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The challenges of citizenship and participation in the health systems

Article  in  Ciencia & saude coletiva · December 2014


DOI: 10.1590/1413-812320141912.02292013 · Source: PubMed

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1 author:

Mauro Serapioni
University of Coimbra
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ARTIGO ARTICLE 2411

Potencialidades e desafios da participação


em instâncias colegiadas dos sistemas de saúde:
os casos de Itália, Inglaterra e Brasil

Strengths and challenges of citizens’


participation in local health councils:
the cases of Italy, England, and Brazil

Mauro Serapioni 1

Oriol Romaní 2

Abstract Introdução

1 Centro de Ciências da This paper focuses on three models for citizens’ Nos últimos vinte anos diferentes processos de
Saúde, Universidade
participation in health (Italy, Great Britain, and mudança estão afetando a saúde. Embora se
Estadual do Ceará,
Fortaleza, Brasil. Brazil). After discussing the strengths and weak- trate de processos heterogêneos nos conteúdos
2 Facultat de Lletres, ness of the three experiences, the study presents (científicos, éticos, normativos, organizacio-
Universitat Rovira i Virgili,
a comparative analysis, highlighting conver- nais etc.) e nas perspectivas delineadas, quase
Tarragona, España.
gences and variations in relation to the main todos evidenciam a necessidade de superar um
Correspondência characteristics of social participation in the sistema de saúde ainda incapaz de promover
M. Serapioni
health sector: (a) organization and composition uma maior interação com seu ambiente social.
Centro de Ciências da
Saúde, Universidade of health councils; (b) functions played by citi- Essa constatação levou muitos países a redefi-
Estadual do Ceará. zens’ representatives (decision-making, adviso- nirem a organização dos serviços sanitários e a
Rua Artur Façanha 75,
apto. 604, Fortaleza, CE
ry, or social control or oversight); and (c) ap- colocarem no centro do sistema os beneficiá-
60175-130, Brasil. proaches to community participation. The pa- rios desses serviços. De fato, entre os diversos
mauro_serapioni@yahoo.es per then focuses on two critical points emerging motivos aduzidos por governos de países tão
from the analysis of experiences with communi- diversos – tais como Alemanha, Brasil, Chile,
ty participation: the issue of representativeness Espanha, Itália, Portugal, Reino Unido, Suécia
and the difficulty experienced by representatives etc. – para apoiarem as reformas sanitárias, ca-
of health services users in influencing the deci- be mencionar a crescente insatisfação das pes-
sion-making by system managers. soas com a qualidade da atenção 1,2,3.
Assim, ao longo da década de noventa ob-
Citizen Participation; Health Systems; Advisory servou-se um crescente interesse em promo-
Committees ver a participação da população e reequilibrar
a relação entre oferta e demanda de serviços
de saúde. Hoje, ninguém nega que a participa-
ção é uma condição necessária para que una
população melhore a sua saúde e sua qualidade
de vida.
Apesar das boas intenções e de alguns lou-
váveis esforços empreendidos, a participação
ainda demora a entrar na práxis dos serviços.
Muitos estudiosos têm evidenciado a existên-

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cia de uma contradição entre o discurso políti- para aprimorar o envolvimento de pacientes e
co (e, às vezes, até a retórica) sobre participa- usuários no âmbito da saúde.
ção dos cidadãos e a prática das instituições de Nossa análise refere-se a experiências de-
saúde ainda pouco sensível às contribuições senvolvidas em diferentes contextos sócio-eco-
do ambiente social 4,5. Entre os diversos moti- nômicos, culturais e políticos. Não é tarefa sim-
vos que podem explicar esse gap entre discur- ples comparar fenômenos sociais como a par-
so e práxis, cabe enfatizar as diferentes manei- ticipação dos cidadãos, que envolve dimensões
ras de entender a participação em saúde. A fal- estreitamente relacionadas à história das insti-
ta de uma definição clara e compartilhada do tuições políticas e ao desenvolvimento da so-
conceito de participação é responsável pela ciedade civil. Para nos protegermos dos riscos
ampla variedade de significados e de orienta- de uma comparação que analisasse as proprie-
ções ideológicas adotados nos diferentes con- dades sem ter na justa consideração os respec-
textos 6,7,8. O fornecimento de questionários tivos vínculos do contexto, desenhamos uma
aos usuários para averiguar seus níveis de sa- comparação de “estágios múltiplos” 13, articula-
tisfação, por exemplo, é geralmente considera- da em duas fases: primeiro, longitudinalmente,
do uma estratégia de participação. Porém, co- para o estudo da evolução histórica dos siste-
mo argumenta Crouch 9, nesse caso, trata-se de mas de saúde dos três países e para identificar
um “exercício muito pobre”, se o objetivo é de- as possíveis inter-relações entre os órgãos de
senvolver um espaço de “cidadania dialógica” participação previstos, as respectivas proprie-
(p. 275). As pesquisas de mercado, acrescenta dades e os relativos contextos; segundo, trans-
Pollock 10 (p. 536), “não podem absolutamente versalmente, para a análise comparativa pro-
substituir um processo democrático, senão, a priamente dita, descrevendo as regularidade e
participação se torna um conceito sem sentido”. as variações referentes aos três sistemas de
A partir dessas premissas, este artigo apre- participação.
senta três modelos de participação em saúde – Para estudar o tema da participação social
os Comitati Consultivi Misti (Comitês Consul- adotamos uma perspectiva de análise fenome-
tivos Mistos – CCM) da Itália, os Community nológica que nos permitiu entender a realida-
Health Councils (Conselhos Comunitários de de em seus aspectos naturais e de nos aproxi-
Saúde – CHC) da Inglaterra e os Conselhos Mu- mar o mais possível do ponto de vista de seus
nicipais de Saúde (CMS) do Brasil – eviden- protagonistas: representantes dos usuários, pro-
ciando as características organizacionais, as fissionais e gerentes.
potencialidades e os limites de cada um. Su-
cessivamente, será realizada uma análise com-
parativa das três experiências, destacando re- A participação dos cidadãos
gularidade e variações em relação às principais no sistema sanitário da Região
dimensões da participação em saúde. Emilia-Romagna, Itália

