Professional Documents
Culture Documents
net/publication/268231438
CITATIONS READS
4 55
1 author:
Mauro Serapioni
University of Coimbra
51 PUBLICATIONS 297 CITATIONS
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
All content following this page was uploaded by Mauro Serapioni on 09 December 2014.
Mauro Serapioni 1
Oriol Romaní 2
Abstract Introdução
1 Centro de Ciências da This paper focuses on three models for citizens’ Nos últimos vinte anos diferentes processos de
Saúde, Universidade
participation in health (Italy, Great Britain, and mudança estão afetando a saúde. Embora se
Estadual do Ceará,
Fortaleza, Brasil. Brazil). After discussing the strengths and weak- trate de processos heterogêneos nos conteúdos
2 Facultat de Lletres, ness of the three experiences, the study presents (científicos, éticos, normativos, organizacio-
Universitat Rovira i Virgili,
a comparative analysis, highlighting conver- nais etc.) e nas perspectivas delineadas, quase
Tarragona, España.
gences and variations in relation to the main todos evidenciam a necessidade de superar um
Correspondência characteristics of social participation in the sistema de saúde ainda incapaz de promover
M. Serapioni
health sector: (a) organization and composition uma maior interação com seu ambiente social.
Centro de Ciências da
Saúde, Universidade of health councils; (b) functions played by citi- Essa constatação levou muitos países a redefi-
Estadual do Ceará. zens’ representatives (decision-making, adviso- nirem a organização dos serviços sanitários e a
Rua Artur Façanha 75,
apto. 604, Fortaleza, CE
ry, or social control or oversight); and (c) ap- colocarem no centro do sistema os beneficiá-
60175-130, Brasil. proaches to community participation. The pa- rios desses serviços. De fato, entre os diversos
mauro_serapioni@yahoo.es per then focuses on two critical points emerging motivos aduzidos por governos de países tão
from the analysis of experiences with communi- diversos – tais como Alemanha, Brasil, Chile,
ty participation: the issue of representativeness Espanha, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia
and the difficulty experienced by representatives etc. – para apoiarem as reformas sanitárias, ca-
of health services users in influencing the deci- be mencionar a crescente insatisfação das pes-
sion-making by system managers. soas com a qualidade da atenção 1,2,3.
Assim, ao longo da década de noventa ob-
Citizen Participation; Health Systems; Advisory servou-se um crescente interesse em promo-
Committees ver a participação da população e reequilibrar
a relação entre oferta e demanda de serviços
de saúde. Hoje, ninguém nega que a participa-
ção é uma condição necessária para que una
população melhore a sua saúde e sua qualidade
de vida.
Apesar das boas intenções e de alguns lou-
váveis esforços empreendidos, a participação
ainda demora a entrar na práxis dos serviços.
Muitos estudiosos têm evidenciado a existên-
cia de uma contradição entre o discurso políti- para aprimorar o envolvimento de pacientes e
co (e, às vezes, até a retórica) sobre participa- usuários no âmbito da saúde.
ção dos cidadãos e a prática das instituições de Nossa análise refere-se a experiências de-
saúde ainda pouco sensível às contribuições senvolvidas em diferentes contextos sócio-eco-
do ambiente social 4,5. Entre os diversos moti- nômicos, culturais e políticos. Não é tarefa sim-
vos que podem explicar esse gap entre discur- ples comparar fenômenos sociais como a par-
so e práxis, cabe enfatizar as diferentes manei- ticipação dos cidadãos, que envolve dimensões
ras de entender a participação em saúde. A fal- estreitamente relacionadas à história das insti-
ta de uma definição clara e compartilhada do tuições políticas e ao desenvolvimento da so-
conceito de participação é responsável pela ciedade civil. Para nos protegermos dos riscos
ampla variedade de significados e de orienta- de uma comparação que analisasse as proprie-
ções ideológicas adotados nos diferentes con- dades sem ter na justa consideração os respec-
textos 6,7,8. O fornecimento de questionários tivos vínculos do contexto, desenhamos uma
aos usuários para averiguar seus níveis de sa- comparação de “estágios múltiplos” 13, articula-
tisfação, por exemplo, é geralmente considera- da em duas fases: primeiro, longitudinalmente,
do uma estratégia de participação. Porém, co- para o estudo da evolução histórica dos siste-
mo argumenta Crouch 9, nesse caso, trata-se de mas de saúde dos três países e para identificar
um “exercício muito pobre”, se o objetivo é de- as possíveis inter-relações entre os órgãos de
senvolver um espaço de “cidadania dialógica” participação previstos, as respectivas proprie-
(p. 275). As pesquisas de mercado, acrescenta dades e os relativos contextos; segundo, trans-
Pollock 10 (p. 536), “não podem absolutamente versalmente, para a análise comparativa pro-
substituir um processo democrático, senão, a priamente dita, descrevendo as regularidade e
participação se torna um conceito sem sentido”. as variações referentes aos três sistemas de
A partir dessas premissas, este artigo apre- participação.
