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. Se tga de Portugal Ay uty he AE ood Oe lee ee Ne Lee apg Ber sae ey anaes ca eee < wie wf. pe ttn SaakenZ whe ba ee Gee ea ao 2 we me We oP gees Be piv read Newer wee =» SAe Ses daaa erst EATER ERE é ue eau ak =f EAP AG SRR ACO AER = 1) ee eae a ee ge, 25 ie DR ele eT: . danse tehe kany are iii ipfk era iN ae ae eS ¢ Sond BE AD yo Bg Ot die S eat ede eR Ee 2 a PRE EAA RR SY he See ERS R ES eis Bree ey SAR gate 22,79 Vee leh ar pees ti kere rey ae At ek ewe tee ice tly oe * Ans aw Sire og Crt oat tee A PS ae ee re fat oa migra Seika ae oars bane a0 wes Za chp ck ses ew BIBLIOPHECA pas SCIENCIAS SOCIAES we tL BIBLIOTHECA DAS SCIENCIAS SOCIAES i A Civillsacio peninsular TP Hiwroura Da crvitamagio remsca (2.4 ed.) 1880, H-lil Mrsromts pn Poirruaat, (9! ed.) 1882...00. IV 0 Baa x ag conomian vowrcanesas (2 V-¥I PourcoAt Coxraupouanno, 1831 Tl A Pre-historin Vit Eseunsvos pe awritorotoora (2,4 edi} 1881 VEIGIX Aa kagas MUMAxaS Hoa CLVILISAGIO PRDMITI A Ungulitics, Elementos da chremathattca. A mythologia. “As tnatitelsGes primitives, IL A Historia fo oceldontal, rim das tempos modernos. As revolugtes a institalgtien conto Goographia politica o ovtatistioa das nay Chropologia gar IV A Economin social A populagio a a emigeagio. ‘Thooria das inatitulpios pollticas, Thoarla das inatliuigias eeonomicas, Da natireza ¢ lugar das scfoncias socines (Introd. & Bibliotheca). LISBOA LVRARIA BERTRAND Vivva Beezean & C.* svccessones Canvanuo & C.* 78, Chindo, 75 HISTORIA DE PORTUGAL POR J.P. Orrventa Marcixs edigio ; aungmentada) LISBOA LIVRARIA BERTRAND Vieva Benraann & C.* suoonssones Canvaruo & Co" 73, Chindo, 75 1882 COMPRA 200887 oe 6 Bare 5 HISTORIA DE PORTUGAL LIVRO QUINTO A catastrophe (OYSASTIA DE AVIZ (continungio) 1500-80) Corre sem vola e som lome 0 tempo desordanado Dum grande vento levade, Candies, Redoadithas: © Teapa. i A corte de D. Manuel A conquista da India encheu de ambigdes 0 animo ostentoso do rei D, Manuel: queria tambem figu- rar entre os primeiros soberanos da Europa, in- tervir de um modo congpicuo na politiea internacio- nal; ¢ para isso resolyeu mandar a Roma uma em- baixada, tio faustuosa que deslumbrasse o mundo. Ao Salomio papal enviava o imperador de Saba um tributo de cortezia, que era ao mesmo tempo um escudo de pretenstes. Menos de quatro seculos an- dados tinham bastado para que o rei de Portugal, o antigo humilde vassallo da Egreja, sc apresen- tasse hoje, nilo aos pés, mas em frente do throno papal, vestindo o manto rogagante de um imperio constellado pelas cordas do Oriente. 6 L. ¥.—A CATASTROPHE © rei de Portugal queria que se Proseguisse no coneilio de Latrio, na reforma dos abusos da Egre- Ja: «desde o tempo do papa Alexandre sexto havia na cérte de Roma muita soltura de viver o se dava dissimuladamente licenea a todo o genero de vicio, de mancira que grandes peecaios se reputayam por veniaes, diz Goes. Amocstar 0 Papa, continia, © pedir-Ihe que quizesse por ordem ¢ modo na dis. solucio de vida e costumes e na expedigio de bre- ves bullas ¢ outras consas que em a corte de Roma tratavam, do que toda a Christandade reecbia es- candalo,» cis ahi o motivo de uma embaixada an- terior ec um motivo tambem da ostentosa missio de agora. Qneria, porém, mais que se lavrasse entre os principes christZos uma liga contra o Turco; queria ainda que o elero portuguez contribuisse com wna collecta para as despezas da India; ¢ que o padroado de todas as egrejas do Oriente fi- cagse & Ordem de Christo, cujo mestrado andava com a corda portugueza. Sobretudo, o-rei queria mostrar ao mundo o que valine o que podia, os- tentando a stia riqueza em Roma, ahi onde o seu embaixador tinha de pagar tudo a peso de ouro— salvo os martyres: Miguel da Silva annunciava a offerta de uma canonisagio gratis, A embaixada, confinda a Tristio da Cunha, par- tin de Lisbon, em janeiro (1514), e foi recebida em Roma em marco. Era uma procissito magnifica, ¢ © fausto espectaculoso do rei portuguez conseguiu deslumbrar essa cérte de Le%o x, onde se reuniam os primores da civilisagio da Europa. ‘artiram, primeiro, da porta del Populo, trezen- tos cavallos guindos 4 redea por outros tantos aze- meis, vestidos de seda, o os envallos cobertos por mantos de broeado com franjas de ouro. Seguia logo a turba da crendagem; © poz ella os portu- L—A CORTE DE b. MANUEL i guezes de Roma, seculares e eeclesiasticos. Depois iam os parentes dos cmbaixadores, ostentando o luxo desvairado d’esses tempos: chapcus de plu- mas bordados de perolas ¢ aljofar, grossos collares © eadeias de ouro cravejado de pedras preciosas, airmas tauxiadas com embutidos e lavores, sedas, vellndos, rendas, anneis; montando cavallos de raga, ornados de fitas e jaczes de preco. Eram mais de cincoenta os fidalgos; ¢ atraz do brilhante esquadriio via-se, primeiro, uma companhia de bés- teiros de cayallo, depois os officiaes da casa do papa, com a sun guarda de honra de archeiros snissos @ lanceiros gregos, a pé. 4A cavallo, og musicos da embatxada portuguesa e trombeteiros ¢ charameleiros do papa, reunidos, abriam a segunda metade, mais singular, do pres- tito, capitaueada pelo estribeiro do rei, Nicolau de Faria, que montaya um cavallo enjos arreios cram esmaltados de ouro cravejado de perolas. Um elephante, recamado de xaircis preciosos le- yaya, na sua torre, 0 cofre onde ia o pontifical offe- recido por D/ Manuel ao papa; ¢ um nayre da In- dia, vestindo os seus trajos de seda, ia governando 6 animal docil «tio formoso, sendo mui feio, que era cousa gentil de ver.» Depois do elephante, num cavallo da Persia, montado por um cacador de Hormfiz, ia deitada na anca uma onga domesti- cada. Estes animaes, dois leopardos em carros, en- cerrados em gaiolas, ¢ o pontifical magnifico, eram as pireas que, dos seus dominios orientacs, o rei enviava ao papa. Morreu n’outra viagem o rhino- ceronte, destinado no representar a Africa, mas foi depois empalhado para Roma; no chegando po- rém li as quintalndas de cravo, de pimenta, de canella, de gengibre, de malagueta, carregagao da niu que naufragou em Genova. 8 LV. A CATASTROPHE Depois das piireas, a erhbaixada formava um grupo deslumbrante de riqueza. Garein de Rezen- le, 0 secretario, era seguide pelo rei d'armas de Portugal, com a sua cota vestida, o pelos macoirs do papa que precediam os embaixadores, ‘Tristio da Cuabs a cavallo «tio posto © tio poderoso com sen chapeu de perolas quo matava todos de genti- loza,» vinha entre o duque de Bari ¢ © goveraador de Roma; Diogo Pacheco entre o hispo de Nico- sin co embaixador de Allemanha, o conde Alberto Caspio; ¢ Jota de Faria entre o bispo de Napo- les e o sabio Guilherme Budeo, embaixador do rei de Franga. Depois seguiam os cmbaixadores de Castella e de Inglaterra, da Polonia, de Veneza e de Millio, de Lucca e de Bolonha, cada um com seu bispo ao lado, e marchando cm columma, 208 pares. Havia dezoito seculos, desde Pyrrho, que a Ita- lia no vira um elephante, ¢ a novidade espantosa, correndo por toda a peninsula trouxera gente de muito longe. Havia quem estivesse em Roma desde mezes esperando o grande dia, ¢ as ondas de povo alastravam o chio anciosas: «Nao sei contar a V. A. por onde vim, que eu iio via outra cousa se- nilo gente, sempre gente.» O dia amanhecera chu- yoso, mas aclarou depois, e nas ruas, nos palan- ques, nos telhados das casns, nos baledes, por toda 4 parte o negrume do povo se estendia a perder da vista. Boa terga parte da populagio de Roma, por trin- ta mil pessoas, andava nas ras para vér o desfi- lar do prestito; e ao rumor, 20s vivas, ds excla- magtes do pova, juntavam-se o estrondo das sal- vas de artilheria; 6 o cantico metallico dos sinos de todas as ogrejas, repicando e dobrando com fu- ror. Chegada a proeissio em frente do castello de IA CORTE DE b. MANUEL 9 Sant'Angelo, 9 papa, com os seus cardeaes, appa- Tecett na varanda a recebel-a; ¢ 0 elephante, mo- Ihando a tromba, como hyssope, n’uma bacia de agua perfimada, aspergio por tres vezes, primeira © papa, depois o povo. Singular ceremonia, extra- vagante sacerdote! A’ agua abengoada de virtudes mysticas, Roma referia as essencias do Oriente; e um elephante de eylio valia muito mais, pava a sua