O processo de reforma do sistema


Objetivos do estudo e método de saúde italiano

Nossa investigação pretende analisar a real efe- O Servizio Sanitario Nazionale (SSN) foi criado
tividade desses sistemas de participação e, pre- em 1978 para substituir um sistema de saúde
cisamente, visa responder às seguintes pergun- fortemente fragmentado em mais de cem ope-
tas: (a) os usuários realmente utilizam os siste- radoras de planos e seguros. A reforma de 1978,
mas de participação existentes para expressar pela primeira vez, introduziu a universalização
suas demandas e problemas? (b) as propostas da atenção à saúde e desenvolveu um processo
dos representantes dos usuários são incorpo- de descentralização baseado nas autoridades
radas nos processos de gestão dos serviços de regionais e locais. Sem dúvida, a introdução do
saúde? (c) os fóruns de participação são luga- novo SSN representou um grande avanço para
res de representação de todos os cidadãos ou os setores mais débeis da sociedade italiana;
somente de alguns segmentos deles? (d) quais contudo o sistema mostrou, também, eviden-
os modelos de participação mais efetivos para tes sinais de mau funcionamento e de inefi-
promover relações significativas entre sistema ciência. O aumento da insatisfação por parte
sanitário e associações da sociedade civil? de diferentes setores da sociedade levou o Go-
Através dos resultados das três experiências verno, por meio do Decreto Legislativo n. 502
de participação, nosso estudo visa contribuir de 1992, a modificar a reforma sanitária e in-
para a analise da relação entre sistema de saú- troduzir um sistema de garantia da qualidade a
de e cidadãos 11,12 e traçar possíveis caminhos ser avaliado também por parte dos usuários e

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não somente pelos gerentes e profissionais de O modelo organizacional dos


