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0”) CEI nL - QO Inconsciente CONCEITOS DA PSICANALISE O Inconsciente PHIL MOLLON Editor da série Ivan Ward Ideas in Psychoanalysis - Sadomasochism foi publicado no Reino Unido ern 2000 por Icon Books Ltd, The Old Dairy, Brook Rd, Thriplow, Cambridge SG8 7RG Copyright do texto © 2000 Phil Motion Conceitos da Psicandlise - O Inconsciente 6 uma co-edi¢ao da Edioura, Segmento- Duetto Editorial Ltda. com a Relume Dumara Editor. Ediouro, Segmento-Duetto Editorial Ltda.: Rua Cunha Gago, 412, 3° andar, S20 Paulo, SP, CEP 0542 1-001, telefone (17) 3039-5633. Relume Dumara Editora; Rua Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, Rio de Janeiro, CEP 2042-235, telefone (21) 2564-6869. Copyright da edigao brasileira © 2005 Duetto Editorial Indicagao editorial Alberto Schprejer (Reiume Oumar Editora) Coordenagao editorial da série brasileira Ana Claudia Ferrari e Ana Luisa Astiz (Duetto Editorial, Tradugao e edi¢ao Carlos Mendes Rosa Revisao Eliel Silveira Cunha Capa Metropotis, Kobal Collection Diagramagao Ana Maria Onofri CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RU. M74 Mollon, Phil ‘Oinconsciente / Phil Mollon : tradugao Carlos Mendes Rosa. = Rio de Janeiro : Relume : Ediouro : Segmento-Duetto, 2005 (Conceitos da psicanalise ; v.1) Tradugao de: Ideas in psychoanalysis : the unconscious ISBN 85-7316-425-5 1. Inconscieme (Psicologia). I. Titulo, Il. Série. CDD 154 05-1923. CDU 159.923.2 Nennuma parte deste livro pade ser reproduzida de nanhuma forma € por nenhum meio sem autorizagao exoressa e por escrite da Ediouro, Segmento- Duetto Editorial Ltda. neeito de inconsciente batia havia muito tempo nos por- ologia, querendo entrar. A filosofia e a literatura wn brincar com ele, mas a ciéncia ndo the encon- aumuso. (Freud, 1940)! O INTRUSO LASCIVO Um homem se aproxima do balcéo de uma companhia aérea nos Estados Unidos com a intengdo de comprar um bilhete para Pittsburgh e é€ atendido por uma jovem muito atraente dotada de seios enormes. Um pouco aturdido, o homem deixa escapar: “Dois cacetes para Peitosburgh, por iavor!”. O equivoco revela, de maneira um tanto obvia, mais os desejos desse homem do que sua vontade consciente de comprar a passagem.* Uma luxuria oposta a vontade ex- oressou-se lascivamente, clesarticulando seu discurso. Um autor bastante irritado com algunas das suges- c3es de mudanca em seu original feitas pelo editor obe- deceu condescendente € alterou o texto. Entéo, enviou a nova versao ao editor por e-mail. Alguns dias depois, nao tendo resposta do editor, telefonou para se informar e descobriu que 0 e-mail nao chegara. Verificou nas suas mensagens enviadas e descobriu, muito embaracado, que o enviara para o endereco de outro editor! Apesar de nao ter sido sua intencao consciente, 0 ato equivoca- do correspondeu a sua fantasia de encontrar outro edi- tor. Uma intengao conflitante infiltrou-se e apoderou-se das acdes do escritor. Por volta do final do século XIX, o presidente do Par- lamento austriaco abriu uma sesso com as seguintes palavras: “Percebo que ha quorum e portanto declaro a sesso encerrada”> Ele pretendia conscientemente de- clarar a sessio aberta, mas cometeu um lapso que re- velou o que de fato sentia. Algumas sessoes anteriores haviam sido muito tumultuadas e pouco produtivas, de modo que era compreensivel que o presidente preferisse fazer o discurso de encerramento ao de abertura. Apesar da intencao de abrir a sessao, um desejo contrario se manifestou. E assim que o inconsciente fala — muitas vezes com embaraco, como se zombasse das nossas ilusdes de percepcda consciente € controle sobre os nossos de- TO PERTINENTE? sejos € intencdes. A consciéncia pode surgir apenas como fragil bolha nas aguas profundas da emogao, do aesejo e do medo. O INCONSCIENTE E UM CONCEITO PERTINENTE? © inconsciente € por definicdo incognosctvel [...]