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0 ARCHEOLOGO PORTUGUES COLLEOGAO ILLUSTRADA DE MATERIAES & NOTICIAS PUBLICADA PELO MUSEU ETHNOGRAPHICO PORTUGUES VOL. II AGOSTO E SETEMBRO DE 1696 N"8E9Q Archeologia industrial Portuguesa 0s moinhos BE com profunda saudade que vejo desapparecer pouco a pouco os vestigios da nossa antiga actividade, da nossa industria caseira, A ma- china vae triturando tudo no:seu movimento vertiginoso, sem que mao piedosa se lembre de apanhar esses restos, humildes mas gloriosos, depositando-os depois em sitio, onde possam ser cuidadosamente estu- dados e onde a curiosidade lhes preste o merecido culto. Existe a archeologia da arte, porque nfo ha de existir a archeologia da in- dustria? E certo que a prehistoria recolhe anciosamente todas as manifestagdes da civilizaglo primitiva, e tanto considera a gigantesca pedra balougante como o mais obscuro instrumento do trabalho rudi- mentar, mas bom fora que a serie progredisse © quo so applicasse © mesmo carinho ¢ o mesmo espirito scientifico a todas as evolugdes da industria, Nas grandes exposigdes modernas 6 costume apresentar aos olhos do visitante o desenvolvimente completo por que passa qualquer materia prima em todas as successivas e complicadas metamorphoses, até so converter no mais surprehendente artefacto. Maravilha tanta forea de engenho dispendida nos mais aperfeigoados machinismos, mas mais marayilhado ficaria 0 espectador se presenceasse todos os processos © todos os instrumentos ¢ apparelhos seguidos e adoptados desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. 0 Museu que realizasse semelhante ideia seria a escola mais instructiva do mundo. Algumas industrias paralyzaram; attingiram desde certa epoca @ sua maior edade, e até muitos processes se perderam completamente. Ha casos em que a industria actual, apesar dos innumeraveis recursos que lhe 8 194 O ArcuEoLoco Portucuis fornecem as sciencias, lacta desesperadamente para imitar a perfei- gio que obtiveram os antigos. A ceramica, os esmaltes ¢ a vidraria cantaram de ha muito o seu triumpho numa orchestra de. colorido intenso. Antes que tudo se perca irremediavelmente, salvemos pela descri- pgio e pela estampa o que ainda nos resta, dilacerado e partido, dos antigos documentos da laboriosidade portuguesa. Que pittoresca romagem a que alguem executasse por esse pais fora, reproduzindo no seu album todas as manifestagdes da esthetica e do trabalho nacional! Que poesia encantadora nessas tradigées da firma, da cor, do util @ do deleitoso! A sombra da ramada, através da gelosia estreitd, ainda descortinareis a mulher do Minho tecendo a sua camisa de estopa on a sua saia de li#tas. O oleiro, amoldando graciosamente o barro, transportard a vossa imaginagio 4 Grecia ou & Etruria. Nas festas de aldeia, no enfeite dos andores, vereis até onde alcanga o gosto ornamental do nosso povo, de uma garridice e de uma ingenuidade encantadoras. Nao é sé nos descantes, na linguagem, nas tradigdes, nos symbolos, nas parlendas, no viver intimo, nos costumes, que 0 flolklorismo poderd fazer uma colheita preciosa. A vida material, a vida do trabalho, anda intimamente ligada 4 vida psychologica, € uina © outra deveriam ser surprehendidas ao mesmo tempo no seu conjuneto harmonioso. O estudo no terreno devia ser acompanhado do estudo nos archi- Yos, nos antigos tratados technicos, nos livros illuminados. Uma pa- ginado Apocalypse de Lorvio do seculo XII ¢ a historia animada da vindima: o lagar que 14 vemos desenhado parece n&o ter soffrido aperfeigoamento no decorrer de tantas centenas de annos. Em muitas casas de lavyoura ainda vereis 0 mesmo typo, estacionario, de uma longevidade millenaria. Uma investigagio neste sentido seria nfo sé de grande valor technico, mas até de grande valor artistico, porque viria documen- tar ao mesmo tempo a historia da industria e a historia da arte. vulgar dizer-se que tal quadro niio é obra de artista portugués, por- que representa um movel, uma