curiosidade na- turalista, do que o funebre aeolyto, A entrada da nave obseura a templo ehristio. A Bgreja trium- phante era acclamada na varanda de Sant'Angelo. KE’ yerdade que D, Manuel pedia, on affectava exigir, que se reformassem os abusos da cleresia, ue 8¢ moralisassem os costumes, ¢ intimava com il-Vicente : Felras o carlo quo trazels doarado, Presidonte do erseisiead Lombrae-vos da vida dos Do tempo pasado ! tas pastoren Mas se Leflo x, o magnifico papa, nilo quiz ou- vil-o, 6 fira de duvida que o esplendor da embai- xada traduzia, mais o amor pagiio da vida, do que 9 fervor mystico da pobreza virtuosa, da earidade humilde do istianismo legendario. foi mais feliz o rei na pretensto que tinha de intervir nas pendencias internacionnes da Euro- Pa, propondo a liga contra o Turco, ¢ advogando a chimeriea idéa da Edade-media, em que se abra- zava 0 mysticismo hespanhol. ! O rei levava isto, porém, um motivo interesseciro, porque abater o sultiio na Europa era libertar a sua India das os- quadras dos rumes do Egypto. Ninguem jana Eu- SV. Mia. cla civil, iBerica (2." ed.) pp. 183 © wegg. 10 L. ¥e— A CATASTROPHE ropa. tinha odio ao Tureo; ¢ D. Manuel podia oa- tentar a riqueza oriental, mas. niio podia impor a sua vontade 4 Italia, 4 Franga, 4 Allemanha,— como 0 fex mais tarde Carlos y, 0 grande impera- dor. «Nem se fez o Concilio, nem se reformaram as cousas da Egreja, nem menos se poz em obra a gucira contra os turcos.» A embaixada ficaria como uma opera magnifica, uma exhibigio deslumbrante da riqueza oriental, uma satisfagto esteril da vaidade portugucza, se o papa nilo aceedesse 4s outras pretensdes da coréa. Jonseguiu-se o padroado pedido para a Ordem de Christo, cousa facil; obteve-se a colleeta das tercas dos rendimentos ecelesinsticos ; ¢ além disso 2 Cru- zada, que o nuncio trouxe, o na execugao da qual, diz, Damido de Goes, «por mau resguardo, culpa e demasinda tyrania dos officiaes d’ella, foi o reino muito avexado, ¢ sobre tudo a gente popular, a quem faziam tomar por forgn as bullas, findas por certo tempo, no cabo do qual, se niio agavam, Thes vendiam seus moveis ¢ enxovaes, publicamente em pergio por muito menos do que yaliam: pela qual deshumanidade os mais dos executores desta cruzada houveram mau fim.» Nio cra, de certo, repetinda em casa o que ji le- vantaya as cdleras ¢ indignactes da Europa, que o rei podia obrigar o papa a reformar a Egreja; an- tes a venda das bullas trazia para Portugal o fer- mento de um protesto, que o espirito da nagio nto podia, é verdade, fazer levedar. As questies religiosas, acordadas na Europa, ti- nham em Portugal um caracter particular, Na Pe- ninsula, a constituigtio acabada do poder monarchi- I—A CORTE DE D. MANUEL {1 co, —obra em que o rei D. Manuel trabalhon com aflinco, 1—dava ‘is nagdes uma cohesio organica, 1 Na serie de phonomenos que carastorisam a polltien centrallsudora, Inlelada. por D, Jako 10 segalda por D, Manuel, asta om primeire Ingar 0 abandono das convocasbon do cértoa naclounes. Essa (netitniie, cules origoni © historia @ leltor eonhoco, (V. Mist. da civit, theriea (2." od.) pp. 46-51, ¢ 152-9) vivera do um mode mals ou menos Fogular durante a pri- mola dynnatin; mas a ma cade adres én primelra metade do reinado fos monarchas de Avis (Joo 1, D. Daarto, Atfoneo v ; 1355-1478}. «A nova Aynastia, nadelda do um moviments popular, era lesitima fla da Ting Gas cbrtes, onile ella so achava reprotentada, collahoravam pormancn mente eam ox rely, 9 gorerno do Eetado: a feoquenela das auas reu- nilfos a fore dus mas reelamartes, a yariedade dos lugarce onde ee reu- Bem, cata provands quanto ama atcio era geral o consinnte, Ox pro= eedentes dos dola relnndas Auterlores, 04 erodltos adquiridos, ehogain & Vevar'a aasombida ilo 1458 aw docldlr que baja reusiies ordinarias an- BEAGS; 080 tal'cousn: Vingasie, as cOrtos tor-se-binm tornado entre née am Yertadelze podor legistatlva, & mola dos modarnoe. Mio vingou, p0- Fim; @ A condislo dex coutas, allerauto na noses correntos sobra.a orl. fem do poder polities, detenainog a docaduncia gradual das edctes, ath fo ponte da ae rennirom apenas para recobior os Juramonios w condrmar & poe da corda pelos ltaperantos, _ Ele aqui o eatalogs dax clstes nactoanes durante a segunda dynas- iin: Relnodo de D. Joke L— 1885, Colmbra.— 8, Porto, Colmbra, Braga, — 89, LAsboa. — 90, Coltibra,— 91, Evora, Wizou o Lishoa.—YL-5, Colmbrar ) Porto, Colimbra.— 1400, Colmbra.—$u1, Qulmariics.—404, Liston, — 406, Santarem.— 408, Erora.— 410, 12 14, Lisboa. 16, Extromoz.— 21, Lisboa.— 18, Santarem, Tisbos,— 20, Santarom, 4. de D, Dusorte.— 1434, Leiria o Santacum.—26, Hora o Loiria, He de D. tems ¥— 1498, ‘Torree-novas.— 3), Lisbon.—d3, Torrus- yours 43, 4, Evors.—43, Lisboa.— Si, Santarcin ¢ Lishom—85, 6, 0, Lsboa.— 69, Htora— 65, Guanta.—€8, Sautarom.—T1, Litoa— 72, 9, Colmbra, Evora— 75, Evora, Arraches.— 16, Llsboa.— 77, Monto-mbs-o. Bove.—78, Lliboa. ii, de D. Joho TL—1481, 2, Evors, Alvito,—B3, Bantarem.—90, Evers. dd. de. Manndt,— 149%, Monte-mb:-o-nove,—08, Evora, Llsboa.—00, 50%, Lisbon, Hi de D, Jado H/— 1525, ‘Torros-novas.— 35, Evora 44. de D. Sebastide.—1552, 3, Lisboa. 4d, de D, Hencrique,— 157), Liiboa.— 80, Almelsim, Para as oniras camax de constitlgha do poder absolute dos mouar- thal, Ve Hist, do cielt. teriea, lly. az, 0-4, » Almeirim, 42) L. ¥.— A CATASTHOPNE bastante, para impedir as revolugtes anarchicas da Franga c da Allemanha, a cuja sombra medrava o protestantismo; ¢ esta circumstancia favorecia as tendencias, cvidentemente catholicas, do espirito collectivo. Por outro lado, a questio dos judeus complicava os problemas da reforma da réligiflo, dando forga :t ortodoxia; porque o povo, sendo contra esses hereges, ' de uma especie diversa, & verdade, encontrava, porém, n'isto, mais um motivo para condemnar todo o genero de heresin. A estas causas devemos juntar o ardor mystico da cdrte castelhana, que o rei D. Manvel, sem © partilhar, servin, na esperanca de vir a herdar esse throno cubicado, ¢ a influencia que os felizes acontecinentos ultramarinos exerciam no animo de todos. Como serin condemnada por Deus a sabe- doria de homens, 2 quem a Providencia galardoava todos os dias e de um modo inandito? O edu abria-se em milagres; ¢ 1 nacio por clle fayorecida pro- testarin? Nunca. Entre o3 pedidos gerses de re- forma da Egreja, formulados por Gil-Vicente nos seus autos, por Damifio de Goes, o amigo dos hu- manistas, por toias ¢ pelo propria rei; entre esses Redidas @ 0 protesto mystico dos allemies, ha uma istancia que nem sempre se mode bem. E como havin de Portugal protestar, se, para que a3 revo- lugdes, quer religiosas quer politicas, rebontem, é indispensavel o aguilhiio da miseria: o o reinado de D. Manuel via abrir-sc o-thesouro do Oriente, que parecia inexgotavel ? D. Joo 1 tinha acolhido em Portugal os judeus foragidos de Castella; ¢ D, Manuel protegera-os até ao dia em que casou. A expulsio dos judens foi o prego porque julgou pagar o imperio da Pe- V, Hits da civil. iberica (2, od.) pag. 247-52. L—A CONTE DE D, MAXUEL 1S ninsula, Inconsequente.e dubio na sua politica, os- cillando entre o bom-senso ¢ a ambicio, abede- cendo agora sis suns opinites, logo arrastado pelos clamores do povo, o rei tornou-se rén das matan- gas que no principio do seculo molharam em san- gue tantas terras, ¢ mais do que todas, Lishoa em 1506. O odie aos judeus era tradicional em toda a Hespanha: Portugal nfo fizia excepglo. Ji no se- culo XIV as cirtes pediam a D, Pedro (1361) que nio desse lugar aos judeus de sua terra de onze- harem, reclamando que «lhe deem logares aguiza- dos pera saa morada © esto medez ge entenda nos mouros.s D. Joio 1 acolhera os expulsos de Cas- telln, mas as cértes nao cessam de pedir leis do excepglo para essa gente que suja o povo: que nilo 1sem vestidos ricos o 86 trajos por que sejnm conhecidos (1482); que niio sejam rendeiros das rendas reaes, nem tenham. officios publicos, nem scjam feitores de nenhumas pessoas (140), O povo, para o qual os assissinos de Christo cram réprobos, temia nelles a habilidade © as artes com que, en- riquecendo, desgracavam o trabalhador. Hasta ve- Tha questio chegaya agora a uma erise. Um dia, o rei D. Manuel tomou para si o papel de Herodes, «© como um satrapa mandon arrancar a08 pres @ baptisar todos os filhos menores de qua- torge annos, sa qual obra niio tosomente foi de gio terror misturado com muitas lagrimas, dor e tristeza dos judeus, mas ainda de muito espanto © admiragiio dos christios.» Ao mesmo tempo, n'um praso breve, os judeus haviam de receber o baptis- Mo, ott embarcar cm navios que so lhes niio davam. Era um choro, uma affliegtio desoladora, ¢ Lisboa parecia uma Babylonia com as turbas dos captivos eleitos de Tatiovals Os malsins furavam pelas ruas, farajavam pelas casas & busca das ereangas; as a L, V.