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JOAO JOSE REIS 6 professor do Historia da UFBa e autor de Rebelo Escrava no ‘Beast a Historia do ‘Levante dos Mais (Beasliense) © A Morte ‘éuma Festa: los Finebres @ Rovotia Popular no Brasi do ‘Séoulo XIX SRlomecunes stipes Tyewen ar 1 Potato Yagem Bane romania Aagase olovaor 000 p20 2 doa gu aia 0211057 « ‘ssn daca Iuscaro Seose So0 ead Eavaan 4 somata 2057 fen a8 Subsea Minow ® Valonea 20 Chto enimcesotwceds ths {oregano 6 Heer wen A Depegata ‘Sstuteodturecoun a ance ra en B REVISTA USP m 1857, a maioria dos negros de Salvador, escravos ou no, traba- Thava na 'rua, ou entre a casa e a rua. Eles eram responsiveis pela circulagio de coisas e pessoas pela cidade, Carregavam de tudo: ccotes grandes € pequenos, do en- velope de carta a grandes caixas de agtcar, tinas de agua e fez tonéis de ‘aguardente e gente em cadeiras de arruar. Nao se viam mestigos, muito menos brancos nessa ocupagio. “Tudo que cor- re, grita, (rabalha, tudo que transporta € carrega € negro”, observou em 1858 0 viajante alemvio Robert Avé-Lallemant (1). Mas no primeito dia de junho de 1857, uma segunda-feira, as ruas de Salvador amanheceram estranhamente calm: (Os negros haviam decidido cruzar os bra ei protesto contra uma postura mu- ail em Vigor a partir daquela data. A postura, publicada trés meses an- tes, estubelecia que os ganladores, como eram chamados esses trabalhadores de rua, doravante s6 poderiam “ganhar” mediante licenga concedida pela Cima ra Municipal. Por esta licenga, ow matri- cula, pagariam dois mil réis. No mesmo alo deveriam pagar uma taxa adicional de trés mil réis por uma chapa de metal com 0 niimero de inscrigio, de uso obri gal6rio ao pescogo sempre que estives- sem no ganho. O custo total da opera cinco mil réis, nao era desprezivel. Equ valia naquete ano de 1857 a cerca de uma arroba (quinze quilos) de carne. Além disso 0s libertos (ex-escravos) deveriam apresentar um fiadores “iddneos” que se comprometesse pelo comportamento futuro deles. Tncluidos nessa lei estavam s6 os ganhadores, nio as ganhadeiras, negras que se dedicavam principalmente a mercadejar diversos géneros secos © adores 0 edit 1) “ganhadores de cesto ou tina”, isto €, 0s que transpor- idualmente liquidos em ti- nas, principalmente agua, € pequenos mas Sdlidos volumes em cesto; 2) “ga- thadores de pau e corda”, que transpor- tavam em grupos fardos maiores e mais pesados, utilizando-se de longas varas © cordas; 3) “carregadores de cadeiras”, que trabathavam em duplas no tra porte de pessoas. O edital ainda acres- centava que estariam sujeitos & postura “os mais que fazem profissio habitual de ‘ganhar”, 0 que incluia praticamente todo negro dedicado ao trabalho remunera- do de rua (2). A lei era uma medida, entre muitas concebida pelos poderes pabli nar o trabalho do negro salvaulor. Na verdade, o projeto maior era disciplinar 0 negro no espaco publi 0, tanto de trabalho como de lazer. Fos sem escravos ou libertos, deviam ser bem vigiados. Vigiados em sua ocupagio os- tensiva da rua, quer carregando ou ven- dendo mercadorias, quer fazendo batu- ques, jogando capoeira ou s6 vadiando. Conforme leis sistematicamente desobedecidas, os escravos deviam levar passes assinados pelos senhores, € 08 li- bertos, passaportes assinados por auto- les policiais, designando quando e por onde podiam circular. Sobretudo no deviam freqiientar as sombras da noite TRABALHO E CULTURA DE RUA (Os negtos eram temidos, em prime: ro lugar, porque eram muitos. As est mativas da populagio de Salvador em 1857 variam muito. Mattoso prope 89.260 e Nascimento 58.498 (3). As fon- {es contemporiineas sio mais. generosa oJomal da Bahia, por exemplo, arriscou 140 a 150 mil habitantes, uma estimativa “bem ealculada” segundo o periddico (4). Se hi diividas quanto aos totais, hia me- ‘nos quanto ao [ato de os brancos repre- sentarem uma minoria em tomo de 30% ‘Talvez menos do que isso, se considera ‘mos que populagio escrava era siste- maticamente subestimada porque os se- nhores evitavam ter seus escravos contta- dos, por femerem impostos ou mesmo o confisco dos importados ilegalmente de- pois de 1831 (5). Calcula-se que cheg: Bahia, apenas nos cinco anos an- res ao fim definitive do trifico em portada para o sul do pais, alguns milk res devem ter sobrado para Salvador sem figurarem nas estatisticas oficiais. De qualquer jeito, a populag crava parece também minoritér 1857, algo entre 30% e 40%. Entre somados escravos, libertos e livres negro- mestigos, resullavam ampla maioria, $6 ‘05 negros ficavam em tomo de 40%, pelo menos metade de origem africana. F cles, como ji se viu e se verd muito mais adiante, que davam a cor da vida baiana de rua. “Opulenta cidade dos negros” foi a Gitima impressio de Avé-Lallemant sobre Salvador - depois de ver Pemambuco, Alagoas ¢ Sergipe (7). As tentativas de controle dos negros, que datavam dos tempos coloniais, se inten- sificaram apés a Independéncia, sobre~ tudo no rastro das revoltas escravas que assombraram os senhores ao longo da primeira metade do século XIX. Essas revollas foram feitas por afticanos. Os negros temidos eram principalmente es- tes. Em Salvador, importante porto do trifico atlintico, ria da populacgio escrava era nascida na Africa, com uma tendénei nacionalizagao” partir da cessagio do trifico em formada por na década de 1850 essa pro- porgio 3%. Num outro balho, calculei em cerca de 33% a pro- porgio de africanos (escravos ¢ libertos) nna populagio de Salvador em 1835; se~ gundo os cileulos de Nascimento, ess proporgio teria despencado para cerca de 24% vinte anos depois (8). Outras caracteristicas da demogratia africana devem ser lembradas, por si rem iiteis para entender a greve de 1857. A Bahia entre 1750 ¢ 1850 importou mais escravos da regiio do Golfo de Benin € do antigo Daomé, principalmente povos A\ (aqui chamados na bem tidos por aucds ou ussds). Durante 0 século XIX, os de cconstituir form concentra eram 60% da comunidade africana), pois foram eles que fizeram a greve de 1857. Vou me aproximar deles através de um regist realizado em 1849 em Santana, fregue urbana tipica de Salvador, ja que 0 censo de 1855 nio traz os detalhes de que pre~ cisamos. O registro contou 925 eseravos, dos quais 551 (60%) de origem africana Muitos destes iiltimos nao tiveram suas origens especificadas, listados apenas como “africanos”, mas dos 475 que a ti- veram, 78% eram nagos. Isso confirma estuclos que mostram © amplo predomi- niio nago entre os escravos vindos de além- mar nas iiltimas décadas do trifico. Pre- dominavam também entre os libertos: dos 87 afticanos com origem conhecida na lista de 1849, 70% eram nagos (9). Disciplinar o trabalhador africano, sobretudo na cidade, era tarefa ingrata. Os escravos precisavam de independén- cia € liberdade de movimento para dar conia do servigo, dar lucro aos senhores ¢ fazer a economia funcionar. Os ganha- dores iam a rua encontrar eles proprios trabalho, Era comum, embora nao fosse generalizado, que os senhores permitis- Sem que seus escravos alé morassem fora de casa, em quartos alugados as vezes de SERIAAS Oe Sats EE Roe ‘bast Seoraao 1009 16 REVISTA USP ° “pee eat one ee sehen ee oumeenr sites sae Oo REVISTAUSP ex-escravos. Eles 86 voltavam & casa para “pagar a semana”, ou seja, a soma sema- nal (que podia ser também difiria) con- 50 que mais ‘que dessem duro, em condigées favori- veis de mercado, chegavam a poupar 0 suficiente para comprar alforria apés ios de suor. Libertos, muilas vezes con- inuavam nas mesmas ocupagdesde ga- ‘ho, embora alguns prosperassem a pon- to de se tomarem eles préprios senhores de ganhadores escravos. O trabalho ‘ombro a ombro de escravos e libertos dava significados de liberdade aos pri- meiros ¢ significados de escravidio aos segundos que faziam das relagdesde gan- ho na cidade um curto-circuito perma- nente, De vez em quando dava em incén- di Assim foi, em linhas gerais, a escra- vidio urbana onde quer que floresceu, ‘mas em cada cidade 0s escravos fizeram uma hist6ria particular, Na Bahia, por exemplo, as (entativas de incéndio foram muitas (alids, no s6 na cidade) e uma das razées pode ser buscada na concen- tragio étnica entre os ganhadores. Retomemos aos nag0s de Santana. Muitos escravos tinham oficios, eram ros, alfaiates, ped