You are on page 1of 24

MANIFESTO DO HISTORIADOR ANDARILHO: ROTEIRO DA

OBSERVAÇÃO HISTÓRICA.
Roberto Pocai

“Marcando os momentos que formam um dia monótono


Você desperdiça e perde as horas de uma maneira descontrolada
Perambulando num pedaço de terra na sua cidade natal
Esperando alguém ou algo que venha mostrar-lhe o caminho”
(“Time” - Pink Floyd)

RESUMO: Esse artigo tem por finalidade discutir diversos elementos da


prática do ofício do historiador. Além de simplesmente membro da academia
e frequentador de acervos, o historiador vive. Mas se discutimos os critérios
dessa prática, precisamos ir além disso, e definir novas formas de abordar
as heranças e as rupturas trazidas no tempo. Formar a subjetividade a partir
do cotidiano da observação histórica, conceito discutido aqui com a
intenção de proporcionar uma nova forma de entendermos os métodos
usados pelo historiador.

Viver a História. Além do hoje, além do agora, o sentido dessa frase não fica no
presente1. Independente da forma como ela é pronunciada por nossa boca, a musa dos
tempos torna o passado vivo. Os critérios que ficam aos nossos olhos não proporcionam
um sentido por si só, caminhando com o presente ele não se coloca apenas como um
relicário ou um conjunto de antiguidades, ela vive em nós. Enclausuramos suas imagens,
em museus, entre quatro paredes, justificamos nossas atitudes dizendo estarmos
preservando as fontes para produzirmos artigos científicos em prateleiras de antigas
biblioteca, mas...
O tempo não para...
E este é um artigo que relata um historiador que anda por aí 2.

08 de setembro de 2007.
A rua3. O historiador saía do acervo na sede do Museu. Fechavam-se as portas do
expediente matutino do acervo histórico e abria-se um encontro do velho com o novo. E
eis que em tantas vidas, em tantos acasos se encontrando, o historiador procura ordenar

1 A História é um relato do passado? A História, na realidade, é uma viagem, do presente para esse
passado. O que estudamos? Os homens, as mulheres, em sociedade no tempo. O historiador se
transplanta de sua realidade e investiga o que já ocorreu, suas dúvidas partem de seu presente, logo a
História não é passado. Ela é um problema, cercado de dúvidas, dela usamos as fontes, os documentos
que registram os fatos, mas também a imaginação para falar do ocorrido. Você, historiador, o seu “EU” é
quem escreve a História. Todos gostam tanto de Marc Bloch, mas será que ninguém nunca leu sua escrita
de tal forma nas entrelinhas?
2 Diversos elementos inspiraram essas trajetórias, alguns deles serão referenciados aqui. (LINKLATER,
2001).
3 Uma agenda de repente passa a registrar fatos, já não serve para simplesmente marcar compromissos.
Uso como fonte minhas anotações contidas em um caderno de campo que inicialmente era minha agenda
apenas para marcar compromissos (POCAI FILHO, 2007).
tudo a seu modo, a sua maneira.
Essa História fora do Museu é como aquela contida dentro do próprio Museu. Um
antigo prédio, que antes funcionava como Banco, agora tem seu reuso para outra
finalidade, a finalidade do resguardo da memória 4. Um conjunto de peças, que para
muitos são quinquilharias ou coisas velhas. Na rua o historiador se vê em outra
oportunidade, uma oportunidade não tão intelectual formada pelo encontro de diversos
personagens, diversos objetos que nem sempre estão ordenados um ao lado do outro,
mas sim estão em conflito. O conflito do velho com o novo.
Fora dali lhe compete um quadro vivo da sua profissão, uma atividade que serve para
justificar sua existência não apenas sobre passado, mas no presente em que vive. A
mudança e a permanência são fatores da existência do historiador. Essa História da qual
falamos não se resume nas delimitações das paredes de um Museu.
Um mundo de História, construções que caem, construções que se erguem, e, pois,
que a vida das pessoas se revela não apenas em preservar o “antiquado”. Naquela
manhã, a rua era o espetáculo, o grande
espetáculo do caos, entre buzinaços e roncos
de motor se prestava atenção também nos
diversos discursos. Meados de 2009, numa
manhã em plena rua XV de Novembro mais
uma vez o horizonte nublado do céu de Ponta
Grossa inspirava o humor do povo ponta-
grossense.
As imobiliárias tomavam conta do térreo
dos prédios, emaranhados de fios de luz
Ilustração I: imaginando o cotidiano, Rua XV de
contemplavam a parafernalha tecnológica - Novembro, década de 1940.
cruzavam a rua de ponta a ponta até o fim da rua - e então que toda recordação do lazer
princesino durante a década de 1930 descrito nas páginas dos jornal Diário dos Campos 5

4 O tempo se constrói como um edifício, entretanto também pode ser expressado na derrubada de uma
antiga construção. Este artigo tem por objetivo abordar as diversas formas de utilização da observação
histórica para a pesquisa do historiador. Nesse caso, indicativos do tempo são perceptíveis nesse processo
de olhar a rua. Esse processo não coloca apenas a possibilidade de uma observação da cidade e de suas
construções pelo presente, mas sim, uma oportunidade de estabelecer uma ligação desse presente com o
passado. O tempo não é objeto, aqui ele é representado, criado, como produção social. Os vestígios do
tempo se seguem também numa observação histórica sobre o abandono, sobre o esquecido e até sobre o
apagado. Por que foi apagado? Um encontro entre o novo e velho no palco que são as nossas cidades. O
espetáculo de objetos antes considerados imóveis agora são percebidos como o que também são. São
objetos de reação, de sentimento, de valores, pesados a todo instante na dinâmica social - História.
5 Não digo ter vivido, mas lembro ter lido. Naquele antigo palco da sociabilidade princesina, durante a
década de 1930 foi descrita nos periódicos locais como incrementada pelas confeitarias, pelos cafés e pelos
cinemas, rodeado de postes onde a energia elétrica – naquela época - simbolizava o “progresso” e o onde
pessoas – muitas, por sinal, elegantemente bem trajadas - praticando seu “footing-noturno” encenavam a
era transmutada com a paisagem do presente 6. Aquela antiga sociabilidade aparece um
tanto apagada ou, pelo menos, diminuta. Ninguém para nas ruas, o café agora é tomado
às pressas pelo engravatado que adentra o arranha-céu do edifício. O ritmo de uma rua
que se deflagrava por suas mudanças, ali se apresentava o palco dos promotores
imobiliários na fachada de um verdadeiro centro comercial.
O antigo comércio sírio-libanês do início do século não tinha muito a ver com tudo
aquilo – e até por isso, anos antes fora abandonado, aquele ponto na esquina tinha sido
desocupado comercialmente e se tornara abrigo de mendigos e portadores de
entorpecentes durante as noites. Essa foi a justificativa para sua derrubada, ocasionada
logo depois de um incêndio mal explicado e criminoso 7 – algum interesse existia naquele
fogo e foi o que ocorreu, quem saiu ganhando foi o discurso dos imobiliários.
Minha caminhada pelas ruas ocorreu
ainda antes do incêndio. Minha espreita
naquela manhã pôde escutar dois
analistas de imóveis conversando e um
deles apontando a construção e dizendo:
“quem era contra a derrubada daquele
troço ali era contra o progresso de Ponta
Grossa”, ali o discurso era a mudança.
Frieza: hoje o lote do antigo prédio