—A CATASTROPHE mites escondiam os filhos no seio, fugiam clamoro- sas, calam desgrenhadas solugando. Muitas prefe- riam afogar os innocentes, arremegando-os do seio ao fundo dos pogos ou ds aguas do rio, E a deso- lagiio era tanta que os proprios christios davam guarida aos infelizes perseguidos. Por outro lado, em Lisboa, onde, para embarear, os judeus tinham vindo de todo o reino, os Estios da Ribeira, apresentavam o aspecto de um acampa- mento antigo. Albergadas em barracas as familias, —vinte mil judeus esperavam as niius de embarque, ~ contando hora a hora o prazo da redempeXo., Esse prazo corren, sem virem as n4us: por isso foram todos convertidos 4 forca, porque os teimosos fi- cavam captivos. Este baptismo forgado, causa de tantas desgragas postoriores, revela a politica du- bin ¢ fulsa de um governo que nio tinha a cora- gem purista do eastelhano, depois de ter perdido © bom-senso ¢ a humanidade dos tempos anterio- res. Deshumanos, os actos cram ao mesmo tempo cobardes, pois o chronista diz com franqueza que s¢ procedia assim com os judeus por serem pi- 3, sem rei mem terra, nfo se podendo ja fazer outro tanto aos mouros, com medo das represalias dos soberanos mahometanos. De tal modo se originou a crise que teve na éra de 1596 0 seu primeiro episodio tragico. As fomes dos annos precedentes, a peste que la- yrira no outomno anterior ¢ victimava jé na pri- mavera mais de cem pessoas por dia, enchiam de aflicgiio o povo da capital, que buseava uma causa a tamanhas desgracas. D. Manuel tinha fugido da este, para Evora. O castigo tremendo, que a co- era divina impunha sem piedade, niio podia ter outro motivo senflo a crimimosa protecgiio conce- dida aos judeus. Baptisados, mas nio conver- L—A CORTE DE D. MANUEL 45 tides, cram uma viva e impune blasphemia; ¢ to- dos os seus actos religiosos outros tantos eacrile- gios. Deus estava, de certo, offendide; e por isso castigava sem dé, E © pobre povo soffria tama- nhas miserias por causa d'esses malditos que in- sultavam Dens dentro do seu tomplo sagrada, fin- gindo orar e commungando! Eram sé cstas aceu- saghes vagas o mystieas? Nilo cram. © baptismo forgado dos judeus tornara mais grave ainda o pro- blema economico da sua existoncia. «Depois que ti- veram nome de christiios, diz Damilo de Goes, poderam tratar em muitas cousas que pelo direito ¢anonico expressamente thes eram defezas, —das ques uma era nfo arrendarem os bens das egre- 4 nem nenhumas novidades, do que se seguia niio aver n'aquelle tempo tantas vexes carestia de mantimentos como houve depois que clles comeca- ram a tratar n'isso, fazendo alevantar o prego as novidades da terra.» A 15 de abril tinha havido uma procise%o, com muitos votos ¢ lagrimas, pedindo a cessacio do fla- gello; ¢ todas as noutes, om S. Domingos, se fa- zim preces publicas. Houvera um milagre, a 19, domingo de Paschoela: a custodia do lado do Se- nice apparecera illuminada; mas um horege ouson rir, dizendo que um pau seceo niio podia fazer mi- Ingres. Isto fez trasbordar a ira de todos, ¢ o tu- multo comegou fulminante. © impio foi tirado pelos cabellos de rastos, para fira da egreja, e logo alli morto ¢ Jangado a uma fogueira, Os mereadores dos arcos do Rocio, desde a Bi- tesga até'S. Domingos, fecharam as lojas, — onde vendiam as cassas de Hollanda, os pannos de linho eadequim da India, rendas, trangas, franjas e pas- Samanarias, —vindo em pessoa, com os seus cscra- vos pretos ¢ mouros, engrossar o tropel. A multi- 16 I. VA CATASTROPHE dio corria por debaixo dessa arcada, que limitava oriente o Rosio, abrangendo o Hospital ¢ o lormitorio do convento de S. Domingos, amon- toando-se is portas da cgreja, onde o borborinho era grande, e um. frade, de crucifixe em punho, prégava, exaltando o furor religioso da turba. «As mulheres agitayam-se colericas pronunciando ditos obscenos, palavras descompostas, 4 mistura com as expressdes de refinada devogio ¢ de um forvente beaterio. Incitavam os homens 4 matanca; e, do pulpito, o frade, oraculo do edu, definia com palayras os sentimentos da multidio, Os judeus eram a causa da fome, eram a causa da peste! De eruz aleada, saindo da egreja, os frades vinham clamando, heresia! heresin! concitando o pavo & matanca. Ja houvera sangue, jd crepitava o lume; ¢ a cér rubra 6 os primoiros ais dos muribundos exa- cerbaram, como a wm touro, a furia da plebe, agu- Jada pelos sermies dos frades encrgumenns. Desen- eadcou-se a tempestade, rebentando numa hora a colera reunida em muitos sceulos. Creseeram as fo- gueiras no Rocio a na Ribeira; e os bandos iam eagar pela cidade os judeus eseondidos, invadindo as casas. T'raziam-nos ds manadas de quinze ou vinte, amarrados, feridos, cuspidos, semi-mortos; e langavam-nos, aos montes, nas fogueiras. As cham- mas crepitayam, e os gritos dos moribundos con- seguiam ouvir-se por entre o vozear da plebo. Os sinos dobravam a rebate, chamando os fieis 4 ma- tanga. Viam-se os homens despirem-se, para mos- trar que, niio sendo circumcisados, mio podiam ser judeus; porque o furor da plebe ja a orrastava on queimar tudo, n'uma fogueirn que purificasse o3 ares pestilentos. Além d’isso as vingangas pessones ¢ 0 roubo soltavam-se « vontade no meio da desor- TA CONTE DE D. MANUEL i dem. Queimavam-se os infelizes, porque tinham sido assassinados ; e assnssinavam-se, porque se nio deixavam roubar. Ao saque de Lisboa tinham corrido as tripnlacies dos navios do Tejo: eram mais de quinhentos marinheiros flamengos e outros; ena fnina do roubo e da matanga andayam gentes de todas as nagies e céres, inyadindo as casas, violando as mulheres, e incendiando. No primeiro dia, domingo, nfo fulton gente: matou-se meio mi- Ihar. Na segunda feira eram ja mil c quinhentos os que andavam na faina da matanca. As Tustipts tinham fugido, 0 pove escondera-se, os judeus afer- rolhayam as portas, e emquanto os escravos acar- reavam lonha para as fogueiras, os bandidos assalta- yam as cfsas com vaivens ¢ escadas, Arrancavam as ercangas do collo das miles desesperadas, e, to- mando-as pelos pés, esmagavam-lhes os erancos tenros contra os muros, As casas escorriam sangue, que se precipitava pelns escadas vindo reunir-se em pogas nas russ. Havia um cheiro nauscabundo de carne queimada, risadas ferozes no rosto dos etos, ¢ olhares terriveis na face macillenta dos ades, que prégavam 4s esquinas das ruas. Os desgragados corriam 4s egrejas perseguidos, roja- yam-s6 nos altares abracados aos santos e ‘aos sa- crarios, ¢ d’alli cram levados 4 fogueira arrastados pelos sicarios. Na segunda feira mataram-se mais de mil. Na torca acalmou a furia «porque ji nilo achavam quem matar.» Tres dias ¢ duas noutes durou 2 orgia; e no fim contavam-se mais de tre- zentas pessoas queimadas, mais de duas mil mor- tas, e nflo se sabe quantas mulheres, chorando com amargura a sua vinvez, a sue, orfandade, a sua mi- seria, a stn deshonra. O rei acudin com tropas, abriu devassa ¢ enfor- com muita gente; entre essa, frades. Os marinhei- VOL. I oz 18 L. ¥.