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INIKIAZAO A BIOSTIKA 125 Débora Diniz Marcos de Almeida Bioética e Aborto Tria O tema do aborto é, dentre a to- talidade das sittuacdes analisadas pela Bioética, aquele sobre o qual mais se tem escrito, debatido e realizado con- gressos cientificos e discussées puibli- cas. Isso nao significa, no entanto, que tenham ocorrido avancos substanciais sobre a questao nestes tiltimos anos ou mesmo que se tenham aleancado al- guns consensos morais democraticos, ainda que temporarios, para o proble- ma. Ao contrario. A problematica do aborto é um exemplo nitido tanto da dificuldade de se estabelecer didlogos sociais frente a posigées morais dis- tintas quanto do obstaculo em se criar um discurso académico independente sobre a questao, uma vez que a pai- xo argumentativa é a tonica dos es- critos sobre o mesmo. Para um néo- iniciado, a maior dificuldade ao ser apresentado a literatura relativa ao aborto é discemir quais sao os argu- mentos filosdficos e cientificos con- sistentes dentre a infinidade de ma- nipulacées retoricas que visam ape- nas arrebatar multidées para o cam- po de batalha travado sobre o abor- to. Nesse contexto, nao é tarefa facil apresentar um panorama dos estudos bioéticos pertinentes ao assunto. Mis- turam-se textos académicos, politicos ereligiosos, e selecionar quais os mais significativos para o debate parece ser sempre uma tarefa injusta. E, em al- guma medida, o é. Entretanto, nao foi preocupacao deste capitulo contem- plar todos os pesquisadores que escre- veram sobre o tema. Selecionamos al- guns escritos pontuais que marcaram o debate contemporaneo e, a partir dos argumentos de seus autores, tragamos um panorama bioético acerca do aborto. O capitulo esta dividido em trés partes, assim distribuidas: na primeira, esclarecemos a terminologia e os prin: pais tipos de aborto; em sequida, apre- sentamos dados sobre legislaco com- parada, para, na terceira parte, nos centrarmos no debate biostico propria- mente dito sobre o tema. Poms etipos de aborto Uma avaliacao semantica dos conceitos utilizados pelos pesquisado- res que escreveram (e escrevem) so- bre oaborto seria de extrema valia para os estudos bioéticos. A variedade conceitual 6 proporcional ao impacto social causado pela escolha de cada termo, Infelizmente, e isso é claro para qualquer pesquisador interessado no tema, nao se escolhem os conceitos impunemente. Cada categoria possui sua forga na guerrilha linguistica, al- gumas vezes sutil, que esta por tras das definigdes selecionadas. Fala-se de aborto terapéutico como sendo abor- to eugénico, deste como aborto seleti- vo ou racista, numa cadeia de defini- Ges interminaveis que gera uma con- fuséo semantica aparentemente intransponivel ao pesquisador. No en- tanto, ao invés de se deixar abalar pela diversidade conceitual, o primeiro pas- so de uma pesquisa sobre o aborto é desvendar quais pressupostos morais esto por trés das escolhas. Ha uma certa regularidade moral na selecéio de cada conceito. Para este capitulo, utilizaremos a nomenclatura mais préxima do discur- 50 médico oficial, por consideré-la a que mais justamente representa as pr- ticas a que se refere. Basicamente, pode-se reduzir as situacdes de aborto a quatro grandes tipos: 1. Interrupgao eugénica da gesta- 0 (IEG): sao os casos de abor- to ocorridos em nome de praticas eugénicas, isto 6, situagdes em que se interrompe a gestacao por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente, sugere-se o pra- ticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando mulheres foram obrigadas a abor- tar por serem judias, ciganas ou negras (1). Regra geral, a IEG pro- cessa-se contra a vontade da ges- tante, sendo esta obrigada a abor- tar 2. Interrupgao terapéutica da ges- tagao (ITG): so os casos de abor- to ocorridos em nome da satide materna, isto é, situagdes em que se interrompe a gestacéo para salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avango cientifico e tecnolégico ocorrido na medi- cina, 08 casos de ITG sao cada vez em menor ntimero, sendo ra- ras as situagées terapéuticas que exigem tal procedimento; 3, Interrupgdo seletiva da gesta- ao (ISG): so os casos de abor- to ocorridos em nome de anoma- lias fetais, isto é, situagdes em que se interrompe a gestagao pela constatagao de lesées fetais. Em geral, os casos que justificam as solicitagdes de ISG sao de pato- logias incompativeis com a vida extra-uterina, sendo o exemplo classico o da anencefalia (2); 4, Interrup¢ao voluntaria da ges- tagao (IVG): so os casos de aborto ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestan- te ou do casal, isto é, situagdes em que se interrompe a gestagao porque a mulher ou 0 casal nao mais deseja a gravidez, seja ela fruto de um estupro ou de uma relago consensual. Muitas vezes, 126 127 as legislagdes que permitem a VG impéem limites gestacionais & pratica. Com excegao da IEG, todas as ‘outras formas de aborto, por principio, levam em consideracao a vontade da gestante ou do casal em manter a gra- videz. Para a maioria dos bioeticistas, esta é uma diferenca fundamental en- tre as praticas, uma vez que 0 valor- autonomia da paciente é um dos pila- res da teoria principialista, hoje a mais difundida na Bioética (3). Assim, no que concerne a terminologia, tratare- mos mais especificamente dos trés ul- timos tipos de aborto, por serem os que mais diretamente esto em pauta na discussao bioética. Em geral, ISG é também denomi- nada por ITG, sendo esta a justaposi- Ao de termos mais comum. Na ver- dade, muitos pesquisadores utilizam ITG como um coneeito agregador para © que subdividimos em ISG e ITG. Esta é uma tradicao semantica herda- da, principalmente, de paises onde a legislacdo permite ambos os tipos de aborto, nao sendo necessaria, assim, uma diferenciagao entre as praticas No entanto, consideramos que, mes- mo para estes paises onde o conceito ITG é mais adequado, em alguma me- dida ele ainda pode gerar confusées, uma vez que ha limites gestacionais diferenciados para os casos em que se interrompe a gestagao em nome da satide matema ou de anomalias fetais Além disso, 0 alvo das atengées é dife- rente nos casos de ISG e ITG: no pri- meiro, a satide do feto é a razao do aborto; no segundo, a satide materna, Outro motivo que nos fez diferenciar a satide matema da satide fetal para a escolha da terminologiaa ser adotada foi o fato de varios escritores denomi- narema ISG de IEG. Este é um exem- plo interessante do que denominamos “terminologia de guerra”. O termo “se- letivo” , para nds, remete diretamente a pratica a que se refere: é aquele feto que, devido a malformacao fetal, faz com que a gestante nao deseje o pros- seguimento da gestacao. Houve, é cla- ro, uma selecdo, s6 que em nome da possibilidade da vida extra-uterina ou da qualidade de vida do feto apés 0 nascimento. Tratar, no entanto, o abor- to seletivo como eugénico é nitidamen- te confundir as praticas. Especialmen- te porque a ideologia eugenica ficou conhecida por nao respeitar a vonta- de do individuo. A diferenca fundamen- tal entre a pratica do aborto seletivo e ado aborto eugénico é que nao ha a obrigatoriedade de se interromper a gestacao em nome de alguma ideolo- gia de exterminio de indesejaveis, como fez a medicina nazista. A ISG ocorre por opcao da paciente. Muitos autores, especialmente aqueles vinculados a movimentos so- ciais, tais como o movimento de mu- Iheres, preferem falar em autonomia reprodutiva ao invés de IVG (4). Na verdade, entre ambos os conceitos ha uma relago de dependéncia e nao de exclusao. Apesar de o valor que rege a IVG ser o da autonomia reprodutiva, consideramos que auto- nomia reprodutiva é um conceito “quarda-chuva” que abarca nao ape- nas a questao do aborto, mas tudo o que concerce a satide reprodutiva. Na verdade, como jé foi dito, 0 prinefpio do respeito 4 autonomia 6 0 