Ilustração II: Comércio Sírio-Libanês


derrubado cede lugar a um estacionamento
murado que silencia uma História. Reescreve-se
sobre o passado, um corretivo descara a cobiça
pela modernidade.
A linguagem, o tom como ela é pronunciada, o
seu emissor determinam as relações de poder,
entre a construção de valores, casas revestidas de
arquitetura barroca, arranha-céus, mas num
Ilustração III: A atual rua XV
mundo industrializado se aproveita o tempo para o trabalho, tudo que possui uma
“civilidade” do povo de Ponta Grossa (CHAVES, 2001). Cerca de quase 80 anos depois, pude ali participar
de um outro cenário diferente do descrito, mas portado dessas palavras – no caso, reproduzidas entre
aspas – que incorporavam um discurso bastante parecido.
6 E nas faculdades, todas as escolas históricas repetiam as palavras dele, para se fazer História: “uma
primeira condição teve que ser cumprida: observar, analisar a paisagem do hoje” (BLOCH, 2001: 67).
7 [todos podem ter esquecido, mas eu prefiro não esquecer os crimes contra a História de um povo].
tonalidade de cultura é considerado atrasado. O agora define que grandes executivos
possam estacionar lado a lado seus carros. Assim a História continua, sendo escrita ou
sendo apagada com um grande corretivo.
Se farejamos essas mentalidades, percebemos uma História que se constrói sobre o
que deveria ser apagado. Tijolo a tijolo, é de tal forma que presente sobrepõe passado, é
em tal sentido que a frase do promotor imobiliário, uma citação sem referência, sem estar
gravada, ela é aqui colocada e pode nos fazer refletir sobre diversas frases pronunciadas
ao vento caoticamente e como elas influenciam o espetáculo da sociedade do hoje 8.
Observação histórica. Entre método e escrita, todo processo de conhecimento se
completa entre os olhos, a cabeça e o punho de quem escreve 9. Um novo modelo de
escrever a História, então? Na realidade, não é algo novo, são outros formatos que
permitem identificar velhos problemas. O método aqui se define pelo encontro com o seu
objeto, o olhar sobre ele. “Uma ciência, entretanto, não se define apenas por seu objeto.
Seus limites podem ser fixados, também pela natureza própria de seus métodos. (...) A
observação histórica” (BLOCH, 2001: 68).
O ato de observar não é algo novo, é algo natural. O olhar é algo tão natural quanto a
imaginação, mas de que forma isso tem sido incentivado? Ou melhor, essa imaginação
tem sido incentivada ou foi simplesmente exorcizada das chamadas “práticas científicas”?
A discussão com diversos autores, de diversas áreas, não está baseada em qualquer
linha teórica, muito menos em qualquer rixa acadêmica incentivada por quaisquer
“mestres”10, qualquer polêmica aqui intensifica a discussão que muitas vezes foi sepultada
dentro de alguns grupos de pesquisa 11. Este artigo, além de incentivar a imaginação na
observação do historiador sobre o passado, possui como fonte os cadernos de campo

8 ‘’Os historiadores devem estar atentos não para as causas dos fatos, tomadas como sendo um evento
anterior que se desdobra e continua em um posterior, mas para a multidão de elementos que se aproximam
e se cruzam num dado momento e que resultam em acontecimentos’’ (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2010 ).
Nunca o historiador esteve tão próximo da Teoria do Caos, fazendo isso, ele se distancia das fontes por
alguns segundos, mas seu desvaneio procura um sentido para o ocorrido. Escutando atrás da porta ou
sentado nos bancos da Rua XV, entre o caos visto na prática humana e a ordem mantida apenas no
discurso ele consegue observar entender facilmente o porquê de uma cidade não sentir atrativo em
construções antigas. Muito mais fácil do que recorrer a documentos também antigos ou a entrevistas em
que a população estaria precavida e com receio em falar disso. Dá pra ver claramente porque os
historiadores não são e nem querem ser vanguarda.
9 Ler, e eis que a observação coloca a História além do papel, além dos documentos escritos, além da
intelectualidade que se blinda no mito do academicismo, esse verbo transitivo direto proporciona a
interpretação não somente do que é cômodo, mas também da realidade social; Escrever, o exercício que
acaba materializando o vivido em caracteres, em linguagem, é sobretudo o desafio do autor em se
demonstrar enquanto sujeito, sua imaginação acaba exibindo seus significados.
10 [a minha vida acadêmica sempre valeu muito mais do que qualquer compra de briguinhas parisienses].
11 [medo. Esse é o sentimento que se enclausura naquele círculo de carteiras que deseja basear o ofício do
historiador em bolsas de iniciação científica, lucros com a “ciência” e o não-incentivo da criatividade por
parte de seus integrantes. Ficamos presos ao conceito de micro-história exportado da Itália, mentalidades
vindo da França, história social vinda da Inglaterra e não vemos ninguém criar algo novo e quando isso
ocorre o seu inventor é enxotado de alguma forma. Medo.]
que tive comigo.

I. Entre as ruínas, como temos tratado os ambientes da História.

“os estudos históricos (…) nos desafiam, ante um trecho


da história, a vida de um povo (…), a imaginar um
horizonte bem definido de pensamentos, uma força
definida de sentimentos, o predomínio de uns, a retirada
de outros. O senso histórico consiste em poder
reconstruir rapidamente, nas ocasiões que se oferecem,
tais sistemas de pensamento e sentimento, assim como
obtemos a visão de um templo a partir de colunas e
restos de parede que ficaram de pé. Seu primeiro
resultado é compreendermos nossos semelhantes como
tais sistemas e representantes bem definidos de culturas
diversas, isto é, como necessários, mas alteráveis. E,
inversamente, que podemos destacar trechos de nosso
próprio desenvolvimento e estabelecê-los como
autônomos” (“Humano demasiado humano”, Nietzsche)

Nosso desafio, historiador. E eis que esse personagem assume um comprometimento


entre os escombros de uma fábrica abandonada, ele repara nos sentimentos das
pessoas, ele procura o antigo observando o que está morto na atualidade. A cidade
cinzenta se colore.