— A CATASTROPHE ros de bordo velejaram barra em fora com os rou- bos nas mios tintas de sangue; nas esquinas das ruas havia foreas; na fogucira acabaram os dois frades concitadores, ¢ Lisboa pela sua fraqueza foi degauthorada dos seus féros. O rei puniu o que nado soubera prevenir; e insistindo na sua indiffe- renga, ou na sua fraqueza, fez com que as scenas de Lisboa se reproduzissem periodicamente por todo 0 reine. Os fuimos da India, como dizia Affonso de Albu- querque, nio deixavam pensar a corte senio em enriquecer e gozar. Pouco importavam essas mise- raves questies de judeus, quando dia a dia chega- yam do Oriente os preciosos carregamentos c as noticias das victorias estupendas. Se Ledo x alcu- nhava o rumor da Allemanha de inyejas fradescas, o cesar de Lisboa clhava com o mesmo desdem da opulencia para as miseraveis rixas da plebe. Meditava na embaixada a Roma, para espantar o mundo; ¢ caleulava as proporgdes do seu imperio, quando reunisse, a Portugal, Castella, e sis Indias do orients, as do occidente. Affonso de Albuquer- que trouxera-lhe o elephante ¢ 0 cavallo persa com o seu cagador de Hormfiz, a onca ¢ os leopardos, que ia enviar ao papa! Occupado a calcular os Incros’ da sua fu enda da India, mercador ¢ apaixonado pelas ricas alfayas preciosas, como um Medicis, D. Manuel tratava os seus capitiles como feitores; ¢ com um espirito acanhado de negociante, ouvia todas as intrigas e usava do scu poder de rei para satisfazer os seus caprichos. Injusto ¢ ingrato, era pequeno e crucl : Goes falla dos alvards-de-espera, uns em contrario L—A CORTE DE D: MANUEL 49 dos outros, D. Francisco d’Almeida escrovia da In dia ao rei: «Se cada dia cA hade armar uma in- vengilo, sem informagiio do que ci vae, perder-se- nos-ha tudo em pouco.» O rei queria ser absoluto, além-mar, como o tra em Portugal, desde que resumira em si todas as soberanias da Edade-media, unificando a legisla- gio, reformando os foraes, levando a cabo a obra do seu predecessor, ste. porém, s¢ prezara os rhetoricos, Diogo Sigto e Cataldo, o siculo, a quem regalou «montio, pelote, caleas de menim, jubio de setim e um barrete:» este fora um estadista, ¢ os seus actos obedeciam a planos do governo: D. Ma- nuel era um ser mediocre, para quem o mandar tra uma satisfngio ¢ um goz0 tie mesqninho e co nobre, como as delicias de sybarita opu- lento cuja vida, sem ser uma orgia, era apenas um deleite, ¢ 0 reinar, em vex de officio espinhoso, um imolle satisfizer dos gostos delicados, .A carte portigueza era n’essa opocha um paraiso de deli- cians faceis: a existencia moldava-se no typo das cOries italianas, com excepeio das orgias de punhal © veneno. O pago era om theatro, o rei comia, adormecia, ouyia os conselheiros para tratarem dos negocios publicos, ao som de musicas pormanentes, De todas as partes da Europa the vinham cantores © tangedores extremados a quem fazia grandes partidos; tinha bandas de charamelas, saca-buchas, corne#as e harpas, tamboris e rebecas, atabales o trombetas ; tinha musicos mouriscos que cantavam e tangiam com alatdes e pandeiros. Emquanto etinva, dangavam os mogos-fidalgos do pago, e os ehocarreiros castelhanos diziam disparates intencio- nues, como todos og bobos. Rara era a noute sem folin; havin dancas ¢ concertos; havia saraus pro- siosos ¢m quo o rei lin §ravemente as chronicas * 20 L. VA CATASTROPHE dos seus maiores, revendo-se todo na sua gloria; ‘ou assistia ao esgrimir pedante do alfobre das teratas da cérte, a infanta D, Maria, Anna Vaz, as Sigéas ¢ as Hortensins; ou escutava os autos ent que Gil Vicente, fulminando o clero, era ap- plaudido pela eérte humenista, ainda nilo ene pelo mysticismo funebre de D. Joto m1. Esta inferioridade do rei fez com que elle nto soubesse imprimir ao dominio'do Oriente o cara- cter de um imperio, pondo-se a commerciar por sua conta, como faziam em Carthago os oligarchas da republican, e agora, em Veneza, os doges mer- cadores. Guardou para si o monopolio de certos ge- neros da exportaciio; ¢, da importagiio, a pimenta era privilegio seu. O Brazil e a Africa ainda ren- diam poueo ou nada para o Thesouro, ' mas a In- din estava em plena sazio de receitas. Orgava por vinte mil quintaes sé a pimenta que vinha cada anno, produzindo o melhor de um milhiio de eru- gados: aféra Wisto havia os rendimentos do estado, @ para a nagio os lucros de um commercio opu- lento. E quanto a metropole, os redditos dem fe- ctos, forros de toda a despeza, attingiam duzentos contos. Garcia de Rezende diz que vemos no reino As ronilax tanto eresear Que agora o vemos rendor Dexentoa milhies do rones India e Mina nlio entrando. Lisboa crescia em riqueza, em populagio; o Tejo via-se coalhado de navios de todas ns nagies, que vinham trazer e levar os productos de todo o 4 V. 0 Brasit eat cotoniae pert, (2 ei.) pS. 1—A CORTE DE D. MANUEL 21 mundo. Os mercadores, opcrando sobre os grandes valores dos carrezamentos asiaticos, Vendoram Junto om wa din . Em drogas, expoctaria, ‘Setecontos mil cruzadon, Damiio de Goes diz que viu «muitas vezes na casa da contratagio da India mercadores com sa- cos clicios de dinheiro de ouro © prata para faxe- vem pagamento do que deviam; 6 qual dinheiro lhes aie os ofliciaes que tornassem outro dia, por nfio haver tempo de o contar.» © commercio to Oriente fazia-se, ou por mar, livremente; ou com oS naturaes, 4 sombra da protecgio dos sul- ties; on Por contractos, (i mancira depois seguida pelos hollandezes,) com os soberanos locaes: era este o systema adoptado na costa do Malabar, em Kananor, em Katschhi, ¢ em Kollam, bem como na ilha de Ceylio. Apesar das desordens e das pestes, 1 Lisboa eontaya mais de cem iil habitantes, porque a im- migragio cra abundante, do reino e de féra d’elle. Irregular nas suas ruas tortuosas, e tio estreitas que muitas vezes 05 carros, contra os muros, esma- ere quem passava, a cidade tinha na rua nova los Ferros uma arteria, que era ao mesmo tempo o coragtio da sua vida commercial ¢ o da sua vida bri- Thante. Contava cerea de vinte lojas de pannos, 4 Owcatoellemos do toda n expecto, inelainds ox terramotos, fazom do Lisboa uma cidade, euja popalaplio ea tem renovade stecessivumonte all- montando-t0 com a {mmfgragio do provincianos a do extrangelros. Nio ha fixides de typo am elviados palin; © por ia, apeiar dos milkares do ne- grot, que, depola dos Judous, ne rmfrtararam pulagio, surin ean erro dar Importancia organlea a qualquer d' clementos, para deters milaar a phlslonomla da populagio om qualquer epoeha ulterior. 23 L. ¥.—A CATASTROPHE trinta de sedas e outras fazendas, treze de mereea- rias @ especiarias, nove boticas, onze liv reiros, © _ mais de cincoenta siriguciros © onrives. A’ porta dos bazarcs dos homens de negocio, naturaes ¢ es- trangeiros, pavoneavam-se os easquilhos; ¢ todos os prestitos ¢ procissées desfilavam por essa arteria opulenta da cidade. Ahi pulsava o coragiio da ea- pital, feito de Iuxo e devogio; ahi se ernzavam os trajos variegados ¢ as cores diversas das gontes re- motas que as conquistas traziam a Lisboa. Perpas- savain as pretas com as canastras da limpeza 4 eabega, ou vendendo agua por eonta dos senhores: havia milhares d’cllas em Lisboa. Perpassavam os mendigos rotos ¢ os fidalgos vestidos de seda. Cor- ria a multidfio ‘n’um sentido, ¢ ouvia-se o rumor surdo de um prestito: era o rei que vinha de pas- Selo, no seu cortejo asiatico. A’ frente apparecia a ganga, rbinoceronte da Afriea, depois, como mon- tanhas, os cinco elephantes das cavallarigns do rei, reeamados de xaircis de brocado, depois, n'um ca- vallo da Persia, o cagador com a onga, como na embaixada papal, por fim o rei e a cérte, caval- gando, cereados e seguidos pelas bandas de ataba- Jes e clarins. Era um rei da Europa? eva um ra- jah da India? ou um soldi%o de Babylonia? O cortejo deslumbrante sumia-se, e cortas vezes a rus-Nova tinha um outro aspecto oriental. Na quinta-feira santa desenrolaya-se a noute a fune- bre procissilo sagrada em que iam trezontos irméos com yestes pretas, ¢ muitos mais penitentes, oito- centos, um milhar, disciplinando-se a escorrer em sangue. Ouvinm-se preces e gemidos elamorosos, viamn-se crucifixes erguides e homens com barras de ferro aos hombros, ou cruzes de madeira ou de pedra, como Jesus ng sagrada paixto, Ao lado dos penitentes iam os que levavyam as bacias de vinho L—A CORTE DE D. MANUEL 33 cosido para molhar as disciplinas «porque lhes aper- tem as carnes,» ¢ mulheres com bocetas de mar- melada e cidriio, dons das fidalgas, para os que desmaiavam no caminho. Por entre a lugubre pro- cissio fuzilayam bagas as luzes das candcias e das tochas enfumadns, 6 de espaco a espago, no ne- grume da noute, oscillavam no ar phantastieamente as chammas dos pharoes de fogo erguidos em ya- ras altas, Lisboa apresentava o aspecto duplo de uma or- gia de mercadorcs ¢ de uma penitencia de faki- tes: os dois Iados do genio como que africano da sua gente appareciam; ¢ a tragedia que se repre- sentaya no Oriente tinhn um ecco nas scenas da capital—como em Carthago quando os phenicios, mercadejando por todo o Mediterraneo, adoravam nos seus templos Mylitta « Baal. O tempo, corrompendo o imperio, havia de atro- phiar a riqueza, exacerbar a devogio ¢ apagar o que havia d’essa semente de cultura iniciada pe- los filhos de D. Joio 1 e ainda protegida ao de- pois, até que a vinda dos jesuitas a perverten. O commeércio traduzin um serio movimento da intel- ligencia. Caleulaya-se que os livreiros vendiam para cima de yinte mil eruzados por anno; ¢ o yalor do perel recebido de Franga, de Veneza e de outros Ingares, nio importava em menos. De toda a Eu- ropa acudiam a Lisboa os productos das suas va- nas industriag. Eram as escarlatas de Veneza e Valencia, os razos de Florenga, as sarjas de Flan- dres, a8 marlotas de Constantinopla, as sedas de Napoles, os vellndos de Genova, os damascos de Lucca, o8 coraes, o cinal arame, ¢ os espelhos ee Veneza, que sé o rei podia mandar para a In- 1d. Todos os gencros da Europa e os productos do 2 L. V.