tes, barbeiros, car dos 370 nagds, 30% fazia mente 0 servigo de rua, a maioria no ca rego de fardos ¢ gente, em saveiros, nas costas ou em cadeiras. Foram arrolados 47% como do “servigo de casa”, mas no se deve erer que esses homens trabalhas- sem apenas como domésticos. & possivel que muitos tivessem sido assim registrados por senhores temerosos de virem a ser taxados por té-los no ganho, Concorde com Matloso quando esereve que “a distingdo entre escravos ‘de ga- mmho’ [..] € os domésticos era ténue, pois 08 proprietarios se serviam deles ou os alugavam segundo as necessidades do momento” (10). Pode-se dizer com pou- ca margem de erro que a maioria dos escravos africanos de Salvador trabalha va em regime parcial ou de dedicagio exclusiva como ganhadores. Assim, em. 1857 as auloridades tinham nas mios um movimento que envolvia a maior parte dos cativos da cidade. E também, talvez sobretudo, dos libertos. Entre 0s 87 libertos de Santana, no encontramos nenhum listado como do- méstico. Dos 61 nagds, 18 se declararam carregadores de cadeira, sete remado- res, cinco cangueitos ¢ dez genericamen- te “ganhadores”. Ou seja, 65% se ocupa- vam do servigo de transporte, Os demais, negociavam e trabalhavam como artesios. Ao contritio, dos 15 jejes, se- gundo grupo étnico mais numeroso en- tre esses libertos, apenas um se declarou ganador, e nenhum carregador de ca- deira ou ocupagio afim. Nove cram artesios. Entre escravos € libertos, os s praticamente dominavam o tra- bbalho “informal” de rua em 1849 , como veremos, também em 1857. Foram eles 98 principais responsiveis pela grove. Voltaremos ao assunto, Essa concentragio de africanos da ‘mesma origem, associada ao cardter da escravidio urbana, uma escravidio sem feitor como ja se disse (11), fez florescer uma cultura escrava mais aut6noma e ousada. Identidade étnica ¢ densidade cultural afticanas, por sua vez, favore- isténcia escrava diante de senhores, autoridades policiais e a popu- Jagio livre em geral. Apesar da presenca policial, grupos religiosos, grupos de tra- batho e de lazer, redes menores € mais amplas de solidariedade ou convi- vialidade, tendo por eixo a identidade Ainica, se formavam mais facilmente no burburinho da cidade-porto, embora nio estivessem ausentes nos engenhos e fa- zendas. E, apesar da predominan numérica de umas nagdes afticanas so- bre outras, nfo deixou de haver o inter- ‘cambio cultural, a negociagao de identi dudes, a redefinigio de solidariedades. Os nagés, por exemplo, vieram de uma terra ioruba dividida em subgrupos muitas vezes hostis entre si, e ainda sepa- rados por afiliagdo religiosa ¢ lealdades politicas. Os iorubas dos reinos de Oyo, Egba, Ijebu, Hexa, Ketu tornaram-se nagds baianos através de complexas tro- cas € convergéncias de signos cultura, no que foram ajudados por uma lingua comum, deuses aparentados, a unio de muitos sob o Isl, a longa experiéncia de siditos do alafinado de Oyo, a tradigio urbana ioruba e, obviamente, a condigio de cativeiro em terras baianas, A mem6- ria da origem especifica entre esses afri- anos nunca se apagaria completamen- te. “Ainda que todos sio nagés, cada um tem sua terra”, tentou explicar um es- cravo nagé a seus interrogadores em 1835 (12). E ainda havia outras divisdes, como aquela entre os filhos de Ali e os filhos de Orixé, ou entre ambos € os seguidores da Igreja. Mas a propria religiosidade — plis- ica, Nexivel, absorvente ~ dos afficanos permitiu que muitos viessem a circular através de diversos discursos religiosos. A competicio existia, até 0 contfito, mas grupos isLimicos, terreiros, irmandades funcionaram sobretudo como espagos de aglutinagio. Em torno desses grupos os escravos aperfeigoaram suas estratégias de resisténcia cotidiana ou decidiram romper com 0 colidiano opressivo. Foi assim em 1835, quando escravos ¢ liber- tos muculmanos, os chamados malés (maioria nago), se levantaram em Salva- dor na mais espetacular rebelijo escrava ‘no Brasil (13). ‘A forga da cultura escrava na Bahia itocentista deve ser entendida em cone- 10 com a experiéncia de trabalho dos escravos. Nao se trata de deduzir cultura de processos ¢ relagdesde trabalho, uma operagio funcionalista conservadora, mas de considerar que os escravos no suspendiam a produgio de significados culturais durante a produgio de merca- dorias e servigos. Isso seria verdade ti- vvessem eles se permitido uma coisificagio absurda, como se 0 “tempo do senhor”, isto é 0 tempo de trabalho, fosse um ‘momento absolutamente mecinico em 1a existéncia, um tempo sem qualquer icagio eserava. S60 “tempo do es- cravo", © momento de seu sono, de seu lazer, de seu domingo seria o momento de expressio de sua “genuina” cultu Peter Kolchin criticou os defeitos dessa perspectiva nos estudos sobre a slave community norte-americana. Ele conven- ce quando escreve: “Com freqiiéneia essa posicio leva 0s estudiosos a desents ‘© contexto socioecondmiico da escravidio ¢, na verdade, a experiéneia de trabalho dos escravos, como se a comunidade es- crava de alguma maneira florescesse fora da instituigio da escravidio” (14). Po- rém, se a cultura escrava estava irreme- diavelmente associada ao. sistema escravista de trabalho, este também es- tava integrado num sistema cultural na formagio do qual o africano participou fundamentalmente. Na escravidio urbana, tanto o tem- po do senhor como o tempo do escravo estayam ambos investidos no trabalho, embora no de forma “secreta” como na producio capitalista. O eseravo tinha de prover diretamente ao senhor © a si pro- prio no ganho de rua. Do ganho depen- dia inclusive sua chance de comprar a liberdade. Mas a jomada de trabalho era descontinua, retaihada, no s6 pelos in- tervalos entre um servigo ¢ outro. Nao havia, por exemplo, como proibir em definitivo 0 escravo de baixar 0 cesto, 0 pau ou a corda para jogar ou apreciar uma capoeira, entrar num samba-de~ roda, consultar um curador na perife- ria, ou enfurnar-se numa casa para orar para Ali, 0 Misericordiaso. O escravo, associado a0 liberto, contrapunha regu- lar € cotidianamente sua economia mo- ral do trabalho Aquela do senhor. Isso acontecia até em pequenas vilas do Recdncavo, como nos arrabaldes de Nazaré das Farinhas, onde, segundo uma dendincia policial de 1845, um escravo nag que se dizia principe em sua terra reunia em casa outros cativos “em dias de servigos [...] € ferve batuques, gritos, assuadas ¢ mais cousas [...]” (15). Na grande cidade escravocrata, a “cidade- esconderijo” na feliz expressio de Sidney Chalhoub, © escravo podia ocultar do senhor como, onde e até do que vivia (16). préprio ganho vinha muitas vezes de fontes ocultas, do batuque, da capocira, da adivinhagio. Nao eram poucos os es- cravos que viviam de adivinhar, curar feitigo ou fabricar amuletos mugulma- nos, ocupagdes lucrativas que na’ Bahi favoreceram muitas alforrias. Em 1851, Wetherell observou que os negros da Bahia muito se exibiam em sambas-de- roda em troca de uns cobres. Eram alter- nativas a0 trabalho informal convencio- nal (17). escravo ganhador organizava 0 tempo de seu trabalho — 0 tempo, o ritmo ¢, por vezes, o volume de trabalho, O tra balho do ganhador era por tarefa, nio por unidade de tempo, © que constituia algo familiar para os afticanos; entre os iorubas, segundo Afolabi Ojo, em certas circunstincias © proprio tempo era mar. cado pelo volume de trabalho. E este ti nha limites, se 0 escravo pudesse estabelecé-los, como no caso dos ganha- dores. Wetherell, que no era um viajan- te de passagem, percebeu essa economia de esforgo entre os carregadores africa- nos: “sio exiremamente independentes, eles antes perderiam a chance de ganhar jo do que carregar mais do que 12 nile, aati». 00 12.1, pase ‘SeckennIhe unal of (sea an 15 Ap oo Re, ect mot, Eapecnot (ona. 2 16 Sen now, en ‘hens Oboe ee Ere ‘ho na Core, 0 Fase 17 Wet, Back 5. 