saúde. Comitês Consultivos Mistos
A Região Emilia-Romagna, pela Lei Regio-
nal n. 19 de 1994, tem aplicado o disposto pelo Da análise da experiência dos primeiros cinco
decreto acima mencionado, relativamente à anos de vida dos CCM emergiu uma avaliação
participação dos cidadãos no âmbito do siste- satisfatória da configuração organizativa dos
ma de saúde. De fato, a lei regional prevê ex- comitês. Quase todos os informantes mencio-
pressamente que as autoridades sanitárias dos naram o valor positivo desse órgão colegiado.
distritos e dos hospitais ponham à disposição A colaboração entre os membros dos diversos
das associações dos usuários sedes adequadas componentes do comitê representa, de acordo
para desenvolver sua atividade de representa- com os entrevistados, o ponto forte dessa ex-
ção e defesa dos direitos dos pacientes. Além periência e a premissa para realizar um traba-
disso, a lei recomenda a instituição dos CCM lho construtivo em favor da cidadania. Isso não
para o controle da qualidade da atenção. significa que, entre representantes dos servi-
ços e porta-vozes do voluntariado, não existam
Objetivos e características organizacionais também dificuldades, incompreensões, dife-
dos Comitês Consultivos Mistos renças de linguagem e, às vezes, até mesmo
conflitos. Mas a continuidade e a instituciona-
Os CCM representam a instância institucional lização da relação favorecem – segundo a opi-
para dar voz às associações da sociedade civil a nião dos informantes – a compreensão recípro-
fim de garantir a correspondência dos serviços ca, o crescimento de todos os atores envolvidos
de saúde às exigências dos cidadãos. Reúnem- no processo e a criação de relações de confian-
se uma vez por mês e estão formados por re- ça que, em último caso, facilitam a análise e a
presentantes das associações de voluntariado, resolução dos problemas. Esse empenho co-
além de um componente minoritário designa- mum reforça o confronto e o diálogo entre os
do pela autoridade de saúde, compreendendo diversos segmentos dos comitês. Tal integração
administradores e profissionais. A outra carac- é, porém, possível por uma parte, se a estrutu-
terística dos CCM é a de serem consultivos, ou ra sanitária renuncia, como refere um dirigen-
seja, expressam seus próprios pareceres, efe- te, “à sua tradicional atitude auto-referencial”
tuam visitas e controles na estruturas sanitá- e, por outra, se os representantes dos usuários
rias e sugerem propostas à gerência que, ao fi- evitam – como assinala um porta-voz dos usuá-
nal das contas, mantêm toda a responsabilida- rios – aquele comportamento típico “de quem
de e autonomia da decisão 14. Sua finalidade é pressupõe que as próprias instâncias devam ser
verificar a qualidade da atenção na visão dos acolhidas sempre e de qualquer modo”.
usuários. Devem, em outras palavras, observar
os serviços de saúde com os olhos dos cidadãos. Participação das associações
nos Comitês Consultivos Mistos
Resultados da investigação sobre
os Comitês Consultivos Mistos O nível de participação dos representantes das
organizações de voluntários e de tutela dos di-
A pesquisa, realizada no ano 2000, abrangeu reitos dos pacientes emergiu como um aspecto
todos os CCM da cidade de Bolonha e uma problemático dos CCM. A maioria dos nossos
amostra de CCM das cidades de Ferrara, Imola interlocutores, seja dos porta-vozes dos usuá-
e Modena. Foram entrevistados 35 informan- rios seja dos profissionais e gerentes, eviden-
tes, entre coordenadores de CCM (represen- ciou uma tendência à diminuição da participa-
tantes das associações de usuários), profissio- ção, depois de uma primeira fase em que ocor-
nais de saúde, gerentes, diretores e porta-vozes reu uma ampla adesão das associações locais.
das organizações de tutela dos direitos dos pa- Diversos são os motivos para explicar o decrés-
cientes. Foram ainda realizadas observações cimo de participação: (a) antes de tudo, o “tem-
diretas durante as reuniões mensais dos CCM, po” e o “empenho” que requerem as atividades
no período de abril a julho. Em seguida, referi- a se desenvolverem no âmbito dos CCM. Esta-
mos os resultados do estudo, organizados em mos, naturalmente, falando de voluntários que
quatro áreas temáticas: (a) configuração orga- já dedicam uma parte significativa de seu tem-
nizacional dos CCM; (b) nível de participação po à própria associação; (b) vários interlocuto-
dos representantes das associações; (c) influên- res, sobretudo das associações, identificaram,
cia das propostas dos CCM sobre os processos como possível fator de desmotivação, a limita-
decisórios dos gerentes; (d) representatividade da influência exercida pelos CCMs: “às vezes se
dos CCM. tem a impressão de que o trabalho feito não en-

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contra resposta, não encontra uma resolução representem, formalmente, todos os usuários
imediata”; (c) outro aspecto que pode ser rela- dos serviços. De fato, os entrevistados reconhe-
cionado a crises de participação dos comitês é ceram as dificuldades dos CCM para entrar em
a não adequada preparação dos voluntários contato com setores mais amplos da população.
chamados a desenvolver um papel complexo e
bastante compromissado.
A participação dos cidadãos
A voz dos comitês influi sobre os processos no serviço sanitário britânico
de decisão dos responsáveis dos serviços?
Transformações do National Health
A participação implica, necessariamente, a ca- Service e repercussões sobre os Conselhos
pacidade de influir, direta ou indiretamente, Comunitários de Saúde
junto a um processo público decisório 11. No
primeiro contato com o tema, um número sig- O National Health Service britânico (Serviço
nificativo de porta-vozes dos usuários manifes- Nacional de Saúde – NHS), instituído em 1948
tou uma tendência a problematizar a relação sob a direção do Ministério da Saúde, tem sido
com a contraparte colocando em relevo a limi- submetido, desde sua criação, a uma constante
tada incidência de suas propostas. Numa son- tensão entre ser responsável diante da autori-
dagem posterior, solicitados a ilustrar com dade central ou ser responsável diante da co-
exemplos específicos aquilo que têm efetiva- munidade local 16. Sucessivas reorganizações
mente obtido, revelou-se uma situação menos do NHS intentaram reduzir essa tensão que se
negativa. A maioria deles enumerou uma série foi acentuando ao longo dos anos 60 em conse-
de propostas aceitas e incorporadas aos pro- qüência dos protestos dos movimentos de mu-
cessos de gestão. Entretanto, tais resultados lheres e dos grupos de auto-ajuda que questio-
têm exigido um notável investimento de ener- navam a maneira como vinham sendo geren-
gias por parte dos representantes do volunta- ciados os serviços. Em conseqüência de tais dis-
riado. Um dado comum, surgido em todas as funções e denúncias, em 1974, foram instituí-
entrevistas, relaciona-se aos tempo – “exagera- dos os CHC, como instâncias de promoção e
damente longo” – que as autoridades sanitárias tutela dos interesses dos cidadãos.
empregam para pôr em ação essas recomenda- Com a chegada do Partido Conservador
ções. Naturalmente, como observam alguns re- (Conservative Party) ao Governo, a partir do co-
presentantes das associações, isso cria “ceticis- meço dos anos 80, inicia-se um processo de re-
mo e desconfiança” e, talvez, a nosso ver, pode- forma do NHS, associado a uma cada vez maior
ria ajudar a decifrar aquela atitude um pouco importância dada ao papel do paciente, enten-
pessimista referente ao impacto da própria dido como consumidor de serviços de saúde.
ação supra mencionada. O projeto do governo conservador (National
Health Service and Community Care Act de
Representatividade dos Comitês 1990) efetivou uma radical mudança estrutu-
Consultivos Mistos ral. A ascensão da aproximação consumista foi
acompanhada, como sublinham Lupton et al. 17,
Outro aspecto problemático já levantado por de uma atitude de “prevenção e suspeita” em
outras pesquisas em nível internacional refere- direção às formas tradicionais de participação
se à representatividade dos órgãos de tutela dos ativa dos cidadãos. O novo governo trabalhista,
direitos dos pacientes 5,9,15. No caso dos CCM, eleito em 1997 para restabelecer a confiança
registrou-se um amplo consenso entre os en- dos cidadãos no NHS, relançou o modelo da
trevistados sobre o fato de que os Comitês en- “terceira via”, entre o modelo centralista e o mo-
frentam questões que interessam aos usuários delo de inspiração neoliberal. A competição foi
em geral. Segundo alguns entrevistados, existe, substituída pela cooperação 18. Em 2001, o se-
também, um risco de auto-referência das dife- gundo governo trabalhista publica o documen-
rentes associações, sobretudo daquelas porta- to Involving Patients and the Public in Health-
doras de doenças graves, mesmo que a expe- care, em que propõe a extinção dos CHC e sua
riência dos últimos anos tenha mostrado que substituição por uma série de novos órgãos de
os CCM conseguiram construir um espaço au- representação dos interesses dos cidadãos. A
tônomo para operar como um fórum represen- aproximação conflituosa e reivindicativa dos
tativo dos direitos de todos os cidadãos e não CHC não era mais adequada à nova filosofia
somente de algumas categorias. Entretanto, o trabalhista centrada na partnership e na res-
reconhecimento da amplitude e da profundida- ponsabilização das autoridades locais 19.
de das ações do CCM não implica que os CCM