ferramenta, uma construcg%o, que nao esté em harmonia com o que conhecemos habitualmente. Quem nos diz, porém, que esse conhecimento é cabal, perfeito, resultado de um estudo de minucia e de consciencia? Quem visse num quadro um moinho hollandés, seria levado a. crer que era da escola flamenga e niio da escola portuguesa, Pois entre nés tambem houve quem construisse moinhos 4 hollandesa, como veremos ao dar noticia de um privilegio concedido no tempo de D. Jodo III. O ARCHEOLOGO PorTucues 195 Uma das industrias que mais alta e geral importancia teve entre nés € que tende a desapparecer completamente ¢ a da moagem pela forga hydraulica ow pela forga do vento: A moagem a vapor n&o taré dara a proclamar definitiva e completamente o seu triumpho. O moleiro perdeu todo o seu prestimo ¢ ninguem faz caso d’elle, quasi reduzido dquelle personagem burlesco da cangiio brejeira, a quem o diabo redazit 4 condighio de eunueo. E numa epoca de egualitarismo, em que a democracia devia nivelar todas as’ classes ¢ todos os homens, os industriaes contemporaneos, pelo contrario, tendem a afidalgar-se © como que se envergonham dos seus epithetos seculares consignados nos regimentos das respectivas corporagdes. Os mesteiraes da edade media © 08 mesteiraes de hoje! Que villipendio para um moageito ser moleiro! © que vergonha ser padeiro para um manipulador de pio! Tenho pena, confesso-o sinceramente, que a fabrica viesse substi- tuir 6 moinho. O utilitarismo ganhou, mas a poesia perdeu. Ainda + hoje 0 moinho em ruinas, quer no alto da montanha, quer no fando do valle, séprando a musica do vento, on murmurando a musica das aguas, 6 um dos mais bellos enfeites panoramicos que eu conhego. Uma circumstancia contribue poderosamente tambem para que me sinta arrastado por uma sympathia saudosa para estes curiosos monu: mentos do trabalho antigo. O moinho podia ser o emblema da minha heraldica, Meu avd materno era moleiro. Se algum aspirante a fidalgo existe'na minha familia, que me perdoe esta revelagdo indisereta. Quando eu era crianga lombra-me ter ido com minha familia pas- sar um domingo nos arredores do Porto em visita a um moinho. O sitio onde fosse nfo me recordo; debalde tenho procurado evocar’ © seu nome, porque desejava agora visital-o oytra vez para cotejar a impressiio antiga, O que sei é que nunca se varreu da minha me- moria 0 quadro phantastico, que entXo presenciei © que ainda vive estampado na minha retentiva, como um desenho de Gustavo Doré na atmosphera nevoenta de Londres. Tinha 0 que quer que fosse de um eastello medieval; @ a agua passando por baixo das pontes, ld no fundo, produzia um ruido lugubre, que ostonteava com uma attragio fatal. Esta melopeia sinistra ougo-a frequentes vezes, involuntariamente, sem mesmo euidar no passado, mas em vez dé me aterrorizar, delei- ta-me, porque me parece uma cangio do bon vieux temps embalando melancholicamente todas as recordagdes da minha infancia. Dotado de poderosas faculdades affectivas © imaginosas, que se reflectem exuberantemente na sua literatura, na sua poesia, na sua his- toria, na sua vida maritima cheia de audacia e de aventura, em compen- sagio © povo portugués jd nilo possue, no mesmo grau de intensidade, 196 O ArcuEoLoco Porrucuis ag faculdades inventivas. Exceptuando os descobrimentos maritimos, em que parece hayer-se concentrado toda a sua actividade, no demais nao me recordo de nenhum invento portugues que ficasse marcado assi- gnaladamente nos annaes da sciencia ou da industria. No entanto, esta falta deve attribuir-se tambem em grande parte ao nosso descuido proverbial, que deixa no esquecimento ou que nao regista opportuna- mente qualquer demonstragio, mais ou menos notavel, da nossa apti- dio scientifica ou do nosso engenho industrial ¢ artistico. Rebuscando os archivos officiaes, ainda se encontram com bastante frequencia do- cumentos comprovativos de que n&o vivemos sempre na ociosidade @ que a nossa imaginagio se empregou tambem em alguma cousa de novo