pano-de- fundo de boa parte das discussées con- tempordneas em Bioética. Além da variedade conceitual, outro ponto interessante, no tocante ao estilo dos artigos sobre 0 aborto, é a escolha dos adjetivos utilizados pelos autores para se referirem a seus oponentes morais. Nao raro, encon- tram-se artigos que chamam os pro- fissionais de satide que executam aborto como “aborteiros”, “homici- das”, “assassinos” ou “carniceiros” (5). Na verdade, hé relatos de casos de clinicas de aborto que foram incendiadas e os profissionais que nelas trabalhavam agredidos por gru- pos contrarios ao aborto - grupos “defensores da vida”, como se autodenominam. Fala-se do feto abortado como “vitima inocente” ou mesmo “crianga inocente”. Adjetivos como “hipécrita” ou “criminoso” va- lem para ambos os lados, sejam os proponentes ou oponentes da prati- ca. Nem mesmo sobre 0 resultado de um aborto ha consenso: as denomi- nagées variam desde “embriao”e “feto” até “crianca”, “ndo-nascido”, “pessoa” ou “individuo” (6,7). Um exemplo classico, porém pontual, desta retérica sedutora e vio- lenta que é a ténica do debate sobre o aborto é 0 video Grito Silencioso, editado por grupos contrérios a pra- tica do aborto. O filme mostra as re- agées de um feto de 12 semanas (tempo maximo permitido por varias legislagées para a IVG) durante um aborto. Valea pena conferir um tre- cho da narrac&o em que o especta- dor é convidado a identificar-se com © feto: “Esta pequena pessoa, com 12 semanas, é um ser humano com- pletamente formado e absolutamen- te identificdvel. Tem apresentado on- das cerebrais desde as seis sema- nas...” (8). Nao é preciso recorrer a argumentos baseados nas recentes descobertas da neurofisio- embriologia, como fizeram alguns autores na intengao de provar a im- possibilidade de um feto de 12 sema- nas sentir dor (9,10), para analisar o objetivo de um video como este. A idéia era provocar, no espectador, a compaixao pela suposta dor do feto durante o aborto e, conse- quentemente, sustentar 0 principio do direito a vida desde a fecundagaéo que, como veremos mais adiante, é um dos pilares da argumenta traria ao aborto. No entanto, é preci- samente esse tipo de discurso que gera uma das maiores dificuldades na selegao da literatura sobre o aborto: misturam-se argumentos cientificos e crencas morais com a mesma facili- dade com que se combinam ingredi- entes em uma receita de bolo. E esta é uma pratica comum tanto entre pro- ponentes quanto oponentes da ques- tao. A dosagem de delitio varia na intensidade da paixao. con- Tce comparatia A Conferéncia Intemacional sobre Populacdo e Desenvolvimento ocorti- da no Cairo, em 1994, é considerada um marco para as legislagées e as po- Iiticas internacionais e nacionais acer- ca do aborto. Considera-se que, até antes da conferéncia do Cairo, o tema do aborto nao compunha a agenda de satide piiblica de intimeros paises (11). Segundo Kulczycki et al, “...emn Cairo, pela primeira vez, um forum interministerial reconheceu que as 128 129 complicagées do aborto apresentam ameagas sétias & satide ptiblica e re- comendam que, onde o acesso ao aborto nao é contra a lei, ele deve ser efetuado em condicées segu- ras...”(11) O aborto, juntamente a pratica do coito interrompido, tem sido du- rante os séculos XIX e XX o método de controle de natalidade mais utili- zado e difundido (12). Em nome dis- so, as taxas mundiais de aborto so bastante elevadas, tendo como recor- distas alguns paises da América La- tina e Africa. Apesar de dificil mensuracao, uma vez que 0 aborto é considerado crime em inimeros pai- ses, calcula-se que a taxa mundial de abortos por ano esteja entre 32 e 46 abortos por 1000 mulheres na idade de 15 a4 anos, havendo uma enor- me variagao entre os paises, a de- pender da prevaléncia dos métodos anticonceptivos, de sua eficdcia e das leis e politicas relativas ao aborto (11). Nos paises ocidentais, 0 pico etario do aborto ocorre entre as mu- Iheres