20 de janeiro de 2010
Crianças brincam de se esconder ao redor das suas ruínas, o pilar-mestre é onde elas
“se batem” quando são encontradas... Fazemos a vida sobre esses escombros, a
atualidade descreve a História da infância. E eis que a construção da infância se
desenvolve entre aqueles escombros, contraditoriamente, uma História não se torna
superior a outra, ambas se tornam, sim, simultâneas. O historiador que subia pelo outro
lado daquela rua de calçamento desvendava não somente a História dos outros, mas
rememorava a sua própria infância 12.
A ruína era um antigo matadouro. Cerravam-se as portas, a concorrência com um
monopólio decretava o fim de suas atribuições industriais, começava a brincadeira. O
sistema econômico que vivíamos baseado na propriedade privada dos meios de produção
ali não fazia diferença, era como se ele nem existisse para a inocência daqueles
pequenos seres – a infra-estrutura era um jogo. A propriedade era comunal, todos
12 [rodas de crianças em volta de uma velha, um fogão a lenha, uma casinha de madeira, o cheiro de
comida caseira competia com um outro sabor. Humildade, era o pouco mas o muito que a nona nos dava.
Tudo ela sabia, e nem sempre eram histórias reais, eram lendas, fábulas, mas que por mais ficcionais que
fossem acabavam produzindo em nossas cabeças valores, coragem e vontade de encarar o mundo lá fora].
Que lição a História deixa para as crianças? “Querer bem a um filho não significa fazê-lo viver com nossas
verdades, querer bem a um filho significa apenas ajudá-lo a crescer sem nossas mentiras” (LEDESMA,
2000).
brincavam, e o historiador lembrava de uma outra infância. A sua infância intelectual, das
leituras que o proporcionaram argumentos críticos e criaram um mundo de sonhos em
volta da realidade. Então, tudo é um processo de desconstrução e construção, como se
das ruínas de nossas vidas pudéssemos absorver o entendimento de nós mesmos, do
que criamos para nós, aí está simultaneidade dos tempos.
Mas o mais importante é perceber que a realidade sobrepõe a teoria, os sonhos que
absorvíamos dos livros não são superiores aos sonhos de brincar. Existe sempre algum
tipo de utopia que nos move. O encontro daquela modernidade industrial decaída e a
ciranda infantil em movimento e em torno daquele mundo de se fazer criança são a
grande lição que o historiador leva em sua bagagem. Ele observa o mundo e descobre
que não existe um manual do “ser historiador”, assim como não existe um manual escrito
de “esconde-esconde”, a informalidade marca todas as cidadezinhas em que existem
crianças que um dia brincaram daquilo um dia. A brincadeira não possui um manual, não,
definitivamente a prática se torna muito mais versátil quando reinventada diversas vezes e
infinitamente. O ser historiador precisava entender seu ofício da mesma forma.
Andamos pela baixada da cidade. Qualquer
casa dita “histórica”, restaurada e tombada
proporcionaria um elemento fácil a nossa
memória. Mas e a imaginação? O vazio é
inspiração, uma fábrica abandonada produziu a
oportunidade de entender o espaço das
máquinas, as janelas pequenas... Essas foram
o grande elemento que me fez entender a
lógica de uma fábrica. Os operários, que antes
viviam num mundo rural, de repente se tornam
obrigados a se desligarem do tempo da Ilustração IV: Ruínas
natureza, passar a adentrar por aquelas portas, não viam a sombra das árvores, não viam
as folhas caindo, não viam a posição do sol. Apenas viam um grande relógio que marcava
em seus ponteiros o que eles deveriam fazer: trabalhar.
Vidros quebrados, paredes derrubadas, por que aquilo que não foi tombado como
patrimônio? Lugares onde sonhos foram suprimidos, desejos foram vencidos. Os
vencedores da História tem vergonha, medo de preservar esses lugares. São eles em
seus gabinetes que negam essa possibilidade. A pergunta é: por quê?
Lugares que ficam na memória de uns e no esquecimento da maioria. Lugares
carregados de uma energia que provoca a eles outro reuso, não são museus, seus
frequentadores são excluídos do sistema assim como esses ambientes, o personagem e
o palco se completam e o uso de entorpecentes é o único aproveitamento que se faz
daquelas ruínas. Percebe-se ali a realização do mito da caverna moderno, a vida dos “de
fora” continua. Lá dentro as expressões são percebidas, cicatrizes, olhares distantes,
roupas rasgadas, tatuagens de cadeia, essas são as marcas de outros museus, seus
corpos.
Uma sociedade que não vive de lugares da História, os fecha. Esses logo são
reutilizados. Mas a questão é: e se tivéssemos aproveitado aqueles lugares? Se deles
fizéssemos alguma coisa? Será que esses seres noturnos não estariam incluídos na
sociedade por meio da cultura? Ou será que é mais útil que além de excluirmos eles,
esquecermos que eles consomem cola de sapateiro e pedras de crack 13?
Os operários que não se manifestam por “documentos históricos” não possuem seus
espaços preservados. Os excluídos que não são relatados em “documentos históricos”
conquistaram aquele espaço vazio não aproveitado por nós. Como uma tribo que
conquistava uma planície, aquele era o seu patrimônio, pouco importavam as grandes
construções, as praças arborizadas e os valores lá fora, aquele lugar não estava entre
lagos e capões – as paredes pichadas e o cheiro da privada era algo muito presente. A
alternativa aqui colocada é outra. A nossa observação histórica deve procurar outros
vestígios, outros testemunhos14.
O espírito daquele historiador que se reserva unicamente em acervos e direciona seus
olhos aos museus infelizmente é fraco, ele produz uma História que interpreta mas não
interfere. A História tem de ser presente, não podemos deixar de procurá-la no mundo lá
fora. Esse historiador, de repente, se torna obrigado pela realidade a mudar de ideia, ele
anda pelas ruas e percebe que não são apenas os processos de higienização e
catalogação de documentos que permitem ressuscitar o que antes estava morto e
esquecido no tempo. Esse pesquisador também não é mero invasor de ruínas, ele
procura o conflito do velho com o novo, os antigos cortiços sendo derrubados vizinhando
a arquitetura moderna dos arranha-céus.
E isso não ocorre apenas nas grandes cidades ditas “históricas”. Experiências nos
cruzam e oferecem outras oportunidades, outras lições, como se os conhecimentos
científicos se colocassem a prova em qualquer momento. Como se a aula fosse dada
mesmo sem procurarmos ela.

13 A cultura é consenso, a cultura inclui. Mas a História cultural não pode dizer outra coisa dos poderosos.
Esse é o legado que eles deixam ao assumir o poder.
14 Para contar a História deles, não precisamos procurá-los no relato dos vencedores.
05 de Julho de 2010
A História volta a ser uma viagem... Volta a se expressar e logo meu mundo das ideias
se torna pausado, o punho não é comandado pelo cérebro maquiavélico 15. Somos
contemporâneos de nós mesmos,
criadores da própria História. As heranças
que ficam se encontram com esses
obstáculos das distantes novidades. Me
torno coadjuvante do espetáculo cultural,
o cheiro do povo adentra aquele ônibus
que corta o antigo Sertão do Paraná. A
paisagem que se corta de uma lado a
outro da estrada são pequenas
propriedades rurais, interrompidas pelo
tom de urbanismo tímido do pequeno
comércio e pelo majestoso silo da
Cooperativa. Outros personagens entram
em cena, operários cooperados, chapas
carregadores dos caminhões, donas-de-
casa, costureiras, pedreiros, colonos,
Ilustração V: Relato de 05 de julho de 2010
contrabandistas e um bêbado... Enfim, o povo.
Os holofotes estavam apagados, sequer existiam, apenas o sol quente iluminava os
assentos mofados daquele veículo. Mal sabiam eles de um espectador silenciado
aguardando o ato principal. Uma cena nada comparada a um ato épico então ocorre, a
realidade apresentava mais um de seus episódios. Sentado escutava o espectador como
se estivesse atrás da porta. A masculinidade era representada pela boca daquela que por
ela era mais afetada, o mundo da repressão era silenciado até aquele momento naquele
mundinho esquecido economicamente e academicamente pelo resto do Paraná.
O pranto de uma lavadeira ao encontro da mãe, separações de casais nem sempre
são registradas em papeladas de cartório, naquele momento se ritualizava a desistência
15 [é, lembro daquele italiano, deve ter sido amigo de outras datas pois em espírito também é presente.
Estrategista militar, entendedor do animal político, planejador, filósofo, muitos eteceteras, mas sobretudo
historiador. Me remeto a parar com aquele “e agora, será que vão gostar dessa parte? Será que isso é
científico? Será que minha veia artística está exposta? Será que isso conta pontos pro meu currículo
Lattes?” Simplesmente escrevo, sem maldade – cesso um pouco essas reações pautadas em inseguros
questionamentos. Me sinto muito a vontade de estar escrevendo assim, sem esperar nada em troca, não
dedicaria minha obra a qualquer estadista florentino, essas linhas partem de uma interpretação do todo e
não são nada. Pelo menos admito isso, e quantos pesquisadores faltaram nessa lição que a vida nos
proporciona a todo o momento? Uma nota de rodapé a Maquiavel].
do casamento em uma poltrona do ônibus. O conceito tradicional de família sagrada que
queria ser imortalizado naquele escapulário era rompido. O povo é consagrado com a
própria versão da História, com sua própria “verdade” construída, mesmo que essa não
tenha sido gravada em fita ou digitalmente, ela acontece dia a dia 16.
O mundo do trabalho é a realidade daquelas mãos calejadas e enrugadas pelo contato
com sabão em pó que ela chamava de “Rinso” 17. Trágico?! Real. A vida é apenas
registrada e representada no ouvido e na memória do pesquisador. Enquanto a mulher
contava que “lavava pra fora”, a figura do marido é representada como um mecânico com
carteira assinada. Era relatado como homem que desprezava a própria mulher por “botar
comida na mesa”, isso apesar de suas eventuais faltas, pois acusado ele foi de gastar o
dinheiro do ordenado em “cervejadas” e na “zona”. Muitas vezes o salário da diarista
bancava as despesas.
Os valores eram rompidos. Ambientes tomavam o tempo do lazer do trabalhador, a
igreja foi esquecida, sua dedicação não era aos filhos, não era para a mulher. O ônibus
chamado de “pinga-pinga” fez uma de suas inúmeras paradas, numa delas desceram
várias pessoas em frente a um “secos & molhados”, do outro lado um grande mercado,
uma concorrência desleal (?!). Sentado numa cadeira de palha, um velho caboclo que o
pessoal diz ter “pele cor de cuia” fumando um popular “paiero” escutava uma música num
radinho a pilha. A letra em primeira pessoa falava de um trabalhador que apesar de comer
pão com mortadela no serviço se esforçava para dar aos filhos a mulher um “franguinho
na panela”. Enquanto isso, um gurizinho cantava outra música lá na frente que não me
marcou muito pelo ritmo, por esse parecer igual ao de muitas outras canções que
misturavam uma rancheira (“batidão”) com o country estadunidense, mas pela letra. A
composição da canção abordava o cotidiano de um “peão” que se auto-declarava
“safado”, mas sua condição trabalhista era um tanto questionável por se tratar de um
portador de uma grande caminhonete que passava por cima da cerca de sua propriedade,
conhecido por fechar bordéis e “quebrar tudo”.
Fronteiras, próximas mas que dividem, subsistem num mesmo tempo, num mesmo
lugar. Mas o que é o tempo, o que é o lugar? A duração de uma viagem de ônibus ou a
paisagem que se desloca pela janela 18. Fronteiras essas que se encontram em qualquer
16 [poderia tê-la entrevistado, entretanto ali não era pertinente e o gravador retirado da mochila poderia
constrangê-la. O “escutar atrás da porta” nem sempre é considerado um método para a História e pouco foi
incentivado até hoje. A presença do historiador nessa circunstância comunga de forma interessante com um
dos ramos da antropologia: a etnografia. A todo momento essa metodologia propõe um encontro com o
“outro”. Se torna necessário estar perante esse outro não porque somos o intelectual, mas sim porque
somos o indivíduo, devemos saber criar nossas ferramentas constantemente, isso é metodologia. Não
prever nada, apenas registrar o acontecimento da forma como ele ocorreu, espontaneamente.
17 No sul do Brasil o sabão em pó é popularmente chamado assim, a marca imortalizou o produto.
18 [qualquer viagem bem acompanhado, por mais longa que parecesse se esfacelava como um mero
lugar, seja naquela cerca de taipa, de madeira ou de arame-farpado. Mas existem outras
fronteiras que criamos, todas simbólicas, ainda existe uma que no caso está entre essa
imagem do homem mateiro do interior e o mestre vestido com sua intelectualidade –
sinceramente, preferi me despir dela. Pelo contrário, num mundo onde caem árvores e
crescem prédios, as fronteiras estão ainda mais rígidas. Continuamos os mesmos ou
estamos um pouco mudados? O importante e conseguirmos dialogar, assim como aquele
caboclo, que está do outro lado da cerca e procura conhecer o que está além de suas
fronteiras. A História nesse momento deve reconhecer seu papel, estar mais uma vez
entre as rupturas e as permanências, estar entre os muros, as delimitações que o povo
construiu, ela pode acabar mesmo involuntariamente destruindo-as.

