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INTRODUGAO Logo, esquecerds tudo; logo, todos te esquecerao. Marco Aurélio Numa cena do filme Terra das sombras, 0 personagem do historiador inglés C. S. Lewis pergunta a um colega de univer- sidade se ele € feliz. O colega responde: “Eu souo que sou; a vida €o que é. O que isso tema ver com felicidade?” O didlogo dizia respeito ao arror. Lewis estava apaixonado pela poetisa ameri- cana Joy Gresham, e 0 colega ignorava o que era amar. Na seqiiéncia, Joy morre inesperadamente de cancer. O sofrimento de Lewis ¢ imenso ¢ a moral do filme é clara: sem amor estamos amputados de nossa melhor parte. A vida pode até ser mais, tranqiila e livze de dores quando nao amamos. Mas trata-se de uma paz de cinzas, como ado colega de Lewis. Nada substitui a felicidade erética; nada traz.o alento do amor-paixio roman- tico correspondido. Diante dele tudo empalidece; sem ele, até 0 ‘que engrandeve perde a razio de ser. Esta imagem do amor, tipica do romantismo, nos é total- mente familiar. Ela domina o imaginario no qual o amor erético € 0 signo do supremo Bem. Entretanto, apesar do enorme prestigio cultural, o amor deixou-de ser um puro momento de ‘encanto para se tornar uma corvéia. Quando é bom nao dura e quando dura ja nao entusiasma. “Os fins do Ser ¢ a Graga entressonhada’, de Elizabeth Browning/Manuel Bandeira, pa- recem distantes como conto de fadas, Na pratica, muitos come gam a se convencer de que “amar é sofrer” e quem nao quiser R SEM FRAUDE NEM FAVOR softer deve desistir de amar. Realizar o amor sonhado tornou-se um desafio ou uma massacrante obsessiio. Cada dia mais, os deserdados da paixto buscam a cura para seus males. Uma descomunal maquina de reparar amores infelizes foi posta em marcha e, pouco a pouco, cresce o niimero dos que gravitam em toro dela: clientes, funciondrios, proprietarios, gestores, ledlogos, “garotos/garotas-propaganda” e assim por diante. Desde as ligdes de vida oferecidas pelas personagens de teleno- velas, passando por conselhos paternos/maternos ¢ opinides ‘Savantes de psicanalistas, psicélogoscognitivistas, behavioristas, psicofarmacologistas, neurocientistas, religiosos, cartomantes, astrélogos e centenas de outros peritos, tudo e todos parecem querer resolver um “problema” cada vez mais rebelde ao ades- tramento. Os artigos deste livro nao pretendem oferecer solugdes—se & que existem — para os dilemas do amor. Pretendem, simples- mente, sugerir outro modo de pensar sobre esta veneranda questo. A sugestio é que tentemos desfazer o monétono péndu- lo que oscila entre a culpabilizagao dos individuos pelos “fracas- sos” de amor ea condenagao da paixéo amorosa como desvario institucionalizado. Ao contrério disso, penso que o amor nem uma impostura, como querem alguns, nem é o sagrado profana- do por nossa ‘“impiedade narcisica”, como querem outros... amor é uma crenga emocional e, como toda crenga, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado como 0 fogo, a roda, o casamento, amedicina, 0 fabrico do pao, a arte erética chinesa, o computa- dor, 0 cuidado com 0 préximo, as heresias, a democracia, 0 nazismo, os deuses € as diversas imagens do universo. Nenhum de seus constituintes afetivos, cognitivos ou conativos é fixo por natureza. Tudo pode ser recriado, se acharmos que assim deve ser, em fungao do que julgarmos melhor para todos ¢ cada um de nos. Para isso, entretanto, é preciso mostrar que nossas convi Ges amorosas podem ser aperfeigoadas, qualquer que seja 0 sentido que venhamos dar ao termo perfectibilidade. Nesta introdugio © nos textos que compdem o volume, procuro analisar algumas das mais tenazes “intuigdes” sobre INTRODUGAO 13 amor, com vistas a discussio de seus enigmas morais. De modo breve, trés principais afirmagdes sustentam 0 credo amoroso | dominante: 1) 0 amor é um sentimento universal ¢ natural, presente em todasas épocase culturas; 2) amoré um sentimen~ tosurdo “voz da razio” e incontrolavel pela forga da vontade ¢3)damoréacondi¢ao sine qua non daméxima felicidade a que podemos aspirar. Esses t6picos formam uma espécie de catdlogo de competéncia minima exigido dos candidatos ao vestibular do amor. Vejamas cada um deles isoladamente. Em primeiro lugar, tomemosa crenganauniversalidadeena naturalidade do amor. O argumento que da suporte a crenga diz mais ou menos 0 seguinte: em todas as culturas conhecidas ‘temos testemanhos da presenga do amor-paixao. Isso prova que ele € um dom gratuitamente oferecido pela mae natureza. Portanto, tudo que venha a proibi-lo, inibi-lo ou desmoralizé-lo € desumano’e antinatural. Habituamo-nos a pensar dessa forma e qualquer af rmagiio diferente aparece como contra-intuitiva e carente de fundamento, Na verdade,esse raciocinio faz parte do aprendizado das “intuigdes indubitaveis” sobre nossos senti- ‘mentos. Aprender a valorizar 0 amor como um bem desejével é aprender, ao mesmo tempo, a ndo duvidar de sua universalidade e de sua naturalidade. S6 que a idéia da naturalidade e universa- lidade-da experiéncia amorosa nada tem de evidente por si mesma, Quando dizemos que o amor é universal, estamos dizendo que sabemos reconhecer em experiéncias emocionais passadas semelhangas ou identidades com experiéncias amoro- sas presentes. Mas a capacidade para reconhecer semelhangas ou diferengas em fatos afastados no tempo € no espago é ‘ensinadae aprendida como qualquer outra. Quem nos ensina que. ‘amor de Helena por Paris, de Romeu por Julieta, de Cledpatra ' por Marco Anténio, de Tristao por Isolda ¢ igual ao amor que sentimos, j4 selecionou previamente, nos fatos passados, o que deve ser identificado com os tragos relevantes dos amores atuais. Além disso, zprender que os amores histéricos ou lendarios sio aquilo que devemos sentir integra a habilidade de ver 0 amor como algo grandioso, magico, que atravessa 0 tempo ¢ 0 espago om a forga de um bem extra-humano e extramundano. Saber : 1 d “4 SEM FRAUDE NEM FAVOR amar € reconhecer no que se sente os sentimentos dos herdis ¢ heroinas dos enredos amorosos exemplares. Do contrétio, o que sentimos nao € 0 “verdadeiro amor” e sim uma contrafacio, um palido reflexo do que sentiremos quando 0 amor, genuinamente, nos tocar. © contra-exemplo dessa descrigdo pode ser dado, ‘empiricamente, pelas culturas nas quais a “experiéncia univer- sal” do amor nfo se repete. Em geral, interpretamos essas anomalias como sinal de atraso cultural ou da presenga, na sociedade, de dispositivos antiamorosos que julgamos contrari- osanatureza. Mas aceitareste argumento significa conceder que a universalidade de que se fala é sinénimo de “virtualidade” e no de “necessidade”. O que é virtual pode ser “obrigatério” ou “opcional”. Empregada no sentido de “‘potencial obrigatdrio”, a palavra “universal” tem um sentido completamente diverso do sentido contido na idéia de “universal” como “potencial opcional”. Por exemplo, quando dizemos que compor misica classica é uma potencialidade universal dos humanos, “univer~ sal”, nesta acepedo, nao é 0 mesmo que “universal” numa frase que afirma a universalidade de nossa capacidade de regular a homeostase organica pela ingestao de alimentos. O