. O psica- calista esta, portanto, na posi¢do infeliz de ser um estudioso iiquilo que ndo se pode conhecer:* A idéia de motivacdes inconscientes € uma inferéncia que explica as falhas e distorgdes da nossa consciéncia. + hipdtese, que da coeréncia a dados comportamentais tals que de outra maneira pareceriam incoerentes, s de modo sistematico pela primeira vez por tu que lapsos verbais e da escrita, confusas € outros erros po- ‘ofunda. nao erros casuais, mas ciemtemente intenctonais. Sua genialidade = em ver que valia a pena estudar fendmenos que tiviais, alem de reconhecer a ligacao entre es- s criac6es da mente, como sonhos, chistes e neurdticos. Algumas vezes as pessoas mostram-se céticas de que exista uma mente inconsciente, raciocinando da seguinte maneira: “Se nao percebemos uma coisa com a consciéncia, entAo ela nao existe”. Nao ha duvida de que o “inconsciente” pode parecer um conceito enga- noso. Por definicao, se uma parte da mente € incons- ciente, nado temos consciéncia dela. Isso significa que uma hipotese, ou uma “interpretacdo”, no que diz res- peito ao contetido inconsciente da mente, nao pode ser examinada em detalhe a luz da evidéncia — uma afirmacado dogmatica que o paciente deve engolir sem questionar, por causa da suposta “autoridade” do psi- canalista? Por sorte, a posicao epistemoldgica nao é tao desoladora. E possivel pensar de acordo com gradacoes de consciéncia. Nos exemplos apresentados, as inten- cdes opostas do individuo nao estavam muito distantes da consciéncia. Uma introspeccéo momentanea, aliada a uma capa- cidade psicoldgica minima, teria levado o desejo menos consciente ao pleno conhecimento da pessoa. Do mes- mo modo, no decorrer de uma terapia psicanalitica, em que se encoraja o paciente a falar e pensar com a maior liberdade possivel, seus desejos € temores se aproximam gradualmente da consciéncia. ve E bik CONCETD PeRTeuCNTE? Seria inutil uma interpretagao psicanalitica que fosse cauito além da capacidade de percepcao do paciente, a sonto de ser aceita sem comprovacao. As interpretagdes apresentadas numa analise sao hipoteses do que pode estar acontecendo na mente do paciente ou entre 0 pa- nte eo analista. Baseiam-se nos indicios do compor- ento e das palavras do paciente e sao aventadas a luz 2 reacao do paciente A psicanalise € um esforgo conjunto do analista e => paciente que tem por objetivo expandir o dominio comsciéncia, de modo que © paciente possa ter mais ercepcdo, liberdade e escolha. Todavia, é uma viagem ce exploragao do desconhecido, em que se deve evitar quer impressao de certeza. do da plausibilidade do inconsciente pode 233, A pergunta deve ser: “E plausivel ter- $s OS NOSsos processos mentais?” *. Na maior parte da ncias rimental nao se deu muito © conceito de consciéncia quanto com ncia. visto que ambas pareciam fora do stigacdo de laboratério joristas radicais do inicio do século XX 1a consciéncia mero “epifendmeno”, sem O ficoNSCIENTE significado nem interesse cientifice.’ A medida que a psicologia se aprimorou, os processos ¢ as funcées da consciéncia e da inconsciéncia abriram-se a investiga- co cientifica.® A concepgao de consciéncia é na verdade semelhante a de atencao. Estamos conscientes daquilo de que nos ocupamos e inconscientes daquilo de que nao nos ocu- pamos. Seria muito facil estarmos conscientes de certas coisas se voltassemos a atencdo para elas — 0 que corres- ponde ao que Freud? chamou de “pré-consciente”. Evi- tamos dar aten¢4o a outras coisas por acharmos que sao dolorosas ou perturbadoras —.0 inconsciente reprimido. E capaz que uma analogia atual ajude. A consciéncia pode ser comparada com o que esta visivel na tela de um computador. Tem-se acesso imediato a outras informagoes pulando para outra parte do documento ou mudando de “janela”. Isso seria analogo as partes conscientes € pré- conscientes da mente. No entanto, talvez seja mais dificil acessar