6. REVISTAUSP VT ~ gcc mast ice atest Loree Rares et eeu ene eae Srarihera'e Eames ‘Tmowan “Tine, Wok D8 Semmiactn ce fang arco Gu Geoprance ao oes 11 (8557'S ener, ra yt ard," tie Tranis mda, hae Cena, as. (059 2a 12 REVISTAUSP eles considerem conveniente”. Se trata de algo diferente do tempo linear e do ritmo mecanico de consumo capitalista da forga de trabalho, Sobre esse tempo africano tradicional 0 antropdlogo Ben- jamin Ray diz ser “episédico ¢ descontinuo; no € um tipo de ‘coisa’ ou mercadoria”, Se assemelha ao “tempo j0” (lradugio livre de kefir time) dos trabalhadores sul-africanos estudados por Keletso Atkins. Sob o regime olonialista em suas terras ou sob o regi ‘me escravocrata em terra alheia, os aff canos resistiram quanto puderam ao aniquilamento de suas nogios de tempo € trabalho (18). trabalho dos carregadores era marcado por um ritmo peculiar obser- vado por praticamente todos os visitan- tes estrangeiros. Os ganhadores de pau e corda, por exemplo, quando no trans- porte de volumes pesados em grupos de quatro, seis e oito, trabalhavam movidos por cangbes cantadas em Iingua da_frica, principe Alexandre de Wuerttemberg, que passou o més de abril de 1853 na Bahia, escreveu: “Quer descendo ou su- bindo, vencendo encostas ingremes € caminhos pedregosos - cantam! Cantam sempre durante a marcha”, Dentro da tradicao ritmica africana, havia o “pu- xador” do canto, a quem os demais res- pondiam em coro. Segundo Wetherell, ‘quando o fardo era mais pesado ou quan- do subiam ladeiras 0s africanos se fiz am “muito mais vigorosos em seus gri- tos, ajudando o trabalho e variando sua "a.com um expressivo € longo gru- ”. Bra trabalho duro, estafante, salho de negro como se dizia, pois co nao o fazia, € mesmo o negro nascido no Brasil, entio chamado “cri- ‘oulo”, parecia recusar. Na lista de 1849, ‘em Santana, havia cerea de 240 escravos crioulos adultos, nenhum listado como carregador de cadeira, apenas 11 como ganhadores, desconfio que ganhadores de cesto e tina. Entre os 43 pardos € ca- bras, nenk ganador (19) aqueles cor- liviar 0 pos negros podia ajodar 1 sobre os omibros, mas sobretudo aliviava © espfrito, permitindo aos africanos per- sesperar. Ela contribuia para assegurar alguma “estrutura de integridade comu- nitaria”, como escreveu Chernoff fazen- do sociologia da misica africana. Entendé-la como expressio de felicidade ‘ou acomodagiio 6 ficarna superficie, como ficaram os viajantes Marjoribanks ¢ Detmer. Um outro viajante, 0 pastor Kidder, comparou-a & marcha ftinebre, ‘exagerando na piedade cristi. Nao sur- preenderia que, além de tradicionais eangoes africanas de trabalho, os ganha- dores inventassem letras de critica da escravidio ¢ escérnio dos brancos. Ha evidéncia nesse sentido. O principe Maximiliano da Austria, mais tarde fu- zilado como imperador do México, foi informado durante visita a Salvador, em 1860, que 08 negros cantavam principal- mente sobre farinha e cachaga, acrescen- tando: “fazem as vezes também alusdes as relagdes entre senhor e escravo e & ma- neira como este & tratado”. Como fati nha de mandioca era item bisico da di {a local, falar dela significava falar gene- ricamente de comida. Num eintico ne- 0 significava falar de falta de comida ‘ou de comida ruim, € do desejo de uma mesa farta, A eachaga, sobretudo, tra- duzia o dionisfaco da cultura afticana na brecha do trabalho pesado. Se cantavam ‘0 tempo todo sobre farinha e cachaca, os escravos baianos falavam o tempo todo das relagbes escravistas, € no apenas “2s vezes”, coisa dificil para principe enten- der, Naturalmente a misica dos ganha- dores também fazia alusio mais direta & exploragio do trabalho € outros pesares da escravidio. Silva Campos lembra que assim cantavam quando earregando muito peso: “0, cui Ganhadd Ganha dinhei Pr’a seu Sinha”. Ingenuidade submissa? Pode pare ‘cot para o “Sinh6”, mas 0 ganhador diz a quem quiser ouvi-lo que 0 fruto de seu duro trabalho the esté sendo subtrafdo. Ele denuncia a eseravidio cantando. Substincia cultural elementar do modo de ser africano, a mésica o acompanha- va em tudo de mais (ou menos) impor- tante na vida, na alegria ou na dor. Eo trabalho, por opressivo que fosse, nao estava dissociado da vida (20). Embora o trabalho eseravo urbano desse oportunidade € até promovesse a iniciativa individual, permitindo por exemplo a safda’da alforria, sua organi- zagio na cidade tinha um cardter essen- cialmente coletivo. O proprio trabalho, bem como sua remuneragio, eram en- tendidos como resultado da produgi coletiva. Wetherell comparou os ganha- dores baianos com estivadores ingleses, concluindo que, se juntos eles carrega- vam fardos pesadissimos, individualmen- te os ingleses, estimulados pelo salério, carregavam mais peso (21). O africano nio fazia qualquer coisa por dinheiro. ‘Trabalho solitario, tipo operirio-padrao, no era um valor de sua cultura, Me ocor- te 0 caso relatado pelo administrador do cemitério de Bom Jesus da Massaranduba, em Salvador de 1856. Segundo ele, trabalhavam 1é trés “afri- canos livres”, dois dos quais, por alguma razio, haviam sido transleridos pelo subdelegado distrital para outro lugar. Sobre aquele que ficou, escreveu: “o preto recusa-se a prestar ao mes- mo. servigo pois encontra-se desgostoso por estar privado da com- panhia de seus parceiros ¢ por pesar sobre ele 0s trabalhos superiores suas forgas, de mancira que no dia 24 fugira para a casa do indieado subdelegado” (22). Africano livre era aquele contisca- do de contrabando depois de 1831, em geral empregado em obras piblicas em {roca de pequeno silirio. Esse d fugira da escravidio, fugira da soli: Nio Ihe passou pela cabeca pedir aumen- to salarial correspondente ao aumento de trabalho. Além de mais trabalho, que alegava nfo poder dar conta, talvez. no quisesse ficar s6 em companhia dos mor- tos. Sob qualquer angulo que se tome fica sugerida a personalidade gregiria do africano no trabalho. Final da histéria: © presidente da prov struiu que o iimero de coveiros vollasse a ser ts, Isso explica a orgaiizagio do traba- Iho criada pelos negros da cidade. Os ganhadores estavam organizados em cantos, como se chamavam os grupos, etnicamente delimitados, que se reu- niam para oferecer seus servigos em lo- cais também delimitados da geogratia ur- bana. A inspiragio pode ter sido os gru- pos de trabalho voluntirios, comuns na Africa Ocidental, conhecidos como aro tenire os iorubas (23). Os cantos baianos tinham nomes de ruas, largos, ladeiras, ancoradouros: canto da Calgada, do Porto de Sao Bento, da Mangueira, do cais Dourado. Com tanta mésica em si, “canto” poderia ter essa raiz. No entanto refere-se a canto enquanto esquina, lu- gar estratégico na cultura de rua de um modo geral porque espago de confluén- cia, reuniao. Na visio de mundo afti na, a encruzilhada tem importincia mis- ica {mpar: lugar de oferendas, de nego- io com os deuses, lugar de Exu, 0 abre-caminhos, espirituoso mensageiro dos deuses. Na pritica do ganho, a esqui na facilitava 0 negécio, por facilitar aces so de clientes de varias diregoes, além da referéncia facil. Mas se era bom uma esquina, © canto podia estar por toda parte: pragas, ladeiras, ancoradouros. “Como a atividade dos negros dos cantos cera sobretudo 0 transporte de pessoas € de mercadorias, ou seja, de circulagio 1}, sua localizagio deniro da estrutura fisica da cidade segue a l6gica da articu- jo, mobilidade € funcionamento da cidade”, escreve a arquiteta Ana da Cos- 1a (24) Para 0 ganhador, © importante as- pecto territorial do canto reforgava sen- tidos mais profundos de pertencimento. Nele muitos meios de vida se encontra- vam, Além de cartegadores que iam ham, ficavam ali negros de oficio, que consertavam sapatos e guarda-chuvas, trangavam cestos, el us € esteiras, vez carregadores. mais velhos agora de- jos a atividades mais amenas. os barbeiros, que também usavam si afiadas navalhias na flebotomia de curar sangrando — ou ens: algum instrument musical, para toca rem nas famosas bandas de barbeiros daqueles tempos. Alguns ganhadores recuperavam for dormiam geralmente tinhiam uma senti- rela pronta para acordi-los quando chi mados para servigos”, viu Daniel Kidder no final da década de 1830 (2: blezeiros esculpiam represen suas divindades, os que eram malés cos- turavam roupas e barretes mugulmanos, aprendiam com seus mestres a ler © es- crever a lingua do Alcordo, rezavam pre- ces de sua fé. E a também iam as vendedoras de mingau, aberém, acacé, caruru, vatapi € outras delicias. E con- versavam sobre falos da terra em que 21 Wether Braco. 