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Capitulo 6 Soli (1* parte) A técnica do soli (também conhecida por “escrita em bloco") é, sem divida, a mais bem docu- mentada de todo 0 estudo do arranjo. Apesar de, a0 menos em tese, poder ser aplicada a naipes de uaisquer classes de instrumentos, € muito mais apropriada aos sopros (ja foi mencionado um tipo de adaptagio do sola escrita mel6dica para guitarra e piano; veremos mais adiante que tl técnica 6 empre- sada também com 6timos resultados nos instrumentos de corda arcada, mas apenas como contraste em telaco aos didlogos émitativos que caracterizam uma textura polifénica. 0 arranjo para vozes humanas também utiliza freqlentemente o soli como um excelente meio expressivo, como podemtos constatar nos trabalhos de grupos como os americanos The Swingle Singers, L.A. Voices e The Manhattan Transfers), £ interessante notar que a técnica do soli tem, certamente, origem na escrita coral que surgiu na mtsica lem ap6s a Reforma realizada por Martinho Lutero em 1517, da qual Bach — sucedendo a Pachelbel, Schiitz e Bustehude — tornou-se o maior e incontestivel dos mestres. Principalmente nos prelidios a quatro partes (a maioria harmonizagdes de hinos jf existentes na Epoca), a tendéncia era de que as vozes se movessem com idéntico ritmo (na realidade, éraro encontrarem-se exemplos em que tal coisa aconteca ‘na pega inteira, Mas podemos dizer que, ao menos essencialmente, esse é o procedimento principal da escrita para coro). A misica coral da lgreja protestane era, assim, homtofdnica e (teGricae relativamente) mais simples (e, desse modo, mais acessivel a povo) que a criada pelos compositores catdlicos contem- Porineos, esta grandiosa e polifnica (em alguns casos, de uma complexidade impressionante). A partir do século XVI, a misica instrumental comecou a desenvolver-se bastante e, com isso, as ‘écnicas composicionais usadas para vozes passaram, naturalmente, a ser empregadas do mesmo modo ‘a escrita para instrumentos (gracas também aos notaveis avangos conseguidos em sua construc). Surgiram os grupos instrumentais e, tempos depois, as orquestras sinfOnicas e, com elas, aidéia de se juntarem instrumentos de mesma familia em naipes, ideal para a aplicago de uma escrta “coral” adaptada, Porém, a total transformacio naquilo que hoje conhecemos pot soi sé aconteceria mesmo nas oF. uestras de jazz americans, nas quais a escrita coral para sopros — jf consagrada na miisica do Roman- tismo (século XIX) e ensinada nas classes de composi¢d0 — foi novamente adaptada, desta ver a0 ritmo sincopado, & harmonia e3 melodia peculiares do estilo, Foi a partir dai que surgi a, digumos assim, “regu- lamentacao” dessa téenica, que passaremos a estudar nas proximas paginas deste capitulo. Veremos nesta primeira seco os soli a duas, tes e quatro partes, bem como a cinco ea seis vozes 1. Soli a duas partes «partir de agora, para simpli- ‘oli a2") talvez seja a que mais difere do caso geral. A explicaco para isso é simples: sem a dimensio hharménica que norteia a escrita para trés ou quatro partes (e suas implicagdes diretas, como o espa- samento entre as vozes), as duas linhas podem ter consideravelmente maior iberdade de movimento, seja quanto diego melédica, seja quanto A duragio ritmica de suas notas ‘Vejamos, inicialmente, alguns conceitos bisicos que nos servirao mais 3 frente. 133 1.1 Tipos de movimentos relativos entre duas vor Umavoz pode movimentar-se em relago a una outra apenas de quatro maneiras diferentes: parale- lamente (Exemplo 97a), similarmente (b), contrariamente (c)e obliquamente (d). Qual ou quais deles sto ‘bons movimentos? A respostaé: todos! A escolha depende de varios fatores, do resultado que se dese, do contexto em que esta inserida aideia musical, da intengo do arranjador—compositor. Por exemplo, para ‘uma textura poifdnica, os movimentos contrérioe obliquo (que tendem a dar mais independéncia is vozes) fo quase sempre os mais desejaveis. 