outros documentos do computador: eles podem estar criptografados ou comprimidos, podem exigir uma senha ou ainda ter “acesso negado”. Alguns podem ter sido corrompidos, de modo que a informacao esteja em- baralhada e, portant, seja incompreensivel. Enquanto a internet oferece (as pessoas coletivamente) todos os tipos NTE E ust Concern Pertivente? contenham material considerado inaceitavel. A‘err. disso - parte da atividade do computador nao esta + 2 tela, o que € andlogo a idéia de Freud de instini >aseados na corporeidade, ou “id”, por si inacessivei mente e perceptiveis apenas por meio dos seus derivad desejos e fantasias). Outro aspecto do inconsciente aparece na frustragao peculiar que experimentei nos meus primeiros contron- tos com um computador e€ nas tentativas iniciais de aces- sar a internet. Algumas vezes me senti profundamente aturdido, O que aumentou a agonia com essa perplexi- dade foi que eu nao conseguia sequer identificar ou for- mular em palavras as duvidas para as quais eu precisava de respostas; as vezes parecia que nada fazia sentido. isso € analogo ao que se chama de “pré-consciente sim- adlico™ — aquelas areas da vivéncia que nao sdo cons- clientes por ndo conseguirmos traduzi-las em palavras ou qualquer outra forma de representacdo mental. Es- ses fendmenos podem estar eventualmente associados - ansiedade, perplexidade ou “terror pré-simbélico”, O -onceito de inconsciente pré-simbolico também se apli- it O ICORSCIENTE, caria a primeira infancia, anterior ao desenvolvimento da linguagem. GASES, MANCHAS E MENTIRAS Outros exemplos de lapsos de linguagem nos leva a area das doencas mentais ou psicopatologias. Um paciente foi encaminhado a uma clinica com um temor exagerado de perder 0 controle dos intestinos, ao qual associou uma dor persistente no anus (apesar de parecer que nao havia anormalidade fisica). O psicote- rapeuta pediu ao paciente que descrevesse mais 0 pro- blema e o que sentia. Ao falar de seu temor de perder controle e expelir fezes ou flatos, o homem sem querer disse que temia deixar escapar seus “sentimentos’. E bem provavel que nao fosse o que ele pretendia dizer conscientemente, mas acabou expressando com exati- dao suas ansiedades inconscientes.,Foi um indicio que permitiu ao psicoterapeula investigar cerlas areas da vida do paciente que talvez o estivessem perturbando. O paciente reconheceu que as vezes sentia preocu- pacdo com um problema particular, mas disse que ten- lava expulsar esses pensamentos da cabeca. Portanto, as preocupagoes eram dispersadas pelo seu corpo, mas 0 problema apenas se deslocava. Um exemplo comum , Musionas & Mennaas de processo similar € o de uma crianga que se queixa de desconforto fisico, como dor de barriga, quando esta preocupada com a escola. Outro paciente passou por momentos de panico no trabalho quando na presenga do seu chefe. Ao falar ne- enganou-se e disse: “Eu tive um acesso de rai. gustia”. Um exame mais profundo revelou que ale esta- va, de fato, em conflito por causa do seu sentimento de raiva pelo chefe (decorrente do sentimento anterior de raiva por seu pai) — e o que lhe provocara angtistia era o ciente de que sua ralva extravasasse. : segunda janela para o inconsciente é€ revela- da por um esclarecimento do significado de sintomas neurolicos aparentemente bizarros e inexplicaveis. Freud" apresenta o seguinte exemplo de uma neurose obsessiva grave. Uma senhora de 30 anos sentia-se compelida a repe- tir uma acdo especifica muitas vezes por dia: corria de uma sala para outra, ficava em uma mesma posicao a mesa, tocava a campainha para chamar a criada, orien- tava-a para uma pequena tarefa e entao corria de volta Dara o seu quarto. De inicio, nem Freud nem a paciente ‘inham a mais vaga idéia do que se tratava esse ritual. Entretanto, a senhora enfim dew a pista crucial. Dez anos antes, ela se casara com um homem que teve impoténcia na noite