4 22 0m Sade Fanon sonar maieis “Eipecon neon ar (GS in canoe Tues ‘Sprensaeeasenecra (Bahar to0h0 28 REVISTAUSP 13, 28. orton ta om. 21- 4 REVISTA USP estavam © noticias da terra de origem, chegadas de navios vindos da Africa. O info era muito mais do que mera esta- gio de trabalho (26). Simbolos da ocupagio negra do es- paco piblico, os cantos se tornavam com freqiiéncia territérios disputados. Um exemplo dessas disputas se deu em 1859 entre hadores do canto do beco dos Galinheiros, esquina com a rua do Comércio, e 0 lojista Francisco José de Farias Villaga, Na mesma esquin: Villaga tinha “loja de fazendas secc cujas atividades estariam sendo prejudi- cadas pela proximidade do canto. Este, segundo sua dentincia Camara, era “Lio numeroso, que nio s6 quasi que prohibem [os ganhadores] a passa- ‘gem por aquelle beco, porém também produzem tio horrivel algazarra, € proferem taes obscenidades, que incommodiio os Negociantes que se nao podem distrahir de suas sé ‘occupagies”, Villaga acusava ainda ser vitima de roubos continuos, razZio por que manti- nha fechada a porta da loja que dava para 0 beco. Sugeria que os ruidosos ganhadores fossem transfer Outro lugar mais espagoso, indicando 0 largo da ladeira do Taboao, onde ja exis- uum canto de carregadores de cadeira, foi atendido. O fiscal da Ciara deu wecer de que 0 canto j ocupava o beco muito tempo ~ havia adquirido di tos por antigitidade -, sendo “tolerado por todas as Camaras, em conseqiiéncia de serem [os ganhadores} precisos para © expedicnte do Commercio”. E 0 “Commercio” era algo bem maior do que © lojista Villaga, Quanto a transferéncia da por este, 0 fiscal foi de opiniio boo era lugar de ti hadores de ca. que 80 € ji tomado pelos gi Em suma, ganharam os ganhado- as. nos jornais ando-0s por sumiirem com 0 que Ihes havia sido confiado para carregar. O mestre de navio portugués José Fran- cisco Alves, ao desembarcar em Salva- dor, “entregou a um preto de ganho um pequeno enibrulho de roupa € pi tendo-the desaparecido 0 dito preto [..", segundo aniincio que publicou no Cor- reio Mercantil de 5 de maio de 1838, Na- turalmente, envergando a roupa do bran- 0,0 dito preto poderia ter feito boa figu- ra diante dos parceiros. O mais provivel € que a vendesse a outro braneo. Dinhei- ro niio devia estar facil naquele momen- to, poucos dias depois da retomada de ‘uma combalida Salvador pelas tropas legais das mios dos rebeldes da pds meses de cerco. dor nio fazia aquilo todo dia, um recurso emergencial, © provavelmente a maioria nunca o fazia. Mas acusagbes como as de Villaga € casos como o de Alves, estes eestampados na imprensa, associavam 0 ganho ao crime ~ como de resto Freqiientemente se faz com o trabalho informal. A imagem certamente no re- fletia os valores do canto, que até para sobreviver devia seguir normas rigidas de honestidade na relagio com sua elien- tela, Para instituir e fazer obedecer tais normas, além de outras, € que os cantos contavam com uma estrutura de poder. Se Villuga tivesse sido mais politico feria negociado a paz com o lider dos africanos do beco dos Galinheiros, pois 6s cantos niio eram coletividades anit- quicas como ele tentou representi-los. Seus chefes chamavam-se eapitdos-dlo- Canto, cuja fungio incluia contratar ser- vigos com clientes, designar tarefas, re- ceber ¢ dividir a féria, mediar conflitos porventura surgidos entre ganhadores rnegociar com tipos como Villaga. Talvez fosse também “puxador” de canto, ago- +a no sentido musical. Devia naturalmen- te ter remuneragio extra o capitio. Pena que falte informagio sobre como ele era jo, mas provavelmente contavam :antiguidade na Bahia, © conhecimento da lingua e dos costumes dos brancos que traduziam experiéncia com o mer- lode trabalho. Além, é claro, de capa- cidade de fideranga. Uma lideranga que talvez refletisse alguma ascendéncia tribal ou religiosa trazida da Africa e aqu reconstiluida. O pai-de-santo. nago Elesbio, personagem do romance oitocentista de Xavier Marques, fora capitio-de-canto, e nessa condigio con- seguira “ajuntar-economias e comprar a carta de alforria”. Na Bahia, tanto liber- tos como escravos podiam ser ca assim como podiam ser pais-de-santo € mestres muguimanos ~, © que mostra que as hierarquias dentro da comunidade africana nem sempre seguiam aquelas da sociedade escravocrata. Assim, no inquérito da rebetigo de 1835, menciona- se um escravo que dirigia africanos es- cravos ¢ libertos, carregadores de cadei- ras no canto da Vit6ria, bairto elegante modelo original dessa lideranca 6 desconhecido, mas pode estar vinculado 08 parakoy iorubano de Egba que regulavam as feiras pe ainda os bale que dirigi fades iorubanas. Na hist6ria do Daomeé, terra dos jejes, havia inclusive 0 cargo de “Capitio do Merea- do”, com fungdes semelhantes as do parakoyi egbano. Da mesma forma, 0 capitio-de-canto pode ter aparecido por inspiragio militar, se considerarmos que 0s afticanos da Bahia vieram de socieda- des militarizadas em que, ao longo da pri meira metade do século XIX, abunda- ‘vam grupos armados dirigidos por pe- quenos chefes como os olorogun iorubanos. O reino de Uidi, na vizinha costa daomeana, tinha 0 comando m tar de um “Capito de Guerra”. Muitos dos cativos baianos haviam sido guerrei- ros na Africa, como a maioria dos 21 es- cravos entrevistados por Francis de Castelnau no final da década de 1840 (29). fi bom avisar que quando filo de parakoyi, bale, olorogun © capitdes daomeanos nio estou querendo encon- tra \cias africanas na Ba i possiveis modelos ddessem ter langado mao para criar estra- {égias ¢ estruturas de sobrevivencia ¢ resisténcia sob a escravidiio. Nao consi- ‘go conceber que organizagSes como os cantos possam ter sido meros transplan- tes africanos no Novo Mundo. De certa forma, como sugere Robert Slene afticanos descobrem uma nova Africa no Brasil (30). Uma ceriménia de posse do capitio- exemplo de mbiente de tra- ritualizagio africa balho. Os membros do canto enchiam uum tonel com gua do mar € 0 carrega- vam com a ajuda de pau ¢ cordas, da ‘mesma maneira que carregavam diaria- mente pesados fardos. Sobre o tonel ‘montava imponente o novo capitio, le- ando uma garrafa de aguardente (olhe aia cachagat) numa Thos de alguma arvore, algum significado ritual. O cortejo des crito por Querino marchou cantando pelas ruas da Cidade Baixa, a zona por- tuiria, € retomou ao canto, onde fot r cebido por membros de outros cantos. ‘Ai o capitio derramou um pouco da cchaga no chi. Nesta parte da cerimd demarcava-se um territério dentro de ccujos limites 0 novo lider exerceria um poder reconhecido, inclusive, por lideres de outros cantos (31). Quanto ao barril de Agua salgada pode simbolizar 0 oceano atravessado pelos africanos rumo & diéspora na Babi © Allintico tinha um enorme signitica- do na vida dessas pessoas, uma vez que jo toravam-se malungas, uma espé- cie de parentesco simbdlico que 0s unia por lagos fortissimos de afetividade e so- lidariedade (32). Deixando a familia de sangue perdida na Africa, ja no meio do ‘mar surgia uma nova familia ritual, Esta contava com 0 aval dos deuses africanos, que acompanharam seus devotos na tra- vessia, Derramar no chao a cachaga, Excrr Groisonm eave. ‘Abcaa 30 080,670 saunas iautcencice restueers sieves Serene peso Scene ames ‘SeGessaoonara ban Towa st 32 oot 0 2 atm mae Ata e. Settinep oc ae Ba REVISTA US? 15 2, Lam Th Oe not. cap anc no Secu tm Sa 16 REVISTA L como fez. 0 capitio, & gesto caracteristico de reveréncia as divindades africanas ‘entre nds, Desta forma, 0s trabalhadores do canto pareciam representar a ruptu- ra com a terra natal € a0 mesmo tempo o retorno ritual as raizes. Um tito de pi sigem, no.caso de investimento de po- der, essa festa, como todo bom rito de passagem e de poder, reafiimava a soli- dariedade do grupo de trabalho. Nao $6 0 mercado de trabalho esta va entedado por signific: A rede se estendia aos mecanismos de ‘mercado de alimentos, onde a competi- io se dava contra os brasileiros natos, homens livres brancos ou mesticos. Os ganhadores que se dedicavam ao comércio de produtos da lavoura conse- guiam vantagens surpreendentes, por serem parte de uma liga africana de cu- ‘ho comercial, Essa rede tinha uma pon- ta nas feiras do RecOncavo que abaste m Salvador, ¢ despertava a firia dos competidores. Em 1858, por exemplo, 76 comerciantes da vila de Nazaré das Fari- abaixo-assinado a Assembléia Provincial acusando que naquela praga ‘com © maior escandalo se observa assemhoriados das compras transa- ' 0s selvagens afficanos libertos, € AME alguns escravos, que, aproveitan- do-se da conveniencia de serem os conductores dos generos seus ccontio com a preferencia na compra, inda por menor prego, em prejuizo dos Agricultores, arrestando assim a populagio nacional, sempre a ma rantida em todos os Paizes, d’esse amtajoso, honesto € lucrative meio de vida, qual 0 negocio de Cabotagem”, Segundo os exagerados cidadios buianos, esse comércio estaria “todo en- tregue ao dominio africano [...]”