ot de util. Uma das preoccupagdes do nosso espirito foi o aperfei- goamento dos motores, j4 hydraulicos, j4 de outra qualquer natureza, Sio bastante numerosos os privilegios concedidos nesta especialidade pelos nossos reis, e por agora particularizemos aquelles que mais dis- cretamente se referem 4 moagem. Em 1534, D. Jo%o III concedia a Balthesar Gomes, morador em Coimbra, privilegio para certos engenhos que inventara para moer pio e azeite, sem necessidade de fazer agudes e sem impedir a nave~ gagiio nos rios ou ribeiros onde taes machinas se assentassem. Balthe- sar Gomes havia feito mostras da sua experiencias perante el-rei. O mesmo soberano concedia, em 1545, carta identica a um Affonso Garro, morador na ilha de Porto Santo para uns engenhos, que nunca foram inventados ¢ sabidos antes d'elle“os inventar, e de tio subtil ma- neira que moiam o dobro do que costumayam moer todas as moendas” até ent&o existentes nos reinos de Portugal e seus senhorios. Era de quatro feigdes o seu novo engenho: um d’elles mofa com uma sé besta e.com uma 86 roda, que fazia mover duas més e dois carreteis; 0 se- gundo moja com agua ou besta, tinha duas més e um rodizio ras- teiro de cubos: 0 terceiro moja com o mesmo rodizio e uma sé roda com duas més: o quarto finalmente era para moer azeite com duas pedras de perallto. Declaraya 0 seu auctor que estes engenhos faziam pouca despesa, e que um d’elles j4 estava funccionando em Porto Santo. Este documento, redigido com uma certa ingenuidade, & o que mais desenvolvidamente nos descreve os novos apparelhos ¢ por onde se pode fazer mais approximadamente uma ideia da sua estructura. Em 1571, 0 doutor Jo&o Rodrigues Cardoso obtinha carta de pri- vilegio para um engenho de moer segundo o systema que indicava, na sua petig§o. Em 1589 Paschoal Montanha, quereneiro, aleangava privilegio para um engenho, descoberto por elle, para limpar com © ArcnzoLoco Porruauss 197 muita facilidade © pouca despesa todas as caldeiras dos moinhos do salgado. Paschoal Montanha era veneziano e fora nomeado, em 7 de setembro de 1579, mestre das querenas que se houvessem de dar ds naus da India e navios dos armazens reaes. Tinha com este cargo © ordenado de 24:000 reaes por anno. A cathegoria de Paschoal Mon- tanha pertence igualmente um Maximo de Pina, fidalgo da casa real a quem Filipe II passou carta de privilegio a 16 de fevereiro de 1608 para um engenho que inventara de alimpar as caldeiras de moinhos somente, Este Maximo de Pina era homem muito habilidoso, dotado de espirito industrial, pois em seu nome vemos passadas mais tres cartas de privilegio: uma para certos engenhos com que dobrava o uso das aguas das fontes de Lisboa; outra para fazer uns engenhos de amas- sar, coser e biscoutar pio; a terceira finalmente para o estabeleci- mento de um forno de vidro. Do seculo xvr passemos ao seculo xvm e xv. Em 1616, Bal- thesar Soeiro, advogado em Lamego, obtinha carta de privilegio para um engenho para moendas, tirando a agua onde estivesse e fa- zendo-a subir de logares baixos a altos. Em 1727, D. Joo V concedia privilegio a Roman de Latorre, castelhano, para dois engenhos que intentara fazer, sendo o primeiro para serrar madeira, sem auxilio de motor hydraulico ou de vento, movido'sé por um homem, o qual fazia tanto trabalho como dois serradores. O segundo era um moinho para moer trigo, o qual, movido por uma besta, moeria sessenta alqueires em 24 horas. No mesmo reinado; um Domingos Velho Vieira, residente em Evora, inventou uma nova machina de moer pio, pois indepen- dente de agua, de vento ou de animaes, © tocada apenas por um ho- mem, podia fazer andar muitas pedras. A respectiva carta de privile- gio tem a data de 20 de agosto de 17451. Por estas notas sacadas dos registos officiaes se vé quanto a me- chanica do moageiro se havia desenvolvido em Portugal e como%em diferentes epocas appareceram inventores a introduzir melhoramentos neste importante ramo da nossa actividade industrial e economica. O elemento estranho nfo deixaria de exercer a sua influencia e por certo niio faltaria quem implantasse entre nés 0 que 14 por féra hou- vesse de mais aperfeigoado. O grande tracto commercial que ent&o sustentavamos com algumas nagdes da Europa, a influencia de estran- 1 Tenho eopia na integra dos documentos comprovativos d’estes factos, mas resolyo-me ‘publicé-los em monographia especial que trago em elaboragdo sobre 08 inventores portugueses. 