de nupcias. Durante a noite, ele teve de correr diversas vezes do quarto dele para o dela a fim de tentar mais uma vez 0 coilo, sem sucesso. De manha ele disse enraivecido que ficaria enver- gonhado se, quando a criada fosse fazer a cama, nao houvesse indicio de relagao sexual. Entaéo, pegou um frasco de tinta vermelha e espalhou um pouco dela nos lengois, ainda que nao no local em que a mancha de sangue deveria estar. Depois de contar isso a Freud, a se- nhora levou-o a sala onde ela se sentava a mesa durante o ritual. Mostrou-lhe uma grande mancha vermelha na toalha. Ao que parece, a posicao da mulher a mesa fazia que a criada visse a mancha imediatamente. Com tais informacoes, a explicacdo de Freud para o ritual obsessivo foi a seguinte: a paciente se identificava com o marido ao correr de um comodo para 0 outro; a mesa e a toalha representavam cama é lencol. Portanto, o ritual da paciente era uma representacao do que ocor- rera na noite de nupcias. Ao chamar a criada, que via a mancha, a mulher tanto repetia a situacao quanto a corrigia simbolicamente — a mancha ficava no lugar cer- to. Segundo a interpretacao de Freud, a acao obsessiva queria dizer: “Ele nao precisava se envergonhar diante ada: ele nao era impotente”"'. O ritual expres- ejo: desmentir a impoténcia do marido. interpretacdo do ritual torna-se mais plausivel [ormacoes dos acontecimentos da vida da pa- parada do marido muitos anos, mas nao Jia pensar em divércio. Para afastar a tentacdo de intel ao marido, ela se isolou e criou na imaginacao uma imagem enaltecida dele. O ritual obsessivo tinha © significado de repudiar as eventuais criticas que ela ‘izesse ao marido. Freud comenta: Na verdade, o mais profundo segredo de sua doenga consistia em que, por meio da doenca, protegia o marido de comen- tdrios maldosos, justificava a separacdo e permitia a ele ter uma vida cémoda. Assim, a andlise de um ato obsessivo ind- cuo levou ao dmago de uma doenca, mas ao mesmo tempo nos revelou uma parte nada pequena do segredo da neurose obsessiva em geral.'? Freud também nota que a interpretacdo do sintoma coi uma descoberta essencialmente da propria mulher, 20 correlaciona-lo com um acontecimento perturbador, “gado a parte mais intima da sua infelicidade — circuns- clas pessoais muito dolorosas para a consciéncia tole- 15 O Incansnienve rar. Ela ainda se debatia inconscientemente com as conse- quiéncias em sua vida sexual e no relacionamento com o marido, persistindo na negacao da realidade humilhante. Ao gerar a doenga neurotica, seu inconsciente criou uma espécie de solucao para os seus conflitos: permitin que © casal vivesse separado, preservando ao mesmo tempo a teputacao do marido, e permitiu a mulher, na sua fan- lasia inconsciente, desmentir os fatos inaceitaveis da sua infelicidade sexual. Isso é tipico da capacidade da mente inconsciente de ser muito engenhosa na descoberta de acomodacées criativas para o conflito mental. | Embora o significado desse ritual tenha sido logo compreendido pela paciente, é facil imaginar que em certos casos exista uma forte resisténcia a interpretacao da solugdo inconsciente de um conflito. A descoberta do disfarce inconsciente destrdi inteiramente a solucao inconsciente, expondo outra vez 0 individuo ao aspecto da realidade que the era intoleravel. Por isso a psicanali- se tem sido odiada e temida (mas inconscientemente). Freud ea psicanilise posterior descreveram muitas ma- neiras usadas pelos seres humanos na tentativa de escon- der de si mesmos a verdade emocional. Sao os mecanismos de defesa'?, que compreendem a repressiio (banimento da consciéncia), a projecdo (atribuicado a outra pessoa de um 16 o ind vel de si), a racionalizacdo (invencdo de des falsas para as proprias motivacdes), a cliva- adocae de atitudes ou sentimentos contraditéries commartimentos separados de percepcao), as delesas zs \modos de negar sentimentos