de 20 anos, como, por exem- plo, na Inglaterra, onde 56% dos abortos so praticados por mulheres com menos de 25 anos, ao passo que nos Estados Unidos este nimero é de 61% na mesma faixa etaria. Segundo dados do Instituto Alan Guttmacher sobre 0 aborto na Amé- rica Latina, ha uma correlacao acen- tuada entre renda e acesso ao abor- to praticado por médicos. Enquanto apenas 5% das mulheres pobres ru- rais tém acesso ao aborto médico, este ntimero 6 de 19% entre as mu- Iheres pobres urbanas e de 79% en- tre as mulheres urbanas de renda superior (13). No Brasil, para o ano de 1991, estimou-se que o total de abortos induzidos foi de 1.443.350, constituindo uma taxa anual, por 100 mulheres de 15 a 49 anos, de 3,65. Nos Estados Unidos, por exemplo, esta taxa é de 2,73 (13) Se, por um lado, 0 levantamen- to demografico acerca do ntimero de abortos praticados no mundo é con- testavel, uma vez que se lida com es- timativas ante a ilegalidade da prati- ca, 0 estudo das legislacoes com- paradas se mostra mais confiavel O melhor estudo sobre 0 assunto é 0 realizado por Rahman et al que vem fazendo um acompanhamento da le- gislagéo mundial desde 1985, oca- sido da publicacao do primeiro rela- t6rio comparativo, sendo que o ulti- mo levantamento foi publicado em junho de 1998, com dados relativos até janeiro do mesmo ano (14). Se- gundo dados do relatério, 61% da populacao mundial vive em paises onde 0 aborto induzido (IVG) é per- mitido por algumas razées especifi cas ou nao apresenta restricdes, ao passo que 25% da populacao reside em paises onde o aborto é radical- mente proibido (14). Os autores do relatério argumentam, ainda, que comparando dados da primeira pes- quisa - de 1985 — com os levanta- dos no ultimo estudo ha um direcio- namento mundial para a liberali- zacao do aborto. Dos vinte paises que modificaram suas legislacées des- de o primeiro estudo, 19 0 fizeram para legislagées mais abertas para a pratica. Vale a pena conferir a disposigdo legal mundial acerca do aborto: s.r OnMAST:S3E, pela restri¢ao nas leis de aborto, de acordo com a regido - 1997 Tia Contra Leste @ Sul Respicto ao | As Américas | Média Leste | oA oo | europa Arica Sub-Saara Sree’ |'So'cerive | 2 Noreda | “48 fe Brasi€ | Ategaristto|| Bangladesh | Wanda | Angola waaagarcar cite mp | epito-sa | Indonesia Benin wat Rep Colbmbia Laos Cento: Mauritania Aincana | prerstice | inane | tiemen Mauritius i Congo £1 Salvagor tibia Pa | Nopat (Brazzavile) Niger Para salvar | Lt 2.vide 42 | Guatemaia | Oman Sie | Papue Nove Costa do agng muther com AS -PA ‘Guine Marfim Niger Emirados ep. 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TOnzania | Panima = eeaniene. cuénia Paraguai Lesoto Uganda Venezuela Agentna | Kowal Poune | Banna E (limitado) | SA- PA. | Paduistio E-1-F Fasso-€ Malawi SA Rep. da Bota | Marrocos 5 Cercle Burundi Mogambique ial a SA-E-1-F Arabia : soude | costa rica | Sauaita | talancia amare anda Pisies BA PA ete Equador | Equa crea Zimbabue (limitadoy |, e 7 etopia | Unupual = Guind-atssau Vansica Tienda do | Botsuana Leva vasa | Auswata PA Al en Norte F-E-r F-E-1 Twnidae & | iraqve | ono xorg | porusst | Gany.g Namib Tobago: S-F-E-I Fees PA-F-E Samia F-E-1 Saude ental Israel en | Geto || on F-E- Malasi FE -E Nova ordania | zettndia | suiga | Serra teoa ba ince Questées PA-E-F Socioeco- Japio- 5A nomices a SAPR I a0 131 Canada - t | Kazaquistio* Rep Kyrgyz" Tunisiat Turquie * SA-P | Tukmenistao"| | unpequistac* | sem restrigdes de motivo Camboja cuba t-PA} Arméniat | SYS) Albania Africa do Sul" Estados ge] China sta - Ueeeeby |Azerbeistao’| SMM | Austna -¥ Porto Rice . . eu Georgia’ | Mongolia” | Belarus - ¥ Coréia do | Bosnia-Herze Norte Singapura Tajiquistao” | vietna -L | croacia* - PA U | ovina’ - PA Bulgaria® Rep. Teheka* PA Dinamarca* PA | estonia | fanga* - PA Alemanha - ¥ Grecia PA Hungria -¥ italia #- PA Latviet Lituania® Macedonia” PA Moldovi Holanda - PV Noruega” PA Roménia - ¥ Russia Fea Slovaquia Rep" PA Slovenia PA suecia * limite gestacional de 12 semanas Y - limite gestacional de 14 semanas ¥ limite gestacional de 24 semanas 4# - limite gestacional de 90 limite gestacional de 18 semanas NOTAS: para os limites gestacionais durante a sgravidez, calcula-se a partir da viltima menstruacao, qual geralmente considera-se ter ocorrido duas semanas antes da concepgio. Por isso, os limites gestacionais calculados a partir da data da concepgao devem ser estendidos em duas semanas. ND - defesa de necessidade 6 duvidosa SA - autorizagao do marido ¢ exigida PA . autorizagao dos pais é exigida E - aborto pemnitido em casos de estupro aborto permitide em casos de incesto F - aborto permitido em casos de anomalia fetal L - a lei ndo indica limites gestacionais PV - a lei ndo limita previamente 0 aborto Fonte: (14) in hioético Caso fosse possivel estabelecer uma escala onde os extremos morais Heteronomia da vida v Santidade da vida v Aborto é crime © quadro acima, apesar de ser uma redugao grosseira da realidade & linguagem grdfica, possui o mérito de facilitar a compreensao e localizagao das idéias sobre o aborto. Entre os ex- tremos morais representados, ha uma infinidade de pequenas variancias que aparentemente, sao incoerentes aos princfpios maiores, sejam eles o da heteronomia ou o da autonomia. Eis alguns exemplos: certos grupos defen- sores da heteronomia da vida sao, es- pecificamente no que se refere ao abor- to, defensores da tangibilidade da vida O exemplo mais conhecido desta com- binacao é 0 grupo chamado “Catli- cas Pelo Direito de Decidir”. Este mo- vimento é composto por catélicas, se- guidoras da doutrina crista, que defen- dem o direito de a mulher decidir so- bre a reprodugao. Pelo vinculo religio- so, estas mulheres encontram-se sob 0 ideal da heteronomia (a vida é um dom divino e, portanto, nao lhes pertence), porém, ao mesmo tempo, sao adeptas de um movimento social que defende aautonomia. Outro exemplo sao al- guns lideres politicos reconhecidamen- te defensores da liberdade do indivi- duo e, conseqiientemente, defensores da autonomia individual, porém adep- tos do principio da heteronomia da sobre o aborto estivessem nas pontas, a representacao seria algo do tipo: Autonomia reprodutiva v Tangibilidade da vida v Aborto é | moralmente neutro | vida no que concerne ao aborto (no Brasil, hd o exemplo de um deputado federal de esquerda com um projeto de lei contrério a qualquer forma de descriminalizagéo do aborto). Isto ocorre basicamente porque, no cam- po da moral, com raras excecoes, as pessoas nao se comportam com ‘a coeréncia légica comum aos trata- dos de filosofia moral. As escolhas morais processam-se de intimeras maneiras — com influéncias da fami- lia, do matriménio, da escola, dos mei- 0s de comunicagao em massa, etc. - ‘© que acaba por mesclar principios e crengas inicialmente inconcilidveis. Na verdade, grande parte da populacao encontra-se confusa entre os extremos morais acima representados, Poucos 540 0s grupos ou movimentos sociais e religiosos que se identificariam com ‘os mesmos. No entanto, a eficdcia do grafico esta na propriedade de resumir 0 ob- jeto de conflito entre os bioeticistas. Grande parte dos escritos sobre o abor- to gira em torno dos principios da heteronomia e da autonomia. Assim, para fins deste capitulo, chamaremos os defensores da heteronomia da vida e os defensores da autonomia reprodutiva, respectivamente, como 132 133 oponentes e proponentes da questao do aborto. Esta é apenas uma manei- ra de agregar as diferengas entre os grupos com 0 intuito de esclarecer por onde se conduz, hoje, o debate sobre 0 aborto em Bioética. Além disso, os extremos morais, exatamente por sua radicalidade, possuem propriedades heuristicas na andlise da questao. Oargumento principal dos defen- sores da legalizagao ou descrimi- nalizagao do aborto é 0 do respeito a autonomia reprodutiva da mulher e/ou do