ihe €Fevelada ao longo do caminho, através do caminho que € 0 seu, cujo rund 0 individuo também nao conhece. O caminho n&o sc compoe de pensamentos, conceitos, teorias, nem de emogdes — embora_ resultado de tudo isso. Engloba, antes, uma série defexperimentagdes\e de vivéncias onde tudo se mistura e se integra e onde a cada decisdo e a cada passo, a cada configuragdo que se delineia na mente ou no fazer, o individuo, ser transferida para determinados momentos futuros. Os momentos se sucedem para a crianga. Novos momentos virdo a substituir os que passaram ¢ conter’io em soli- citagdes novas um potencial novo de tensio e agio. NA ARTE INGENUA também existe a problemética de tensio. (Alias, a arte ingénua é ‘ingénua’ em nosso contexto cultural. Suas manifesta- Ses artisticas nfo devem ser confundidas com as da arte primitiva, isto é com a arte de sociedades cuja estrutura social é menos complexa, historicamente, do que a nossa. A arte primitiva nunca é ingénua. Ao contrério, cla reine todos os dados que em um determinado contexto social sio possiveis serem detidos pelo individuo adulto.) Na arte ingénua manifesta-se um desnfvel de crescimento para a emotividade adulta, e também um desniyel na elaboragdo intelectual dos dados culturais. Os trabathos ingénuos parecem estacionarios em torno de um periodo biolégico indefi- nivel, tanto assim que diante da obra de um artista ingénuo, é diffcil determinar, em termos estilisticos, se se trata de obra de juventude ou de velhice, se o autor teria 20 anos de idade, ou 40, ou 60, ou 80. 7 ‘Aos trabalhos ingénuos falta] tensio espacial. | A funcio, em termos_estruturais © expressivos, da tensio espacial € elucidar visualmente, e assim objetivar, a propria existéncia fisica da obra, seu formato. Repare-se como, com excegio da obra do Douanier Rousseau, os trabalhos ingénuos no possuem escala. Nio que eles sejam grandes ou pequenos — neles nunca se articula suficiente tensio espacial para fa- zer-nos ver que sio grandes ou pequenos; assim no adquirem um determinado ca- riter de grandeza, nem so monumentais nem intimos. Em termos expressivos, igualmente, as obras ingénuas carecem de tensdes_psf- quicas. Por essas tensdes, isto 6, por meio de condensagées © énfases formuladas através da propria linguagem, o artista aprofunda o contetido da mensagem, mos- tra a existéncia de conflitos junto com possiveis solugdes. Nas obras ingénuas fal- tam os conflitos. 75 ao questionar-se, se afirma e se recolhe novamente das profundezas de seu ser. O caminho é um caminho de crescimento. Seu caminho, cada um o terd que descobrir por si. Descobriré, ca- minhando. Contudo, jamais seu caminhar serd aleatério. Cada um parte de |dados reais; apenas, 0 caminho h4 de the ensinar como os poder& colocar e com eles ira lidar. Caminhando, saber. Andando, o individuo configura o seu cami- nhar. Cria formas, dentro de si e em redor de si. E assim como na arte © artista se procura nas formas da imagem criada, cada individuo se Procura nas formas do seu fazer, nas formas do seu viver. Chegara a seu destino. Encontrando, saberé o que buscou. © 1977 by Fayga Ostrower Direitos de publicagao em Lingua Portuguesa reservados & Editora Vozes Lida. Rua Frei Luts, 100 25689-900 Petrépolis, RJ Brasil A 1° edigao foi publicada por Imago Editora Ltda, — 1977 Coordenagao, capa e programagdo de arte: Fayga Ostrower Fotografias: Henrique Ostrower FICHA CATALOGRAFICA CIP-Brasil, Catalogagdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Ostrower, Fayga. 094e Criatividade e processos de criagao / Fayga Ostrower. — Petropolis, Vozes, 1987. Bibliografia. 1. Criagio (Literaria, artfstica, etc.) — Teoria. I. Titulo. CDD - 701.15 153°35 78-0170 CDD - 7:159.928 159.928 SUMARIO INTRODUCAO 5 1 iL i Vv VI — POTENCIAL 9 Ser consciente-sensivel-cultural 11 — Ser sensivel 12 — Ser cultu- ral 13 — Ser consciente 16 — Meméria 18 — Associagdes 20 — Falar, simbolizar 20 — Formas simbélicas e ordenagées interiores 24 — Potencial criador 26 — Tensao psiquica 27 — MATERIALIDADE E IMAGINAGAO CRIATIVA 31 Imaginagdo especifica 31 — Materialidade, linguagem 33 — Elabo- racéo 34 — Ampliagéo do imaginar 38 — Propostas culturais 40 — Confins do possivel 43 — Formar e transformar 51 — CAMINHOS INTUITIVOS E INSPIRACAO 55 Processos intuitivos 53 — Ordenagées perceptivas 57 — Imagens re- ferenciais 58 — Constdncia de imagens 61 — Seletividade 65 — Insight 66 — Intuigéo, forma 68 — Formar, fazer 69 — Elabora- ¢do 70 — Inspiracdo 72 — Tenséo psiquica 73 — Caminhos 75 — RELACIONAMENTOS: FORMA E CONFIGURACAO 77 Forma 78 — Modalidades de enfoque 19 — Ordenagées de campo 81 — Ordenagées de grupo 89 — Semelhancas, contrastes 92 — Tota- lidades, partes, niveis 93 — Niveis integrativos, qualidades 95 — Or- denagées 91 — Equilibrio 98 — VALORES E CONTEXTOS CULTURAIS 101 — CRESCIMENTO E MATURIDADE 127 VIL — ESPONTANEIDADE, LIBERDADE 147 INDICE REMISSIVO 167

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