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31 39 53 79 1 121 15/1995 indice O IMAGINARIO DO IMPERIO Nota do director Juan Gil A apropriagao da ideia de Império pelos reinos da Peninsula Ibérica: Castela Antonio Manuel Hespanha Ascens&o e queda do imagindrio imperial Valentim Alexandre A Africa no imaginério politico portugués (séculos xIx-xx) Maria Irene Ramalho de Sousa Santos Um imperialismo de poetas. Fernando Pessoa e 0 imagindrio do Império Luis Moita Os centros e as periferias na ordem politica internacional Estudos Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gongalo Monteiro Vice-reis, governadores e conselheiros de governo do Estado da India (1505-1834). Recrutamento e caracterizagio social Arlindo Manuel Caldeira Poder e meméria nacional. Herdis e vildes na mitologia salazarista 143 157 17 191 199 Em debate: Abolicionismo (11) Joao Pedro Marques Avaliar as provas. Resposta a Valentim Alexandre Valentim Alexandre «Crimes and misunderstandings». Réplica a Joao Pedro Marques Ensino da Historia Luts Filipe Santos Os programas de Histéria no ensino secundario nas duas tiltimas décadas (1974-94) Leituras Recensées de Mafalda Soares da Cunha, Rui Santos, ¢ José das Candeias Sales Noticias A AFRICA NO IMAGINARIO POLITICO PORTUGUES (SECULOS XIX-XX)* Valentim Alexandre Instituto de Ciéncias Sociais da Universidade de Lisboa A historiografia sobre a questo colonial nos séculos XIX ¢ XX tem sido marcada, nas duas tltimas décadas, por uma reaccao contra a teoria do imperialismo nao econémico, até entéo dominante por influéncia sobretudo do livro de R. J. Hammond Portugal in Africa 1815-1910, que estabeleceu um padrao de interpretagio muito espalhado ¢ muito duradouro do colonialismo portugués: 0 que o filiava, nado cm razées econémicas, nesta perspectiva inexistentes ou de pouco peso, mas num comportamento de tipo nostalgico e sentimental, que viveria do passado, sonhando com a restauragio do prestigio perdido. Refutando esta tese, varios autores tém vindo a estabelecer pacientemente o mapa dos interesses econémicos portugueses ligados as colénias e a medir 0 seu grau de influéncia na politica dos governos de Lisboa. A tais trabalhos cabe pelo menos 0 mérito de demonstrarem que esse € um aspecto da realidade que ndo pode descurar-se — abalando defi- nitivamente a teoria do «colonialismo de prestigio», nos termos em que Hammond a formulava. Mas parece evidente que a simples constatagio de tais interesses nao permite concluir de imediato que eles sao «a forga motriz subjacente 4 expansio imperialista», como pretende Clarence-Smith na sua sintese O Terceiro Império Portugués. «Tal idcia, - escrevi na recensao que dediquei ao livro, — s6 poderia ser eventualmente aceite depois de sopesados todos os factores, de estudadas as condigdes em que surge e se desenvolve 0 projecto colonial para Africa, nas suas varias versdes € nas suas diversas fases € nas suas relagdes, nZo apenas com a economia, mas também com a politica portuguesa no seu todo»!, * Conferéncia proferida no ambito do semindrio O Imaginério do Império, que se realizou de 18 a 22 de Julho de 1994 no mosteiro da Arrabida. 40 Penélope: O imaginario do Império Seguindo a via assim tragada, 0 primeiro ponto que chama a atengio é 0 peso que a questo colonial assume na hist6ria portuguesa dos ultimos dois séculos ~ mais evidente em épocas de crise como o da partilha de Africa (entre varias outras), mas também muito clara nas fases de acalmia, estando sempre presente, nfo apenas num ou outro autor, neste ou naquele texto, mas no conjunto da argumentacio politica, pela relagio estreita que mantém com o problema central da identidade e da prdpria sobrevivéncia do pais. Por isso mesmo, todas as correntes do nacionalismo portugués se defrontam, de uma forma ou de outra, com a op¢io ultramarina. Nesta perspectiva, 0 projecto colonial é irredutivel ao simples jogo dos interesses econémicos - embora também lhe nao seja por inteiro alheio. Tanto a tese do «impcrialismo econémico» como a do «colonialismo de prestigio» parecem prejudicadas, como o estara também qualquer outra explicagao de natureza monocasual que se pretenda sobrepor a um fenémeno to complexo como a expansio imperial em Africa. Por isso