casal, baseado no principio da li- berdade individual, herdeiro da tradi- co filoséfica anglo-saxé cujo pai foi Stuart Mill (15). Na Bioética, o aborto nao é tema exclusivo de mulheres ou de militantes de movimentos sociais; a idéia de autonomia do individuo possui uma penetracdo imensa na Bioética laica, especialmente para os autores simpatizantes da linha norte- americana. E em torno do principio do respeito & autonomia reprodutiva que os proponentes da questao do aborto agregam-se. E, talvez, o que melhor re- presente a idéia de autonomia reprodutiva para os proponentes seja a analogia feita em 1971, por Thomson, no artigo A Defense of Abortion, entre a mulher que nao de- sejao prosseguimento da gestagao ea mulher presa, involuntariamente,a um violinista famoso (16). Vale conferir um pequeno trecho da fantéstica histéria de Thomson: “_ Vocé acorda no meio da ma- nha ese vé, lado a lado, na cama com um violinista inconsciente. Um famo- so violinista inconsciente. Ele desco- briu que tinha uma doenga renal fatal ea Sociedade dos Amantes da Musi- ca, apés avaliar todos os recursos médicos disponiveis, descobriu que vocé era a tinica que tinha exatamen- te o tipo sangitineo capaz de socorré- lo. Eles tinham, entao, lhe sequestrado: e, na noite anterior, o sistema circula- {6rio do violinista fora ligado ao seu, de forma que seus rins poderiam ser usados para extrair as impurezas do sangue dele bem como as do seu san- que. Neste momento, 0 diretor do hos- pital Ihe diz: “Entenda, nés nos senti- mos mal pelo que a Sociedade dos Amantes da Musica fizeram com vocé — nos jamais permitiriamos, se sou- béssemos antes. Mas agora eles j4 0 fizeram, e © violinista esta ligado a voce. Para desligé-lo, ele morrerd. Mas nao se desespere, sera apenas por nove meses. Depois disso, ele ira recuperar- se com alimentacao propria e podera ser desligado de vocé a salvo...”(16). Esta hist6ria provocou uma ver- dadeira onda de discussées e debates, tendo aqueles que argumentavam que © exemplo de Thomson serviria ape- nas para casos onde a gesta¢ao foi fru- to de violéncia sexual e outros que sus- tentavam que o respeito ao principio da autonomia era a questao-chave do relato. Ja 0s oponentes do aborto tém como no a heteronomia, isto é, aidéia de que a vida humana é sagrada por principio (17). Na Bioética, os oponen- tes do aborto nao sao apenas aqueles vinculados a crencas religiosas, sendo, ao contrario, esta uma idéia bastante difundida até mesmo entre os biceticistas laicos (esta aceitacao da idéia da intocabilidade da vida huma- na entre os biceticistas laicos fez com que Singer falasse em “especismo” do Homo sapiens, ou seja, um discurso religioso baseado nos pressupostos cientificos da evolucao da espécie ena superioridade humana) (18). Na ver- dade, o principio da heteronomia da vida esta to arraigado na formagao dos profissionais de satide que temas como a eutanasia e a clonagem nao so bem-vindos. A crenca em um sen- tido para a vida humana além da organicidade é muito difundida no mundo ocidental cristéo (6) Se, por um lado, os proponentes da legalizacdo do aborto encontram abrigo no principio da autonomia reprodutiva e, por outro, os oponentes no principio da heteronomia da vida humana, as diferengas entre os dois grupos se acentuam ainda mais nos desdobramentos argumentativos des- tes principios. Enquanto os proponen- tes se unem em torno do valor-auto- nomia, os oponentes esforgam-se por desdobrar o principio da heteronomia em pecas de retérica que irao deter- minar, de uma vez por todas, o debate sobre o aborto. A partir do instante em que os desdobramentos argumen- tativos dos oponentes passaram a fa- zer parte do discurso bioético em tor- no do aborto, a discussao tomou ru- mos jamais imaginados. Desde entao, 0s oponentes se fazem presentes com um discurso ativo, ao passo que os pro- ponentes se caracterizam por ter assu- mido um posicionamento reativo aos argumentos contrarios