. E espe- cificavam como agiriam os africanos durante as feiras semanais: “essa alluvidio de zangbes sociais apresentio-se no mercado, apoderio- se das tropas, tomio forga das mios de outrem os generos, impoem aos conductores seus iguaes 0 dever da preferencia, e inda nao contentes, logo ‘que desembarcio n’esta Cidade, e isto la carestia dos viveres, vi se collar nas estradas, a duas ¢ tres legoas de distancia, n’ellas effectuio stias compras, deixando até os consu- midores internos desprovidos d’elles, € obrigados a comprar nas mios d'esses arrogantes € improvisados introductores por alto prego!!"(33). Nio € plausivel que os afticanos usas- sem a forga bruta como método de co- mércio, © que requereria um poder mui- to além do que detinham. E também no precisavam, pois traziam de suas te = sobreludo os iorubas, jejes © hauss uma formidavel experiéneia na arte de negociar, homens € mulheres. As mulhe- res, aliés, se destacavam, no escapando do gosto pelo comércio esposas de reis ionubanos (34). Na Babia, tera alheia, os supostamente “selvagens” atraves dores africanos lograram formar uma cligente alianga com os também al canos fornecedores, deixando 0s comer- Mes de Nazaré a ver navios. Incon- formados, estes reagiram com a lingua- n-grosseira do preconiceito étnico, buscando a protegio do Estado ao invés de ir A luta livre do mercado, Propuse- ram ao governo que proibisse os aftica- nos de mercadejar, que os obrigasse a s6 trabalhar na lavoura ou que thes impu sesse 0 insuportivel imposto de 300 mil réis anuais. Nio cotou, A outra ponta da rede africana al- cangava Salvador, onde reinavam am- bulantes © quitandeiros, a maioria mu- Iheres. Segundo aquele censo de Santana de 1849, entre as libertas que negoci vam, a maioria declarou “mereadejar diversos péneros”. As que foram mais especiticas falaram de mingau, acagi, erém, frutas, verduras, fei milho, pio, peixe. Essa mente monopolizavam o pequeno co- cio, segundo depoimentos que vém desie pelo menos Vilhena, na virada do século XVIII, confirmados por diversos visitantes estrangeitos da Bahia oito- ntista, Quando em 1835, depois do le te mal, urna junta d Salvador sugeriu que os a sem proibidos de comercializar alimen- tos, © proprio chefe de policia, inimigo fidagal dos africanos, discordou com o argumento de que proibigio anterior semelhante gerara “carestia repentina” € confusio para implementar a medida (35), Os homens circulavam mereadejan- do gua, lenha, cal, louga, fazendas, sa- pato. Eram menos ativos no comérci bulante de comida, mas ocupavam posigios estratégicas na venda de, por exemplo, farinha de mandio 1855, € de novo em 1857, os comerciantes esta- belecidos em Salvador acusaram os af ccanos ~ em alguns casos os escravos afti= anos de comerciantes portugueses — de monopolizarem 0 comércio de furinha, Os africanos, em alianca com portugue- ses, “apenas chegam os barcos, compram por atacado 0 carregamento, e recolhido 0 Celeito paom-lhe 0 prego”. O governo 86 permitia a venda de farinha no Celei- 10 Piblico e li, de novo, os compradores africanos se dirigiam aos vendedores também africanos. Numa petigio denun- ciando esse esquema, Ié-se: “quantos compradores ali apparecem [...] quase todos também Africanos € escravos, ni procuram senio aos seus semelhant ficando os abaixo-assinados inhibidos de concorrerem na vendagem da farin com grande prejuizo dos seus interesses”, Solidariedades semethantes as encontra- nos cantos uniam afticanos envol dos no comércio de produtos como a fa rinha de mandioca (36). Considerando 0 tipo de insergio su- bordinada do africano na cidade, essas relagbes forjadas nos mercados e nas ruas formavam relagoes de forga, eram poli fica € re negra no cotidiano. As vezes coadjuvavam na implosio do coti- diano, Os ganhadores escravos ¢ libertos desempenharam um importante papel na revolta mugulmana de 1835. Cerca de 51% dos réus escravos € libertos indiciados naquele ano eram trabalha- dores de n tes de cade’ ambulan 2 raion dos quais muito provavelmen- te fazia ponto dentro de cantes. E: destacaram como centros de conspira- ‘gio (37). As autoridades do governo per- ceberam que tinham de controlar me- Ihor os ganhadores. A postura que levou A greve de 1857 foi uma dessas tentativas, ‘mas antes dela outras medidas haviam sido tentada CONTROLE E RESISTENCIA NAS RUAS As armas de 1835 estavam ainda quentes quando © governo baiano decre- tou o fim da independéncia dos cantos. Em junho daquele ano a Assembléia Legislativa Provincial concebeu a Lei a? 14, que tinha por objetivo regulamentar € disciplinar 0 mercado de trabalho a cano de rua em Salvador. A tei di cidade em capatazias, que tomariam 0 lugar dos cantos, ¢ criava o posto de ca~ ataz para substituit 0 de capitio-de-can- to. O objetivo das capatazias seria exata- mente o de “policia dos ganhadores”, conforme rezava 0 texto legal, fossem 0s gan trabalhadores em terra ow no ma capataz receberia “vencimento raz vel”, obrigatoriamente pago pelos ganha- dores, para zelar pelo bom desempenho no trabalho ¢ pelo bom comportamento politico e policial daqueles, evitando que ‘cometessem crime contra a ordem € con- tra a propriedade. Ou seja, os ganhado- res deviam pagar para serem espiot dos, € nio s6 30 capataz, como veremios num minuto. A lei também obrigava que os ga- lores se matriculassem, declarando nome, endereco, nome do senor (no caso de setem escravos) € a “qualidade € ge nero de servigo a que estio habituadas” Essa matricula seria mensalmente atua- Tizada, e quem se furtasse a fazé-la seria mil réis, 0 1. Naquele ano, com dez mil réis comprava: menos uns quinze litros de farinha de mandioca. Um ano depois saiu a regulamentagio dess talhava a nova estrutura de poder no antigo canto, No topo ficava o juiz de paz a freguesia, cabendo-Ihe nomear um 5 a capatazia que ali fun- Antes havia “inspetores de im os juizes i agora, além des- ses, haveria inspetores especializados na policia das capatazias. Esses inspetores deveriam ser cidadiios brasileiros de boa conduta, alfabetizados € que tivessem residéncia na freguesia onde servissem. A cles caberia registrar os ganhadores € vigid-los, evitando 0 desvio de mereado- rias transportadas e informando sobre qualquer comportamento que pusesse em risco a ordem piblica. Era tam nomear 0 capa “eumprir as ordei lores escravos, libertos ou livres, ° , que devia sempre do Inspector”. Mas * gun cere REVISTA USP 17 1 Cota de Le # eso (ira ob Oana ass 18, a REVISTAUSP © capataz continuava sendo africano, agora um afticano de eonfianga dos bran cos, nunca porém eseravo, Era seu dever observar a assiduidade dos ganhadores, identificando os ausentes e investigando Qualquer irregularidade devia ser imediatamente comunicada a0 inspetor. Cabia também a ele arrecadar diariamente dos ganl ris dos que trabalhassem em terra e oitenta dos que trabalhassem no mar, de cuja ‘quantia dois tergos iriam para © inspetor © 0 resto para 0 capataz, As capatazias $6 poderiam funcio- nar com pelo menos dez membros, as que tivessem menos teriam seus ganhadores ara evitar a dispersio, concente do € aprimorando a Vigilancia. Coroan- do os mecanismos de controle, cada tra- ria uma pulseira io de sew niimero de metal com a inseri va assim marcada a diferenga entre o ganhador comum € seu capataz (38). plano assim previa tomar de as- salto 0 canto, destruindo sua autonomia partir de dentro, subordinando-o & fre- guesia, ou seja, & jurisdicio territorial d poder branco. Ji que este nfo podia e' F que os afticanos circulassem livre mente pela cidade, procurava controlar seus centros de reuniio. Propunh feitorizagio da escravidio urban governo a fizer as vezes de feitor inexistia © feitor senhorial, A lei nio desagradou ap. ricanos. Um longo a 5 de maio de 1836, no Didrio da Bahia, criticavaca detalhada e severamente, O jenas dos ganhadores er Srio. O regulamento, como um todo, apresentava “incongruéncias, irregularidades, e preceitos por demais pesados, e sem proveito..”