senta três modelos de participação em saúde – Para estudar o tema da participação social
os Comitati Consultivi Misti (Comitês Consul- adotamos uma perspectiva de análise fenome-
tivos Mistos – CCM) da Itália, os Community nológica que nos permitiu entender a realida-
Health Councils (Conselhos Comunitários de de em seus aspectos naturais e de nos aproxi-
Saúde – CHC) da Inglaterra e os Conselhos Mu- mar o mais possível do ponto de vista de seus
nicipais de Saúde (CMS) do Brasil – eviden- protagonistas: representantes dos usuários, pro-
ciando as características organizacionais, as fissionais e gerentes.
potencialidades e os limites de cada um. Su-
cessivamente, será realizada uma análise com-
parativa das três experiências, destacando re- A participação dos cidadãos
gularidade e variações em relação às principais no sistema sanitário da Região
dimensões da participação em saúde. Emilia-Romagna, Itália
Nossa investigação pretende analisar a real efe- O Servizio Sanitario Nazionale (SSN) foi criado
tividade desses sistemas de participação e, pre- em 1978 para substituir um sistema de saúde
cisamente, visa responder às seguintes pergun- fortemente fragmentado em mais de cem ope-
tas: (a) os usuários realmente utilizam os siste- radoras de planos e seguros. A reforma de 1978,
mas de participação existentes para expressar pela primeira vez, introduziu a universalização
suas demandas e problemas? (b) as propostas da atenção à saúde e desenvolveu um processo
dos representantes dos usuários são incorpo- de descentralização baseado nas autoridades
radas nos processos de gestão dos serviços de regionais e locais. Sem dúvida, a introdução do
saúde? (c) os fóruns de participação são luga- novo SSN representou um grande avanço para
res de representação de todos os cidadãos ou os setores mais débeis da sociedade italiana;
somente de alguns segmentos deles? (d) quais contudo o sistema mostrou, também, eviden-
os modelos de participação mais efetivos para tes sinais de mau funcionamento e de inefi-
promover relações significativas entre sistema ciência. O aumento da insatisfação por parte
sanitário e associações da sociedade civil? de diferentes setores da sociedade levou o Go-
Através dos resultados das três experiências verno, por meio do Decreto Legislativo n. 502
de participação, nosso estudo visa contribuir de 1992, a modificar a reforma sanitária e in-
para a analise da relação entre sistema de saú- troduzir um sistema de garantia da qualidade a
de e cidadãos 11,12 e traçar possíveis caminhos ser avaliado também por parte dos usuários e
contra resposta, não encontra uma resolução representem, formalmente, todos os usuários
imediata”; (c) outro aspecto que pode ser rela- dos serviços. De fato, os entrevistados reconhe-
cionado a crises de participação dos comitês é ceram as dificuldades dos CCM para entrar em
a não adequada preparação dos voluntários contato com setores mais amplos da população.
chamados a desenvolver um papel complexo e
bastante compromissado.