ao aborto. Ve- jamos 0 que isto significa. Uma vez aceito o principio da heteronomia da vida humana, os te6- ricos preocupados em sustenté-lo par- tem constantemente ao encontro de argumentos filoséficos, morais ou ci- entificos para manté-lo. Alguns jé se tornaram classicos ao debate sobre o aborto. Iremos analisar dois deles que, de alguma maneira, encontram-se tao interligados que é impossfvel sua an- lise em separado. O primeiro éa cren- cade que o feto é pessoa humana des- de a fecundaco; o segundo, a defesa da potencialidade do feto em tornar- se pessoa humana. Sustentar a idéia de que o feto é pessoa humana desde a fecundacéo é transferir para 0 feto os direitos e con- quistas sociais considerados restritos aos seres humanos, em detrimento dos outros animais. O principal direito —e ‘o mais alardeado pelos oponentes da questao do aborto — 6 0 direito a vida. Todas as implicacées juridicas e antro poldgicas do status de pessoa humana seriam, com isso, reconhecidas no feto. E, para os mais extremistas, sendo 0 feto uma pessoa humana torna-se im- possivel qualquer dispositivo legal que permita 0 aborto. Finnis pode ser con- siderado um exemplo interessante deste posicionamento extremo, diz ele “_, Sustento que o Unico argumen- to razoavel 6 que 0 ndo-nascido é ja pessoa humana (...) Todo ser huma- no individual deve ser visto como, uma pessoa (...) Uma lei justa e éti- ca médica decente que impeca a morte dos nao-nascidos nao pode admitir a excecao “para salvar a vida da mae”(7) Ja a segunda idéia, a de que o feto é uma pessoa humana em poten- cial, tem ainda maior numero de de- fensores do que a que concede o status de pessoa ao feto desde a fecundacao. A teoria da potencialidade sugere que ‘0 feto humano representa a possi- bilidade de uma pessoa humana e, portanto, nao pode ser eliminado. Para os representantes da teoria da potencialidade, de feto para pessoa 134 135 humana completa é apenas uma ques- tao de tempo e, é claro, de evolugao. Assim, em nome da futura transforma- co do feto em crianca, sendo o gran- de marco o nascimento, o aborto nao, pode ser permitido (7). Tanto para os defensores da teoria da potencialidade quanto para os defensores da idéia de que o feto é j4 pessoa humana desde a fecundaco, 0 aborto possui o signi- ficado moral e juridico de um assassi- nato — e é desta maneira que seus expoentes se referem a pratica. Diante de argumentos como es- tes os proponentes da legalidade do aborto assumem, entdo, uma argumen- taco reativa. Com algumas excecées, como os escritos de Singer (18,19), os biceticistas defensores do aborto rara- mente utilizam uma positividade no discurso. Em geral, quando os argu- mentos favoraveis ao aborto se afas- tam do principio da autonomia reprodutiva, o alvo é desconstruir a re- térica contraria ao aborto, especial- mente as duas teorias acima expostas. Frente a defesa de que o feto é pessoa humana desde a fecundacao, os bioeticistas proponentes argumentam que a idéia de “pessoa humana” é antes um conceito antropolégico que juridico e necesita, portanto, da re- lacao social para fazer sentido. O status de pessoa nao é mera conces- so, mas sobretudo uma conquista através da interacao social. Por ou- tro lado, ha escritores que argumen- tam que, caso 0 feto seja mesmo pes- s0a, a mae e/ou 0 casal que deseja a interrupcéo da gestagao é ainda mais pessoa do que 0 feto. Por isso, seus interesses (mae/casal) devem preva- lecer sobre os supostos interesses do feto (20). Ateoria da potencialidade, assim como entre os oponentes, também apresenta maior simpatia dos propo- nentes do aborto e isso pode ser visto na enorme discussdo quanto aos limi- tes gestacionais em que um aborto se- tia moralmente aceitavel. Em geral, os limites estabelecidos baseiam-se em argumentacées cientificas tais como: quando 0 feto comeca a sentir dor, quando iniciam os movimentos fetais, quando hd a possibilidade de vida ex- tra-uterina, etc. No