. Nem todas as freguesias eram listadas, nificava transferit ganhadores erviremn em oultras sob juizes e it petores estranhos. Isso dlficultaria inclu- sive 0 acesso dos fregueses aos ganhado- res matriculados, quando antes “qual- quer pessoa de sua janelta, de uma loja, ou em geral de todos os pontos chamava de um ou mais vintens, sem que muitas es fosse um positivo ganador”. Altra- palharia também a vida dos senhores, que teriam seus escravos domésticos constantemente parados para se verifi- ‘car se estavam no ganho ou a servigo do senhor. E as que estivessem de favor para amigos dos senhores? E quanto as capalazias que 36 tivessem escravos m: triculados, como nomear para elas capa- tazes libertos? Dois aspectos chamaram mais a aten- Gio critica do Didrio: a obrigatoriedade do uso das chapas de metal e a forma de remuneragio de inspetores ¢ capataze Esta tiltima espantou o articulista: “Esta com effeito assustal!”. E perguntava: “Que hi de um ganador, quer se cescravo, ingenuo, ou liberto, prestar- se ao servico commun, carregando pesados volumes, fatigar-se, perder a satide, e muitas vezes a vida, mas, no obstante, exhibir de seo fraco lucro parte destes, que exigiriam sua remune- Tago mesmo sem ganho. Mas o autor ia que © ganhador nao era bobo. antecipava que ele certamente transferi= ria © Gnus para os fregueses, e com 0 aumento do transporte “os proprios ge- eros, que eram vendidos ao Povo por lum prego, terio augmento de valor 0 comentirio sobre as chapas be: rava 0 deboch “Se alé 0 anno de 1835, s6 viamos al- ‘gum forcado com uma braga ao pé, do anno de’ 1836 em diante teremos de ver voluntdrias com ella no brago, € de certo qualquer curioso Estrangeiro, que vier & Baia, nao omittra nas suas Memidrias o espirito classificador, que nos caracterisa, € a mais decidida Paixio por distinctivas: mas sero as argolus fixas ou nio? ‘Que fossem fixas: o liberto, porexem- plo, teria de ir a igreja, a uma visita, a ‘uma festa com aquilo no brago? O autor, € claro, imaginava situagGes esdrdxulas para melhor ridicularizar a medida, Mas Ievantava 0 ponto fundamental de que ter no corpo © penduricalho seria uma forma indigna, humilhante de controle dos africanos. E muito boa a compara- io com as cadeias que prendiam os con- cadeia da everavido no prezivel na triste Bahia. [ se ja eram ganhadores libertos, aquela marca suge- ria que a escravidio ainda os rondava Essas significagbes aflorariam novamen- teem 1857, Por enquanto os jutzes de paz. tenta- riam impor as novas regras. Ignorando as criticas, o governo se utilizaria das paginas do proprio Didrio da Bahia (27/ 5/1836) apenas para esclarecer as divi- 8 dos juizes sobre Esclareccu, por exemplo, que no haven- do liberto na capatazia, um eseravo po- detia ser nomeado eapataz, mas com Ii cenga do senhor; que as chy conleccionadas & custa dos ganhadores ou dos senhores; que 0s ganhadores po- diam transitar por toda a cidade € no distrito de sua dade de colocar em pritica as medidas. Por exemplo, em fevereito de 1837 um juiz de paz. pergui senhorial de tmabalharem pi pds 0 servico de casa ¢ aos domingos. Varios juizes de paz tinham essa diivida, (© que mostra quiio generalizada era essa Um despacho do presidente da io se fizessem Mas o presidente despachava do conforto de seu pakicio. Nas ru: rolava uma guerra de nervos. O juiz Evaristo Ladislao da Silva, do pri- meiro distrito da Sé, chegou a declarar-se convencido de que as medidas eram imp principalmente por estabelecer “um imposto sem a proporgio dos Iucros Paquelles que 0 de= n pagar” (40). E realmente fio funcio- civeis, tudo porque os sistiram das mais diversas for- mas. Recusavam-se a pagara cota dos inspetores, declaravam nome: ndereges falos,pulevan de wma capt de desobediéncia civil Um inspetor de capatazia do pri- meito distrito da Sé, no inicio de feverci- A desistido € 0 juiz de niio entcontrava quem quisesse subs titui-lo. Evaristo Ladislao, 0 juiz, infor- mow ao presidente que os ganhadores re- cusavam-se a remunerar 0 inspetor € a se submeter a revista. Diante disso decidir ro de 1837, jai ha ‘Os abe ‘merciantes do bairro jii se queixavam ¢ falta de bragos para o carreto. O proprio juz experimentara esta vigo. Seu colega Felix da Lisboa, do segundo distrito, desde 10 jd avisara ao presidente que resavam ali apenas treze carregadores de cadei ra, pouicos para a populosa Sé. Os de- onde a wvia sido posta em execu estava dificil encontrar os “evadides”, pois nio haviam declarado corretamente suas: moradas € os nomes de seus senhores. Isso em janeiro, Em margo 0 ins- petor Joaquim Cesar 20 REVISTA USP d’Almeida, do mesmo distrito, tentava resistr. Num oficio a seu juiz de paz, Felix dit Graga, lamentava que jé havia trés ou quatro semanas que os ganhadores de sua capatazia no pagavam seu salirio. Muitos estavam se transferindo para a Conceigio da Praia, uma da i ‘onde 0 regulamento ainda nao havia sido implementado. E acrescentava: “tem cchegado ao arrojo de alguns negtos vi- rem a esta capatazia e conduzir individuos deste para aquelle lugar su- blevando desta maneira os ganhadores ui matriculados”. Ao contririo do juiz Felix, 0 inspetor Joaquim sabia quem cram os senhores dos escravos de st capatazia, ¢ foi cobrar deles o dinheiro © © paradeiro daqueles. Mas senhores ¢ escravos nem sempre estavam em Lados opostos do confit. Aquela ei era uma intromissio impertinente do Estado nas relagdes eseravistas. Os senhores nio 6 recusaram-se a pagar, como afirmaram que scus escravos tinham liberdade para decidir onde ganhar. E falaram isso com “expresses groceiras ¢ atacantes”, cho- ramingou o inspetor (41), A freguesia da Conceigio da Prai zona portiiria para onde os ganhadores da Sé estavam fugindo, tinha virado ter- rit6rio livre. Naquele mesmo inicio de 1837, o juiz de paz do Pilar, freguesia vizinha, denunciava que ainda nio pu- dera ver suas capatazias do mar instala- das porque os donos de saveiros haviam deixado de atracar, Desviaram-nos para a Praia. No Pilar, quase todos os inspeto- res estavam pedindo demissao, 0 que indica que també ra nao estavam dando certo, O juiz do Pilar pedia ao presidente que obrigasse 0 Juiz. da Conceigio a cumprir a lei, Mas a ‘confustio parecia irremediavelmente ins- ada (42). ‘Com 0 tempo, as autoridades desis- tiram. E provavel que para isso tivesse contado a pressio de negociantes preju- dicados com as dificuldades de carreto, de senhores com a falta de seguranga do inho, € muila gente com a falta de ca- dcirinhas, além dos proprios juizes de paz. com 0 desgaste da luta para fazer os anhadores obedecerem. Essa desobedi Encia, no entanto, foi o que realmente derrotou a lei. Venicedores, escravos ¢ li- p ‘Umi dos aspectos da lei das capatazias, {que no agradou ao eritico do Didrio da Bahia em 1836 foi ter a Assembl Legislativa usurpado da Camara Muni- cipal o dircito de regulamentar os ga- nhadores. Segundo ele, ganhador era unto para postura municipal, 0 go- verno provincial que euidasse de coisas mais sérias. Com efeito, muitas posturas disciplinavam o pequeno comércio de Tua, a que os africanos, no caso maioria mulheres, se dedicavam, ‘As posturas regulamentavam. pesos € medidas, especificando locais onde se podiam vender determinados produtos, proibindo colocagio de tabuleiros em lugares de maior movimento, Os aftica- nos que desobedeciam tinham seus pro- dutos confiscados, além de pagarem multas pesadas € penas de prisio. Os vereadores eram 0 tempo todo bombar- deados por queixas de moradores e fre- gueses contra fiscais relapsos € qued de ganhadores © senhotes contra fiscais, severos. Em 1839, por exemplo, uma publicada no Correio Mercantil (22/ 4/1839), assinada por um andnimo “Ini migo dos Desleixos”, cobrava a remogio de um pequeno mercado de peixes da rua da Preguica para o lugar designado pela Camara, O leitor denunciava que ciras, os compradores de pei= \ddcios 2 palestra entulhiio mi de forma que niio se pode to € do obst silo, queixava- se da cor dos que ali se reuniam: “Oh Céos, nunca vi nada to parecido com a E insistia na compa- 6 ali Se veria tanta porcaria, tanta negraria junta”. Até por rima, 0 cidadio (sou Brasileiro”, escreveu) as- sociava