A participação dos cidadãos
A voz dos comitês influi sobre os processos no serviço sanitário britânico
de decisão dos responsáveis dos serviços?
Transformações do National Health
A participação implica, necessariamente, a ca- Service e repercussões sobre os Conselhos
pacidade de influir, direta ou indiretamente, Comunitários de Saúde
junto a um processo público decisório 11. No
primeiro contato com o tema, um número sig- O National Health Service britânico (Serviço
nificativo de porta-vozes dos usuários manifes- Nacional de Saúde – NHS), instituído em 1948
tou uma tendência a problematizar a relação sob a direção do Ministério da Saúde, tem sido
com a contraparte colocando em relevo a limi- submetido, desde sua criação, a uma constante
tada incidência de suas propostas. Numa son- tensão entre ser responsável diante da autori-
dagem posterior, solicitados a ilustrar com dade central ou ser responsável diante da co-
exemplos específicos aquilo que têm efetiva- munidade local 16. Sucessivas reorganizações
mente obtido, revelou-se uma situação menos do NHS intentaram reduzir essa tensão que se
negativa. A maioria deles enumerou uma série foi acentuando ao longo dos anos 60 em conse-
de propostas aceitas e incorporadas aos pro- qüência dos protestos dos movimentos de mu-
cessos de gestão. Entretanto, tais resultados lheres e dos grupos de auto-ajuda que questio-
têm exigido um notável investimento de ener- navam a maneira como vinham sendo geren-
gias por parte dos representantes do volunta- ciados os serviços. Em conseqüência de tais dis-
riado. Um dado comum, surgido em todas as funções e denúncias, em 1974, foram instituí-
entrevistas, relaciona-se aos tempo – “exagera- dos os CHC, como instâncias de promoção e
damente longo” – que as autoridades sanitárias tutela dos interesses dos cidadãos.
empregam para pôr em ação essas recomenda- Com a chegada do Partido Conservador
ções. Naturalmente, como observam alguns re- (Conservative Party) ao Governo, a partir do co-
presentantes das associações, isso cria “ceticis- meço dos anos 80, inicia-se um processo de re-
mo e desconfiança” e, talvez, a nosso ver, pode- forma do NHS, associado a uma cada vez maior
ria ajudar a decifrar aquela atitude um pouco importância dada ao papel do paciente, enten-
pessimista referente ao impacto da própria dido como consumidor de serviços de saúde.
ação supra mencionada. O projeto do governo conservador (National
Health Service and Community Care Act de
Representatividade dos Comitês 1990) efetivou uma radical mudança estrutu-
Consultivos Mistos ral. A ascensão da aproximação consumista foi
acompanhada, como sublinham Lupton et al. 17,
Outro aspecto problemático já levantado por de uma atitude de “prevenção e suspeita” em
outras pesquisas em nível internacional refere- direção às formas tradicionais de participação
se à representatividade dos órgãos de tutela dos ativa dos cidadãos. O novo governo trabalhista,
direitos dos pacientes 5,9,15. No caso dos CCM, eleito em 1997 para restabelecer a confiança
registrou-se um amplo consenso entre os en- dos cidadãos no NHS, relançou o modelo da
trevistados sobre o fato de que os Comitês en- “terceira via”, entre o modelo centralista e o mo-
frentam questões que interessam aos usuários delo de inspiração neoliberal. A competição foi
em geral. Segundo alguns entrevistados, existe, substituída pela cooperação 18. Em 2001, o se-
também, um risco de auto-referência das dife- gundo governo trabalhista publica o documen-
rentes associações, sobretudo daquelas porta- to Involving Patients and the Public in Health-
doras de doenças graves, mesmo que a expe- care, em que propõe a extinção dos CHC e sua
riência dos últimos anos tenha mostrado que substituição por uma série de novos órgãos de
os CCM conseguiram construir um espaço au- representação dos interesses dos cidadãos. A
tônomo para operar como um fórum represen- aproximação conflituosa e reivindicativa dos
tativo dos direitos de todos os cidadãos e não CHC não era mais adequada à nova filosofia
somente de algumas categorias. Entretanto, o trabalhista centrada na partnership e na res-
reconhecimento da amplitude e da profundida- ponsabilização das autoridades locais 19.