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Resultados de uma investigação sobre precioso que, como afirma um informante, “tor-
os Conselhos Comunitários de Saúde na possível criticar o que não funciona”.

O objetivo de nosso estudo é analisar esse foro Representatividade dos Conselhos


de participação social, examinando sua longa e Comunitários de Saúde
consolidada experiência de representação dos
interesses dos cidadãos. A pesquisa foi realiza- Um aspecto crítico, já evidenciado por outras
da na Inglaterra e abrangeu cinco distritos sa- investigações realizadas sobre os CHC, é a re-
nitários da região de Londres, o distrito de Ox- presentatividade 17,20. Com efeito, os CHC têm
fordshire, o de East Berkshire e o distrito da re- sido freqüentemente objeto de críticas por não
gião de Medway & Swale. Foram efetuadas 22 lograrem representar alguns grupos sociais e
entrevistas com diretores dos CHC (represen- determinadas necessidades sócio-sanitárias da
tantes dos usuários), profissionais e gerentes população. Os usuários portadores de deficiên-
das unidades de saúde. Foram realizadas, tam- cias físicas e com problemas mentais, os pen-
bém, observações diretas durante algumas sionistas e, no geral, os segmentos de popula-
reuniões dos CHC. Referimos, em seguida, os ção com um baixo nível de renda estão insufi-
resultados do estudo organizados nas seguin- cientemente representados nos CHC. Os jo-
tes quatro áreas temáticas: (a) organização e vens (tanto homens como mulheres) também
funcionamento dos CHC; (b) representativida- estão escassamente representados, assim co-
de; (c) nível de participação; (d) influência dos mo as diversas minorias étnicas e os grupos de
CHC sobre as autoridades sanitárias. imigrados. Os CHC estão, na sua maioria, for-
mados, enfatiza um informante, por represen-
Modelos organizativos e funcionamento tantes da “classe média, de origem branca e
dos Conselhos Comunitários de Saúde adultos”. Os mesmos diretores dos CHC entre-
vistados reconheceram as dificuldades para re-
Os CHC estão presentes em cada distrito sani- presentar os interesses de toda a cidadania.
tário e são formados por um mínimo de 24 e
um máximo de 30 membros, segundo o núme- Nível de participação
ro de habitantes do distrito. A metade dos mem-
bros é nomeada pelas autoridades locais; um O problema da representatividade está estrei-
terço é eleito pelas organizações de voluntaria- tamente relacionado com o da participação;
do e um sexto é nomeado pelas autoridades sa- nesse sentido, nossa pesquisa revelou uma es-
nitárias regionais. São voluntários e têm direito cassa tendência de participar por parte de al-
a receber, unicamente, um reembolso de gas- guns setores da população, como os jovens e os
tos. Os CHC devem reunir-se pelo menos três grupos étnicos. Existe um consenso entre to-
vezes ao ano, embora geralmente se reúnam, dos os informantes de identificarem, nos mem-
conforme a declaração dos entrevistados, uma bros nomeados pelas autoridades locais (50%
vez a cada dois meses. do total), a categoria de representantes com
Pode-se dizer que o elemento que mais ca- menor presença e compromisso no trabalho
racteriza os CHC, em relação a outros foros de desenvolvido pelos CHC.
participação em saúde, é o fato de serem for- É ainda importante assinalar uma posição
mados unicamente por representantes dos bastante difundida entre os diretores dos CHC,
usuários. Os CHC, tendo uma função de con- segundo os quais é preciso abandonar os es-
trole, podem inspecionar livremente todas as quemas tradicionais até agora utilizados para
unidades de saúde. Em outras palavras, trata- comprometer o público e adotar estratégias
se de um instrumento essencialmente reivindi- mais flexíveis e criativas. Uma dessas estraté-
cativo, com escassas possibilidades de intera- gias, já experimentada pelos entrevistados, é
ção e diálogo com os profissionais e gerentes de entrar diretamente em contato com asso-
dos serviços de saúde. Todavia o fato de serem ciações e grupos organizados, indo ao seu ter-
independentes tanto da administração dos ser- ritório e aos lugares onde se reúnem.
viços como das autoridades políticas locais re-
presenta, na opinião dos informantes, o aspec- Influência dos Conselhos Comunitários
to mais qualificado dos CHC, já que logra dar de Saúde sobre as autoridades sanitárias
segurança e confiança aos pacientes que têm
vivenciado experiências negativas. A indepen- Diversas pesquisas realizadas no Reino Unido
dência (ou seja, o papel de “watchdog”, para mostraram que a voz dos usuários freqüente-
enfatizar seu papel de controladores externos mente exerce um impacto bastante limitado
do sistema sanitário) é considerada um bem sobre as deliberações das autoridades de saú-