que é virtual € opcional é matéria de preferéncia e escolha; o que é virtual e obrigatério € matéria de coergio inevitavel. Nao podemos escolher no respirar, sob pena de morrermos, mas podemos decidir se vamos ou ndo jogar futebol ou fazer misica. Obvia- ‘mente, oque chamamosde opcional nao depende exelusivamen- te de decisdes intelectuais. Os habitos culturais, as limitagdes sociais, as particularidades psicolégicas ou os talentos pessoais, podem agir como motivos coercitivos na determinagdo das preferéncias. Mas tais condicionamentos, por mais fortes que sejam, néo sfo légica ou empiricamente equiparaveis as deter- minagdes dos fatos naturalmente compulsérios. "Pode prgut or que no emprez as alcoa eater “ali” neces Sai par alr €o ue Ca epee opal “pte Spats sponta Geter it sae empronetin com es ha divs essence nts da tea ae dca, poco ces, como sera visto adiante. i INTRODUGAO 15 Em resumo, quando falamos da universalidade do amor, ‘empregamos “universal” como termo equivalente & “potencia- lidade partithavel por muitos ou por todos”, sem explicitar que assimilamos 0 que é opcional ao que ¢ obrigat6rio. A diferenga, entretanto, é grande, Nem tudo que podemos sentir ou fazer nos deve ser imposto. A. principio, todos podemos acreditar na vida apésamorte, mas tal crengando € condigao de nossa sobreviven- cia Fisica ou psiquica e, por isso, obrigar todos a aceité-la é um ato de violéncia. Outra coisa é a “imposigao” do que é impres- cindivel & sobrevida. Aceitamos sem problemas que precisamos nos alimentar e aprender a falar porque sabemos que, sem isto, ndoatualizaremoso potencial de humanizagao que temos conosco desde 0 nascimento, Dizer que todos ternos de comer ou de falar é diferente de dizer que todos temos de rezar ou acreditar em discos voadores. Nao nos sentimos obrigados a adotar erengas copcionais, e, se formos forgados a assumi-las, sentiremos a obrigagZio como um atentado a nossa independéncia e liberdade deescalha. A crenga na universalidade do sentimento romantico é do tipo das erengas opcionais, nao das crengas necessérias. Com aidéiade “naturalidade” ocorre omesmo deslizamento de conceitos pertencentes.a registros légicos diversos, observa- do no caso daidéia de “universalidade”. Ao afirmar que o amor um sentimentonatural, queremos dizer que ele nfioé construido de forma histérico-cultural e, portanto, preexiste ¢ independe da vontade ou deescolhas racionais. Entretanto, a oposicao natural/ cultural € fruto de uma disputa teérica que nao somos obrigados a aceitar. Imaginar que o mundo se divide em dominios ontolégicos incomensuraveis, o da naturezaeodacultura,éuma renga opcional. Sé quando acreditamos que existe um fosso metafisico incransponivel entre as “entidades naturais” © as “entidades culturais” € possivel situar 0 amor no escaninho da natureza e inferir disto sua invariéncia cultural ou sua obrigatoriedade psicoligica e moral Para 0 naturalismo pragmatico, no entanto, essa distingao € intelectualmente irrelevante. Todos os habitos mentais ou prati- cas lingUisticas, incluindo as crengas emocionais, sé fendme- No paradigma darwinista, crengas emocionais s40 16 SEM FRAUDE NEM FAVOR habilidades desenvolvidas na evolugao da espécie humanae, em conseqiiéncia, pertencem a natureza do homem como qualquer ‘outra de suas habilidades: cantar, dangar, brincar, dormir, cons- truir teoremas, inventar preconceitos, colecionar borboletas etc? ‘idir 0 mundo em natureza e cultura é uma maneira prética de lidar com coisas e eventos € no uma exigéncia Togica do pensamento quando espelha verdadeiramente a “intrinse- calidade do mundo natural” ou a “intrinsecalidade do mundo cultural”, como postula a teoria representacionalista da lingua- gem edo conhecimento. Sendo assim, o amor pode ser deserito como um “fato cultural” ou como um “fato natural”, tanto faz. ‘Nenhum dos qualificativos nos obriga a amar romanticamente, sob pena de traigao & “natureza natural” ou “natureza cultural” do sujeito. Isto porque nem toda habilidade humana, pelo fato de ser natural ¢ exeqllivel, é desejével. Intimeras habilidades natu- rais sio, de fato, moralmente recomendaveis. Outras, entretanto, nos parecem repulsivas, embora possam ser exercidas pela A concepsio de naturalism pragmatico que adoto€' sugerida por Bjom Ramberg na ‘Seaugncla de rabalhos sobre Donald Davidson Richard Rorty. Estaconcepgao nada tem ‘ver com idéiasaparentemente similares, nasidas da sociobologia ou da chamada Psicologia evolucinisa, Para Ramberg o naturalism pragmaico € um coneitoampo, Ueflcionéro, comparado ao determinismo biologante das toras materialistas. Isso significa dizer que as habilidades meas dos sere humanos,emboraenfendidas como faturais, podem e devem ser descritas de miltiplas maneiras, nenhuma delas mais “fandamental”, mais “anata” ov mais “explicativa” que a outa. Em termospraticos, Jsso quer dizer que, no naturalismo pragmétieo,o Vocabulro da itencioalidad, que {ovacabulério da gramaiea do amor, nda éredutivel ao vocabuléro das e'snomoldgicas {as ciénlasempricas, Em primeir lugar poraue explicarcondutas manag em ermos ‘de"jistfieagdes, motives, ourazBes" &, ent gral, muto mas efcente, do ponto de vista pred. do que explicar estas mesmas cond ‘euociéncias, por exemplo. Em segundo lugar, porque, em geal. quando descreveos ‘omportamenos inencionss. adotamosaaltude prescitiva que delevoans paddies ‘comportameniais resides por normas ou valores © quando destrevemos manifestagdes bioldgies no-intencionas adocamos a attude desea”, queda relevo aos “padres ‘Ge regularidades”testaveisexperimentalmente. Os dversos vocabulrios io "manciras {tomar salientes diferentes padrdes causais do. mundo" e a mudanga de finguagem implica mudanga na mancra como concebemoso que somos, Assim. tanto as hablidades rentals do sujeito quanto a pramenteisildaleas to fata natura, o que no significa Tepito, que no exitam difeengas entre elas e que sea indiferente, do ponto de vista moral, descrevé-las fisicalisticamente ov mentalsticamente. Ver Ramberg. Bjorn. NaturalizingIdealizations ~ Pragmatism and the Inerpetivis Siraegy. 197. inet. ‘exemplar flocopiado; Rambers. Bjorn. Pos-Ontologieal Philosophy of Mind: Ror terns Davidson, 1997, ined. exemplarfocopiado 3 dispondo apenas do vocabulrio des, INTRODUGAO \ividuos, Repudiamos violentamente 0 canibalis- ‘mo, 0 assassinato, o incesto, a humilhago dos mais frégeis, a esctavidio, 0 sacrificio ritual de animais, 0 exterminio de populagdes civis em guerras etc. no obstante a naturalidade destas praticas, comuns em muitasculturas. Afirmar que o amor & universal e natural é apenas uma forma de maximizar seu teor de idealizagao, 0 que nada tem de reprovavel — apenas nio significa que amamos porque a “natureza” assim 0 exige. Em segundo lugar, vejamos a questio da “espontaneidade”. Nesse ponto, percebe-se, igualmente, como se processa a sele- ¢dio doselemertos da crenga amorosamaisadequadosaexaltagio do romantismo. Na linguagem comum, quando acentuamos © aspecto involuntario ou incontrolavel do amor, sublinhamos as ssensagdes e sentimentos em detrimento das crencas e julgamen- tos que Ihes sio, da mesma forma, congeniais. Mas dar relevo 