de das ações do CCM não implica que os CCM
Resultados de uma investigação sobre precioso que, como afirma um informante, “tor-
os Conselhos Comunitários de Saúde na possível criticar o que não funciona”.
de, que geralmente são determinadas por ou- Esta característica diferencia o sistema de par-
tros fatores 3,21. Os resultados da nossa investi- ticipação brasileiro da maioria das experiên-
gação evidenciaram, igualmente, uma situação cias internacionais.
bastante problemática no que diz respeito à
capacidade dos CHC de incidir sobre os geren- A experiência dos Conselhos
tes dos serviços. Alguns informantes chegaram Municipais de Saúde
a criticar, com determinação, a atitude dos di-
rigentes dos serviços, sublinhando tanto “a re- Para fazer um balanço da experiência dos CMS,
tórica do envolvimento dos pacientes” – conti- utilizamos os resultados de uma pesquisa rea-
nuamente reiterada em todos os discursos po- lizada no Estado do Ceará, que foram comple-
líticos – como a “escassa atenção em recolher as mentados, em algum aspecto relevante da aná-
necessidades e propostas provenientes dos re- lise, por outros estudos de abrangência nacio-
presentantes dos usuários”. nal ou efetuados em nível estadual (Bahia, Cea-
rá e Santa Catarina). A nossa pesquisa, que ado-
tou o método do estudo de caso, foi realizada
A participação dos cidadãos em dois municípios do Estado do Ceará no ano
no Sistema Único de Saúde do Brasil 2002 24. O estudo foi implementado pela apli-
cação de entrevistas semi-estruturadas aos
Evolução do sistema sanitário principais atores que agem no CMS dos dois
municípios pesquisados: (a) representantes de
Antes da reforma constitucional de 1988, o sis- usuários (12); (b) representantes de profissio-
tema de saúde brasileiro era fortemente cen- nais (4); (c) representantes de prestadores de
tralizado e mostrava pouca atenção às ativida- serviços particulares (4); (d) secretários de saú-
des de prevenção e de assistência sanitária de de (2). Além da entrevista, foram analisadas as
base 22. Em 1986, realizou-se a VIII Conferência atas dos CMS referentes aos anos 1999 e 2000 e
Nacional de Saúde, um evento de grande rele- foi efetuada uma observação direta de algumas
vância nacional, que mobilizou amplos setores reuniões dos conselhos estudados (6). Em se-
da sociedade civil 7. A Constituição Federal de guida, apresentaremos os resultados, organiza-
1988 incorporou grande parte das propostas dos nos seguintes quatro conteúdos: (a) poten-
elaboradas pela Conferência e instituiu o Siste- cialidades dos CMS; (b) representatividade; (c)
ma Único de Saúde (SUS). Em 1990, foram pu- desigualdade de informação entre os represen-
blicadas Leis (8.080 e 8.142) para implementar tantes dos diferentes segmentos; (d) nível de
o SUS e seus princípios fundamentais. Como influência no processo de tomada de decisões.