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de, que geralmente são determinadas por ou- Esta característica diferencia o sistema de par-
tros fatores 3,21. Os resultados da nossa investi- ticipação brasileiro da maioria das experiên-
gação evidenciaram, igualmente, uma situação cias internacionais.
bastante problemática no que diz respeito à
capacidade dos CHC de incidir sobre os geren- A experiência dos Conselhos
tes dos serviços. Alguns informantes chegaram Municipais de Saúde
a criticar, com determinação, a atitude dos di-
rigentes dos serviços, sublinhando tanto “a re- Para fazer um balanço da experiência dos CMS,
tórica do envolvimento dos pacientes” – conti- utilizamos os resultados de uma pesquisa rea-
nuamente reiterada em todos os discursos po- lizada no Estado do Ceará, que foram comple-
líticos – como a “escassa atenção em recolher as mentados, em algum aspecto relevante da aná-
necessidades e propostas provenientes dos re- lise, por outros estudos de abrangência nacio-
presentantes dos usuários”. nal ou efetuados em nível estadual (Bahia, Cea-
rá e Santa Catarina). A nossa pesquisa, que ado-
tou o método do estudo de caso, foi realizada
A participação dos cidadãos em dois municípios do Estado do Ceará no ano
no Sistema Único de Saúde do Brasil 2002 24. O estudo foi implementado pela apli-
cação de entrevistas semi-estruturadas aos
Evolução do sistema sanitário principais atores que agem no CMS dos dois
municípios pesquisados: (a) representantes de
Antes da reforma constitucional de 1988, o sis- usuários (12); (b) representantes de profissio-
tema de saúde brasileiro era fortemente cen- nais (4); (c) representantes de prestadores de
tralizado e mostrava pouca atenção às ativida- serviços particulares (4); (d) secretários de saú-
des de prevenção e de assistência sanitária de de (2). Além da entrevista, foram analisadas as
base 22. Em 1986, realizou-se a VIII Conferência atas dos CMS referentes aos anos 1999 e 2000 e
Nacional de Saúde, um evento de grande rele- foi efetuada uma observação direta de algumas
vância nacional, que mobilizou amplos setores reuniões dos conselhos estudados (6). Em se-
da sociedade civil 7. A Constituição Federal de guida, apresentaremos os resultados, organiza-
1988 incorporou grande parte das propostas dos nos seguintes quatro conteúdos: (a) poten-
elaboradas pela Conferência e instituiu o Siste- cialidades dos CMS; (b) representatividade; (c)
ma Único de Saúde (SUS). Em 1990, foram pu- desigualdade de informação entre os represen-
blicadas Leis (8.080 e 8.142) para implementar tantes dos diferentes segmentos; (d) nível de
o SUS e seus princípios fundamentais. Como influência no processo de tomada de decisões.
instância de participação da população, foram
criados os Conselhos de Saúde e as Conferên- Potencialidades dos Conselhos
cias de Saúde. Municipais de Saúde