0 mesmo nio se dé numa linguagem tio opostaa esta quanto a do soli onde o ideal é que haja — na maioria das vezes — uma espécie de “atrelamento” das partes me- lodia principal (o que afinal, nada € do que a propria “filosoia” das testuras homofOnicas), 0 que faz com que os movimentos paralelo e sinilar — nesta ordem— melhor se adaptem. Seria simples assim, no fossem as (bemxindg) situagbes alternativas enquadradas nos grifos acima, “quase sempre” e “na matoria das ‘eres". Tanto um movimento paralelo pode ser usado com excelente resultado num complexo contraponto a duas partes, como um soli pode ficar ainda mais interessante se houver, uma vez ou outra, entre os dois instrumentos, uma espécie de defasagem de movimentagdes, que quebre a constincta esperada. A palavra- chave comum a0s dois casos foi bem discutida e tev frisada sua grande importincia dentro do discurso musical no Capitulo 4: contraste. Voltaremos ainda algumas vezes a esse assunt. Exemplo 97 @) (0) © | @ oe No paralelo, ambas as vozes movimentam-se na mesma direcdo e com o mesmo intervalo. No similar, apesar da diregdo ser idéntica, os intervalos diferem. Ja o movimento contrrio implica uma troca de sentidos: uma das vozes ascendente, a outra descendente, quaisquer que sejam os intervalos. No movimento obliquo uma das vores se sustenta enquanto a outea se move (também aqui, nao importando, o intervalo usado). 1.2 Classificagio dos intervalos Existem algumas classificagbes diferentes para os intervalos harm@nicos, quase todas bem parecidas, divergindo apenas em poucos pontos. A que adotaremos parece-me a mais apropriada para os objetivos do presente capitulo: a) Consondincias justas (ou perfeitas) — Unissono, &Je 5*J Aoitava e a quinta sio — no por acaso — os dois primeiros intervalos que aparecem na série hharménica (ver p. 52), ¢tem esse nome (“justo”) devido as simples e“perfeitas” relagdes entre as fre- te ws = f@) 4) Quanto ao espagamento das vozes, nao hi, no soi a2, limites rigidos como os do a3 ou do a4. No entanto, é aconselhavel a escolha de instrumentos de registros, se ndo semelhantes, ao menos nao discrepantes (como, por exemplo, flautim eclarone!): duas vozes em soli exageradamente aberto tendem soar muito individualmente, “descoladas”, o contrério do que dita o — digamos assim — “objetivo principal” da técnica em questo. Esse maior grau de independéncia entre as partes € muito ma apropriado a texturas polifénicas. ©) Ocasionalmente uma inflexdo pode ser atacada em apenas uma das partes (quase sempre isso acontece na melodia principal, mas nada impede o contrério), sustentando-se, na outra, uma nota estru- tural. Desde que nao seja usado em excesso (porque ai toda a textura correriao risco de perder acarac- terfstica de soli), esse recurso torna-se muito iil, pois costuma resolver problemas na condugdo das vozes, além de dar variedade ao todo. 14 Exemplo 112 6 7 oo a. oe) oo on oe 7 ) Em arranjos para dois sopros dificilmente é usada 0 tempo todo apenas a técnica de soli: melodia dobrada em unissono ou oitava,tratamentos contrapontisticos ou mesmo uma das vozes em facet? podem funcionar como excelentes contrastes 2 ela. 0 equilfbrio entre todas essas linguagens depende da inten- ¢¢io do arranjador, bem como — e principalmente! — de quio apurado seja seu senso de forma (ver Capitulo 4). soli a2 também pode ser usado, ele pr6prio, como textura contrastante — além das outras citadas — em arranjos em que soli a3 ou a4 sejam predominantes (contraste de densidade). 