entanto, nao sao 0 dados evolutivos da fisiologia fetal que decidem quando se pode ou nao abortar, mas sim os valores sociais concedidos a cada conquista organi- ca do feto. Sentir ou nao dor, ter ou nao consciéncia, assim como a mobi- lidade, sao valores sociais que, trans- feridos para o feto, estruturam os limni- tes entre o que pode e 0 que nao pode ser feito. Alguns autores extremistas consideram que nao ha diferenga mo- ral entre um embriao, um feto ou um, recém-nascido e que qualquer imposi- do de limites gestacionais (ntimero de meses) para a execucao do aborto faz parte de um exercicio cabalistico (20). Vale a pena conferir o que Harris diz sobre isso: «__Euespero que tenhamos alcan- cado o ponto no qual ficara claro que os recém-nascidos, os bebés, os neonatos tém, qual seja, 0 status mo: ral dos fetos, embrides e zigotos. Se o aborto é justificdvel, também o é o infanticidio (...)” (20). Por outro lado, o argumento da potencialidade pode permitir que se afirme que as células sexuais do ser humano sao potencialmente uma pes- 0a, 0 que enfraqueceria seu poder de convencimento. No entanto, a maioria dos bioeticistas defensores do aborto argumentam que é necesséria a impo- sigao de limites gestacionais, sendo o nascimento um divisor de dguas, es- tando assim o infanticidio fora das possibilidades (21) Apesar das diferencas entre pro- ponentes e oponentes nao-extremistas, ha alguns pontos em que o didlogo tor- na-se poss{vel. Existe, como sugeriu Mori, uma maior simpatia tanto do pensamento cientifico quanto do sen- so comum na aceitagao do aborto quando fruto de estupro, de riscos & satide materna ou de anomalias fetais incompativeis com a vida (6). As di- vergéncias entre as partes voltam a acentuar-se quando é preciso definir 05 limites gestacionais a cada pratica. De fato, o grande centro das diferen- cas estd na possibilidade da mulher/ casal decidir sobre a reprodugao. O interessante deste problema é que al- guns paises, tais como a Russia, en- frentam dilemas radicalmente opostos. Em um artigo chamado The Moral Status of Fetuses in Russia, Tichtchenko e Yudin, apés apresenta- rem o que denominam de “cultura do aborto” (tamanha a facilidade e a trangiiilidade com que se executam abortos no pais), clamam pelo reco- nhecimento de alguma moralidade no feto (22) Assim, apesar de bastante difun- dido, o problema da moralidade do aborto é histérica e contextualmente localizado e qualquer tentativa de solucioné-lo tem que levar em consi- deracao a diversidade moral e cultural das populagées atingidas. Como pode ser constatado, seja pela diversidade legal acerca da tematica quanto pela multiplicidade argumentativa do debate bioético, o aborto é uma das questdes paradigmaticas da bioética exatamen- te porque nele reside a esséncia tragi- ca dos dilemas morais que, por sua vez, so 0 néconflitive da Bioética Para certos dilemas morais nao exis- tem solucées imediatas. Os dilemas- limite, os teyku, segundo Engelhardt, dos quais, talvez, 0 aborto componha um de seus melhores exemplos, s tuacées que desafiam os inimigos mo- rais & coexisténcia pacifica (23) 1osi- Referéncias bibliograficas 1. Milller-Hill B. Ciéncia assassina: como cientistas alemaes contribuiram para a eliminagao de judeus, ciganos e outras minorias durante nazismo. Rio de Ja- neiro: Xenon, 1993. 2. Diniz D. O aborto seletivo no Brasil e os alvards judiciais. Bioética 1997;5:19-24 3. Beauchamps T, Childress J. The principles of biomedical ethics. 4 ed. New York: Oxford University Press, 1994. 4. Lloyd L. Abortion and heallth cate ethics IL In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. Chichester, Englnd John Wiley and Sons, 1994: 559-76. o Criangas filhas do estupro. Correio Braziliense 1997 Out. 6. Mori M. Abortion and health care ethics I: a critical analysis of the main arguments. In: Gillon R, editor. Principles of health care ethics. 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