=A CATASTROPHE reino, © vinho, o azeite; os pannos, vinham a Lis- » para embarcarem para o Oriente; mas o que mais chamava ao Tejo os armadores de toda a fa © que fazia acudir os curiosos ¢ os ricos aos azeres da rua-Nova, eram essas preciosidades que as nius da India traziam constantemente. Além dos earregamentos de pimenta e de arroz, vinham as especiarins: o cravo das Molueas, a noz o massa de Banda, o gengibro de Kollam, a canella de hala,— para os vastos armazens borda do rio, Wonde cram baldeados nos navios de todas as na- ges da Europa. Os generos preciosos constituiam um commereio de grande valor: era o marfim da Guiné, em Africa; eram as sedas da China e os tapetes da Persia, o ambar das ilhas malaias, o sandalo de Timor, as tekas eonros de Katschhi, © anil de Kambai, o pau de Solor, as cambraias de Bengala; o cbano, o borax, a camphora, a laca, a cera, o almisear de Hormiiz; e as poreella- nis curiosamente pintadas com vivas eres, sobre a massa leve ¢ transparente. As pedras e os me- taes preciosos completavam, por fim, 0 catalogo dos productos orientaes reunidos em Lisboa. So- fala ¢ Sumatra mandavam o ouro ¢ prata; o Ja- pio ¢ Manaar as perolas, que tambem vinham de Kalekar; o Pégu os rubis, e toda a India os dia- mantes. De Hormfz reecbiam-se os cavallos da Arabia e da Persia. Na embringuez de tamanhas riquezas, quem po dia ouvir o grito lancinante do judew queimado quem se atreveria a affirmar que a nagio se arrui- Naya? que os campos se despovoayam ? que a mi- Seria crescia? ¢ que o rei de Portugal, tio opu- lento, era de facto um pobre pedinte? L—A CORTE DE DB. MANUEL 25 Tal foi, porém, a verdade, logo no reinado de D. Joao mr. As rendas do Thesouro nfo chegavam para custeiar as despezas publiens; ¢ 0 rei, a bra- gos com falhas enormes, esmolnya emprestimos suc: cessivos em Flandres, e em toda a parte, sem sa- her como havia de pagar os juros exorbitantes, que cada dia mais agpravavam o estado da sua fa- zenda. Jd em 1534 D. JoXo ur devia «por juros vendidos, dividas das casas da India e cambios de Frandes» quatro annos das receitas do reino, ou citocentos contos. Tres annos depois, os «cambios dos dinheyros tomados a emtercse» em Flandres, chegavam a cento ¢ vinte mil cruzados. Em 1648 esses dinleyros sé por si representavam ja quasi tanto como a divida total de nove annos antes: exocdiam setecentos contos. Bra verdade que a India produzia muito, mas absorvia immenso. O oceano tragava esquadras, subvertendo milhGes © milhdes de ernzados. Nio menos de 42 ndus se tinham perdido nos trinta an- nos, desde que durava o novo reinado (1521-51). O abandono de Arzilla e das mais pragas de Africa nilo teve outro motivo, senfio a penuria da nagio, em dinheiro, ¢ tambem em gente. D. Joo m1, obe- decendo 4 tradigio humanista iniciada pelos filhos de D. Joio re querends emparelhar os estudos su- periores ao que eram nas nagies da Europa cen- tral, reformara a Universidade de Coimbra, con- tratando professores o dotando-a generosamente; ias 0 reino ji nilo podia com tamanho encargo. «Os gastos da Universidade tiraram demasiado pola favenda real, ¢ disso havia queixas por sobejarem estudantes e faltarem soldados. » Ta se caleulaya que a populagio do reino bai- xara de metade: de dous a um milhiio de almas; © que niio admirava, pois saiam annualmente para. 26 L, Vi—A CATASTROPHE as Indias mais de 8:000 homens vélidos; ¢ a popu- lagio rural definhava, vergada ao peso de uma mi- seria funebre, Momes suecessivas tinham dizimado tambem a populagio. Em todo o anno de 21 nao choven, ¢ no seguinte a miseria lavrava por todo o reino. Lishoa regorgitava de pobres e morria gente de fome pelas ruas, sob os alpendres das casas. As terras pareciam cinza, e em vez de sulcos de arado viam-se fendas ¢ gretas da seceura desoladora. Por uma semana niio houve pio: comia-se earne'¢ fructas. Em 35 voltou segunda ou terceira fome, a qué o rei acudiu mandando comprar cercaes em Dantzig ¢ na Flandres. Os pregos ordinarios do trigo tinham triplicado, @ a carne era um objecto de luxo: cada arratel valia § a 10 reacs, isto é, 240.2 300 rs. do prego actual, O alqueire de centeio custaya o equivalente de 300a 400 rs.; 20 passo que o trabalhador rural, com eayard enxada todos os dias, do sol a sol, nto ganhava mais de metade. Nio he dando o trabalho para comer, mendigava; ¢ ia de porta em porta, pelas casas fidalgas, pelos conventos ¢ passaes dos prelados, pelas commendas, conezias ¢ abbadias, pedir que The matassem a fome. Garcia de Re- zende nota assim o encarecimento do pilo: ‘Vimos em Evora valor Oe melas de plo iguace Quinso, vinto mil reaes Agora os vernon vender Astonia mil o mali. «Nao ha paiz onde as cousas sejam mais caras do que em Portugal,» dizia o belga Cleynarts. Por um florim em Louvain, notava, tinham-se mais cousas, do que por um ducado aqui. A agricultura L—A CORTE DE I. MANUEL 2T estava inteiramente abandonada, 9s escravos des- empenhavam todos os servigos domesticos, e os estrangeiros todas as industrins. Os portuguezes viviam indolente, luxuosa, e miseravelmente. O belga, nem por 25 ducados ao anno, podia obter uma creada em Lisboa; e todo o servico domestica éra feito por negros & mouros ecaptivos. Os escra- yos, em numero ‘le dex mil, representavam a oitava parte da populagiio da capital; © seus donos fa- ziam (elles creagio para venda, como se foram hestas. Em #Evora, os negros cram mais do que os brancos; e o belga, que vinha de Salamanca, onde tivera casa farta, i moda do seu Brabante, dizia-se transportado a uma cidade do inferno. A emigragio dos naturaes, a incessante impor- tagiio de negros de Africa, ! alteravam a phisiono- mia da populacio, o Garcia de Rezende escrevia: Wemes 19 royae mettor ‘Que, #e sarin for, sorko mate Elloa qco nds, a mon ver. As manadas de cscravas, ecreadas como reba- nhos, pervertiam os costumes; ce Venus, dizin o belga, merece em toda a Hespanha o nome de pu- dlica, como em Thebas, e mérmente em Portugal, onde é raro ver um mancebo contrair uma ligzagiio Jegitima.» Esta desordem concorria de certo para diminuir a populagio. O rei dera a um fidalgo o exelnsivo das casas de prostituigio em certa villa do Algarve. 4 °¥, 0 Brasit © as colan. port, (22 ed 150 trafico da osernvn- fura; fp. 58-05, 8 cscravisagho dos negros nfrleanos. 28 L. V.