0s dois primeiros componentes significa caucionar a idéia romantica de que o amor éum pedago sentimental do destino ao qual estamos entregues, sem chances de reagio. Nesta imagem, a fraqueza da racionalidade e da vontade ¢ realgada e exibida como prova da indiferenca do coragio “as razdes da Razdo”. Ora, a prética amorosa desmente radicalmente a idealizagao. ‘Amamos comsentimentos mas também com razées ¢ julgamen- lade esté to presente no ato de amar quanto as impetuosas paixdes. Amar é deixar-se levar pelo impulso passional inceercivel mas sabendo “quem” ou “o-que” pode deve ser eleite como Objeto de amor. A imagem do amor trans- sressor e livre de amarras é mais uma pega do idedrio romantic destinada a ocultar a evidéncia de que os amantes, socialmente falando, so, na maioria, sensatos, obedientes, conformistas € conservadores. Sentimo-nos atraidos sexual e afetivamente por certas pessoas, mas raras vezes essa atragdo contraria os gostos ou preconceitos de classe, “raga”, religidio ou posigao econdmi- co-social que limitam o rol dos que “merecem ser amados”. Na retérica do romantismo, o amor é fiel apenas a sua propria espontaneidade. A realidade social e psicolégica dos sujeitos diz outra coisa. O amor € seletivo como qualquer outra emogao presente em cédigos de interacao e vinculagdo interpessoais 18 SEM FRAUDE NEM FAVOR Pode-se argumentar, no entanto, que o selo cultural nao anula 0 aspecto involuntério do amor. O impulso amoroso se acomoda, certamente, ao universo de objetos ¢ valores ao redor do sujeito. Mas, nestes limites, continua sendo irracional, quan- do nio irrefredvel. E verdade. Entretanto, admitir a variagao do que atrai ou excita eroticamente significa admitir que a emogao amorosa néo é culturalmente cega, surda ou muda. Como todo ideal, o amor tem enderegos nobres e salas de espera vip. Nao circula a esmo num vacuo de intengdes e propésitos. Ao contra- rio, produz hierarquias de desejos e objetos internalizadas no proceso de formagao das subjetividades. O certificado de espontaneidade sentimental é uma mera vinheta de propaganda do produto ideolégico. Quanto mais espontaneo, diz-se, melhor © amor! Resta completar: desde que a espontaneidade nio deixe a quadra gramada dos fortunate few! Em outros termos ¢ de ‘maneira crua: amamos ideologicamente como fazemos filmes; escrevemos livros; viajamos; cozinhamos; divertimo-nos; tra- balhamos; rezamos ou filosofamos. Isso nao torna o amor irrelevante, torna-o apenas humano, perfeitamente humano. Em terceiro lugar, vem a questo mais delicada, a relagdio do amor com a felicidade. Mesmo admitindo que o amor nao é universal, natural ou espontineo, podemos desejar manté-lo como ideal de felicidade. Quanto a isso, no hé diividas. Até segunda ordem, seria insensato exeluir 0 amor de nossas vidas, pois isso representaria, para muitos, trocar o sonho provavel pelo desencanto certo. Ideais culturais no so trapos de papel. O romantismo amoroso foi e continua sendo uma das marcas registradas da cultura ocidental. Mas existem ideais e “ideais”. ‘O que nos fins do século XIX era uma fantasia social tratada por Engels como um embuste, hoje parece ter se tornado realidade. © amor se tornou fantasmagoricamente onipotente, onipresente e onisciente. Deixou de ser-unr meio de acesso & felicidade paratornar-se seu atributo essencial. Ashipéteses que explicam a mudanga so inimeras. Podemos pensar que a perda de interesse pela vida piblica, praticamente reduzida a questdes de mercado, provocou um enorme retraimento dos sujeitos para a vida privada, com a conseqiiente exaltagdo das expectativas amorosas. Podemos também supor que a liberagdo e a emanci- > Engels, Friedtich. iudwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy Poquim, Foreign Lenguages Press. 