198 O ARcHEOLOGO Portuauss " geiros, que concorriam a Lisboa, como o mais importante emporio mercantil do seculo xv1, tudo isto contribuiria por certo para se adoptarem processos mais em yoga nos outros povos. Um alvard pro- mulgado em 1552 por D. Joo III vem confirmar este racioeinio « priori. Jeronymo Fragoso, mogo de estribeira, obtinha privilegio para construir em Eyora uin moinho de vento ao modo dos que hayia em Flandres. Era o primeiro que entio se levantava naquella cidade @ seu termo, mas é provavel que ja existissem em outras terras do reino!. Jorge Ervert, allemio, tinha uns moinhos na ribeira de Alean- tara, de que pagava de foro ao armazem real quatro moios de trigo por anno. D. Jofo III, em carta de 27 de janeiro de 1527, 0 isentow Westa gontribuigio attendendo aos servigos que d’elle nbs recebido. E natural suppor que Jorge Ervert introduzisse na sua propriedade os melhores processos de moagem adoptados na sua patria®. Reservei, para ultimo logar o dar noticia de uns moinhos, de que hoje n&o existe, ereio, 0 mais remoto vestigio. Refiro-me aos moinhos em bareas, sobre as aguas do Tejo, e que por certo traba- Ihariam com a forga da maré. Dois interessantes documentos conhego eu relativamente a este assumpto, ambos do mesmo reinado ¢ com intervallo de 17 annos. O primeiro é uma carta regia de D. Affonso V de.18 de maio de 1451, permittindo ao infante D. Henrique, seu tio, que pudesse mandar fazer na alcagova de Santarem quantos moinhos de vento lhe aprouvesse e 0 mesmo no Tejo em bareas desde a ri- beira do Santarem até 4 foz de Lishoa. Esta doag&o era puramente gratuita @ se mais alguma pessoa os quizesse fazer, ndo lhe seria es- torvado, comtanto que pagassem o respectivo direito, de que el-rei fazia mere® ao infante. Por morte d’este, todos os moinhos, de qual- quer natureza que fossem, passariam para a corda com todas as suas bemfeitorias e pertengas’. Em 1468 era feita mereé identica a D. Lopo de Almeida, do con- selho de el-rei, seu vedor da fazenda, em attengio aos. seus servigos ¢ aos de seus antepassados, sobretudo aos de seu avo. Assim foi per- mittido, tanto a elle como a seus herdeiros ¢ successores, que fizessem no rio Tejo, em Abrantes e todos os seus termos, tanto numa como noutra margem, quaesquer engenhos de moendas que lhes aprouvesse asy sobre barquas, como por qualquer maneira, As condigdes, porém, ! Vid, documento n.° 1 2 Vid. documento n.° 2. 4 Vid. documento n.° 3. O ARcHEOLOGO Portuauts 199 variavam, porque a mercé nao era absolutamente gratuita como fora a do infante D. Henrique. Lopo de Almeida, e seus herdeiros, paga- riam de foro por moenda, um par de capdes.e um pato!. Em Lisboa diligenciou-se ha annos estabelecer um motor hydraulico no Seixal, aproveitando 0 fluxo e refluxo das marés, para moagem de cereaes, deseasque de arroz, ete. Tentou-se igualmente a forma- gio de uma companhia denominada Ceres para: explorar a concessio que para aquelle fim fora feita ao major Jorge Higgs em carta de lei de 24 de abril de 1873. Esta empresa, porém, niio foi por diante*. Os documentos em que me tenho estribado para esta noticia his- toriea, se dio uma ideia do impulso geral, no fornecem todavia os elementos indispensaveis para se poder avaliar devidamente a natu- reza dos inventos ou dos engenhos privilegiados. Se as cartas de pri- vilegio conservassem appensos ou transcrevessem as peticdes: dos in- teressados, por ahi poderiamos acaso colher mais largos pormenores deseriptivos. Apenas na carta de Affonso Garro se faz mais’ detida- mente