Objetivos e característica organizativas Em primeiro lugar, a pesquisa registrou um am-


dos Conselhos Municipais de Saúde plo consenso de todos os atores envolvidos so-
bre a importância e o valor social desse fórum
Segundo a Lei Orgânica da Saúde, os Conse- de participação dos cidadãos no âmbito da
lhos de Saúde “atuam na formulação de estra- saúde. Trata-se, na visão dos informantes, de
tégias de política de saúde e no controle da exe- um espaço social “democrático”, “aberto à co-
cução das políticas (...) ocupando-se também de munidade” e “descentralizado”, cujo objetivo é
aspectos econômicos e financeiros” 23 (p. 16). A facilitar o acesso da população, tanto urbana
lei estabelece o caráter permanente e delibera- quanto rural, ao processo de discussão e deli-
tivo desses órgãos. A instância de participação beração sobre assuntos referentes à saúde co-
em nível municipal é representada pelos CMS. letiva. A maioria dos conselheiros entrevista-
São integrados por representantes do governo, dos considera a dinâmica das reuniões do CMS
dos prestadores de serviços particulares ou sem satisfatória por apresentarem “diversidade de
fim lucrativos, dos representantes dos profis- opiniões” e “riquezas em suas discussões”, po-
sionais e dos usuários. Esses últimos dispõem dendo favorecer o “entrosamento” e o “cresci-
da metade dos representantes; a outra metade mento dos participantes”.
é repartida entre os membros das outras cate- Apesar dos significativos avanços alcança-
gorias. dos, os entrevistados assinalaram alguns im-
A nosso ver, a peculiaridade do Conselho de passes no funcionamento e no nível de atuação
Saúde é ser deliberativo, ou seja, participa di- desse fórum de participação social.
retamente no processo de tomada de decisão.

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INSTÂNCIAS COLEGIADAS DOS SISTEMAS DE SAÚDE 2417

Representatividade quisa, realizada em municípios de diferentes


portes e em diversas regiões do país, por exem-
A comunicação entre CMS e comunidade tem plo, apontou como questão crítica referente à
sido apontada como um importante aspecto a atuação dos CMS o nível de autonomia e inde-
ser aprimorado para incrementar o grau de re- pendência dos representantes dos usuários “em
presentatividade desse foro de participação. relação ao saber e poder médicos, geralmente cen-
Nos dois casos cearenses, a maioria dos conse- tralizado na figura do secretário de saúde...” 25
lheiros entrevistados afirmou ser necessário (p. 93). Na mesma linha, encaixam-se os resul-
estabelecer uma relação com a comunidade, tados da pesquisa de Wendhausen & Caponi 29,
tanto anterior quanto posterior às reuniões do realizada em um Conselho de Saúde de um mu-
CMS, com o objetivo de identificar as priorida- nicípio catarinense, em que foi evidenciada uma
des da comunidade, bem como repassar as dis- relação assimétrica entre os conselheiros usuá-
cussões e decisões tomadas nas reuniões. Po- rios e os demais representantes.
rém vale ressaltar que essa identificação de
problemas e o repasse de informações são rea- A voz dos representantes
lizados de “maneira informal”, isto é, depende da comunidade tem influência no
da “boa vontade” do conselheiro estabelecer processo de tomada de decisões?
ou não uma relação contínua com o segmento
por ele representado. Contudo a existência de Uma direta conseqüência da desigualdade de
uma estrutura mais ágil que pudesse apoiar o informação entre os diferentes atores que inte-
trabalho do conselho representaria – como re- gram o CMS é a dificuldade de os representantes
conhecem também os gestores e os profissio- dos usuários expressarem sua voz para poderem
nais entrevistados – um pré-requisito essencial influenciar as deliberações do conselho. Como
para poder estabelecer uma relação mais es- observam alguns informantes, existe uma ten-
treita entre conselheiros e comunidade. dência a uma abordagem técnica nas discussões
Outras duas pesquisas – uma de abrangência dos CMS, em que prevalece “uma fala muito re-
nacional 25 e uma efetuada na Região Metropoli- cheada de tecnicismo” e “pouca praticidade dos
tana do Rio de Janeiro 26 – tinham já tornado evi- assuntos debatidos”. Essa prática, nota um entre-
dente a mesma questão da representatividade. vistado, contribui para “silenciar os conselheiros
de saúde do segmento dos usuários, porque eles
Desigualdade de informação entre nem sempre conhecem esse vocabulário”. Na opi-
os representantes dos diversos segmentos nião de outro informante, a hegemonia da lin-
do Conselho Municipal de Saúde guagem técnica dos gestores e dos profissionais
é o resultado da prática dos Conselhos de enfo-
A concentração das informações nos gestores e car, particularmente, discussões sobre aspectos
nos técnicos, que acabam influenciando as de- técnicos e setoriais dos serviços de saúde, ao in-
cisões do CMS, é uma constante preocupação vés de dedicar mais tempo ao debate de políti-
que tem aflorado durante todo o processo de cas de saúde que poderiam ter um impacto po-
investigação. De fato, vários entrevistados sa- sitivo nos indicadores sociais da população.
lientaram que a participação dos conselheiros Resultados semelhantes foram evidencia-
usuários “é ainda tímida”, visto que a maioria dos em pesquisas realizadas nos Estados da Ba-
não possui uma qualificação adequada para hia 30 e do Rio de Janeiro 26. O estudo de Labra
poder contribuir na análise e na resolução dos & Figuereido 26, por exemplo, demonstra que
temas discutidos nas reuniões, ficando, por- os conselheiros-usuários ainda exercem uma
tanto, muitas vezes, “alheio ao debate” e não influência parcial sobre as decisões do presi-
“expressando a própria voz”. Essa situação des- dente do CMS.
crita não põe em dúvida o grau de participação
dos conselheiros usuários nas reuniões – que é
considerado de bom nível, ao contrário de ou- Análise comparativa dos três
tra experiência internacional em saúde – mas a sistemas de participação
qualidade dessa participação. Reconhece-se,
como já tinham evidenciado outros estudos rea- Com base nos resultados das pesquisas realiza-
lizados no Ceará 27,28, a dificuldade dos conse- das nos três países, propomo-nos a reler algu-
lheiros usuários de aportar suas próprias expe- mas classificações teóricas presentes na litera-
riências e percepções no processo de identifi- tura especializada sobre participação em saú-
cação de prioridades e avaliação dos serviços. de com intuito de aprofundar e problematizar
Estes resultados se encontram em conso- algumas categorias de análise utilizadas nesse
nância com outros estudos nacionais. Uma pes- setor. Para esse fim, analisaremos as seguintes