1996. p37 20 SEM FRAUDE NEM FAVOR pagdo das chamadas minorias sexuais trouxe, para muitos, a esperanga de realizac4o amorosa, aumentando, assim, 0 inves- timento afetivo no ideal do amor. Podemos, enfim, imaginar que, sem a forga dos meios tradicionais de doagio de identidade familia, religido, pertencimento politico, perteneimentonacio- nal, seguranga de trabalho, aprego pela intimidade, regras mai estritas de pudor moral, preconceitos sexuais, cddigos mai rigidos de satisfagdo sensual etc. -, restou aos individuos a identidade amorosa, derradeiro abrigo num mundo pobre em Ideais de Eu. Qualquer uma dessas explicagdes é aceitavel, sobretudo quando articulada as demais. © mais importante, contudo, é observar 0 que ocorreu com o amor quando se deslocou para o centro imaginério do ideal de felicidade pessoal. Privados de ‘outros ideais afetivamente importantes, voltamo-nos para 0 ‘amor como quem espera a arca de Noé. $6 que o Diltivio chegou antes da arca. O amor se tornou a ultima razio do sujeito, justamente quando seu universo moral de origem nao péde mais garantir-Ihe 0 poder ideal de outrora. Cercado de violéncia, competicdo, frivolidade, superfluidade, egoismo desenfreado e indiferenga, o amor ergueu-se como uma fronteira ou uma trincheira entre o sujeito moral e a barbérie do mercado. Mas, sitiado e fora do nicho ecolégico original, perdeu a perfeigao mitica que tinha, Enquanto foi emblema do cuidado com as geragdes, da harmonia entre “sexos desiguais”e da familia como “célula da sociedade”, guardou a transcendéncia que o protegia do tempo e do uso; quando se tornou um sentimento a mais na dieta dos prazeresa quilo, passouaser visto como qualquercoisa ou pessoa na cultura do consumo: perdeu o interesse, lata do lixo! Sem a retaguarda dos lagos culturais mais vastos, o amor tomnou-se derrisério. Em vio quisemos fazer dele um s6 € 0 ‘mesmo passaporte para a “ilha dos prazeres” e para 0 céu das emogées perenes. A operagio malogrou. Sem a moralidade tradicional, 0 amor mostra os pés de barro de toda paixio humana; coma moralidade tradicional, traz um rango deascetismo. que ninguém mais pode aceitar. Presos ao impasse, insistimos INTRODUGAO 21 em por vinho velho em odres novos. Continuamos invocando ritualisticamente o amor. Mas como quem pede proteco aos deuses da chuva mandando e-mails com dados de satélites meteorolégicos! Donde os inevitaveis qiiiproqués. Acusamo- nos de narcisistas, egofstas e descomprometidos com 0 outro. Mas nfio nos perguntamos se 0 amor com que sonhamos pode sobreviver a0 desmoronamento da moral patriarcal e, sobretudo, & nossa paixio pelo efémero. Em seu bergo histérico, o amor foi embalado por adiamentos, rentincias, devaneios, esperangas no futuro e “doces momentos do passado”. Ele nasceu na “Era dos Sentimentos”, do gosto pela introspeceoe por histérias sem fim de apostas ganhas e perdidas. Hoje entramos na “Era das Sensagdes”, sem meméria e sem histéria.