—A CATASTROPHE A corrupeiio desvirtuira todas as qualidades do earacter nacional. A justica era um mercado, no reino ¢ na India; e a nobreza ingonita, que além se traduzia em ferocidade, traduzia-se em Portu- gal n’um Inxo impertinente ¢ miseravel. Era uma ostentagio, ji nfo cra um orgulho ingenuo. As classes sociaes estavam eonfundidas, ¢ os plebeus olhavam com desdem as profissiies mecanicas, para irem 4 India batalhar, afidalgar-se. Nao haveria harbeiros, nem sapateiros, nom artifices, se nilo fossem 08 de fora. As mulheres, sempre na rua, a pavonear-se, ou a correr as egrejas em devogies, nio tinham mais utilidade pratica, dizia o belga, do que a lingua e¢ aquillo que lhes dé o titulo de easadas. «Se cu quizesse seguir o uso do paiz, accrescen- tava, poria mula e quatro lncaios, jojuando em casa.» O typo do fidalgo pobre era tio commum e¢ tio ridieulo, que andaya nas comedias, conforme se yé em Gil-Vicente: ‘Tragain sols mocos do po HB acroteontanso a capa Goma rel, 0 por morcd, Who tonde as torras do papa, Newt os tratos da Guind, Antes vousa renda opeurta Coma pane de Aleobara Toile o fidalgu da enga, Em qre a renda ena curta He por foega qu'lao faga. Para satisfazer a vaidade daya tratos ao esto- maga: Vom tio ledos —Sas!enag! ‘Come eo tivesso qui, ILA CORTE DED. MANUEL 29 E a carestia dos viveres reduzia-o a pio c agna e rabanctes, quando os havia na praga: ‘Toma tim pedaro de pho E um rable engethado Hekanta n'elle bocado, ‘Coma cio, © pobre mordia-se de inveja, diante do Inxo in- sultante do que tortiava da India rico, e se pas- seava na rua-Nova com um catado oriental. re- cediam-no dous lacaios, seguidos por um terceiro com o chapén de plumas 6 fivelas de brilhantes, tum quarto com © capote, e¢, em roda da mula, preciosa de jaczes e lnzidia, um quinto segurava a redea, um sexto in ao estribo amparando o sa- pato de seda, um setimo levava a escova para afastar as moscas ¢ varrer 0 pé, um oitavo a toa- Iha do panno de linho para limpar o suor da besta, 4 porta da egreja, emquanto o amo onvia missa. Eram todos oito, escravos protos, vestidos de fax- das de cres agalondas de ouro ou prata, Se a nobreza ingenita e o orgulho do caracter se tinham transformado em uma vaidade miserayel, tambem a doenga entrara na fé. A devogiio, tor nando-se em hypoc ingenua, 6 o mye icismo em carnal embriaguez, tinham exagerado o nu- mero dos frades © clerigos, por niio haver mais farta nem rendoga vida: Somos mais frados quo n terra Sem conto na chriatandado. E a plebe tonsurada acompanhava pelos prosti- bulos ¢ tabernas a rolé da gente devassa e inutil: Tie cara no Lumlar, Soehantro da Menlhnda . Qutra cousa ainda fazia desconfiar do exito os homens yelhos: era a impiedade dos mogos. Ti- nham por Deus um grande desdem, ¢ blasonayam contra o juizo @ experiencia. Nio se dizia missa no arrayal, nem havia «oragiio geral, como se cos- tuma: sé houve dados, ganha-perde, pontos de honra, juramentos, e deshonestidadcs.» E o berbere astuto, receiando a guerra na costa, nilo apparecia; espreitava de longe, como um con- dr, para tombar sobre a presa, logo que a visse perdida nos areaes adustos, sequiosa, e esvaida pelo sol ardente. Quando o momento propicio che- Zou, appareceram as nuyens de cavalleiros fugazes eum numeroso exercito. Foi em 4 de agosto. Que se quizesse ou nilo, ji nio era possivel retroce- der. Se nio pelejassem, morreriam 4 fome. Havin sete dias que tinham deixado Arzilla, ¢ no campo niio chegava a haver «duas costas de biscouto nem outra cousa que comer.» A batalha duron uma hora apenas. No primeiro impeto 08 aventuretros tinham Jeyado os mouros de roldiio: a bravura desorde- nada e louea fora tanta que chegara a haver rixas vo 5 5 66 L. VA CATASTROPHE para disputar lugares na, primeira linha; mags quando og clamores de victoria JA soavam, ouvin-se uma voz gritands: ter! ter! o os aventuretros pa- Yaram. Os mouros tornaram entiio com bastas ro- cindas de escopetaria o cargas dos de cavallo. A avangada recuou, o rosso do exercito fundiu-se, Eram quinze ou descseis mil homens congregzados pelos modos que o leitor vil, na maior parte biso- nhos, atirados 4 forga do arado ou das cabras, > nio fallando em seis mil gastadores ¢ muitos carre- teiros © eserayvos que nio era gente, nem mais que impedimento. Viu-se logo o desbarato na sua dos. sragada crucza; «tudo gtitos a lamentos, mortos em cima de vivos @ vivos do mortos, feitos peda- $08, christiios © mouros abragados chorando ¢ mor- tendo, uns sobre a. artilheria, outros bragos ¢ tripas arrastando debaixo de cavallos ¢ cm cima, espeda- gados, © tudo muito mais do que posso dizer por- que aperta comigo a dor na lembranga do que pas- 8cil> GL Laltio de Andrato) —O primeiro ataque, verti- Sinoso, levara de roldio os inimigos; mas a pha- lange portugueza, Penetrando como uma setta no meio da seara dos soldados africanos, foi esmagada na sua victoria. Depois vein a ehacina, e 0 traba- Tho mais lento de amarrar 98 prisionciros: elles gram tantos que ji nllo havia cordas! © suicidio & ainda uma virtude nas batalhas ; mas © exercito de D. Sebastizio nem essa virtude possuia j4. Raros sabiam morrer; todos preferiam render-se. Mas o duque de Aveiro offendido nos brios pela resposta do roi antes da batalha, andaya no campo a maneira de wm anjo de exterminio stodo tinto em sangac» © encontrando o rei na correria disse-lhe: ¢Voja V. A, ge eu sou homem due me embarque!» E seguiu. D. Sebastiio seguiu tambem, «cheio de Pé © sor, © a camisa como o HLJORNADA DE AFRICA 67 mesmo carvios —tilo escuro como As nuvens espes- sas da sua amargura. Calado e sombrio, assistindo ao desmanchar da sua chimera, defendia-se; c aos que o rodeavam, insistindo com elle para fugir, respondia com o silencio, precipitando-se a cayallo contra a mé dos inimigos.— Mas que resta? per- guntayam-lhe afflictos: Morrer!..— Ei seguia, ba- talhando, matando.—Morrer, senhor! diziam-lhe em lagrimas; 6 elle, sereno e conciso: — Morrer, sim; mas devagar! —Pois nfio ha outro remedio? —0 céu! E um tropel de africanos, rolando como uma yaga que rebenta, enyolveu tudo, 6 esmagou csse ultimo grupo de resistencia. Foi como n'um terra- moto, ao desabar de uma casa: tombaram, como um turbilhio de pé e de impreengies, d’onde reben- tavam os clardes das espadas, como linguas do fogo pelas fondas dos escombros. Os que podcram esca- par, no viram o rei imberbe cair, nem morrer: fi- cou obscuramente enterrado nas ruings da sua lou- cura... Quando a nova do desastre chegou a Lisboa, a cidade entrou em si, tomada de contrigio e espanto. As mulheres saiam ds ruas, desgrenhadas, a pedir misericordia, chamando pelos pacs, pelos maridos, pelos filhos, eaptivos dos mouros! O que ainda ha- via de homens em Portugal perdera-se em Africa ; € 4 prova era que o reino ia parar as milos do car- deal D. Henrique, tio do rei infe do, ja caduca, incapaz de nenhum acto viril. Todos © imploravam, todos o rodeavam chorando, orfiios © yiuvas, para que remisse os captivos! If o reino aeabou de ficar sem pelle com o prego dos resga- tes.» Acabavam ag mesmo tempo, com a patria por- ieza, 05 dois homens, —Camies, D. Sebastiio, * t 68 L. ¥.—A CATASTROPHE aque nas agonias d’ella tinham enearnado em si, n’uma chimera, o plano da resurreigiio. N’esse tu- miulo que encerrava com og cadaveres do pocta e do rei, o da nagiio, havia dois epitaphios : um foi o sonho sebastianista; o outro foi, 6, 0 poema dos Lusiadas. A patria fugiva da terra para a regifio acrea da pocsia ¢ dos mythos. Na terra vin-se ape- nas o cardeal rei, cachetico, pendurado como uma creanga, & mamar nos peitos da Maria da Motta. E havia ee pedisse a0 papa que 0 deixasse ca- Sar para dar suecessiio ao reino! A successio es- tava Prpaae a favor do Philippe que comprava tudo, ¢ diante de quom todos reverentes eaiam de rastos. Iv O sebastianismo Mas o clamoroso acto de contrigio, gemido nas runs, 10 chegarem as noticias de Africa, afogou-se logo na atmosphera corrompida: «é para chorar ¢ acabar de pasmar a louquice d’esta terra,» dizia uma testemunha, Nio havia forga bastante, nem para soffrer; ¢ os infelizes, desesporados, abando- navam-se «i protecgiio do castelhano, vendendo-se- Ihe; abandonavam-se 4 protecgiio magica das pro- messas, dos votos ¢ das feiticerias. —O rei de Cas- tella, Deus, 0 Diabo, um qualquer messias, que nos salve, pois que o adorado Messias, 0 mogo re- demptor morreu (talvez nilo morresse!) om Africa. FE as donas illustres e de qualidade, andavam a modo de romarias pelas ruas e egrejas; ¢ nflo ha- vin devogiio defeza que niio fizessem, nem feiti- ¢cira que nfo buscassem, para saber noticias do captiveira: era um tempo dourado para santiies © beatas, que as roubavam em quanto possuiam. Achavam-se por toda a parte, 203 grupos, cum- prindo as devogtes, embiocadas o descalgas, parc eendo medos. Mas, na prolongagio molle d'estes habitos, tinham adquirido paixdes novas, e a fre- quencia das missas e procisstes tornira-se uma forma diversa de vicio, uma nova origem de devas- sidiio, Nas casas nio ficava negra, nem rapariga; jodas iam ds resas acompanhadas pelos namora- 70 L. V.