de depressao) e outras variagées sutis desses temas. Tais “mentiras” para si mesmo s40 ao mesmo tempo -mportantes e lugares-comuns. Revelam como é ténue © conhecimento consciente que temos de nds mesmos Entretanto, ha uma razdo mais profunda para a aver- s40 a psicandlise — além da revelacgdéo das motivagées inconscientes. E a ameaca de encontrar a absoluta “al- teridade” do inconsciente — a vida que habita em nos, que nos é desconhecida e nos dirige, embora nao fale a nossa lingua —, 0 oraculo aterrorizador que se exprime ou murmura incompreensivelmente durante 0 sono. SONHOS A interpretacdo dos sonhos € a via régia para o conhecimen- 22 das atividades inconscientes da mente.“4 =. andlise de sonhos é 0 problema central do tratamento ana- =o porque € 0 mais importante recurso técnico para abrir 7 O INcONSaENTE | uma avenida para o inconsciente [...]. Sonhos séo fatos ob- jetivos. Eles ndo respondem as nossas expectativas e nds ndo os inventamos [...].! Q lterceiro ponto de acesso ao inconsciente ¢ a ex- ploracao do significado dos sonhos. Freud sentiu que 0 livro The Interpretation of Dreams'* [A Interpretacao dos Sonhos] era sua obra mais importante — e, de fato, os in- sights que ele apresenta ai sao profundos e de influéncia _ duradoura. Apesar de a psicanélise ter se ramificado em i\ muitas direcdes desde as teorias e as técnicas originais de Freud, todos os analistas fazem uso de aspectos da compreensao do inconsciente esbocada em seu livro dos sonhos. Nessa obra Freud apresentou nao apenas uma teoria dos sonhos e um _meétodo de interpretacao deles mas também discerniu e dissecou os modos de pensar e representar empregados pela mente inconsciente — mui- to diferentes dos empregados pela mente consciente. Freud chegou a hipdtese de que os sonhos represen- tavam a realizacao disfarcada de um desejo — exatamen- licos podem fazer. Isso te aquilo que os sintomas neur talvez fique mais claro nos sonhos das criangas. Freud da a seguir um exemplo bem simples de um desejo ma- nifestado em sonho, que pode ser comparado com o 18 to antes, da expressao do desejo de uma pa- iva por meio de um ritual."’ vo crianca, uma mulher tinha um sonho fre- “tg em que “Deus usava um chapéu de papel de “Visto isoladamente, sem mais informacées em sonhou, nao existe um significado evidente : sonho. A paciente, porém, lembrou-se de que imava usar as refeicdes um chapéu como aquele, >or causa do seu habito de lang¢ar olhares furtivos ao =rato dos irmaos e das irmas para ver se eles tinham re- -2bido mais comida do que ela. O chapéu servia como -m par de antolhos e era uma forma de envergonha- “2, para que nao desse mais aquelas espiadas. Nao [oi aificil para a mulher chegar sozinha ao significado do sonho com uma idéia que lhe ocorreu: “Como eu tinha suvido que Deus era onisciente e via tudo, o sonho so pode significar que eu sabia de tudo, mesmo que ten- iassem me impedir”.'* Como no caso da paciente que fazia 0 ritual da toalha =2 mesa manchada, o inconsciente encontrou um meio <2 repudiar o aspecto repulsivo da realidade. Em outro exemplo, Hermann, menino de apenas 1 soe 10 meses, tinha de entregar a alguém, de presente . Aniversario, uma cesta de cerejas. Era obvio que ele 19 | O IorscunTe: nao queria fazé-lo, Na manha seguinte, disse que tivera este sonho: “Hermann comeu todas ‘ceiesas!’”