mesmo, tentando evitar interpretagdes redutoras, recorremos na nossa andlise ndo ao conceito de ideologia (que temete para um conjunto estruturado de nogdes com um certo grau de coeréncia interna), mas ao de mifo, entendido como modo de apreender a realidade no seu todo, de a pensar ¢ de a sentir, integrando factores econdmicos € nao econémicos e, em qualquer deles, tanto os aspec- tos racionais como os irracionais. Dois desses mitos tero tido um papel central como sustenticulos do projecto colonial. O primeiro deles — a que chamaremos 0 «mito do Eldo- tado» — tem como pano de fundo a crenga inabalavel na riqueza das coldnias de Africa, na sua extrema fertilidade, nos tesouros das suas minas por explorar. Dominante logo nos primciros anos do liberalismo, apés 1834, 0 tema aparece-nos entao em dezenas de artigos, nos periédicos de todas as facgdes politicas, servindo de base a defesa do projecto colonial como via privilegiada para a regeneragio da nagao, compensando a perda do Brasil. Sob formas menos primérias, mais claboradas — voltadas para um Eldorado longinquo, no qual se cumpriria o destino da nagdo, que recuperaria final- mente 0 estatuto de grande poténcia ~, 0 mito persiste ao longo de todo 0 império, ganhando um cardcter estrutural. Um segundo tema ideolégico — que designaremos pelo «mito da heran- ga sagrada» — vé na conservagio de toda e qualquer parcela do territério ultramarino um imperativo hist6rico, tomando os dominios sobretudo como testemunhos da grandeza dos feitos da nagdo, que no os poderia perder sem se perder. Geralmente latente, 0 tema vem A superficie sempre que se configuram casos de perigo e de iminéncia de perda, real ou suposta, de Alexandre: Africa, séculos x1x-xx 41 qualquer das possessdes ou de zonas sobre que se reivindicava a soberania portuguesa, contribuindo para afastar a tentagao de abandono, nfo sé da via colonial em si, mas também de cada um dos territérios em particular, por mais dificil que se afigurasse a sua exploragao ¢ conservagao. ‘Também o «mito da heranga sagrada» tem um cardcter permanente, estrutural, que Ihe resulta da sua estreita relagio com dois elementos de fundo do nacionalismo portugués: a consciéncia, sempre presente nas elites politicas, da vulnerabilidade de Portugal (que as torna especialmente sensi- veis 4s ameacas externas); ¢ sobretudo a ideia, muitas vezes expressa, de que a propria sobrevivéncia da nagio dependia da existéncia do império, como contraponto necessario 4 forga de atracgao da Espanha no conjunto da Peninsula Ibérica. Ligado, como vemos, a uma determinada imagem do pafs, 0 projecto colonial implica igualmente uma certa visio dos povos a ele submetidos (no nosso caso, sobretudo da Africa e dos Africanos), visio de sujeito a objecto, marcada do mesmo modo pelo nacionalismo, que toma modalidades e aspec- tos diversos consoante as conjunturas, flutuando entre o etnocentrismo e formas mais ou menos explicitas de racismo. Durante uma longa primeira fase, que dura até aos anos 70 do século XIX, a imagem das sociedades africanas € profundamente influenciada pela ideologia esclavagista de Antigo Regime — uma ideologia que repousava, em primeiro lugar, na negagao de qualquer vida cultural (ou mesmo, nas formulas mais radicais, de qualquer trago de humanidade) as sociedades do interior da Africa - esse sertdo «sepultado na barbérie», onde «nem a luz da religio nem a da civilizagdo» penetrava, onde era «tudo escravo dos chefes ¢ das paixdes selvagens»; essa «populacdo selvagem», em «estado de grande embruteci- mento», que nao conhecia «nenhum dever social», nem o «sentimento do amor a familia» ou 0 «amor do préximo». Libertando alguns negros deste «mundo primitivo», a compra de escravos no interior — 0 «tesgate», na velha terminologia colonial, que continuava a aplicar-se — teria de ver-se, ao fim e ao cabo, como um acto humanitario, permitindo salvar a vida aos prisioneiros de guerra, aos criminosos, sujeitos a tortura € & morte nas suas sociedades de origem, ¢ submetendo-os a influéncia benéfica da civilizagao. O outro dos grandes temas de ideologia esclavagista estava na natureza que atribufa ao negro em si — pintando-o como ser «essencialmente indo- lente», «inteiramente bogal», dado 4 