—A CATASTROPIE dos, velhos emparvecidos ou algum rapaz travesso, Porque os homens tinham morrido ou estavam captivos em Africa. Todas se conheciam nas egre- jas ¢ iam ahi como a saraus; ¢ «tam andejas se fizeram por modo de galanteria, que duvido que. os maridos, se o soubessem, queiram do ji (do capti- veire) sair, pelas ndo verem.» As mulheres galanteavam, os homens vendiam- sc, € 0 cardeal D. Henrique resava @ chorava, sem saber como decidir-se, —fugido cm Almei m da peste, que mais uma vez tinha chegado a visitar Lisboa. Philippe 1 queria o reino, o prior do Crato sonhaya repetir a facanha do Mestre d'Aviz, © duque de Braganga allegava oa seus dirci 08 5 ¢ 0 cardeal-rei, tremenda do protendente v nho, inelinado aa duque pela ane odiava D. Anto- nio, em cuja cabeca estava a unien taboa de sal- yagio do reino,— se & que o reino podia salvar-se, O prior do Crato nto valia mais nem menos do que o Mestre de Aviz: acaso yalosse pessoalmente mais; a nagio, Porém, fora um ser vivo e forte no seculo XIV, e era um corpo moribundo no seculo Xvr. Os pretendentes, com a avidez de herdciros, ailligiam no seu leito de morte o cardeal, euja vida se extinguia com a da nagilo. Assim que o rei cachetico morreu, sem deixar couse alguma resolvida, Philippe 1 mandou oceu- par Portugal; e o prior do Crato dispoz-se a repe- tira historia de 1985, O duque de Braganga, reti- rado em Villa-Vigosa, cagava no seu pago, indiffe- rente i sorte do reino; ¢ 0 axereito castelhano des- cia, do Alemtejo a Sctubal, capitaneado pelo du- que Alba. Em Lisboa reinava D, Antonio, acclamado rei, A eapital, obediente ao Jugo d'um messias impor- tuno, aneiaya, comtudo, por uma terminagiio da 1¥.—O SEDASTIANISMO TL crise. Quetia entregar-se nos bragos do tyranno de Castella, mais poderoso, ¢ por issé, provavelmente, mais benigno. Assim como a onda da miseria viera erescendo, invadindo @ afogando, assim crescera a onda da loucura; ec quem viu Lisboa antes da jor- nada de Africa, e a vé agora sob o mando do rei do Crato, reconhece que o paroxismo do delirio nio fora entio ainda attingido. Era uma loucura feroz, um terrorismo do desespero: como so den em toda a parte, quando desgracas calamitosas desequili- bram as forgas collectivas, acclamando as ambi- gfes vulgares, e dando o mando ds plebes ¢ aos fa- cinorns, 4 Assim estaya Lisboa, na imminencia do ataque dos castelhanos. Com o intervallo de duzentos an- nos, em que se fechara o circulo de wna historia brilhante © meritoria, 2 capital, que iniciira a via- gem por uma revolugio, concluia-a por uma Com- muna. As mesmas ruas que tinham visto as seenas de 1885, presenciavam as de 1530. O Prior era um Mestre de Aviz, 0 conde de Vimioso o Nunalva- res de agora. Havia a seena, havia os persona- gens: faltavam, porém, os eros; porque n’esses duzentos annos 9 pove extinguira-se, trucidado nos palmares da India, devorado pelos mares irritados, roido pelas pestes. 2 Restaya apenas a baba vil, 1 V. Portugal eontemporanea, r, pp. 119-87. in nqul um Censo do 1805, descrovendo os lagarca representados em edries: (np. Sautaror, Cértes geracs, doc. pp. 100 0 sogg.) visisnos "Prax-o8-Montes Villa ‘Terme Total Vill rei 4t8 1:50 1078 ‘Braganga 4a Bina Beo42 ‘Mala 5 villus, seetasssese ow 2168 SudT Entre Douro e Minho Porta, 1008 Gulmaries, «4. ask05, ue 1. Veo—A CATASTROPHE como os limos ¢ restos que a onda abandona com desprezo quando vac fugindo para o mar, na praia mia. Braga... 818 1091 ‘Male 8 vill 8:553 173 Guarda Lamogo..., Vitm, Castello Beaneo, Male 7 ¥Ulas, o72 . H an3a d:085 # dirninnlsgo da popatntls progrotiu spre, deals o Hrinelpin de seeulo xv, falvez, 0 08 auecesaivon roveses naclipace fizeram eat qag § fola nanos dopols do Alencorqclble, na rasenha que eaten fez, 60 view BAG altingtr & tum milbio toda x popalacao do relan, Doe . 59 annos nis havia mats de 15:00 homens, oxelulads a nebroza oa Fonte qua pox tia sorvir meavalla, (Vs Mes. econ. 1, p. 183,) IV.—0 SEBASTIANISMO 13 Q governo do prior do Crato em Lisboa era uma tyrannia de energumenos. Tinham desertado da capital os nobres e os ricos: ficara uma plebe desvairada, que tomou posse dos cargos e dos ar- senaes, Era o reinado da demagogia. Lisbon pare- cia uma cidade antiga, D. Antonio um antigo ty- ranno da plebe. Os fugitives, tibios, eram eagados ; e una vez colhidos, prendiam-nos, arrastayam-nos pelas ruas, apedrajando-os endiando-os, para os obrigarem a alistar-se nas ananiaanlas lovas do exercito de Lisboa. Do mesmo modo porque se compunham as tropas, se obtinham recursos: eram assaltos iis casas, rapinas, violencias. O governo vendia tudo: lugares e honras, desesperado por niio _achar compradores. Os jndeus folgavam, re- mindo-se a dinheiro. Tambem os escravos, alistados nas tropas, se libertavam; ¢ esta medida deu um tom noyo aos tumultos ¢ 203 roubos e assassinatos ue impunemente se commettiam por todas as ruas. é: thesouros ¢ alfains das egrejas eram saqueados, os templos profanades, Os frades andavam arregi- mentados, he couraga e ecapacete sobre o burel, prégando sermécs ¢ ordens de commando, Arrega- gado o habito, subiam aos marcos, nas esquinas das ruas, ¢ de espada em punho, fallavam em Deus, na gloria que esperaya os Machabeus, nas penas do inferno reservadas aos tibios. Os conven- tos cram arsenaes, e pelas salas abertas, homens ¢ mulheres escolhiam armas, pragucjando. Era uma saturnal. Entretanto o duque d’Alba avaneaya cautelosa- mente. Como os enfermeiros, quando rodeiam em cireulo o louco varrido, approximando-se, defen- didos por almofadas para evitar os golpes, ¢ para o abafar, pondo-lhe o collete: assim o veterano, com prudencia, fortificada Setubal, dava por mar 74 L, Vi A CATASTRY a volta a Cnseacs, segurando as torres, ¢ avan- gando contra Lisboa, torneada e presa. Em Alcantara (1580, agosto) nio houve propria- mente uma batalha: foi o encontro de uma onda fatal com um viveiro de formigas tontas. A arti- Iheria castelhana yarreu breve os bytalhées de fra des, de eseravos, 6 de regateiras; ea cavallaria tornou a derrota n'uma debandada. Toda a forga do Prior, do conde de Vimioso, do bispo da Guarda, nio bastayam para amparar, na derrocada, os mu- ros que desabavam a pedagos. Os do senado de Lishoa imploravam ao duque d’Alba que os libertasse da tyrannia dos revolu- cionarios ; @ 08 governadores, a quem o eardeal, morrendo, confiara o reino, refugiados em Castro- Marim, tinham, por sentengn, dado a coréa a D. Philippe. O seu general occupou Lisboa, ¢ no Anno segninte (1581, abril) as cértes, em Thomar, acclamaram-no rei. Nio houve protestos, contra a perda da indepen- dencia? Houve; mas de tal natureza, que sio mais uma prova da imeapacidade da nagio para a de- fender. O prior do Crato, vencido ¢ fugido, foi pedir a politica europa o auxilio que os portuguezes Ihe negavam; protrahindo nos Agores, © mais tarde om expedigies dirigidas contra o continente, uma teima impossivel de vingar, — porque o povo, de- primido e miseravel, nada confiava nem esperava dos homens: pedia tudo a Deus, ¢ a um milagre. Como os autigos judens na Palestina, os portu- guezes tinham amassado com as suas lagrimas a 1V.