II. Pedreiros construindo a própria História

Quem construiu a Tebas das sete portas? (...)


Nos livros constam nomes de reis.
Foram eles que arrastaram
os blocos de pedra? (…)
Filipe da Espanha chorou quando
Na noite em que se
sua Armada naufragou.
terminou a Muralha da China
Ninguém mais chorou? (…)
Para onde foram os pedreiros? (…)
A cada dez anos um grande homem.
Quem paga suas despesas?
(“Perguntas de um trabalhador que lê”
de Bertold Brecht)

As marteladas que damos em nossos notebooks se


confundem com as marretadas que escutamos nos
prédios que nos rodeiam. Os pobres não são
esquecidos pela História oficial, são censurados.
Censurados no presente e para as gerações futuras,
somente são citados por aqueles que puxam a tradição
historiográfica francesa, italiana ou inglesa quando Ilustração VI: Imigrantes russos em um
campo de cevada
justificamos algum modismo. Fazemos a História da
gente comum sem olhar a nós mesmos, historiadores latinos se afundando em ilusões
acadêmicas de Primeiro Mundo.

consenso. Em algumas ocasiões, a palpitação, a ansiedade tornava uma viagem demorada. A chegada era
interrompida pela partida, pouco tempo parece ter durado, mas e quantas lembranças carrego daqueles
momentos. Reviver.]
Contemplamos a ordem mundial nas nossas academias sem olharmos aonde estamos
na ordem social. Universitários escrevendo para nós mesmos, radiografando
manifestações como se essas representassem o engodo da vida das pessoas comuns,
falamos de politização das massas em um devido instante e abandonamos a marmita fria
nos cantos de obra enquanto nos encaminhamos para o Restaurante Universitário
deficitário de nossas paupérrimas federais, estaduais ou em nossas caras e elitizadas
particulares.
Com todo respeito às contribuições de Hobsbawm, Thompson e Rancière, mas
estamos ainda no julgo da exploração mercantilista de nossas senzalas, trabalhando
braçal ou mentalmente num parque industrial e intelectual em defasagem. E isso não
mudará quando derrubarmos essa ordem mundial, temos de ignorá-la e começarmos a
olhar para dentro de nós mesmos.
O horizonte não se difunde microscopicamente, precisamos criar em nossa
observação essa lente de aumento que mantém e retira do papel aquilo que já está
acontecendo. Não há nada mais próximo da micro-história do que isso. O historiador se
volta mais uma vez às ruínas, olhando a gravura do acervo fotográfico daquela cidade e
na zona rural quando observa a Cervejaria derrubada. Imagina ele o mundo do trabalho
há tempos atrás. [Delírio]. Era meio dia. Trabalhando sob os ponteiros de um grande
relógio, um grupo de operários de uma cervejaria não percebia o quanto aquela máquina
influenciava as suas vidas.

Ilustração VIII: Derrubada na década de 1990

Ilustração VII: A Cervejaria Adriática

Ao horizonte dos campos, longe de atingir a exaustão,


imigrantes russos colhiam cevada.

Ilustração IX: Sobre a antiga


Cervejaria, o pálido e moderno
Shopping Antarctica
Apagada pela ação humana, mas não esquecida pela memória (Ilust. VI, VII, VIII). A
magia da História é deixada de lado em nome da fria modernidade. Os mesmos
interesses imobiliários que tapam a permanência cultural com seus modelos
arquitetônicos baratos cercados de vitrais, uma troca que não ofende os ricos - esses não
se interessam em portar a História dos outros. Sua única obstinação é derrubar o que é
antigo para construírem lugares novos, grandes e cheios. Lugares entopetados de seus
peões, esses por sua vez ali comerão e se vestirão, fazendo a História econômica e
política dos grandes homens girar. Uma placa de inauguração e o orgulho nele
estampado: “eu derrubei, eu construí”, da parte desses que mandam colocar a placa não
existe nada de burrice nisso.

III. Não podemos encostar no imaterial, podemos vê-lo. A História


vira uma festa.