mengio da qualidade dos seus engenhos. Por todos estes mo- -tivos é que reputo da maior vantagem e da maior necessidade a or- gani jo de um inquerito, nio puramente estatistico, como os que tem sido dirigidos e organizados pelo ministerio das obras publicas, mas de caracter archeologico, em que se inventariasse tudo o que ainda existisse relativamente 4 industria da moagem: a férma architectonica do moinho, a sua estructura mechanica, a nomenclatura de todo o seu apparelho @ funccionamento, as differengas que em tudo isto se d&o de provincia para provincia. A ethnographia, a lingua, a industria, lucrariam indubitavelmente com estes pormenores, a que se poderia. dar além d’isso um caracter poetico e sentimental, recolhendo todas as lendas e tradigdes, copiando todas as construcgdes que se recommen- dassem pelo seu aspecto ou pela sua localizagio. Em Vallongo, a duas leguas do Porto, tive ha tempos ensejo de observar uns moinhos, cuja. situago pittoresca daria motivo a um pintor de talento para © mais delicioso quadro de paisagem. Era na confluencia do Sousa 1 Vid. documento n° 4. Este D. Lopo de Almeida foi dos que acompanharam ainfanta D. Leonor, irm& de D. Affonso V, imperatriz da Allemanha,na sna viagem de nupeias & Italia. Sio delle as interessantes cartas em que descreve a cl-rei os episodios deste consoreio. 2 Veja-se Memoria descriptiva ¢ historia documentada do motor hydraulico «Seizal», pelo major Jorge Higgs, Lisboa 1879. 200 + O ArcueoLoco Porrvavits edo Ferreira, correndo entre montanhas alpestres, que pareciam debrugar-se curiosas ¢ ciumentas para assistir ao noivado dos dois rios. Um idylio de Florian num scenario de Salvador Rosa. tempo de proceder a este inventario, emquanto n&o se anniqui- lam as memorias ainda existentes, © que nos poderiam servir de guia seguro no labyrintho do passado. Nao evoquemos estas ruinas para amaldigoar o presente, porque 6 bem sabido que a obra do homem, ainda mais que a obra da natureza, esié sujeita a profundas modi- ficagdes, que redundam, na maioria dos casos, no seu constante aperfeigoamento. Nesta Incta porfiosa inclino-me com sandade para os vencidos, mas nao posso deixar de reconhecer que os vencedores ganharam heroicamente a palma do triumpho. A sua victoria, porém, ha de’ ser ephemera como a de seus antecessores, pois novos rivaes Ihes virilo disputar a primasia. A todos porém é reservado um logar honroso na historia, porque todos contribuiram para o bem estar so- cial, ¢ se acaso a humanidade soffreu algum abalo inquietador, a per- turbagiio passa, a serenidade revive e a confianga renasce. Nem sem- pre as phases novas representam melhoria, antes se podem considerar como retrocesso, mas a formula goral da civilizaglo nem por isso per- deu a‘intensidade do seu brilho, nem a grandesa da sua pujanga. Os sobresaltos causados pelos novos descobrimentos na vida activa de um povo so por vezes sensiveis © dolorosos, mas os desastres silo gene- rosamente reparados e as perdas amplamente resarcidas, Se no fundo do nosso coragio modula tristemente a flanta de Theo- crito accordando os eccos extinctos das paisagens arcadicas, nos nossos labios rebenta impetuosa a cangiio dos novos Tyrtheus, soltando o coro do trabalho, ao silvo das locomotivas © ao rugido impetnoso da or- chestra das fabricas! No seu conjuncto, a superioridade da industria moderna 6 indis- cutivel, nfo tenho diivida em repeti-lo, mas essa supremacia geral nilo/ dé direito a olhar com desdem, langando num offensivo esqueci- mento, todos os antigos processos e conhecimentos mechanicos. Na actualidade esté-se suscitando uma propaganda de reaccio contra "© systema a vapor de moagem, nfo faltando quem pretenda rehabi- litar, como mais~hygienico ¢ salutar, o systema da mé. 0 trigo sae mais alyo dos cylindros modernos, mas } que ganha em apparencia perde em elementos nutritivos, segundo affirmam diversos individuos que se teem dedicado ao estudo da materia, embora outros sustentem doutrina opposta. O