negro a lixo, 0 que sugere que 0 motivo da queixa servia de pretexto para extravasar preconeeito étnico. No entanto, 0s fiseais nao eram tio tolerantes como a dentincia do “Init dos Desleixos” poderia levar a erer. Em julho de 1835, por exemplo, o fiscal José Custédio Lobo oficiow que prendera “al- gumas pretas [..] que estavao embara- ilo publico com suas mer- amento com o passar do tempo. No ano da greve, 1857, «a escrava africana Esperanca foi multa- da por mereadejar parada em lugar proi- bido; e um escravo aguadeiro, por amar- © burro & porta de uma venda en- quanto descurregava agua numa ca ‘Sio casos escolhidos a0 acaso entre deze- nas (43). ‘Se as posturas municipais se torna- ram © principal instrumento de controle do mercado de trabalho dos africanos, © ‘governo provincial niio desistiria de tam- bém atuar contra eles. Quem melhor encarnou essa politica, como mostra Cunha, foi Francisco Gongalves Martins, chefe de policia por ocasiio do levante dos malés em 1835. Quando chegou & presidéncia da provincia, em 1849, con- tinuou a perseguir os africanos como a querer completar 0 trabalho iniciado quinze anos antes. Em 1850, eles softeri- am um grande revés, com a proibigio de trabalharem nos ‘gavam os navios no porto. Doravante os saveiristas seria soas livres, com excl Essa medida va entre outras irigidas a abrir espago no mercado de trabalho ao elemento livre nacional. Mas se era ligico afastar os escravos do servi- ¢0 de saveiro, 0 afastamento dos aftica- nos libertos configurava uma evidente perseguicio étnica e, dada a autoria de Martins, persepuigio politica. Esse espi- rito antiafricano, mais do que antiesera- Vista, nfo foi percebidlo pelo abolicionista baiano Luis Anselmo da Fonseca, um entusiasmado admirador do esforgo de Martins em promover o trabalho livre (44). Medidas assim visavam empurrar 6s africanos para o traballio dependente nos engenhos ou fazé-los retornar em massa a Africa, Uma suposta conspi gio africana em 1853, interpretada pelo Consul inglés como uma reagio de afriea- nos desempregados, resultaria numa repressio policial desmedida. A pres politica e as dificuldades economic tie década de 1850 weensificara movimento de retorno & Africa. No pro= prio ano de 1857, dezenas de an apareceram nos jornais bs afticanos comunicavam 3 10 de de entes a decis “levan- a”, consituida da mulher € 0 “crias forras”. As companhias de navegagio também anunciavam vingens para a Costa d’Africa. Em fevereiro par- tiria para Onim (atual Lagos, Nigéria) 0 navio “‘Independence’, de primeira marcha € com excelentes acomodagies para passageiros”, segundo anunciow seus consignatirios Gantois & Marback. Essa firma participara ativamente do trifico clandestino de escravos para a Bahia; agora fazia dinheito transportan- do, legalmente, africanos libertos de volta a Africa (45). A GREVE A lei de 1857 foi entio parte de uma longa campanha de controle do traba- Thador afticano em Salvador. Mas fez-se uma Tei mais branda e mais simples do que a de 1835. Da lei anterior, herdara a exigéncia de matricula e chapa. Nada, porém, sobre a reorganizagio dos can- tos, por exemplo, talvez porque ja se pre- visse 0 mesmo fracasso da lei de 1835. (© movimento comegou bem. Nossa principal fonte sobre sew andamento € 0 Jornal da Bahia, com noticias sempre estampadas na primeira prigina, Sobre 0 inicio da greve, noticiou a 2 de junho: “Hontem esteve a cidade deserta de ‘ganhadores € carregadores de cadei- ras, Nio se achava quem se prestasse para conduzir objecto algum. Da ifandega nenhum objeto sahio, a ser objecto mui portal, ou que fosse tirado por eseravos da pessoa interes- [1] Os pretos occultaram-se; e se os senhores no intervierem nisso, or- denando-thes que obedegam a Lei, 0 ‘mal continuara, porque, segundo ou- vvimos, elles esti nessa disposi Segundo 0 jomal, © motivo princi pal da parada era “a execugio da postu- a que obriga os ganhadores a trazerem chapa ao pescogo!”. As chapas, assim, avullam como a principal razio de estar parado o transporte de pessoas e de mer- cadorias em Salvador, sobretudo esta parado 0 porto de uma cidade voltada para 0 comércio exterior. O periddico esbogava a esperanga de que 05 senhores imterviessem, fazendo seus cativos retornarem ao servigo, Mas nio foi 0 que aconteceu. Ji no primeito dia, os africanos re~ ceberam um aliado acidental, mas im- portante, A Associago Comercial, que Tepresentava os grandes negociante protestou contra a lei municipal junto a0 presidente da provincia, o futuro chefe rc deca 1808 BS MAS atone Sens ea serie tne Fine! Rotax REVISTAUSP 24 cana Mtn) ar soa 38 ora ao ‘Btnagieezveresy ae 48 pus, An. Cara vt 49 ula cus Soe 04 State do Sedo XD ee oee, ee te a2 REVISTAUSP binete de Pedro Il, Joao Lins ibu. Eles achavam que (© motivo dos afticanos era 0 “imposto”, . fianga ou chapa. O que desgostara os comerciantes era também dinheiro, que perderiam se no puses ar suas mercadorias de bondes ¢ muitos earros aluguel com tragio animal. Além dis- so, bandos de mukis seriam usados para regar cal, pedras, terra, ete. Mas ni ‘com as pedras, por exemplo, trabalho de ‘ganhador. E o aluguel de catros era caro, pois, a0 contririo dos saveiros, 0 prego niio era tabelado pelo governo, Alga dis- so, consta tratar-se de um setor monopo- lizado.OAlinanakda Bahiade 1857 listava ipenas dois “alugadores de carros, seges € carrinhos”, O principal era 0 austriaco Rafael Ariani, proprictério de carros de carga € passageiros, can ocasidos solenes € ca cobrava aluguéis altos, de 400. 50 pelo carro comum e até 70 mil carn mortuitios, 0 Jornal da Bahia citava ‘guém dizendo que “na Bahia custa-se mais morrer do que viver”. E quando se ia queixar a Ariani, segundo o mesmo recebia com “maos modes [...] ” (46). Depender das rodas de Ariani nfo it boa idéia, fosse quitandei comerciante grossista ou simples ust nha. Alias, 0 uso de carros, além da falta de mercadoria na praca, preSsionaria mesmo os pregos. "A cares- fia cresceo”, escreveria mais tarde o Jor- nal da Bahia (15/6/57). Todos quer afficanos de volta aos cantos. M: vam errados se acreditavam na tese da Associagio Comercial de que se tratava 86 de dinheiro, Pois bem. Pressionado pelo comér- cio, 0 presidente da provincia imediata- mente informou & Camara que suspen- desse a cobranga da taxa de matricula € distribuisse gratuitamente a chapa de identificagio. O presidente, como 0s co- merciantes da Associagio, eram adeptos do liberalismo econdmico, 0 que diver- sas vezes os opunham a Cimara, m intervencionista (47). A divisio no cen- tro de poder da cidade - Camara Muni cipal e Palicio Presidencial, por sinal, ocupavam a mesma praga - seria 0 pri- meiro fato politico importante eriado pelo movimento. A sessio da Cimara que discutiu as ordens do presidente dividiu seus nove vereadores. Dois deles, inclusive o presi- dente da casa, propuseram que a matri- ciula fosse reduzida a mil réis e se dispen- sasse fiador para ganhador liberto. A proposta foi rejeitada. Um edil acusaria © presidente da provincia de abolir uma cobranga legal porque nao podia haver “licenga sem pagamento”. E acusava 0 governo de irtesponsavel, por ter dado ‘mostra “de nao ter sciencia de seus actos”. ‘Ao argumento financeito, outro associou © regimental, defendendo a postura “por entender que a Presidéncia da Provincia ] niio pode, assim como a Assembléia Legislativa’ Provincial, derrogar, nullificar, ou alternar uma Postura qual- quer depois de approvada” (48). No final os vereadores acataram 0 presidente sob protesto. Em respost publicada na imprensa, lembraram que ele mesmo havia aprovado, embora pro- visoriamente, 0 texto de uma postura, 86 inspirada, mas “litera do codigo municipal do Rio de Janeiro”. Realmente, na corte, desde pelo menos 0 tae exequivel”, inclus cchapas de metal. Omitiam apenas 0 de- talhe de que cobravam trés mil réis por uma chapa que Ihes havia cu nas 600 réis junto & fundigio G. Colom- bo (49). Do ponto de vista da argumentagio politica, © melhor trecho dos vereadores foi o dedicado aos ganhadores. Demons- ido experiéncia em tratar com eles, definiram © movimento como “conluio ou parede entre africanos libertos e os escravos, iio porque Ihes pese o dispendio que a licenga acarre- ta, na verdade insignificante para industria tio lucrativa, € que nenhum outro