8) Quanto a combinagdes instrumentais apropriadas para esse tipo de soli existem varias, e muitas outras podem ser criadas, com resultados diversos. Dependendo do que se pretenda — se ambas as voves devam soar amalgamdas ou bem individualizadas —, podem ser escolhidos, respectivamente, timbres semethantes (ou iguas; por exemplo, duas clarinetas) ou nfo. Talvez a mais usada e bem-sucedida de todas seja a que une trompete e saxofone (alto ou tenor), combinagio consagrada em intimeras gra- vagoes de pequenos grupos de jazz, e que teve sua expresso mxima, sem divida, nos duetos de Miles Davis e John Coltrane, 1) Eaconselhavel que na primeira fase da elaboragao do sol, os instrumentos sejam escritos na mesma pauta (nos demais — 23, a4 ete. — io ainda uma outra, com clave de £8), como é 0 «aso de quase todos 0s exemplos mostrados até agora neste capitulo, Desse modo, torna-se mais fil a visualizagZo do conjunto, o que diminui a possbilidade de erros de escrita, além de fazer com que revisbes ceventuais fiquem mais simples. E 6bvio que, na grade, as diferentes partes devem ser escritas da maneira tradicional, ou seja, nas pautas dos instrumentos correspondentes, com suas respectivas — quando ne- cessario — transposigdes (rever 0 t6pico "Redugao para piano”, p. 92) 1.5 Construgdo de um exemplo pritico Usaremos 0 mesmo samba mostrado na p. 88 como exemplo para escrita de piano, Naquela oca- sio, foi empregado apenas um fragmento do tema; para nosso arranjo dos sopros utilizaremos a idéia completa, de modo que haja espaco para diferentes texturas (além, é claro, da de soli, que é o objeto principal deste exemplo) , como acabamos de comentar, na obser ‘Ainstrumentagio adotada 6 trompete (ver tesstura etransposig0 no pr6ximo capitulo — embo como foi dito, isso no seja Ho importante na primeira fase do arranjo jé que os instrumentos sero escritos no som real e na mesma pauita) e sax alto. Antes de qualquer co 12 seja feita a anilise melédica de todo o trecho, com a marcagio de inflexdes e antecipagées (notas de acordes e tensdes harm@nicas — por motivo de simplificagao — nao precisam ser indicadas). 0 tema completo e analisado encontra-se no exemplo a seguir. [treme Bro, Em? ee om? mits) a ef t (tna po 143 tuna versio de arrano para os dois soprs (a parte do trompete € mals aguda, com as hastes das nots wltadas para cima) poderia sera mosiradaabaixo (obs harmonia fo omiida por razbes de lareza), Exemplo 114 - SE ta & sce ae =e Se Mets a oe _ ~ 144 Observando o arranjo, podemos fazer algumas consideragGes: ‘A (compasso 3): uso de unfssono em contraste com a textura de soli, que antecede e que se segue a este trecho. Tal solucio foi escolhida pelo fato de ser o fragmento uma espécie de anacruze da préxima frase um dos dois instrumentos também poderia ficar em pausa) B (compasso 4): 0 paralelismo das tergas ¢ quebrado, em um breve movimento contrrio entre as partes. Sempre a procura pela melhor condugo melédica deve nortear 0 arranjador. (compasso 8): novamente uso de movimento contrério, porém com um outro objetivo: aqui, o de su- blinhar a linha cromética usada para conexdo a uma nova idéia. D (compasso 8): 0 intervalo de sétima foi usado sem problemas por tratarSe de um ponto de importinct vertical (ver p.141). Sendo o ré a nona do acorde, optou-se por dar-lhe o apoio da terca; além disso, a propria sonoridade do intervalo casa bem com a instrumentagio, o estilo e a figuracdo ritmica, repleta de acentuagdes, sincopas e antecipagoes. E (compasso 11): usou-se aqui o recurso descrito na observacio (), p. 141, sem nenhum