desfecho d’esta campanha sb poderd ser ou a reha- bilitag&%o do antigo moinho, conyenientemente modificado, on a modi- ficag%o completa dos cylindros actuaes. O ARCHEOLOGO PorTUGUES 201 Por todos estes motivos, 6 que julgo de suprema vantagem um inquerito © um inventario industrial, em que a archeologia, a mecha- nica, a economia e a sciencia em geral apresentem os resultados das suas investigagdes e emittam 0 seu voto auctorizado. Quem sabe se o ruido lamentoso da azenha, longe de ser o der- radeiro canto do cysne, no ¢ sendo a magoada voz preventiva, que nos avisa de algum perigo que estejamos correndo? Ougamo-la enternecidamente, compassivos, mas ougamo-la tambem reflectidamente, attentos, como quem tem necessidade de receber um conselho e de escutar um oraculo! Documentos I Carta regia de D. Joao LL, de 1 de agosto de 1552, concedendo privilegio a Jero- nymo Fragoso, para a construcgéo de um moinko hollandés em Evora. Eu el-Rey faco saber a quantos este meu aluara virem que Jeronimo Fra- guoso, meu mogo destribeira, me enuion dizer que elle queria fazer hum moinho de vento na cidade dEvora 20 modo dos que ha em Frandes. E porque a tal obra hera énobrecimento e proueito da cidade ¢ nella ndo ounera nunqua moinho de vento desta maneira, me pedia que ounese por bem que pesoa algua nio podese fazer outro moinho desta calidade na dita cidade nem em seu termo sob as penas que me hem parecessem. E visto seu requerimente ¢ avendo respeito ao que diz, e por lhe fazer mereé, ey por bem e me praz, fazendo e acabando elle na dita cidade 0 dito moinho de vento ao modo dos de Frandes, de maneira que estee moente e corrente dentro de tres annos, que comegario da feitura deste, que pes- soa algua de qualquer ealidade que seja nfo possa dhy em diante fazer outro moinho de vento na dita cidade nem em seu termo da calidade e maneira do que elle asy fazer sob pena de o perder pera o dito Jeronymo Fragoso, e paguar cin- quodta cruzados, ametade pera os catiuos e a outra metade pera quem os acu- sar. E mando ao corregedor da comarqua da dita cidade.... Jorge da Costa © fez em Lisboa ao primeiro dia dagosto de mill be cinquoenta e dous. Manuel da Costa o fez escreuer. (D, Soko WE. Pristegioe, .° 1, fo 198 88 Carta regia de D. Joto IH, de 27 de janeiro de 1527, isentando Jorge Ervert, allemao, do pagamento do féro de uns moinkos que tinka em Alcantara. Dom Joham &. A quantos esta minha carta virem fago saber que avendo eu respeito aos servigos que tenho recebidos e ao diante espero receber de Jorge Ervert, alem@, e quoremdolhe por iso fazer graga e merce, tenho por bem ¢ me praz que deste mees de janeiro deste ano presemte em diamte elle no pague em dias de sua vida os quatro moios de trigo, que cada ano pagava ¢ he obrigado 202 O ArcnEoLoco Porrucuts pagar de foro 20 men almazem dos seus.moynhos que tem em Alcantara, ¢ esto em dias de sua vide. Porem mado ao almoxarife ou reeebedor do dito meu alma- zem que do dito dia em diamte na constranga nem mide constranger o dito Jorge Ervert a pagar 0 foro dos ditos quatro moyos de trigo, que ate aquy pagou e he obrigado pagar dos ditos moinhos, por quamto Ihe fago deles meree em dias de sua vyda, como dito he, E esta se treladara nos liuros da dita casa per hum dos esprivaes della pera’ se saber como Ihe tenho feita a dita merce. E por firmesa dello Ihe mandey daar esta carta per mym asinada e aselada do meu sello. Dada em Lixboa a xx bij dias de janeiro— Antonio Paaez a fez —de mill b* xx bij. (D. Joo AN, Doasbes, 1° 30, f01- 11). tl Carta regia de D. Affonso V, concedendo licenga ao infante D. Henrique para construepao de moinkos na aleacova de Santarem, ¢ em bareas sobre 0 Tejo — 18 de maio de 1451. D. Affonso &c. A quantos esta’earta virom fazemos saber que nos querendo fazer graga e meree ao Ifante dom Hemrique, meu muito pregado e amado tio, teemos por bem'e damoslhe lugar ¢ licenga ue elle possa mandar fazer na alca- gova da nossa Villa de Santarem moynhos de vento, quantos Ihe