imposto paga, mas porque se querem eximir de toda e qualquer fiscalizagao” (50). E advertiam ao presidente de que a greve dava um péssimo exemplo a quantos no futuro quisessem “neutralisar a acgio do Governo”. Ao invés de ceder, as autoridades deviam tentar neutrali- zar 0 movimento, uilizando para isso 0s operirios do arsenal de guerri, ocupa- dos na indiéstria € os chamados “fricanos livres”, aqueles confiscados de contrabando apis a proibigio do trifico ‘em 1831 € colocados sob a tutela do Es- tao ( cchhamados canos da nagio”). A médio prazo, a Cie a em que fossem ci jas de homens livre tas em uma lei de 1855, Mas o presidente ao barulho que vinha do outro lado da praca. Segundo cle, jé que a Camara pretendia apenas disciplinar os ganha- dores, a medida devia ter apenas um ler policial © nao fiscal. Para isso bastava que permanecessem a matricu- la ¢ a obrigatoriedade “desses individuos trazerem visivelmente em uma chapa de mt matricula”, Ade= inh de criat a taxa, senio com a Assembléia Provincial. O presidente zia eco das criticas 3 lei de 1836, afirman- do que, na eventualidade de ser realmen- te feita a cobranga, os ganhadores termi nariam transferindo para seus clientes © cust “A Camara sabe que a imposigio 1e- sultamte dessa licenga recahe sobre os consumidores € no sobre os contri- buintes, e portanto deve ponderar que © alivio que se pretende fuzer com a isengio della nao € feita aos escravos, € nem aos africanos libertos, mas sim cujos, interesses é& dever dt auctoridade attender, maxime quando trazidos a0 seu conhecimento pelo modo legal € pacifico por que o fez a junta direciora da Associagio Comercial” (51). presidente nio fazia politica em favor de escravos € libertos, nio escon- denclo os interesses que defendia. E orde- nou que os vereadores acatassem suas ordens. ‘Assim, no segundo dia de greve, afticanos escravos ¢ libertos haviam con- seguido derrotar uma parte, a parte al”, da postura, Continuavam parados contra a parte “policial”. Na mesma edi- gio que publicava a polémica entre a Camara da cidade © a Presidéncia da provincia, o Jornal da Bahia noticiava sobre 0 segundo dia da greve: “Os cantos ainda estiveram desertos”. Observava fentretanto que cartos operados por ho- mens livres, além de escravos a pé de despachantes, haviam retirado “diver- sos volumes” da allfindega. Muitos par- ticulares estariam aderindo ao carro, uma opgio cara, como vimos, € por isso emergencial. Ademais, 0 que havia de carros ¢ homens livres ¢ escravos dom ticos nao dava conta do que havia de mereadoria para ser transportada. ‘Os homens livres, mesmo os de cor, consideravam indigno trabalhar lado @ lado com escravos € libertos afticanos. Jornal da Bahia de 15 de junho: ‘muitos bragos livres, que no con- corre aquelle trabalho porque no querem exercé-lo a par de africanos ibertos ou escravos, correriam pres surosos a ganhar mente 0 jo, que Ihes nao abunda, certos de que nada teriam a soffrer nos prejuizos que herdaram e alimen- preconceito (“prejuizo”) contra 0 africano, € nio 86 o escravo, era genera lizado. Nao era repulsa de cor nem cla se, mas étnica, Nio surpreende que os africanos se protegessem com barreiras também étnicas. Naturalmente 0 precon- ceito se acentuava na medida em que, na hora da competigio no mercado de tra- balho, os homens livres encont africanos admiravelmente or; em tomo dos cantos. Os cuntos assim representavam um instrument de re- serva de mercado, uma barreira & entra- da dos nio-filiados - € nele s6 entrava africano, ou quem a ele se submetesse, Os escravos € libertos africanos estavam na ocasiio muito melhor organizados do que 0s trabalhadores livres. Dai os homens livres viverem a pe- dir a protegio do governo contra os afti- canos. Foi gragas a essa protegio que vieram a penetrar na estiva, onde carre- gavam € descarregavam em saveiros os navios ancorados ao largo do porto. A lei de 1850, lembrem-se, proibia a partici- pagio de africanos e/ou escravos nessa tividade, Mas mesmo com a proibigio, REVISTA USP 23 Evangeton ps6 13 Men Fou Voir ae ne Pepsi. 87? p28 ‘54 wore utp. 70 (0 soroergal 1, iin Cn aa REVISTAUSP ‘em 1854, 21,7% dos “empregados na lide do mar” eram escravos, no que deve ter contado a pressio senhorial. Com a crise da epidemia de c6lera em 1855, essa pro- porgio dobrou ¢ se manteve estivel em 1856 (52). Mas se a estiva estava dividida entre escravos € livres - € destes 35,2% ram brancos em 1856 - 0 carrego além das fronteiras da alffindega ficava por conta de escravos e libertos predomi temente africanos. Dai o impacto da rada. Sobre o terceiro dia da greve, 0 Jor- nal da Bahia (4/6/1857) informava que 0 transporte continuava devagar, “apezar do auxilio prestado por alguns bragos livres e carros”. A greve parecia ser ago- ra exclusivamente em torno do uso das placas de metal: “A repulsa pelas chapas ainda continua por parte dos pretos. Hontem esteve a cidade, como nos dias precedentes, limpa de pretos carregado- res”. Tal como 0 critico das chapas em 1836, 0 periddico percebeu o que estava em jogo. E se a imprensa percebeu é porque todo mundo ja sabia, Mais do que rejeitar 0 controle do seu trabalho, 6s africanos rejeitavam aquela forma es- pecifica de controle. O uso das chapas tido como humilhante. Os afticanos mente de um mundo onde rc ‘abaja iorubanas), 0 uso de determi- nados colares, roupas € penteados dizi- ‘am sobre sua posigio na ordem social € ritual. Os africanos estavam com Foucault: “o corpo esta diretamente mergulhado num campo politico”. Mas a Cimara também: “o corpo s6 se torna forga ttil se € a0 mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (53). Am- bos sabiam que naquela chapa jogavam uma cartada decisiva. Como escreveu 0 Jornal da Bahia (11857), 08 abeinos do tal aos miseros quadrapedes”. E havia outras associagios. O criti de 1836 comparou a chapa com argola de condenado. Um comentario de direta: 0 colar enfiado no pescogo do es- ‘cravo fuji. O inglés escreveu: “esse dis. {intivo 6 considerado uma grande desgra- a, pois quando passam [escravos com Ele] seus conhecidos zombam deles” (54). A gente imagina que esses bravos fujoes deveriam ter sido aplaudidos pelos par- ceiros de escravidlio. A vaia podia ser um desabafo dos mais covardes, ou uma eri- tica & incompeténeia da fuga. Seu senti- do mais profundo talvez nunca se escla- rega. O fato € que o ferro encaixado no corpo humilhava, fazendo pesar mais ainda a condigio de escravo, de corpo- propriedade. Se a argola punia 0 peca- do da rebeldia, a chapa parecia punir © pecado da origem africana dos ganha- dores, Naquele terceiro dia de greve, o olheiro do Jornal da Bahia (4/6/1857) culou pela cidade com as orethas em pé: “temos ouvido que dentro em pouco andario de novo os pretos nas ruas como intes, independentemente de chapas © matriculas”. Porém, nesse terceiro dia 0 movimento comecou a apresentar as eiras desisténcias, exatamente no elo mais fraco da comunidade de ganhado- res: 0s escravos. Os senhores 05 estavam pressionando a trabalhar: apressaram- se em comparecer a Camara para los, obter gratuitamente a placa -los logo para 0 ganho. Os afti- canos enfrentavam a dificil circunstin- cia de atuar politicamente sobre um mercado de trabalho segmentado entre libertos e escravos. Se 0s primeiros 86 tinham de seguir comando de seus Iide~ res, sem diivida os capities-do-canto, os segundos ficavam entre 0 comando des- {es ¢ as ordens dos senhores. Os escravos enfrentavam mais riscos. Desobedecer aos senhores podia redundar em castigo, reducio e até suspensio de sua parcela do ganho, podia inclusive comprometer aalforria, que dependia, além de dinhe ro, da boa vontade dos senhores. E estes, luma vez suspensa a taxa, nio viam por iricula. Com efeito, a de 4 de junho, quando percebe- ram que nio tinham de pagi-ta, eles eor- ‘eseravos. Eu 86 consegui encontrar, nos arquivos da Cimara, trés matriculas até esta data; para o dia 4 encontrei quarenta (55). Nio obstante a dificuldade, os gre- vistas procuraram reagit, ¢ 0 fizeram com titieas de piqueteiros modernos: “Alguns senhores tém matriculado sous escravos, que sahem para a rua ‘com a chapa respectiva, mas sio logo obrigados a arranca-la, nio s6 por que os companheiros os maltratam obrigam a isso, como também por-

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