prejuizo para atextura de soli a2. A razo é puramente melédic: F (compasso 12): uma bordadura cromtica em posigdo métrica mais forte que a da nota-alvo (apesar dda harmonia ser C7, 0 sf natura no choca-se de modo algum com o sib, pois resolve corretamente em d6) éacompanhada na parte do sax por uma nota de idéntica fung’o (sol), G (compasso 15): neste ponto, a textura passa a ser a uma parte, num solo do saxofone (contraste de densidades), Notar que a melodia original (Exemplo 113) fl transposta, neste trecho, uma oitava abaixo, de modo a tornar-se mais apropriada ao instrumento. H (compasso 17): 0 trompete entra com uma espécie de “resposta”, de caréter fortemente ritmico, & frase anterior do saxofone, enquanto este sustenta a gltima nota, o que provoca uma saudvel mudanga de foco entre os instrumentos. Esse tipo de recurso — chamado de “background” — serd abordado com mais profundidade no Capitulo 13. 1 (compasso 20): apés esse didlogo, voltam trompete e sax 20 mesmo ritmo — novamente em movimento contrério, sublinhando uma linha cromética (embora o saxofone niio suba totalmente em semitons, 0 resultado sonoro é, na pritica, idéntico) J (compasso 26): desta ver, 6 vor mais grave que se aproveita do fato de ser a melodia aqui uma nota Jonga, para movimentarse, dando mais interesse melédico ao arranjoe, de certa forma, antecipando a proxima frase (principio da imitacao, que sera discutido no Capitulo 11) 1. (compasso 29): solo do trompete, Formalmente, € uma espécie de “compensagio” 2 frase dada ao sax (compassos 15-16), 0 que restitui o equilfbrio ao conjunto (obviamente esta é uma rato bem mais subjetiva do que técnica, uma sutileza derivada por completo do senso de forma do arranjador. Porém, nem sempre é mais interessante valorizar ao extremo a simetria das estruturas — as vezes, irregulari- dades construtivas, idas just sem correspondéncia, mudangas inesperadas de “rota” etc.,trazem a pitada exata de variedade a uma composicao, tirando-a do previsivel, que quase sempre resulta em monotonia. um assunto complexo, que necesita de muita reflexio). M (compasso 33): breve trecho em unissono, marcando o inicio de mats uma seco da misica N (compasso 35): 0 intervalo de segunda maior, alcangado por movimento contririo, é usado aqui como ‘uma forma de intensificagio do — assim considerado pelo arranjador — climax da melodia; alguns fatores, influem nessa escolha: além da proximidade do final, a nota anterior &a mais aguda da pega, e 0 repouso— ‘que fecha a frase — dé-se sobre uma tensio alterada (a décima primeira aumentada do acorde). 0 (compasso 40): novo ponto de importincia essencialmente harménica — o final da musica. Optou- aqui, pela consonincia perfeita de quinta justa (ao invés de se continuar com a sonoridade das fergas), em beneficio de uma terminago melédica em movimento contrario, ica O proximo passo é a grade: ambos os instrumentos devem ser transpostos eescritos em suas pautas correspondéntes, juntando-se aos demais, da base. Abaixo, os compassos iniciais da grade de nosso ar- ranjo (aproveitaremos as partes de piano e baixo mostradas no Fxemplo 80): Exemplo 115 rompet() sac ato() 1.6 Exercicios 1) Escolher um bom nimero de melodias para analisar (sugestio: 0 melhor tipo de misica para tal propésito é, sem diivida alguma, 0 choro. Contudo é bom selecionar pegas de outros estilos, até para ‘que, enquanto da feitura exercicio, observar — e, conseqiientemente, aprender — particularidades nas suas construgdes mel6dicas) 2) Fazer dois arranjos predominantemente em soli a2 (4 maneira do exemplo pritico) com as seguintes misicas e instrumentagoes: 146

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