De segundo a segundo, o historiador


deve procurar se surpreender com a
espontaneidade da sociedade...
Aquele cenário deflagrava não somente
a imagem do homem matuto do campo. O
horizonte denunciava o encontro, o conflito
cultural há anos vivido ali. Identidades nos
diferentes estágios de colonização daqueles
campos. Instituições como o Centro de
Tradições Gaúchas (CTG)19 de certa formaIlustração X: Baile do Chopp em Nova Esperança do
Iguaçu - PR
fazem transparecer toda a aculturação
gaúcha no sudoeste do Paraná, mas aquele caboclo assim como tantos outros dançando
em volta duma quadra de futsal desmistificavam a ideia de uma pureza racial daquelas
bandas.
A festa popular20 se torna responsável por recolher do subterrâneo daquelas

19 Ecoa a História oficial: “O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) é uma entidade cívica, sem fins
lucrativos, associativa, dedicada à preservação, resgate e desenvolvimento da cultura gaúcha. Compreende
que o tradicionalismo é um organismo social de natureza nativista, cívica, cultural, literária, artística e
folclórica” (WIKIPÉDIA, 2010).
20 Para Mikhail Bakhtin, a festa popular em seu princípio se diferencia das cerimônias consideradas oficiais.
As festas populares como o carnaval “oferecem uma visão do mundo, do homem e das relações humanas
totalmente diferentes, deliberadamente não-oficiais” (BAKHTIN, 1993: 5). Elas tornam possível a liberação
temporal de regras, valores, tabus e hierarquias. Camponeses, padres, políticos e até o prefeito da
cidadezinha ali é visto, mas todos em rodas que “jogam conversa pro ar”, em inúmeros grupos, todos são
cidadezinhas outras tonalidades de pele, de fala, de andar, outros vestuários, descobre
que o discurso nacionalista do gauchismo cantado por uma banda de jovens rancheiros
se tonaliza nas bombachas, botas, alpargatas e até nos chinelos que rodeavam o salão.
O rapaz, durante o dia é trabalhador da construção civil como servente de pedreiro
assentando laje em cima das casas, toma um banho, coloca uma calça jeans que
economizou meses para comprar a vista e naquela noite teria a oportunidade de conhecer
qualquer descendente de italianos que aceitasse com ele dançar.
E de um momento a outro, aquele Baile do Chopp no interior se torna a festa popular
não apenas pela acessibilidade do preço do ingresso, mas também pela diversidade racial
e cultural que rodeia aquele Ginásio Municipal. O historiador descobre ali o mistério do
viver naquela região, em disparidades dentro do mesmo ambiente, distantes em cada
lógica aplicada dentro de cada espaço.
São as representações desses personagens, colocadas na vida real como se
colocadas num palco que forma as diferentes ocasiões. No fundo, elementos formam o
cenário. Dum lado da rua, cadeiras e mesas de plástico duro, música popular tocando
numa rádio AM, o balcão de madeira compensada cercado de banquinhos de rodar, na
televisão pendurada por um suporte de metal passa o jogo do Corinthians, propagandas
de cerveja estampadas em cartazes com mulheres semi-nuas. O bar. Preenchido por um
diversidade de personagens. Torneiros
mecânicos, carpinteiros, motoristas,
vidraceiros, construtores, eletricistas, garis,
frentistas... Nesse caso a diversidade é o
que predomina numa única classe social,
entre trabalhadores autônomos e livre-
assalariados, o semblante da classe
operária se revela não como uma coisa só,
mas na sociabilidade traduzida nos Ilustração XI: O boteco (autor desconhecido)
“causos”21 extraídos das distintas experiências.
Uma sociabilidade22 que se traduz no pós-trabalho, encontrada no conhecimento que
iguais. O humor os iguala, o espírito da festividade permite isso, esse é o valor da subversão, não existe
condição para a ordem social, não existem oficialismos, essa é a principal característica que o intelectual
recupera daquele baile (BAKHYIN, 1993).
21 [não tem como não recordar aqueles ferroviários conversando. Alguns cascos de cerveja vazios, um jogo
de truco abandonado sobre a mesa. O assunto da classe operária? Mulher. Até que um deles esbraveja:
“Joguei aquela 'marmita' encima da cama”. Um “causo” desses causa. Esse é seu papel, “pipocos”
(tiroteios), “briques” (negociações), fézinhas (apostas), “apagões” (mortes), essa é a pauta que circunda os
espaços de sociabilidade. Reação é isso que eles procuram. Machistas? Violentos? O importante pra muitos
deles não é o juízo de valor que o intelectual vai fazer, o importante é causar. Deveríamos aprender a contar
histórias que distraiam também, quem sabe até usando o vocabulário específico deles].
22 Segundo Norbert Elias e Eric Dunning, a sociabilidade se aplica além do trabalho. Insisto para que
não foi adquirido academicamente, mas que foi alcançado na prática, pelo “saber fazer”.
O relato desses homens descreve detalhadamente a fidelidade de uma jornada de
trabalho, exibe cada um como participante da economia de qualquer sociedade. Isso
apesar de por sua forma de contar, por sua forma de falar típica ser considerada rude por
outra fatia do restante dessa sociedade e que se encontra fora daquele estabelecimento.
Por outro lado ou do outro lado da rua, o clube noturno realizava um baile de
debutantes. O grande evento coberto pela mídia. Flashes, saltos-alto, smokings, vestidos
longos, géis fixadores, mesas de vidro e cortinas de ceda. Magnatas e madames. O
trabalhador também está presente, travestido com colete de linho preto country e gravata
borboleta, ele é o garçom. A diversidade ali também está presente, entre todos os
empresários também podemos avistar autoridades políticas, religiosas, militares... A
sociabilidade ali se mitifica no projeto de uniformização sobre os corpos, o vestuário
exigido ao entrar na cerimônia.
A ritualização da festa predica seus modos, sobretudo um projeto também de
civilização da sociedade urbana por meio de uma festa fabricada. Um projeto que coloca
suas devidas distinções, entre a inclusão de uns e a exclusão de outros, entre os
membros de uma suposta “elite” que usufruem daquela festa para seu lazer, para o
operário da fábrica que naquela cerimônia não pode sequer adentrar por não ter sido
convidado ou por não possuir um paletó e pelo único trabalhador que se encontra lá
dentro trabalhando – mas que também não traja paletó – e que prova que por mais que ali
se construa esse espaço de lazer noturno regado a luzes indiretas, chuva de papel de
prata e globos de iluminação, aquele garçom é o personagem que usufrui do momento
para seu tempo de trabalho – entretanto, nos bastidores, ele é invisível, ofuscado, longe
das luzes artificiais, nunca trocando passos com qualquer menina na pista de dança.

IV. Realidade assistida, abstração e subjetividade.

“A ilusão não é o oposto da realidade”


(Jean Baudrillard)

Tentemos imaginar, abstrair o conhecimento. Não devemos nos comprometer com a


verdade, mas sim com nossas versões, a realidade já está perdida. Outros historiadores
vangloriam autores que promoveram a História cultural, mas de nenhuma forma