embriaguez e ao roubo, dotado de uma «grosseira sensualidade» e de uma aversio inata pelo trabalho. Este quadro fornecia as premissas para a concluséo fundamental da teoria: a de que 0 2 Penélope: O imagindrio do Império africano nao se prestava a servir voluntariamente, sendo sempre necessario obrigé-lo «a receber a educagao do trabalho»?, E certo que, a par desta ideologia, uma outra se afirma, tributdria do pensamento iluminista, que vé na escravatura uma instituic¢do altamente maléfica, a abolir logo que possfvel, e nos Africanos seres decerto atrasados, devido a circunstancias hist6ricas acidentais, mas capazes de progredir e de se integrarem como cidadaos no corpo nacional. Mas esta corrente — perso- nificada em S4 da Bandeira - é extremamente minoritaria durante a maior parte do século XIX: s6 na década de 70 se detecta uma viragem, com a emergéncia de novas elites politicas e intelectuais que, mais abertas aos ventos do exterior ¢ mais conscientes da necessidade de modernizar os processos de explorago colonial, viam na persisténcia dos factos de escrava- tura uma mancha na imagem de nagio civilizada e europeia que queriam para Portugal. Miraculosamente, 0 «lundtico» $4 da Bandeira dos anos 50 ¢ 60, geralmente atacado pelas suas «manias» filantrépicas, vé-se agora recu- perado como simbolo ¢ testemunho dos sentimentos anti-esclavagistas do Pafs: ele € 0 «Wilberforce portugués», «infatigavel paladino da liberdade», atacando «em suas tiltimas fortificagdes a ideia velha, que permitia a escra- vizagio do homem pelo homem». Tendo como seu principal expoente politico o ministro Andrade Corvo, que é também o seu teorizador mais importante, esta nova tendéncia ganha expresso juridica com a aboligéo do trabalho servil nas colénias decretada em 1875 — a primeira medida abolicionista promulgada pelo parlamento liberal portugués (todas as outras haviam emanado do poder executivo). Mas 0s seus efeitos sao, em fim de contas, superficiais: preocupados em primeiro lugar com a imagem e a retérica, essas mesmas clites deixam subsistir quase sem resisténcia formas de trabalho forgado préximas da escravatura. E sobretudo, 0 impulso humanista e liberalizante esgota-se rapidamente, afectado pelas pressdes nascidas da partilha de Africa e pela forte reacgo nacionalista por elas provocada em Portugal. Neste contexto, 0 «mito da heranga sagrada» ganha novos contornos, passando a justificar, nado apenas a conservagdo dos antigos territérios colo- niais, mas também a expansao para zonas até entdo nao ocupadas, a partir de uma perspectiva maximalista para a qual toda a regiao do Congo ¢ ainda outras vastas terras de Africa estavam naturalmente votadas ao dominio portugués, por direito de descoberta ¢ pela influéncia af exercida histo- ticamente. Assim tomava corpo 0 novo mito: a cspoliag¢ao do império por parte da Gra-Bretanha. Alexandre: Africa, séculos xix-xx B As mesmas pressdes externas, em particular o Ultimatum britanico de 1890, contribuem decisivamente para sacralizar 0 império: j4 actuante, como referimos, nas décadas anteriores, 0 «mito da heranga sagrada» alcanga agora um predominio avassalador, derrotando em definitivo as correntes mais pragmiticas que aceitavam a recomposi¢a’o € mesmo a redugao do territério imperial. Doravante, 0 projecto colonial é o elemento central do nacionalis- mo portugués, remetendo-se a sua eventual contestagdo para a categoria ético-juridica da traig&o a patria. A mesma crispagao atinge a questo racial: contra os poucos que pre- tendiam ver no indigena o melhor «aliado» de Portugal em Africa, vai impor- -se a opinido dos que preconizam a ocupagao militar através de uma «guerra de terror ¢ de exterminio cuja meméria se conserve por muitas dezenas de anos como tradigio de pais para filhos». Por outro lado, a modernizacao toma um novo curso, pondo de lado o humanitarismo liberal dos anos 70, tido agora por ingénuo e utépico, e por isso pouco eficaz, e rendendo-se ao «darwinismo social», 4s novas formas de racismo «cientifico» em voga na Europa. Torna-se corrente falar em ragas superiores ¢ inferiores, dominantes e dominadas (estando estas tltimas destinadas a desaparecer, nas versées mais radicais), adoptando-se como critério de hierarquizagio