* Nada nos parece mais bizarro e tedioso do que aventuras sem orgasmos ¢ sofrimentos sem remédio vista. Aprendemos a gozar com o futil ¢ 0 passageiro e todo “além do principio do prazer” é s6 um vicio de linguagem ou ca inéreia dos costumes. Em sua, vivemosnuma moral dupla: de um lado, a sedugaio das sensagdes; de outro, a saudade dos sentimentos. Queremos um amor imortal ¢ com data de validade marcada: eis sua incontorndvel antinomia e sua moderna vicissitude! Se pensarrios, no entanto, que as emogdes ndo habitam as cavernas ou as clareiras das “esséncias emocionais”, podemos renovar nossa gramética emotiva sem abrir mao dos ideais de amor que venhamos a reinventar. [sso nada tem de impossivel; no passado, exaltamos muitos outros ideais que, ao caducarem, no nos deixaram érffios de felicidade. J4 pensamos que a felicidade s6 existia na bravura e na sabedoria com que entrava- ‘mos e saiamosda esfera piblica, para expor feitos e palavras a0 esplendor do espago comum. Jé pensamos quea felicidade vinha da santidade e gememos e choramos ao perceber que s6 0s premiados coma gragadivina ultrapassavamasoleirada beatitude ‘onde a maioria se detinha. Hoje continuamos a ver na coragem “Este tpieo€aprofundadocjusificad no time artigo deste volume, “Sobre a gramatica do amor roméntico™ 2 SEM FRAUDE NEM FAVOR € na sabedoria um valor. Mas ninguém é infeliz. ou frustrado emocionalmente porque no segue os passos de Antigona, Ulisses, Péricles ou Sécrates. Da mesma forma, muitos continu- am vendo na religido o sentido da vida e da morte. Mas os suspiros dos misticos jé ndo despertam, na maioria de nés, nostalgia alguma de padecer na came as voliipias doamorcasto. ‘Vendo o amor roméntico com olhos de moriais que apostam na vontade de agir, talvez possamos dizer o que Lionel Trilling dizia de Aristételes: ele nfo gostava de herdis; os her6is sto sempre melhores do que os humanos. O mito dos herdis ¢ heroinas amorosos que seqilestrou nossos espiritos é “mais” € “menos” do que sabemose podemos. E “mais” se accitarmos ser vitimas impotentes do fetiche amoroso; é**menos” se aceitarmos que a emogao amorosa nfo nasceu pronta e acabada em algum lugar da mente e pode ser aperfeicoada por outros sentimentos, razdes e agdes. Nem crédulos, nem desconfiados, talvez a melhor pergunta sobre o amor seja aquela dirigida & nossa vontade de poténcia: como fazer da vida aquilo que queremos niio a cépia do que quiseram por nés? Nao custa lembrar o que dizia Marco Aurélio sobre a vanidade das crengas que julgamos eternas: “Logo, esqueceras tudo; logo, todos te esqueceriio.” UTOPIA SEXUAL, UTOPIA AMOROSA ‘Nada seria mais justo do que tomar o pensamento de Marcuse € de Foucault como ponto de partida para abordar o tema da utopia sexual e amorosa. Comparar o que disseram sobre sexo, amor € utopiame pareceu uma boa maneira de refletir sobre os costumes sexuais e amorosos atuais. EROS E SEXUALIDADE EM MARCUSE Marcuse precedeu Foucault na critica aos hébitos sexuais mo- demos. Em Eros e civilizagdo, sua tese é de que Freud se equivocou quando viu na culpa e na infelicidade o inevitvel tributo pago pelos individuos para se protegerem da destrui¢ao métua. Sema sublimagao das pulsdes e o adiamento do principio do prazer, diz'a ele, nada pode defender os mais ftacos da violéncia homicida dos mais fortes. Mas, amedida que renuncia- mos A satisfagdo erética, renunciamos a gratificagao pulsional. O mal-estar da cultura € insuperdvel. Pior do que isso, sequer podemos saber se a repressio do prazer resulta em preservacao da vidaem comum, pois, ao sublimar o eros, deixamos boa parte do terreno cultural liberado para as manifestagdes da pulsdo de morte. Em surra, dessexualizamos as vidas individuais 4 custa de sublimagao, repressao e culpabilidade e canalizamos a ener- gia do sexo parao trabalho produtivo e as relagdes pessoais ndo- erotizadas. Além de insatisfeitos eroticamente, alteramos a economia pulsonal e infletimos 0 equilibrio entre as pulsdes

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