analisemos essa atividade segundo sua espontaneidade, como num bar qualquer ou na festa da
comunidade. A convergência, é assim que podemos resumir esse encontro de trabalhadores de diversas
áreas, ela é ocasionada pela situação sócio-econômica que eles têm em comum. Esse é o momento do
''tempo livre'', apresentando características de lazer e recreação (ELIAS; DUNNING. 1992).
incentivam a abstração: “Você usa portanto de "abstração" (...) Por que temer as
palavras? Nenhuma ciência seria capaz de prescindir a abstração” (BLOCH, op. Cit: 130).
Através do trabalho, todo aquele conjunto de atividades humanas transformaria a
matéria-prima em um produto. Sim, algo previsível e já muito discutido em diversos outros
artigos acadêmicos e em livros, mas essa abordagem possui outro objetivo. Discuto o que
pouco foi refletido, em torno de outras singularidades que envolvem perspectivas além do
mundo do trabalho. Os dois pontos da cidade se distinguem além da distância, diferentes
localidades se criam em seus diferentes aspectos. A ocasião revela o distinto. O espaço
torna-se conveniente a partir de uma lógica.
O peso daquela máquina dependurada na parede da fábrica não pode ser traduzido
para o hoje, a sensação de calor do solstício no horário do almoço para aqueles
imigrantes pode ser ressuscitado do mundo dos mortos. Imaginação. Ninguém pode
modificar o passado, nem mesmo recriá-lo na forma como ele aconteceu, mas qualquer
um pode colocar possibilidades para que o conhecimento sobre esse passado faça com
que percebamos ele em suas diferentes formas, nas suas diferentes interpretações.
Sentidos vindos dos sentimentos. Tentemos também representar em palavras a fome
da família trabalhadora onde o pai está desempregado. Façamos isso enquanto nossos
governantes bendizem o progresso industrial, ocultando a existência de um exército
industrial reserva de desempregados, censurando a fome, o desespero. Ou enquanto os
exércitos marcham sobre sua própria versão da História, usufruindo dessa enquanto
poder, mas fazendo isso anos após limpar o sangue, arejando os maus odores, lustrando
os canhões enferrujados e após livrar do chão os cadáveres que eram comidos pelos
corvos23.
Então que irrompe no texto uma palavra não esperada: abstração. Porém não
colocada sem pudor. Apenas indicando que se não podemos registrar os fatos do
passado realmente como ele ocorreu não significa que nosso ofício tenha se retraído.
E sabe o que é mais agradável24 aos olhos e ouvidos no ofício do historiador?
Precisamos perceber que somos capazes a aceitar as diferentes versões dos fatos
históricos e de que somos capazes de admitir humildemente 25 nossa incapacidade de
reproduzir com fidelidade a realidade, nossa incapacidade de julgar o que é certo e
23 Lapa-PR, 30 de abril de 2009: O herói alvejado pelas balas dos maragatos, representado no centro de
uma praça numa estátua. A contra-história se faz presente no episódio do Cerco da Lapa, o outro é
representado pela “anarquia”, pela barbárie que vem do sul, essa é a penumbra que cobriu o exército
maragato durante a História. Brasileiros contra brasileiros, isso a História militar muitas vezes esconde, o
romantismo cobre o conflito com uma bandeira que apenas favorece os vitoriosos.
24 [agradável, bonito também não é uma palavra presente para os cientificistas historiadores em seus
cientificistas artigos, mas tudo bem, prefiro usá-las aqui ou na qualidade de liberdade científica e ética que
as Escolas de História se baseiam não permitem essas singelas palavras?].
25 Humildade também não é uma palavra muito usada por cientistas.
errado, de estarmos além do bem e do mal, fazendo isso não baseado em achismos mas
sim em constatações. Não conseguiremos ser historiadores apenas a partir da obtenção
de um quadro escrito “Diploma” dependurado na parede de nosso gabinete ou de uma
cerimônia ritualística de convencimento que apenas nos entrega um papel onde está
escrita a mesma palavra envolvido em um canudo.
A História está no espírito e o historiador está
para a sociedade como um cientista, mas também
como um artista26, sim, artista, agora sou eu quem
lhes questiono: por que temer as palavras? Somos
obrigados a conviver com a arte, somente o nosso
entendimento de um conjunto de símbolos nos
permite incorporar esse espírito para não morrer
Ilustração XII: "Família de um Chefe Camacã
preparando-se para uma festa" de Jean das verdades construídas pelas instituições criadas
Baptiste-Debret
pelos homens (ex:
formaturas de Universidades).
Ainda pintamos em nossas cabeças acontecimentos e
heróis, pessoas das quais queremos conhecer no passado
e acabamos nos interessando por elas 27. Somente temosIlustração XIII: Índio alcoolizado (cena
frequente em qualquer rodoviária)
de ser capazes de encarar que apesar de nossa
aproximação sentimental desses seres, eles não são perfeitos, não são uma coisa, são
carregados de personalidade, traumas infantis, doenças psicológicas, loucura...

26 Os questionamentos existem, e na História não terminam após o fim da pesquisa. Continuam a existir e
se formam de diferentes formas na cabeça de cada um de nossos leitores. É como o pintor que pinta uma
quadro, cada um dos observadores na galeria produz em si uma reação, procura entender o quadro de uma
forma. Enfim, se somos cientistas, o pintor também o é, se inspira em algo, usa métodos e técnicas para
pintar, segura consigo o pincel como se segurasse uma caneta... No mais, deixemos uma coisa clara, essa
discussão História como ciência ou arte é inútil, devemos é incentivar inspirações para sua produção,
dessacralizando esse termo: “ciência”. Devemos renovar, aprender com a gostar do que fazemos, nos
inspirar, mas o historiador brasileiro e novato (sem títulos de mestrado) não pode ensinar nem aconselhar,
portanto façam o que sempre souberam fazer aprendam com os franceses: ''Mas a história não é uma
ciência e não o será jamais; se souber ousar, terá possibilidades de renovação indefinidas, porém, numa
outra direção'' (VEYNE, 1995: 7). Enfim, se como Guy Drebord constatava e ainda constata Antonio
Abujamra a arte morreu, será que a “ciência” também não morreu?
27 Seria mero positivismo acreditar em heróis? Acreditemos numa discussão menos rasa. Qual é a
psicologia de um herói? Nós criamos a vida nos mortos. Acabamos sendo sensíveis a passagem desses
espectros pela linha do tempo. Entretanto, ainda assim, temos de entender que toda supervalorização por
uma outra pessoa é baseada em nossa personalidade e no que acreditamos que seja a personalidade dele.
Somos o que desejamos ser, mas somente deixamos para a História o que queremos. As mulheres, os
homens não sobrevivem para a História como o monumento que para eles foi construído, nem sob a
sombra desse. Essas pessoas sobrevivem pelo que disseram, pelo que deixaram e cada um de nós possui
o mártir que merece. Interessante é saber que foram nossos avós e demais ancestrais que crucificara ele ou
o esquartejou. Lembremos que se uma pessoa possuiu tantos admiradores para ser amada, acabou
possuindo quase o mesmo tanto de gente para odiá-la. O indivíduo, é esse ser que deixamos viver depois
de morto, formado de suas repressões e de tudo que ele vivenciou. O amor é a supervalorização, se
víssemos aquele ser – ou o cadáver dele – como realmente ele é, será que seríamos capaz de amá-lo?
Fazemos da História de algumas pessoas o que queremos, enquanto isso julgamos e crucificamos outras.
Os franceses e sua história política e cultural tiveram de nos ensinar até hoje o que é
História? Tudo bem, mas e você, latino-americano que ouviu falar das tragédias épicas
que o seu país viveu, sabe que o conceito de nação surgiu do preamento de índias e
negras, das dores do parto comungadas pela sacralização da igreja de tudo que saía de
seus ventres. Não historiador brasileiro, você não é europeu, mas sempre procuramos
levar ao pé da letra o manual do velho continente sem perceber que a negação de uma
ciência própria é o nosso suicídio acadêmico e social.
Nos matamos por matarmos nossa identidade científica, nossa capacidade, somos
nojentos até o momento que descobrimos que a História não é apenas um quadro do
Debret, ela é algo além disso. O índio já não é mais
um ser extraído de cantigas, lendas... Nossa literatura
ufanista foi ultrapassada pela realidade assistida, a
identidade aculturada, o índio aparece como um ser
com cabelos negros compridos amarrados abaixo de
um boné brinde de uma loja de Materiais de
Construção, usando uma camiseta fruto da campanha
derrocada de um candidato a vereador, um calção do
Ilustração XIV: Polícia desocupa área
Flamengo e um chinelo de dedo. É nesses episódios indígena no Amazonas
épicos que construímos nossa História hoje, o
historiador abstrai e observa o espírito do tempo,
caminhando a sua frente, perdendo a inocência, mas
ainda com um “bom rosto e um bom nariz”
(CAMINHA, 2010).
Uma fotografia que reflete o espelho da História,
que resume muito mais do que qualquer livro grosso.
Isso é a História, ela simplesmente pega os homens
e deles faz uma experiência, o índio é somente
produto dessa experiência.
Nossa experiência no relento, nossa identidade
Ilustração XV: Charge de Clayton
na calçada. A forma como temos tratado a História é
curiosa, temos atropelado militarmente o “outro” não somente no uso da força física, mas
também no uso da força intelectual. Criamos gerações de exaltação a nós mesmos, povo
brasileiro, quando nossas crianças manifestam o ódio ao argentino, ao preto, ao pobre...
Alguns desses indivíduos poucos foram capazes de fazer sobreviver suas versões dos
fatos, somente os que sobrevivem e pegam uma caneta na mão podem contar a História.
Somos um povo que consegue odiar a si mesmo.
E eis que surge um ofício custoso em nossas mãos, mas que serve para mostramos
nosso diferencial, contrariando a “História oficial” das instituições, precisamos contar essa
História que incomoda, que cutuca o poder, que questiona os poderosos, ironizando com
o que os próprios franceses chamam de “história vista de baixo” 28. Mas esquecemos
muitas vezes dessa intelectualidade, fazemos humor na vida difícil, no dia a dia do
trabalho, no bar, nos impostos exorbitantes, usamos nosso temperamento tropical para
chegar aos poderosos: “Vocês estão aí encima, mas como chegaram aí?” 29, nossa
irreverência latina depende da tragédia. Ameaçadora ou hilariante, a abstração coloca
uma nova visão sobre a realidade, exatamente ali onde muitos sempre viram da mesma
forma.