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três dimensões da participação em saúde: (a) vários autores 3,6,31, a participação dos cidadãos
organização e composição dos órgãos colegia- implica um processo de co-participação nas to-
dos; (b) papel dos porta-vozes dos cidadãos; (c) madas de decisões. Habermas 32 não é da mes-
tipo de abordagem da participação prevista no ma opinião; segundo ele, a formação da opi-
sistema de saúde. nião pública fica descolada dos processos de
No que diz respeito à organização, pode- tomada de decisões. Para Habermas 32, as as-
mos traçar uma primeira diferença entre os fó- sociações da sociedade civil, por meio das esfe-
runs mistos, ou seja, compostos por usuários, ras públicas, podem somente exercer uma in-
profissionais e gerentes, como os colegiados da fluência sobre o sistema para tentar modificar
Itália e do Brasil e aqueles formados somente as estratégias pelas quais são enfrentados os
por representantes dos usuários, como no caso problemas, mas não podem participar direta-
dos CHC da Inglaterra. O sistema misto pare- mente das decisões. No entanto, o modelo de
ce-nos estrategicamente mais vantajoso, uma esfera pública do autor alemão tem recebido
vez que favorece a integração dos diferentes várias críticas. Segundo Fraser 33, a concepção
“backgrounds” profissionais, perspectivas de habermasiana de esfera pública supõe uma se-
análise e experiências, além de representar uma paração clara entre associações da sociedade
boa estratégia para aumentar as possibilidades civil e Estado, e isso tem como conseqüência o
de influir nos gerentes dos serviços. Nesse sen- fato de reconhecer a existência de “públicos dé-
tido, o modelo misto privilegia um processo beis” cuja prática deliberativa consiste, unica-
dialético e a criação de práxis e canais de co- mente, na formação de opinião sem incluir a
municação entre os diferentes atores, a fim de possibilidade de tomar, efetivamente, decisões.
contribuir na elaboração de objetivos coleti- Na mesma direção, Cook 34 afirma que, segun-
vos, favorecendo, por conseguinte, a constru- do Habermas, a sociedade civil pode ter, uni-
ção de um projeto de cidadania ativa. camente, uma influência indireta sobre a auto-
Analisando o papel desenvolvido pelos três transformação do sistema político, já que os ci-
fóruns e a relação que mantêm com as autori- dadãos são relegados à periferia dos processos
dades de saúde, surge outra diferença signifi- de decisão. Essas são somente algumas posi-
cativa. Os CMS são deliberativos, ou seja, co- ções de uma discussão ainda não acabada.
participam diretamente nos processos de to- Uma característica comum às três instân-
mada de decisões. Os CCM são consultivos. Os cias de participação estudadas refere-se ao ti-
CHC são eminentemente órgãos independen- po de abordagem adotado pelo sistema de saú-
tes e de controle. Logo, à primeira vista, a ver- de na relação com os cidadãos. Os usuários dos
dadeira discriminante é o fato de serem admi- serviços de saúde são reconhecidos, não como
tidos na mesa em que são tomadas as decisões. simples indivíduos, mas como cidadãos porta-
Entretanto, não podemos nos deter na análise dores de uma visão coletiva que participam ple-
normativa, pois o exame da organização for- namente nos processos de decisão das institui-
mal das três instâncias de representação dos ções de saúde. Essa aproximação coletiva não é
cidadãos é somente uma premissa. De fato, é um aspecto secundário em um período domi-
importante, também, averiguar, por intermé- nado pelas filosofias “consumistas”, em que os
dio de investigações pontuais, a existência de serviços de saúde são programados para res-
práxis de participação consolidada. A experiên- ponder às demandas e às preferências dos clien-
cia brasileira, por exemplo, não tem demons- tes 3. Com efeito, a participação assume dife-
trado, até hoje, que existam significativas van- rentes significados e implica diversas concep-
tagens pelo fato de os conselheiros usuários ções filosóficas acerca da relação entre estado
participarem num fórum com caráter delibera- e sociedade civil e, no caso específico, entre
tivo. Realmente, os porta-vozes dos cidadãos sistema de saúde e usuários. Tais diferenças
nos CMS, como evidenciaram as diversas pes- são ilustradas pela mesma terminologia usada
quisas apresentadas, encontram-se numa po- para definir as pessoas que utilizam o serviço:
sição de desvantagem em relação aos repre- consumidor, cliente, paciente, usuário, cida-
sentantes dos outros segmentos. Vice-versa, os dão etc. Existe a visão tipo “supermarket”, se-
CCM, ainda que não exerçam um papel delibe- gundo a qual a atenção à saúde pode melhorar
rativo, têm desenvolvido razoáveis capacida- somente na presença de um livre mercado em
des de propostas e de controle da qualidade que os consumidores, individualmente, têm a
dos serviços de saúde e têm exercido, pelo me- plena liberdade de escolher entre os vários pro-
nos nos primeiros cinco anos de existência, dutos disponíveis nas prateleiras; existe, po-
uma apreciável influência nos gerentes. rém, a visão que advoga o envolvimento ativo
Sobre esse ponto – deliberativo ou consul- do cidadão no processo de produção da saúde.
tivo – o debate é ainda muito vivaz. Segundo Nessa segunda direção, inserem-se os fóruns