instância de participação da população, foram
criados os Conselhos de Saúde e as Conferên- Potencialidades dos Conselhos
cias de Saúde. Municipais de Saúde
três dimensões da participação em saúde: (a) vários autores 3,6,31, a participação dos cidadãos
organização e composição dos órgãos colegia- implica um processo de co-participação nas to-
dos; (b) papel dos porta-vozes dos cidadãos; (c) madas de decisões. Habermas 32 não é da mes-
tipo de abordagem da participação prevista no ma opinião; segundo ele, a formação da opi-
sistema de saúde. nião pública fica descolada dos processos de
No que diz respeito à organização, pode- tomada de decisões. Para Habermas 32, as as-
mos traçar uma primeira diferença entre os fó- sociações da sociedade civil, por meio das esfe-
runs mistos, ou seja, compostos por usuários, ras públicas, podem somente exercer uma in-
profissionais e gerentes, como os colegiados da fluência sobre o sistema para tentar modificar
Itália e do Brasil e aqueles formados somente as estratégias pelas quais são enfrentados os
por representantes dos usuários, como no caso problemas, mas não podem participar direta-
dos CHC da Inglaterra. O sistema misto pare- mente das decisões. No entanto, o modelo de
ce-nos estrategicamente mais vantajoso, uma esfera pública do autor alemão tem recebido
vez que favorece a integração dos diferentes várias críticas. Segundo Fraser 33, a concepção
“backgrounds” profissionais, perspectivas de habermasiana de esfera pública supõe uma se-
análise e experiências, além de representar uma paração clara entre associações da sociedade
boa estratégia para aumentar as possibilidades civil e Estado, e isso tem como conseqüência o
de influir nos gerentes dos serviços. Nesse sen- fato de reconhecer a existência de “públicos dé-
tido, o modelo misto privilegia um processo beis” cuja prática deliberativa consiste, unica-
dialético e a criação de práxis e canais de co- mente, na formação de opinião sem incluir a
municação entre os diferentes atores, a fim de possibilidade de tomar, efetivamente, decisões.
contribuir na elaboração de objetivos coleti- Na mesma direção, Cook 34 afirma que, segun-
vos, favorecendo, por conseguinte, a constru- do Habermas, a sociedade civil pode ter, uni-
ção de um projeto de cidadania ativa. camente, uma influência indireta sobre a auto-
Analisando o papel desenvolvido pelos três transformação do sistema político, já que os ci-
fóruns e a relação que mantêm com as autori- dadãos são relegados à periferia dos processos
dades de saúde, surge outra diferença signifi- de decisão. Essas são somente algumas posi-
cativa. Os CMS são deliberativos, ou seja, co- ções de uma discussão ainda não acabada.
participam diretamente nos processos de to- Uma característica comum às três instân-
mada de decisões. Os CCM são consultivos. Os cias de participação estudadas refere-se ao ti-
CHC são eminentemente órgãos independen- po de abordagem adotado pelo sistema de saú-
tes e de controle. Logo, à primeira vista, a ver- de na relação com os cidadãos. Os usuários dos
dadeira discriminante é o fato de serem admi- serviços de saúde são reconhecidos, não como
tidos na mesa em que são tomadas as decisões. simples indivíduos, mas como cidadãos porta-
Entretanto, não podemos nos deter na análise dores de uma visão coletiva que participam ple-
normativa, pois o exame da organização for- namente nos processos de decisão das institui-
mal das três instâncias de representação dos ções de saúde. Essa aproximação coletiva não é
cidadãos é somente uma premissa. De fato, é um aspecto secundário em um período domi-
importante, também, averiguar, por intermé- nado pelas filosofias “consumistas”, em que os
dio de investigações pontuais, a existência de serviços de saúde são programados para res-
práxis de participação consolidada. A experiên- ponder às demandas e às preferências dos clien-
cia brasileira, por exemplo, não tem demons- tes 3. Com efeito, a participação assume dife-
trado, até hoje, que existam significativas van- rentes significados e implica diversas concep-
tagens pelo fato de os conselheiros usuários ções filosóficas acerca da relação entre estado
participarem num fórum com caráter delibera- e sociedade civil e, no caso específico, entre
tivo. Realmente, os porta-vozes dos cidadãos sistema de saúde e usuários. Tais diferenças
nos CMS, como evidenciaram as diversas pes- são ilustradas pela mesma terminologia usada
quisas apresentadas, encontram-se numa po- para definir as pessoas que utilizam o serviço:
sição de desvantagem em relação aos repre- consumidor, cliente, paciente, usuário, cida-
sentantes dos outros segmentos. Vice-versa, os dão etc. Existe a visão tipo “supermarket”, se-
CCM, ainda que não exerçam um papel delibe- gundo a qual a atenção à saúde pode melhorar
rativo, têm desenvolvido razoáveis capacida- somente na presença de um livre mercado em
des de propostas e de controle da qualidade que os consumidores, individualmente, têm a
dos serviços de saúde e têm exercido, pelo me- plena liberdade de escolher entre os vários pro-
nos nos primeiros cinco anos de existência, dutos disponíveis nas prateleiras; existe, po-
uma apreciável influência nos gerentes. rém, a visão que advoga o envolvimento ativo
Sobre esse ponto – deliberativo ou consul- do cidadão no processo de produção da saúde.