! / Freud comenta que esses e outros exemplos mostram \ que os sonhos de crian¢as sao quase sempre breves, cla- ros, coerentes e faceis de entender. Além disso, contém a Cfealizacao Sbvia de um desejo (que em geral encerram um desejo mais amplo de ser capaz de contestar as proibicdes dos adultos). Freud chega a conclusao de que a distorgao onirica ndo faz parte da natureza essencial dos sonhos. Entretanto, ha uma forma sutil de distorcéo mesmo nes- ses sonhos de infancia, a ponto de o pensamento ou de- sejo latente (por exemplo, eu gostaria de comer as cerejas) ser transformado durante o sono numa experiéncia (por exemplo, eu como as cerejas). Freud também notou que as pessoas que sofrem privagdo de necessidades fisicas, como as que estao morrendo de fome (mais do que ape- nas desejando cerejas), podem sonhar com o atendimen- to dessas necessidades. Ele cita os sonhos de membros de uma expedicao a Antartida, que invariavelmente giravam em torno de comer e beber em grande quantidade. Até a filha dele, que fora obrigada a nao comer por um dia devido a umm mal de estémago, sonhara com um cardapio ao qual seu nome estava ligado: “Anna Freud; morangos, morangos silvestres, omelete, pudim!”.7° 20 } $ EPRI 2 PLLA ALD POMPE EY CeCe rw OG My VAjeowls cloves, Suntos Jo um meio de preservar 0 sono, proporcionando cdes alucinatorias de desejos que, nao fosse as- seriam perturbadores. nesses exemplos uma continuidade entre um de 5 onsciente € a transformacao onirica do desejo em taco alucinatoria. Freud da o exemplo de um sonho ‘0 significado da realizacao do desejo estava um pou- 22 mais oculto, ainda que evidente apos reflexdo: um somem relatou que sua jovem mulher sonhara que sua il! menstruacao havia comecado. Freud argumentou que, se 4 menstruacao estivesse atrasada, ela deveria saber que nodia estar gravida. Logo, ao apresentar seu sonho, a mu- -her estava anunciando tanto sua gravidez como, ao mes- mo tempo, o desejo de que ela pudesse ser adiada.”! Os sonhos ficam mais obscuros ao se lidar com dese- ‘as aterrorizadores ou associados a conflitos emocionais — desejos que sdo, portanto, submetidos 4 censura men- zal e tornados inconscientes. Freud mostrou que, para descobrir o significado dis- “sxgado de um sonho, é necessario cotejar as associagées =iquele que sonhou — seus pensamentos espontaneos — .am varios elementos do sonho (visto que os simbo- : oniricos nao tém significados universais fixos). Um 21 exemplo relativamente simples desse processo é descri- toa seguir.”? Uma mulher sonhou que queria oferecer um jantar mas nao tinha comida em casa, a nao ser um pouco de salmao defumado. Pensou em sair para comprar alguma coisa, mas lembrou que era uma tarde de domingo e que todas as mercearias estariam fechadas. Tentou ligar para alguns fornecedores, mas o telefone estava quebrado. Em vista disso, teve de deixar de lado o desejo de ofere- cer um jantar. A mulher relatou que no dia anterior seu marido dissera que estava engordando muito e decidira fazer exercicios e€ um regime rigoroso ~ 0 que também significava nao aceitar convites para comer, Com mais resisténcia, a paciente fez outras associa- coes: no dia anterior, visitara uma amiga admirada por seu marido, o que, portanto, lhe deu certo citime. To- davia, ela se tranquilizara com o fato de sua amiga ser muito magra e de seu marido em geral sentir-se atraido por um corpo mais cheio. Freud perguntou sobre o que elas haviam conversa- do. A mulher respondeu que o assunto tinha sido 0 de- sejo da amiga de engordar um pouco. A amiga pergun- tara: “Quando € que vocé vai nos convidar para outro jantar? Os que voce oferece sao sempre 6timos”. I s AAD totente = aes wtt . AD TRU ILL ee 2 Sade concluiu que o sonho ficara claro e o interpre- ara a paciente da seguinte maneira: somo se, quando ela fez aquela mencdo, a senhora dis- => a si mesma: “Ora essa! Vou convidd-la para comer minha casa so para que vocé possa engordar e atrair cu marido ainda mais! Prefiro nunca mais oferecer wm entar”. O que o sonho significa é que a senhora nao podia oferecer jantar algum, realizando assim o seu desejo de nao rovocar o pavor de ser levado a loucura. De acordo com a teoria de Bion, deve acontecer o tempo todo alguma coi- sa proxima do sonhar (que ele denomina “fungdo alfa”) Ungao alla — a transformacao de dados sensoriais em representagdes visuais, auditivas, olfativas e tateis emocionalmente signi- ficativas que podem ser “digeridas” e contribuem para o crescimento da mente. A falta de sonhos é uma questéo grave. Bion expée (enigmaticamente) essa idéia: wand Costumava-se dizer que a pessoa tinha pesadelos por causa de indigestdo e por isso acordava em pdnico. Minha inter- pretacdo é: 0 paciente adormecido esta tomado de panico; como nao pode ter um pesadelo, ndo pode acordar ou ir dor- mir; desde sempre ele teve foi indigestao mental.