V. Uma proposta de literatura histórica.

Para que serve a História? Ainda que “a história fosse


julgada incapaz de outros serviços, restaria dizer a seu
favor que ela entretém” (Marc Bloch)

Nos prendemos a tentativa de criar uma “não-ficção” quando a vida toda é uma ficção,
cada pessoa possui sua versão, não expomos isso num conto, mas sim num verdadeiro
teatro encenado. Na postura da madame, na violência do policial, no gesto do garanhão,
no discurso do prefeito, tudo é ritualizado e se apresenta de uma forma.
Estou reafirmando a pós-modernidade? Não tem nada a ver com tentar se alojar em
algum período histórico construído. Um camponês não ia até a feira de Nápoles para dizer
que era medieval. Isso tudo aqui descreve a vida de um povo que ainda é medieval em
suas ilusões com o mundo tecnológico, é romano no falar do imigrante italiano e ninguém
precisa provar com documentos históricos que existem tais permanências.
Esse último subitem apenas discorre sobre uma certeza. Se aqueles que se dizem
“donos da História” dentro das academias não aceitam uma singela colaboração,
fiquemos então no terreno da Literatura. O objetivo dela ninguém sabe, mas assim como
a História ela entretém, ela permanece. Fica aí um toque:

28 “histoire vu de bas”.
29 Tiramos sarro e percebermos que nosso humor tem muito mais a ver com o bobo da corte do que
imaginamos. Somos Chalaça, Cazuza, Chico Anysio, Mazzaropi, Bronco, Didi Mocó, Hermes e Renato,
somos a música, a televisão, o livrinho de piada, preferimos tirar sarro ao invés de portarmos terno e
tirarmos outros que usam terno e são verdadeiros criminosos e corruptos de atrás das grades, assim como
não portaríamos manto nem cetro e decretaríamos guerra para matarmos milhares de civis. Somos aquele
ao lado do trono, suportamos sentar ao lado deles somente porque a comida é agradável, de repente
percebemos que podemos ironizá-los e essa é nossa melhor estratégia pois uma boa piada suscita
discussão. Tudo que é discutido não permanece como está, o poder se torna algo questionado.
Domingo, 25 de outubro de 2009

Meia Noite Cigana em sangue


Relato de um Tropeiro de Viamão, 13 de Outubro de 1922.

Ponta Grossa, um beco perto ao Largo da Estação, 11:46 pm.

Barba afeita, saindo do hotel, noite fria avisto uma fogueira, me corre nos ouvidos os gritos escandalosos
que combinavam-se ao som das batucadas de uma viola marota. O fétido odor de creolina se fazia
representar nos vagões estacionados. Mais uma vez a visão do horizonte das ruas violentava minha visão,
eu não fugia impune naquele vento que mais parecia um minuano, como se estivesse meio aos birivas
(moradores da cerra).

A tropeirada invadiu o centro da cidade civilizada, juntamente com uma porção de personagens do Circo
Stefanovitch que estava instalado ao leito dos trilhos indo pra as Oficinas (o bairro mesmo). O cheiro de
vodka ucraniana e de carne mal curtida exalava aos arredores, a patrulha sabia o que acontecia, mas
esperava o momento certo de intervir. Aquele beco parecia o Bunker dos vagabundos.

"A la pucha", eu a a vi, uma odalisca zingara (mulher cigana) começou a se desnudar ao olho de todos os
homens que por ali passavam, sua badana (pele) era macia, una chinoca buenacha. Para além do rodeio
daquela tropa em torno da fogueira, famílias ali passavam e viam com desprezo e asco vomitante o que
me agraciava ver, aquela pinta ao lado de sua virilia. Tão sobressalente ao seu corpo morenado mouro.
Aquele pontico provocava as maiores sensações no meu espiríto, sua honestidade era provada naquele
sinal, dançava ela, dançava com toda inocência em meio a seus amigos que não possuíam um olhar
pervertido sobre uma de suas irmãs. Aquele sinal da identidade se combinava ao seu cabelo liso escorrido,
caspento em suas raízes e oleoso por todo seu comprimento.

A admiração daquela pintura paisana foi interrompida ao ladrar dos cachorros, anunciava-se... a caravana
chegara, descendo o cacete em todo mundo, não se poupando frente a anões de picadeiro, ao palhaço
ainda maqueado ou a velhos racticos... O sarrafo desceu, a pelea foi buena, o pau comeu, paulada na
cara, chute no estômago, era uma luta bem desproporcional.

A caudilhada (polícia) carregava a bandeira nacional, estavam em 15, enquanto aqueles corpos
desfavorecidos estavam em 7... A bruacada (gente feia) apanhou que nem guri grande, os uniformes azul-
anis contrastavam com o sangue que escorria, a poeira levantava naquela cidade embarrada pelas chuvas
da primavera. A carroça-camburão levou todos, até minha saudosa china (mulher bonita) e sua pinta
sobrelevada.

Conclusões?

A História é o resultado daquilo que foi, produto do que é. A ruptura seguida da


permanência, onde o momento não é isolado, se configura no tempo com outros
momentos e acaba por meio dos indivíduos criando monumentos ou deixando sobreviver
pequenos gestos da passagem desses seres.
Ficamos teorizando entre essas construções do mundo material e os rituais do mundo
imaterial. Mas isso pouco importa quando podemos ter a nossa frente um antigo brechó,
roupas amarrotadas, imagens de santos desbotados nas paredes de madeira e uma
velinha fumando cigarro numa cadeira, mas só nos encontraremos com a História quando
entre os cabides encontrarmos uma camisa xadrez e nos perguntarmos: “de quem foi?”;
“como veio parar aqui?”; “e essa velha, o que ela viveu, por que decidiu sentar nessa
cadeira e ficar aqui há mais de 40 anos, com quantas pessoas ela já conversou?”.
É como se nossa idade não apagasse o passado, ele está vivo, não é tabula rasa 30.
Mas depende como fazemos essa História, se somos intelectuais ou não é somente um
título que nos deram, somente temos de avaliar uma coisa: ficar escrevendo artigos para
revistas científicas tem colocado a História presente para as pessoas? Sim, as pessoas,
esses que estão aí fora. Será que estamos em contato com eles? Ou somente teorizando
um mundo científico que os trata como uma coisa? E mesmo que tratemos eles como
uma coisa, para que serve a História então? Vamos ficar invejando dentistas e médicos a
vida toda por conta de que eles sim entram em contato com os povos por meio de seus
conhecimentos?
O historiador além de cientista deve se revelar um artista. Se não pode pintar quadros
pode tornar sua escrita uma verdadeira literatura. É como um vídeo onde a realidade
parece ficção, ali está o documentário 31, o historiador conhece, se atrai pelo novo, mas
deve ser capaz de demonstrar essas novidades para os leitores. Portanto, a partir disso,
devemos nos comprometer em descrever aquilo tudo não sobre a categoria “povo”, mas
sim sobre a experiência de cada um que ali vive, Josés, Marias, Joãos, Anas... Entretanto,
a disparidade desses seres se coloca próxima nos ambientes que se constroem. A
fábrica, o bar, a igreja, a comunidade... E o que o historiador se torna ao se aproximar de
bandidos, operários, índios, macumbeiras, caixeiros-viajantes, lavadeiras?
Seja no trabalho ou na sociabilidade desses seres, eventos construídos e que mesmo
sem querer revelam a experiência e a personalidade de cada um. O que mostra ao
historiador que por mais científico que ele deseje ser, ele deve ser o que quiser, ele acaba
se deflagrando desde um roteirista, como um diretor, enfim, ele descreve o teatro da vida.
Enfim, o historiador sem medo da ciência, do método, pode ser o que quiser, ele cria a