tivo – o debate é ainda muito vivaz. Segundo Nessa segunda direção, inserem-se os fóruns
de participação analisados que, apesar das li- com os gerentes e, por conseqüência, exerce-
mitações identificadas, têm possibilitado su- riam uma maior pressão e influência. Em ou-
perar a reduzida abordagem individualista. tras palavras, estamos diante de sistemas sani-
tários auto-referenciais e ainda incapazes de
confrontar-se com seus ambientes sociais, ou
Conclusões diante de uma sociedade civil ainda débil e de-
sorganizada, que, até agora, não tem consegui-
Como conclusão, gostaríamos de abordar bre- do expressar formas adequadas de protagonis-
vemente dois pontos críticos que surgiram nas mo social e de participação, para aproveitar as
três experiências analisadas. Em primeiro lu- pequenas aberturas proporcionadas pelos sis-
gar, o problema da representatividade. Não se temas de saúde? Talvez ambas as hipóteses se-
pode falar de representatividade no sentido jam certas. Como explicar, de outra forma, a in-
próprio do termo, por não existirem mecanis- sensibilidade da gerência em relação a algumas
mos formais de delegação por intermédio dos propostas de melhora da qualidade da atenção
quais grupos ou categorias de usuários elejam que não comportavam grandes investimentos
seus representantes. Além disso, é difícil argu- financeiros ou reorganizações radicais do sis-
mentar que tais fóruns possam representar a tema de saúde? Ou, como é possível entender
todos os cidadãos de uma determinada área ou o fato de que a rede de voluntariado sanitário,
a todos os usuários de um serviço, consideran- sobretudo onde está tradicionalmente arraiga-
do a limitada proporção de pessoas que parti- da, não esteja ainda em condição de garantir
cipam ativamente. Por outro lado, é também uma adequada participação nos Conselhos e
árduo falar de representatividade frente a um Comitês de Saúde?
fenômeno social baseado completamente no Pelos resultados das análises empíricas efe-
trabalho voluntário. Trata-se, sem dúvida, de tuadas nos três países, pode-se recomendar
uma representação socialmente relevante, ba- aos órgãos de representação dos interesses dos
seada no significativo papel desenvolvido por cidadãos – deliberativos, consultivos ou propo-
esses fóruns e no importante valor de sua ação sitivos – instaurar relações mais intensas e sig-
voluntária. nificativas com a própria base de apoio; estar
Outro aspecto crítico se refere à capacidade presentes tanto nas instituições sanitárias co-
dos porta-vozes dos cidadãos de exercerem sua mo na comunidade; escutar a voz dos pacien-
influência nos processos de tomada de deci- tes; levantar as necessidades dos usuários e as
sões dos gestores. Apesar de alguns resultados falhas do sistema dos serviços. Dessa forma, os
positivos obtidos pelas instâncias de participa- fóruns poderiam reforçar sua representativida-
ção analisadas, temos observado a persistência de e conseguir exercer uma maior influência.