*! A suposi¢ao psicanalitica de que os sonhos sao cria~ - Ses cheias de sentido do pensamento inconsciente seria Lan, Aevdus? penne ceqw < Le OULU, che eontobe wat, Xk Le AW ee ay vy 4 ~ onan Bp GOW valida 4 luz do conhecimento atual? Com a descoberta nos anos 1950 da fase do sono de movimento rapido dos olhos (REM, abreviatura de rapid eye movement] e sua correlagéo com o sonhar, muitos psicdlogos presu- miram que os sonhos nao passavam de imagens sem sentido geradas por “ruidos enviados pelo tronco cere- bral’?, Os que aceitaram esse ponto de vista conclui- ram que a teoria de Freud era um disparate. Entretanto, pesquisas mais recentes revelaram que o sonho nao tem ligagéo apenas com o sono REM; sonhar nao € causado pelo sono REM.* Solms™ demonstrou que a imagem do cérebro durante o sonho proporcionada pela neu- rociéncia atual é bastante compativel com a teoria dos sonhos exposta por Freud cem anos atras. Schore de- fende a idéia de que a teoria neuropsicolégica da mente elaborada por Freud estava muito a frente da época e que apenas recentemente a neurociéncia compreendeu o que Freud previu no século XIX.*° COMO OS SONHOS REPRESENTAM IDEIAS: CONDENSACAO E DESLOCAMENTO Freud chamou a atengao para ouira causa de apa- rente obscuridade dos sonhos, além da distorgao de- corrente de censura e da necessidade de disfarce. A enn 30 SLOAMENTE wguagem do inconsciente opera de um modo bem rente da linguagem do consciente. Os pensa- mentos expressos pela mente consciente sao orga- aizados de uma forma gramatical sequencial mais >u menos ldgica, seguindo aproximadamente certas -egras lingttisticas. O uso “legal” de simbolos € que faz um individuo -ompreender o outro quando usam linguagem comum 2 eles. Em contrapartida, a mente inconsciente, em es- >ecial como é expressa nos sonhos, emprega diversas -magens visuais que podem misturar muitos significa- dos diferentes de uma s6 vez — com esses significados multiplos aludindo a fragmentos ou indicados por eles, = néo enunciados explicitamente e na integra. E como se diversos pensamentos tivessem sido despedacados ou embaralhados e depois espremidos para formar o que 2arece ser uma porgaozinha de significado. No entanto, essa analogia nao faz jus a criatividade - a0 engenho espantosos que o inconsciente mostra ao -onstruir imagens oniricas apropriadas para representar -ma miriade de pensamentos, desejos e temores. Freud usava o termo condensacao para se referir a =ssa capacidade de combinar muitos elementos de sig- “ificagdo. Descreveu esse processo assim: 31 O ICONSCIENTE, A condensacao se realiza (1) pela omissdo total de determi- nados elementos latentes, (2) por meio de um sé fragmento de alguns complexos do sonho latente que transparece no sonho manifesto e (3) pelos elementos latentes com algo em comum que se combinam e se fundem em uma unidade no sonho manifesto.*° Ele explica que a forma mais simples da condensagao ocorre quando uma figura em um sonho é composta de varias pessoas. Uma personagem composta assim talvez possa parecer com A mas estar vestida como B, fazer algo que lembre C e ao mesmo tempo nos fazer saber que é D. Essa estrutura com- posta sem diivida enfatiza algo que as quatro pessoas tém em comum. Pode-se, € claro, formar tal estrutura composta de coisas ou de lugares do mesmo modo que de pessoas, des- de que tais coisas ¢ lugares tenham em comum algo que o sonho latente acentua. O processo se assemelha a construcado de um conceito novo e transitério que tem nesse elemento comum o seu nucleo. O resultado dessa sobreposi¢do de ele- mentos separados que foram condensadas em um so é em regra uma imagem borrada e vaga, como quando se batem varias fotografias numa mesma chapa.?” 