prowuer, ¢ auer 0 proueito delles pera ssy em sua vida, e que outrosey possa mandar fazer moynhos, quantos quizer, no Tejo, em barcas, des a rribeira de Santarem ata a foz de Lix- boa, e que se algiia pessoa ow pessoas no dito rio os fazer quizerem que os possam. fazer com condigom que paguem a nos nosso direito, do qual fazemos merce a0 dito meu tio, © que, quando a Deos prouter de lenar da vida deste mundo o dito Tfante, que os ditos moinhos, asy os que elle fezer na aleagova como os outros, fiquem liuremente e aa coroa de nossos reynos com todas seuas bemfeitorias © per- tengas. U poremmandamos aos veedores de nossa fazenda ¢ contadores e a quaces- quer outros, a que esto pertencer, que leixem assy mandar fazer ao dito meu tio 08 ditos moynhos'ow a quem elle mandar e rrecadar pera ssy 0 dito dereito com- prindo esta carta como em ella faz mengom ssem poendo ssobrello outro algum embargo. Dada em Almeirim x biij dias de maio—Gongallo Cardoso a fez—ano de nosso sefior de mil iiije e Ij anos. E eu Lourengo de Guimariees a fiz esepreuer!. (D. Affonso V, L.° 11, fol. 51 v). Iv Carta regia de D. Affonso V fazendo concesstio identica & anterior a D. Lopo de Almeida. D. Affonso &e. A quantos esta nossa (falta carta) virem fazemos saber que consyrando nos 0s muitos e grandes e continuados seruigos que atee o presente recebidos temos.e bem asy ao diante esperamos receber de Lopo dAlmeida, do nosso conselho e veador da nossa fazenda, e iso mesmo os muitos e grandes ser- "Este documento Ji fot publicado no Insttiuto, vol. x11, pag. 511, pelo nosso amigo o distineto investigador Sr. Brito Rebello, mum seu estado sobre o infante D, Henrique. O ArcHEOLOGO PorTucues 203 ttigos que os Reis nossos antecegores tem reeebidos dos antecesores e.ayoo do dito Lopo dAlmeida, e querendolho agrardoloar em alghia parte, conhecendo que qualquer merce e bem que Ihe fagamos nos tem bem merecido, temos por bem e damosthe lugar e licenga que elle e todos seos erdeiros @ socesores que depos elle vierem posam fazer em 0 rio do Tejo,em Abrantes e em todos seos termos, de hia parte como da outra, quaes quer engenhos de moendas que Thes prouuer e por bem teuerem, asy sobre barquas como per qual quer maneira que Ihes pronuer e em quaees lugares do dito limite que elle quiser, asy de hia parte do Rio como da outra, ¢ queremos que daquy en diante nem nosos socesores que despoes nos vie~ rem nem outra algiia pesoas per nossa nem sua auteridade nom posam fazer em © dito rio dentro das ditas marquas de Abrantes © scos termos de nenhfias das partes do Rio nenhuus engenhos de moendas que se em ele posam fazer, porque nossa yontade he Ihe fazermos pura irreuogauell doagom do nosso motn propio, liure yontade, certa ciencia, poder asoluto, sem nollo por elle pedir nem outrem por elle, do yso ou fruito das ditas moendas do dito Rio, segundo per nos he demarquado, asy e tam compridamente como nos podemos e a nos de direito pode perteneer ou pertenga e milhor se o elle milhor poder teer e aver, por que que- remos que elle e 08 ditos seos herdeiros ajam pera todo senpre o dito husso @ fruito e todo proucito das ditas moendas pera sy em saluo sem nos nem os di- tas nossos socesores delle nem dos ditos seas herdeiros avermos conssaalgiia, saluo hfiu par de eapotes e hiu pato, que o dito Lopo dAlmeida e seos herdeiros pa- gard a nos e a todos nossos ssocesores em cada hfiu anno de foro e em nome do senhorio de eada hfin engenho de moenda que asy fizer em o dito Rio e limite per nos demarquado, e tresmudamos em o dito Lopo dAlmeida ¢ herdciros toda propiadade, angam ¢ senhorio que em o dito Rio temos ¢ avemos ¢ poderemos teer ¢ aver de direito pera fazer as ditas moendas no dito limite-ty per nos de- marquado, e The damos lugar e licenga e aos ditos ‘seos herdeiros que elles post dar e doar, troquar ¢ esedbar a quem quiserem e por befn teuerem 0 dito direito e propiadade pera fazer as. ditas moendas, de que Ihe nod fazernos merce e izre- uogauell doagom pura ¢ per todo senpre sem pera ellé Ih¢ ser necegaria nossa, auteridade ¢ licenca nem dos ditos nostos socesores, por que nossa meree he que © dito Lopo dAlmeida e erdeirog fagt dello o que The aprouuer como de sua coussa propia é isenta, contanto que aquelles que delle owverem ou dos ditos seos herdei- ros a dita propindade o direito de moendas, per qual quer gnisa que seja, paguem @ nos ou aos ditos nossos socesores em cada hiiu ano o dito foro e trabuto em nome do senhorio—s—os ditos dous eapodes e hiu pato de. cada hiiu engenho de moeer, que se em o dito Rio fezerem em o dito limite per nos demarquado, e acontecendo que nos on os ditos nosos socesores em algtiu tempo dermos Ingar ‘e licenga alguas pesoas pera em o dito Rio fazerem algius engenhos de moeer em © dito limite ou as pera nos querérmos fazer nom sendo desta carta de doagom nembrado ou per quall quer outra maneira que seja, queremos e nos praz que tall licenga seja nenhfia é de nenhiin valor per qual quer guisa que sejam feitas, posto que desta faga expressa mengio, ¢ que nos nem os ditos nossos socesores sem ou- tra algiia auteridade nossa nem doutra algiia pessoa posam ronbar e diribar e destroir os dites engenhos que asy fizerem sem embargo de quaeés quer nossas hordenagSes e direitos que em eontrairo seji feitas, os quaes nos avemos quanto aeste casso por expresos ¢ os dencgamos a esta doagom ante poemos nossa autiri- dade e queremos que valha e tenha como em ella he contheudo, soprindo em ella que defeito que for achado de feito ou dixeito por que nos pormetemos per “ 204 O ArcuEroLoco Porruauts nosa fee real em nosso nome e dos ditos nossos socceores de teer miteer esta nossa carta de doagom ao dito Lopo dAlmeida e erdeiros por lhe fazermos graga e merce pellos muitos seruigos que delle temos reeebidos como dito he. E por esta mandamos ao nosso contador da dita comarqua que faga registar esta nossa carta em os linros dos contos della pera per 0 dito registo se reeadar o dito foro em cada hfiu ano e se saber em todo tempo como esto temos dado e outorgado a0 dito Lopo dAlmeida e erdeirose elle tenha por sua guarda esta nosa carta, per nos asynada e asellada do nosso sello pendente. Dante em a nossa mui nobre e sempre leal cidade de Lixboa —G° Roiz a fez—anode nacimento de nosso Senhor Ihfi Xe de mill e iiije Ixbiij annos. : (D, Atfonso V, Doasder, L.* 28, fol. 10). Sovsa Virerso. Cousas arabico-portuguesas 1, A inscripgao arabe do cofre da Sé de Braga Com este titulo publicémos anteriormente n-O Archeologo (I, 273) um artigo que, por conter algumas inexactiddes, vamos rectificar. Affirmimos que esta inscripgio ainda nfo tinha sido publicada no seu original; ora ella jd o havia sido pelo Sr. Don Rodrigo Amador de los Rios no seu trabalho Memoria acerca de algunas inscripciones ardbigas de Espatia y Portugal, pag. 281. A leitura da inscripg&o tambem est incorrecta numa palavra e incompleta noutra. O Sr. Ama- dor de los Rios 18 (¢13 onde nés lemos _¢3J, @ nfo ha diivida de que a sua é a verdadeira; o » d’esta palavra tem no original a forma de um J, como nas outras palavras .,» ete., alem de que & forma muito corrente nas inscripgdos. A palavra soguinte & por este Sr. Hida Lill (por _3!l), no quo concordo plenamente, porque o original no o contradiz. Parece-nos inutil dizer que i>le (como no nosso texto impresso) por Jol... é um erro de impressio, que nos escapou na reyisio das provas. Seja-nos permittido agora fazer algumas ligeiras observagdes ao texto tal qual foi publicado pelo Sr. Amador de los Rios. Este Sr. repete a palavra al! depois de aN! s,2) separando-as por ponteado indicando. uma lacuna no original; ora a inseripg%o é continua nessa parte, sem interrupgio de texto, nem t&o pouco de sentido. O mesmo Sr. 16 aly 1 (mas nds ale 1); ora isto parece-nos incorrecto porque o verbo y+! se construe ou com —, ou com ,,! @ conjun- ctivo, assim aly ys) ow ale vw yl}: Tambem 16 este Sr. yal};

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