de certas práticas e atitudes dos sistemas de Deveriam, em outras palavras, desenvolver um
saúde ainda um pouco auto-referenciais. Isso modelo de participação que trouxesse sua legi-
representa, segundo os relatos dos represen- timação, ação e força contratual da relação in-
tantes dos usuários, um fator de desmotivação tensa com os cidadãos 15. Assim, parece-nos
e de afastamento dos porta-vozes da comuni- interessante concluir com as recomendações
dade e das associações que não logram ver re- do Ministério da Saúde brasileiro 35 que opor-
conhecido o valor da própria ação. Contudo, tunamente enfatiza a necessidade de os conse-
há quem – sobretudo na visão de gerentes e lheiros conquistarem a adesão e mobilização
profissionais – inverta essa relação de depen- dos segmentos representados: “as deliberações
dência entre poder de decisão dos órgãos cole- [dos Conselhos de Saúde] somente terão poder
giados e nível de participação, alegando que de mudança para a construção do SUS, na me-
conselhos fortes e mais representativos das co- dida em que as entidades priorizem, na suas
munidades locais conseguiriam, também, mo- agendas de pressões e mobilizações, as delibera-
bilizar e implicar um número maior de porta- ções dos Conselhos” 35 (p. 61).
vozes dos cidadãos no processo de negociação
Resumo Referências
O artigo apresenta três modelos de participação em 1. Buss PM, Labra ME, organizadores. Sistemas de
saúde – os Comitês Consultivos Mistos da Itália, os saúde: continuidades e mudanças. Rio de Janei-
Conselhos Comunitários de Saúde da Inglaterra e os ro: Editora Hucitec; 1995.
Conselhos Municipais de Saúde do Brasil – eviden- 2. Trabucchi M, organizador. I cittadini e il sistema
ciando as potencialidades, os aspectos organizacio- sanitario nazionale. Dalla qualità percepita al-
nais e as debilidades de cada um. Sucessivamente, faz- l’impegno per il cambiamento. Bolonha: Il Muli-
se uma análise comparativa das três experiências, des- no; 1996.
tacando regularidade e variações em relação às prin- 3. Milewa T, Valentine J, Calnan M. Managerialism
cipais características da participação em saúde. Os re- and active citizenship in Britain’s reformed health
sultados da pesquisa apontam para a discussão de al- service. Soc Sci Med 1998; 4:507-17.
gumas categorias teóricas presentes na literatura espe- 4. Ugalde A. Ideological dimension of community
cializada no campo da participação em saúde. Preci- participation in Latin American health programs.
samente, analisam-se as seguintes dimensões da par- Soc Sci Med 1985; 1:53.
ticipação: (a) organização e composição dos fóruns de 5. Zakus D, Lysack C. Revisiting community partici-
participação; (b) papel desempenhado pelos represen- pation. Health Policy Plan 1998; 1:1-12.
tantes dos cidadãos (consultivo, deliberativo ou de 6. Arnstein S. A ladder of community participation.
controle); (c) tipo de aproximação (individual ou cole- J Am Inst Plann 1969; 35:216-24.
tiva) de participação em saúde. Finalmente, o artigo 7. Carvalho AI. Conselhos de saúde no Brasil: par-
enfoca dois pontos críticos surgidos nas três experiên- ticipação cidadã e controle social. Rio de Janeiro:
cias de participação e, precisamente, o problema da Instituto Brasileiro de Administração Municipal/
representatividade das instâncias colegiadas e a difi- FASE; 1995.
culdade dos porta-vozes dos cidadãos de exercerem 8. Cortes SM. Conselhos municipais de saúde: a pos-
sua influência nos processos de tomada de decisões sibilidade dos usuários participarem e os deter-
dos gestores. minantes da participação. Ciênc Saúde Coletiva
1998; 1:5-17.
Participação Cidadã; Sistemas de Saúde; Comitês Con- 9. Crouch C. La ampliación de la ciudadanía social
sultivos y económica y la participación. In: García S, Lukes
S, organizadores. Ciudadanía, justicia social, iden-
tidad y participación. Madrid: Siglo Veintiuno;
1999. p. 257-85.
Colaboradores 10. Pollock AM. Local voices: the bankrupcy of the
democratic process. BMJ 1992; 6853:535-6.
M. Serapioni participou de todas as etapas de elabo- 11. Ardigò A. Società e salute: lineamenti di sociolo-
ração do artigo, desde o delineamento do estudo, a gia sanitaria. Milano: Angeli; 1997.
coleta e análise das informações até a redação final. 12. Cipolla C. Epistemologia della tolleranza. Milano:
O. Romaní colaborou com a discussão dos resultados Angeli; 1997.
e com a revisão crítica final do artigo. 13. Giarelli G. Il malessere della medicina: un con-
fronto internazionale. Milano: Angeli; 2003.