30 Qualquer escrita ou histórico parecido com esse autor é mera coincidência? (CHESNEAUX, 1995).
31 [não existe um historiador que consiga contar a História do povo brasileiro sem falar do seu contato com
os meios de comunicação. Governantes anunciando aumentos de salário, auxílio a golpes militares,
ascensão e derrubada de jovens presidentes, outros desses sendo ex-metalúrgicos, a TV esteve nos
bastidores e ensinou esse povo a se emocionar com novelas, torcer para times de futebol... e como não
falar da empregada de avental assistindo os problemas familiares de uma outra família em um programa de
auditório em plena tarde de quinta-feira? Intelectualismos a parte, poucos escreveram essa História, prefiro
deixar meu teto de vidro exposto agora, prefiro deixar de ser o chato que exige dos outros cheirar a poeira
das bibliotecas e evidenciar mais um obstáculo. O estudo dessa tela de vidro que nos influencia tanto, ela é
a mídia, mas não só transmite, muitas vezes ela procura finalizar a História segundo seus meios.”Quando a
realidade parece ficção, está na hora de fazer documentários” (TV BRASIL, 2010), o pesquisador da
atualidade deveria estar mais adaptado às vontades do seu público, deveria se adaptar a usar uma
linguagem multimídia (o espelho da identidade se apresenta de diversas formas, até nem que seja pelo
portal You Tube), caso contrário compactuamos com a formação de uma cultura popular formada por
propagandas e uma cultura erudita formada pelo distanciamento da população. Que o som e a imagem
sensibilize esse povo].
própria forma de abordagem, ele não tem medo de si, não tem receio da própria
imaginação. E por que não ser louco também?. Sabe quando a felicidade parece fazer
sentido na profissão? Sabe quando o escrever se torna muito mais um carnaval por
apenas ele poder ser descrito minuciosamente em seus episódios 32, do que simplesmente
ostentar intelectualidade e usar conceitos científicos que não distraem o leitor 33?
O historiador não é aquele que apenas descreve o bar como local de embriaguez do
operário. Ele não justifica mas entende suas desilusões, sabe que ele não é apenas
revolucionário34 e talvez nem o queira ser, ele é pai de família, capitão do time de futebol,
sócio da associação de bairros, residente em uma casa de madeira... Vejo que a História
nada mais é que um delírio 35, o bar aparece como palco onde o trabalhador se apresenta
depois de seu horário de serviço, olhamos para o passado e vemos o mesmo, sempre
uma mão calejada segurando aquele copo americano.
E eis que você pode suportar tudo isso, companheiro. Sem sucesso, sem renome,
você pode ser fruto da sua experiência. E saiba que se os intelectuais que somente tem
alguns quadros na parede escrito “Diploma” não se prestigiam com a sua presença, pois
bem, saiba que você será muito bem aceito nas ruas. Só precisa não ter medo e saber
gostar do picolezeiro da praça, do vendedor de cigarros paraguaios, do pastor que
profetiza na frente do Terminal Central, da “tia” que prepara a merenda na escola, do emo
com seu MP3 na escada da lanchonete, do mendigo comendo uma coxinha ao lado da
estátua do Getúlio Vargas... Enfim, o historiador deve fazer de sua vida uma grande
declaração de amor a essas pessoas36.

32 Mas o mais importante disso tudo é constatar que ao instante que elas permanecem no tempo e no
espaço elas se transmutam em diferentes aspectos colocando sempre as teorias dos intelectuais a prova.
33 Se tivermos de admitir nossa falha de não conseguir ligar o povo a uma nova forma de entender o
carnaval, o circo, o bar, é muito simples procurarmos uma nova forma de escrever sobre esses lugares.
34 [agora entendo porque dentro da minha área já fui muito incompreendido. Existem muitos intelectuais (da
bola!!!) que ainda acreditam que o único papel possível para os trabalhadores deve ser: “como ser
marxista”. Preferia ir ao bar com um(a) artista, biólogo(a), psicóloga(o), jornalista, agrônomo(a)... A
interdisciplinaridade atingiu pra mim pontos muito mais informais do meu cotidiano. Aaahhh, e um recado
aos “mestres” que duvidaram da minha capacidade, saibam que uma cervejinha aqui, outra ali, somente foi
um pretexto para entender essa complexidade social, o doutorado não importa, mas se chegar lá prefiro
uma doença sendo Dr. Alcoólatra do que ser Dr. Chato dos gabinetes frios do moralismo. Mero moralismo,
pois senhores e senhoras, vocês apenas foram capazes de fofocar entre os corredores mostrando que
disso é feita a sua ciência].
35 [nós podemos suportar, devemos entender aquele sofrimento, nem que para isso nosso entendimento
deva ser abastecido com um copo de cachaça. Talvez somente isso nos faça entender tal desilusão].
36 [comigo vocês não tem muito a aprender, concordo. Mas devem aprender com vocês mesmos. Recordo
das inúmeras academias que socaram guela abaixo a Escola de Annales sem questionar a sua tradição.
Quero deixar claro que o autor desse artigo não pensa assim sobre nada, eu questiono, eu problematizo,
por isso, eu escrevo. E pra você mesmo que além de pensar isso ainda apenas avaliou “cientificamente”
esse artigo – minha arte - como um amontoado de baboseiras, eu faço deles as minhas palavras: “Amo a
história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida
sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas – algo de abominável quando a
profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história – e é por isso que estou feliz por
vos falar, hoje, daquilo que amo.” (FEBVRE, 1986) (…) “Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida"
(BLOCH, 2001).
[...]
“O tempo se foi, a canção terminou, pensei que tivesse algo a dizer”

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel


Foucault no campo da historiografia in: Michel Foucault e a História. Disponível em:
http://www.seer.ufrgs.br/ (acessado em 12/02/2010).

BAKHTIN, M.. A cultura popular na Idade Media e no renascimento. Ed. UNB e HUCITEC:
S.P, 1993

BLOCH, Marc. Apologia a História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 2001

CAMINHA, Pero Vaz. A carta. Disponível em:


http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html Acesso em 14/11/2010.

CHAVES, Niltonci Batista. A cidade civilizada: Discursos e representações sociais no


jornal Diário dos Campos, na década de 1930. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001.

ELIAS, N; DUNNING, E. Em busca de excitação. São Paulo: Difel, 1992.

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1986.

LEDESMA, Dante Ramon. CD 02, Faixa 01: “Guri” em: 20 anos, Ao vivo. Mega Tchê,
2001.

LINKLATER Richard (diretor). Waking Life - Acordar para a vida (Filme). Estados Unidos,
2001.

NIETZSCHE, Friederich. Humano demasiado humano. Cia das Letras, 2005

POCAI FILHO, Roberto Luiz. Cadernos de Campo. Arquivo pessoal, 2009 e 2010.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. 2009

VEYNE, Paul. ''Objeto da História'' In: Como se Escreve a História. Brasília: Ed. da UnB.

Imagens:

Acervo Casa da Memória, Ponta Grossa-PR.

Portal Sociedad Peatonal. Disponível em: http://sociedadpeatonal.blogspot.com/ Acesso


em 07/11/2010.

Portal Blog do Itarcio. Disponível em: http://blogdoitarcio.blogspot.com/ Acesso em 05/11/2010.

Revista Galileu. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/ Acesso em 02/11/2010

Portal Bag Propaganda. Disponível em: http://bagpropaganda.wordpress.com/ Acesso em


01/10/2010.

You might also like