um certo nt- mero de indices elaborados pela antropologia fisica, nomcadamente os que tendiam a relacionar a conformagao do craneo com as capacidades intelec- tuais. Pretensamente cientificos, tais indices permitiriam chegar 4 conclusaéo de que o negro ocupava na escala animal um lugar intermédio entre o homem e o gorila. O melhor exemplo desta perspectiva encontramo-lo em Oliveira Martins, um dos primeiros e decerto o principal teorizador do «darwinismo social» no nosso pais, num texto retirado do seu livro O Brasil ¢ as Colénias Portuguesas’: “Sempre 0 preto produziu em todos esta impressio: é uma crianca adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza prépria das criangas nao Ihe faltam; mas essas qualidades infantis nao se transformam em faculdades intelectuais superiores. Resta educd-los, dizem, desenvolyer e germinar as sementes. «Nao haverd, porém, motivos para supor que esse facto do limite da capacidade intelectual das ragas negras, provado em tantos e tao diversos momentos ¢ lugares, tenha uma causa intima e constitucional? Ha decerto, abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropolo- gicamente inferior, nao raro préximo do antropéide, e bem pouco digno do nome de homem. A transigéo de um para 0 outro manifesta-se, como se sabe, em diversos caracteres: 0 aumento da capacidade da cavidade cerebral, a diminuigao inversamente relativa do craneo e da face, a abertura do Angulo 4 Pentlope: O imagindrio do Império facial que dai deriva, ¢ a situagao do orificio occipital. Em todos estes sinais 0s negros se cncontram colocados entre o homem e¢ o antropéide». No fundo, estamos perante os velhos estercétipos da teoria esclavagista tradicional, agora revestidos das novas roupagens «cientificas» exigidas pela modernidade. Assim como outrora a imagem que se transmitia do negro servia para justificar o trafico de escravos ¢ a escravatura, também o racismo «cientifico» facilitava a Oliveira Martins a defesa de uma politica colonial «sem escriipulos, preconceitos nem quimeras» (nas suas préprias palavras)* contra a «filantropia» utépica do humanismo liberal. Esta forma de racismo estreme encontra um terreno particularmente favorével na geragio que, ao dobrar do século, vai dar os primeiros Passos para a ocupagio militar dos territérios ultramarinos. A ideia da inferioridade inata ¢ imutavel do negro serve, nomeadamente, de suporte a uma teoria da «sujeig¢ao» implicita em muitos textos da época e formulada abertamente por Eduardo da Costa, ao tempo acatado como o principal doutrinador dentre os militares da geragio de 1895. Reagindo contra 0 «assimilacio- nismo» que, a seu ver, teria caracterizado a politica colonial portuguesa no século XIX, Costa preconiza a instauragdo de um «regime despético ate- nuado» nas possessdes, com a concentracio de todos os poderes nas maos do ministro € dos governadores, devendo os indigenas ser regidos por um estatuto especial que tivesse em conta a sua situacio e as suas faculdades. «As razdes antropolégicas, as razdes sociais, ~ escreve, valendo-se da auto- tidade de Oliveira Martins, entre outros, - mostrando a disparidade de caracteres étnicos, de usos ¢ de instintos e a inferioridade manifesta do selvagem, evidenciam a necessidade de aplicar diferentes sistemas de gover- no a ragas tao diversas e de manter nas mios dos mais civilizados, como dos mais dignos, a tutela dos mais selvagens ¢ primitivos, como de uma classe desgragada ou incompleta da sociedade humana»’, Também a educagaio deveria ser diferenciada, ndo apenas nos meios, mas nos préprios fins: no cabendo ao «indigena» mais do que o papel de «auxiliar» do colonizador, como trabalhador e operario, a sua instrugfo deveria ter um cardcter pro- fissional, em escolas primérias agricolas ¢ de artes ¢ oficios®. Quanto as misses — cuja accio podia prejudicar o dominio portugués, por dar aos negros os «sentimentos de prépria dignidade e da liberdade do seu corpo e do seu espirito» -, competir-lhes-ia compensar esse risco, incutindo aos Africa- nos que convertiam o «respeito pela nacio dominadora» e edificando-os «nas vantagens que, do seu dominio, resultam para o pais e civilizag3o a que pertencem»’,

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