14. Hanau C, Gattei L. I comitati consultivi misti
nell’Azienda Sanitaria di Bologna. L’Arco di Giano
Agradecimentos 1998; 16:180-92.
15. Altieri L. Verso una valutazione come negoziazio-
ne in un pluralismo di valori. In: Cipolla C, Gia-
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento
relli G, Altieri L, organizadores. Valutare la qualità
Científico e Tecnológico pela bolsa concedida ao au-
in sanità: approcci, metodologie e strumenti. Mi-
tor Mauro Serapioni.
lano: Angeli; 2002. p. 95-126.
16. Klein R. Looking after consumers in the new NHS.
BMJ 1990; 6736:1351-2.
17. Lupton C, Peckam S, Taylor P. Managing public
involment in healthcare purchasing. Bucking-
ham: Open University Press; 1998.
18. Department of Health. The new NHS: modern,
dependable. London: The Stationary Office; 1997.
19. Department of Health. Involving patients and the
public in healthcare. London: The Stationary Of-
fice; 2001.
20. Pickard S. The future organization of Community
Health Councils. Social Policy & Administration
1997; 3:274-89.
21. Rhodes P, Nocon A. User involvement and the
NHS reforms. Health Expect 1998; 2:73-81.
22. Neto ER. A reforma sanitária e o Sistema Único
de Saúde. In: Ministério da Saúde, organizador.
Incentivo à participação popular e ao controle
social do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 1994. 29. Wendhausen A, Caponi S. O diálogo e a partici-
p. 7-17. pação em um conselho de saúde em Santa Cata-
23. Ministério da Saúde. Conselhos de saúde: guia de rina, Brasil. Cad Saúde Pública 2002; 18:1621-8.
referência para a sua criação e organização. Brasí- 30. Oliveira TD, Molesini JO, Gomes IF, Teixeira CF.
lia: Ministério da Saúde; 1993. Conselhos municipais de saúde na Bahia: avalia-
24. Serapioni M, Silva VA. Potencialidades e limites ção dos resultados da capacitação de conselhei-
dos Conselhos Municipais do Ceará: dois estudos ros de saúde. Rev Baiana Saúde Pública 1999; 1/4:
de caso. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do 75-98.
Ceará; 2002. 31. De Roux GI. Participación y cogestión de la salud.
25. Pessotto UC, Nascimento PR, Heimann LS. A Educ Med Salud 1993; 1:50-60.
gestão semiplena e a participação popular na ad- 32. Habermas J. Fatti e norme. contributi a una teo-
ministração da saúde. Cad Saúde Pública 2001; ria discorsiva del diritto e della democrazia. Mi-
17:89-97. lano: Guerini Associati; 1996.
26. Labra ME, Figueiredo J. Associativismo, partici- 33. Fraser N. Rethinking the public sphere: a contri-
pação e cultura cívica. O potencial dos conselhos bution to the critique of actually existing democ-
de saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 3:537-47. racy. In: Calhoun C, editor. Habermas and the
27. Cordeiro C, organizador. Os conselhos de saúde public sphere. Cambridge: The MIT Press; 1992.
no Ceará e os desafios da capacitação. Fortaleza: p. 109-36.
Escola de Saúde Pública do Ceará; 1997. 34. Cook D. The talking cure in Habermas’s republic.
28. Noronha RW. O conselho municipal de saúde de New Left Rev 2001; 12:135-51.
Baturité: participação popular e controle social 35. Ministério da Saúde. Gestão municipal de saúde:
[Dissertação de Mestrado]. Fortaleza: Centro de textos básicos. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.
Ciência da Saúde, Universidade Estadual do Cea-
rá; 1994. Recebido em 05/Abr/2004
Versão final reapresentada em 27/Dez/2005
Aprovado em 21/Fev/2006