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de participação analisados que, apesar das li- com os gerentes e, por conseqüência, exerce-
mitações identificadas, têm possibilitado su- riam uma maior pressão e influência. Em ou-
perar a reduzida abordagem individualista. tras palavras, estamos diante de sistemas sani-
tários auto-referenciais e ainda incapazes de
confrontar-se com seus ambientes sociais, ou
Conclusões diante de uma sociedade civil ainda débil e de-
sorganizada, que, até agora, não tem consegui-
Como conclusão, gostaríamos de abordar bre- do expressar formas adequadas de protagonis-
vemente dois pontos críticos que surgiram nas mo social e de participação, para aproveitar as
três experiências analisadas. Em primeiro lu- pequenas aberturas proporcionadas pelos sis-
gar, o problema da representatividade. Não se temas de saúde? Talvez ambas as hipóteses se-
pode falar de representatividade no sentido jam certas. Como explicar, de outra forma, a in-
próprio do termo, por não existirem mecanis- sensibilidade da gerência em relação a algumas
mos formais de delegação por intermédio dos propostas de melhora da qualidade da atenção
quais grupos ou categorias de usuários elejam que não comportavam grandes investimentos
seus representantes. Além disso, é difícil argu- financeiros ou reorganizações radicais do sis-
mentar que tais fóruns possam representar a tema de saúde? Ou, como é possível entender
todos os cidadãos de uma determinada área ou o fato de que a rede de voluntariado sanitário,
a todos os usuários de um serviço, consideran- sobretudo onde está tradicionalmente arraiga-
do a limitada proporção de pessoas que parti- da, não esteja ainda em condição de garantir
cipam ativamente. Por outro lado, é também uma adequada participação nos Conselhos e
árduo falar de representatividade frente a um Comitês de Saúde?
fenômeno social baseado completamente no Pelos resultados das análises empíricas efe-
trabalho voluntário. Trata-se, sem dúvida, de tuadas nos três países, pode-se recomendar
uma representação socialmente relevante, ba- aos órgãos de representação dos interesses dos
seada no significativo papel desenvolvido por cidadãos – deliberativos, consultivos ou propo-
esses fóruns e no importante valor de sua ação sitivos – instaurar relações mais intensas e sig-
voluntária. nificativas com a própria base de apoio; estar
Outro aspecto crítico se refere à capacidade presentes tanto nas instituições sanitárias co-
dos porta-vozes dos cidadãos de exercerem sua mo na comunidade; escutar a voz dos pacien-
influência nos processos de tomada de deci- tes; levantar as necessidades dos usuários e as
sões dos gestores. Apesar de alguns resultados falhas do sistema dos serviços. Dessa forma, os
positivos obtidos pelas instâncias de participa- fóruns poderiam reforçar sua representativida-
ção analisadas, temos observado a persistência de e conseguir exercer uma maior influência.
de certas práticas e atitudes dos sistemas de Deveriam, em outras palavras, desenvolver um
saúde ainda um pouco auto-referenciais. Isso modelo de participação que trouxesse sua legi-
representa, segundo os relatos dos represen- timação, ação e força contratual da relação in-
tantes dos usuários, um fator de desmotivação tensa com os cidadãos 15. Assim, parece-nos
e de afastamento dos porta-vozes da comuni- interessante concluir com as recomendações
dade e das associações que não logram ver re- do Ministério da Saúde brasileiro 35 que opor-
conhecido o valor da própria ação. Contudo, tunamente enfatiza a necessidade de os conse-
há quem – sobretudo na visão de gerentes e lheiros conquistarem a adesão e mobilização
profissionais – inverta essa relação de depen- dos segmentos representados: “as deliberações
dência entre poder de decisão dos órgãos cole- [dos Conselhos de Saúde] somente terão poder
giados e nível de participação, alegando que de mudança para a construção do SUS, na me-
conselhos fortes e mais representativos das co- dida em que as entidades priorizem, na suas
munidades locais conseguiriam, também, mo- agendas de pressões e mobilizações, as delibera-
bilizar e implicar um número maior de porta- ções dos Conselhos” 35 (p. 61).
vozes dos cidadãos no processo de negociação

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Resumo Referências

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Versão final reapresentada em 27/Dez/2005
Aprovado em 21/Fev/2006

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