32 NoCHSACM E DES A segundo caracteristica das representagdes incons- ntes € o deslocamento. Freud revela que ele ocorre SS : . duas formas: pela substituicaéo de um elemento por tro mais remoto que alude ao primeiro e pela troca de fase de um elemento importante para outro que nao 2 importante. Anos depois, o psicanalista francés Jacques Lacan referiu-se a esse processo como “deslizamento dos sig- nificantes”.** Se no pensamento consciente (sobretudo no cientifico) uma palavra tem um sentido bem preciso, no inconsciente é facil os sentidos deslizarem de uma representacao (significante) para outra. Outra tarefa ainda da representacao inconsciente, parti- cularmente em sonhos, € a transformacdo dos pensamentos em imagens visuais ¢ a substituicdo de uma idéia abstrata por outra mais concreta, Freud da como exemplo a idéia de adultério” (uma fratura no casamento), que é dificil de re- >resentar em uma imagem, sendo retratado com a imagem <2 outro tipo de fratura, como “uma perna fraturada”.” Jung, um dos primeiros colaboradores de Freud, da > exemplo do sonho de um solteiro de 31 anos.” “s-me numa sala pequena, sentado a uma mesa ao lado do “apa Pio X, cujas feicdes eram muito mais bonitas que na 33 O INconscenTe realidade, 0 que me surpreendeu. Vi de um lado da sala em que estavamos um grande apartamento com uma mesa arru- mada suntuosamente, e um grupo de senhoras com vestidos de gala. Senti uma vontade subita de urinar e sai. Quando retornei, a vontade se repetiu; sai de novo, e isso aconteceu diversas vezes. Enfim acordei com vontade de urinar. © paciente explicou o sonho como uma necessidade de esvaziar a bexiga durante o sono. Todavia, surgiram outros significados ao analisar suas associagées. Jung pediu-lhe que dissesse que relacao ele fazia com cada um dos elementos do sonho: Sentado ao lado do papa: “Do mesmo modo que ao lado de um xeque de uma seita mulcumana que foi meu anfhitriao na Arabia. Um xeque é assim como um papa”. Jung conjeturou que parte da idéia do sonho tem ori- gem no fato de o papa ser celibatario, enquanto o xeque € mulcumano — 0 paciente € solteiro mas gostaria de ter tantas mulheres quanto 0 xeque. A sala € 0 apartamento com a mesa posta: “Sao aparta- mentos na casa do meu primo, onde estive num grande jantar ha cluas semanas”. As mulheres com vestido de gala: “Nesse jantar havia também senhoras, as filhas do meu primo, mogas em 34 © DESiXa AMERIC ade de se casar”. O homem fez uma patisa, mostrando cesisténcia em continuar, Jung perguntou sobre as mo- . “Ah, nada; recentemente uma delas estava em F. Fi- ou conosco por algum tempo. Quando foi embora, eu 3 acompanhei até a estacdo, junto com a minha irma.” Ele fez outra pausa e Jung perguntou em que ele estava pensando. “Ah, eu estava apenas lembrando que eu dis- se uma coisa a minha irma que nos fez rir, mas esqueci completamente o que foi.” Entao, recordou-se. “No cami- nho para a estacéo encontramos um cavalheiro que nos cumprimentou e que tive a impressdo de reconhecer. De- pois perguntei a minha irma: ‘Aquele € 0 cavalheiro que esta interessado em ... (a filha do primo)?’.” Parece que o paciente também estava interessado na jovem, que ja se comprometera com o homem aqui mencionado. O jantar na casa do primo: “Em breve terei de ir ao casamento de dois amigos”. As feicoes do papa: “O nariz era muito bonito e ligeira- vente pontudo”. Jung perguntou quem tinha um nariz como aquele. “Uma moga por quem come¢o a sentir -m grande interesse.” Jung indagou se havia algo mais : vespeito das feicdes do papa no sonho. “Sim, a boca =ra muito bem delineada. Outra moga, que também me rai, tem uma boca assim.” 35

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