— 0 SEMASTIANISMO 18 chimera do messianismo. Devastada, vencida ¢ por fim yendida, a nagio era um campo-santo, 03 lis: mens como sombras, as agitagdes messiantcas es- pecie de fogos fatuos que ondeavam no ar, suspen- sos no atra sombra da noite do infortunio. Os ma- chabeus de 1580 nio tinham sabide menear a es- pada; eo povo, perdido o sentimento da sua rea- lidade, como todo e como forga, abandonava-se a esperar a volta do Messias, D. Sebastiio, —o prin- cipe encantador, a divina ereanga, que soubera as- pirar para a-salvagko commum, que viria de certo redimir a nagilo! Ningnem vira morrer o rei; Scbastiio de Re- zende acharalhe o cadaver jé nu; vestira-lhe um gibio de hollanda branea, e¢ atravessando-o na sella do cavallo montara nas ancas, levando-o comsigo. Os prisionciros lavraram um auto, reconheeendo aquelle cadaver como o do rei; mas depois dizia-se que o tinham feito para melhor defenderem a fuga, tirando ao inimigo as esperangas de o haver ds milos; ese no primeira momento, o terror do cata- clysmo fizera esqueeer a circumstancia da morte occulta, logo as maiores desgragas posteriores acor- daram na alma do povo a suspcita de que D. Se- bastifio vivia. A sua simpathica phisionomia, os sous proprios erros que eram virtudes, por fim a sua historia tragica, fandavam os alicerees da sua heatificagio que se in formando. O povo ecristalli- sava os scus idenes, transligurando o homem n'um symbolo das suas esperangus e desejos. Um fugitivo, mascarado, batera depois da bata- Tha iis portas de Arzilla, e para que lh’as abrissem dissera-se D. Sebastifio. De nada valen o depoi- mento do capitiio de Arzilla, nem o do proprio au- thor da mentira. O poyo acreditava que taes no- ticias cram embustes, armados contra a sua espe- 16 L s—A CATASTROPIE ranga, pelos miseraveis, vendidos 6 podres, que o governavam. Tinham covardemente abandonado o heroe, ¢ agora temiam-he a colera: porque elle voltarin a julgal-os, a condemnal-os. Desde que se langara nos bragos d’esta espe- ranga mystica, desde que o messianismo, symptoma superior da cachexia nacional, levava o povo a confiar indiscutivelmente n'um milagro proximo, D. Antonio, um peeudo-messias, debatia-se em vio ehamando a si o auxilio das populacées contra o castellano. Os prophetas, o Bandarra, ¢ Simao Gomes, o Ssapateiro-sento, inspirados, cantayam a epopéa do heroe, ¢ as condigdes em que viria a apparecer para redimir 0 seu povo: como na Judéa, tambem, © Christo féra um salvador da nagio, antes de ser redemptor das almas. Tambem o Christo portugues havia de alargar o seu imperio por longes terras, e a sua edade seria a dra da redempgio. Tambem o messianismo da Judéa fora buscar lembrangas mas do reinado glorioso de Hyrean a raiz positiva da formagiio nerea,—eomo a pessoa do tinberbe principe desgracado era a raiz do edificio mystico portngnex. Em 1581-5 appareee o Messias, encarnando sue- cessivamente em dois homens, que tambem tiveram 4 sla paixiio, a sna cruz. O primeiro, o rei de Pe- memacor, cra um oleira; 0 segundo, o rei da Eri- ceira, era wm pedreiro, Um apparecia nas faldas da serra da Estrella, junto 4 fronteira; 0 outro nas raiges da serra de Cintra, junto a0 mar: ambos no coragio do pniz, sobre o seu dorgo, junto da me- dula espinal, onde yibram as’ commogses centracs do organismo: n’essa cordilhcira onde moram os puro-portuguezes. Quando a alma nacional reben- tava n’um intimo soluge, o grito nao podia on- 1W.—0 SEBASTIANISMO Wi vir-se, nem do norte gallego, nem do sul turde- tano. Nao siio os dois reis da plebe impostores, nem aties: ou tambem Jesus foi uma 6 outra cousn, siio, como o prior do Crato, pseudo-messias, politicos cheios de manhas e atrevidas artes: sio homens simples, como é simples o povo que os ac- clama e segue. Por um mysterio, vedado 4 razio, encarnon em ambos a alma collectiva e sio verda- deiros christos nacionaes. Niio se Arrogam a si csse titulo, como tambem Jesus 0 nito fez; mas quando thes dizem: és o rei! elles eréem ; como Jesus acre- ditou, quando Jhe disseram: és 0 filho de David! —86 0 pove sagra os verdadeiros christos, @ mal dos ques sem & sagracio popular, usurpam essa dignidade. lorreram ambos no cadafalso jgnomii ioso, como Jesus acabou n'uma cruz; mas as suas agonias ra- dicaram a ft na alma do povo, porque o proprio das sublimes lowcuras collectivas & protestarem contra as sentengas da realidade, do mupdo, dos sentidos. Inconseiente voar para a regio de um mundo ideal indefinido, a fé ¢ os milagres que ella produz silo a corda divinisadora da humanidade.. . Os dois reis da plebe nito podiam evidentomente ser D, Sebastilio, mas era, comtudo, facto que nin- guem vira morrer o rei. Corriam tradigies « res- peito da sun fuga, e nada se oppunha a possibili- dade de elle, de facto, existir escondido por algum canto da Europa. Os emigrados com D. Antonio em Paris ardiam em desejos de vér confirmada esta suspeita; ¢ nie faltaya quem, depois das revoltas de Penamacor © da Ericeira, chegasse a pensar em forjar um D, Sebastitio, para o apresentar & adora- gio do povo em Portugal, levantando-0 como pen- dio de revolta contra o castelhano. 8 L. Vm—=A CATASTROPHE Destes dons motives nasceram as aventuras de Madrigal ¢ de Veneza, cujos heroes foram o paste- leiro, e Marca Tullio, o calabrez. Nao nos demo- riremos a contar essas historias, curiosidades sem aleance. Se o pasteleiro conseguin fazer-se amar por D, Anna de Austria, enclaustrada; se o de Ve- neza conseguiu ser prégado pelo primeiro apostolo do Sebastianismo, D. Joao de Castro, neto do v rei, ¢ S. Paulo da religiio portugueza ; se ambos acabaram nos supplicios, pagando com a vida a s impostura (1594-1609): siio isso meras euriosi da historia, ¢ na nossa propozemo-nos apenas a gar a derrota do sentimento popular. Para este, eram verdadeiros todos os successivos D. Sebastiio, passando a falsos desde que mor- rium. De © rei, transferir o seu reinado, d’este para o outro mundo, transfigurar a esperinga transcendentalisar a crenga, como sueeedora na Ju- déa, era cousa que o espirito portugues niio podia realisar. Tudo se oppunha a isso ; ¢ este phenomena de embriologia religiosa nito passou 4 categoria de religitio. Nio s6 0 catholicismo,—ja de siymessiani- co,—o impedia radicalmente, como tambem na raga nto havia os dotes elementares, com que o hellenismo, insinuando-se nas tradigdes judaicas, fi- zera do messias um deus, de um imperio uma apo- theose,—de uma cdade aurea, a edade ctorna e ideal do espirito. : Manteve-se o caracter realista da lenda. D. Se- bastiio conseryou-se um heroe, e 0 christo nacional niio attingin a categoria de deus. Os successivos degenganos, porém, e 0 tempo que, no seu decor- rer, tirava a possibilidade a existencia real do ho- mein, nio podendo transferir a lenda para a regiflo do dogma, levaram-na para a regitio do mytho; niio podendo transcendentalisal-a, naturalisaram-na j nie | IV. — 0 SEBASTIANISMO 79 podendo transfigurar o rei em Deus, fizeram delle um heroe; Herakles ¢ niio Zeus, 0 Archanjo e nio © Verbo. Com os movimentos da intima psychologia col- lectiva, com a historia dos sentimentos inconscien- tes da naciio, 6 que o observador péde penetrar no fundo das origens ethnicas,— por toda a parte en- cobertas com as su orfetages successivas das in- flucncias estranhas, as intervengiio do acaso, da talidade das tradigies. FE quando vemos que a alma religiosa da nagio, retrahindo-se ao seu amago intimo, ereando espon- tancamente uma £6, a0 lado do catholicisimo dog- matico @ transcendente, imposto, importade, e mal definido nas Consciencias, constroe essa fé com o3 materines conhecidos das antigas religites naturalis- tas dos celtas; quando vemos que D. Sebastia transforma num rei Art » escondido na ilha vi- gosa. dos bardos, — somos, com ellvito, levados a suppor que o elemento ethnicamente dominante nas populagies 6 em Portugal celta, pois que os seus fructos ingenuos € €spontaneos tém a cér ce a forma dos productos d’essa raca, Nem s6 a lenda de D, Sebastiao prova isto; porque ji observimes as manifestagies do ingonuo amor da natureza, 0 candido enthusiasmo do he- reismo, a sentimentalidade nebulosa da poesia. Para n6s, 0 sebastianismo é uma prova posthuma da na- cionalidade, Na hora das agonias derradcivas, os solugos violentos do povo traziam nos labios a in- tima voz, e proferiam de um modo eloquente e alti- Sonante o pensamento natural organico. Como sos terramotos geologicos, a revolugio das lavas sub- terraneas repellia as camadas superiores, levantan- do-as @ separando-as; ¢ punha a ni a osgatura dos granitos, vomitando uma golphada de lume 80 1. ¥.—A CATASTROPHE Mas, porque motivo, sc no intimo fundo da alma nacional ardia esse fogo celtico, as suas manifesta- des foram sentenciadas a ser por tal forma indeci- sas, quasi obscuras, nas épochas ordinarias da vida? Porque appareciam apenas, ou nos typos excepcio- naes (Nunalyares, D. Joxo de Castro), ou nos mo- mentos de crise, —crise de enthusingmo, como quando nos Inngavamos ao mar, ou de desespero, como quando nos afundavamos no messianismo ta- mular? Porque forn a vida da nagio uma existen- cia pallida, imeolor, sem earacter aceentuado, nem phisionomia bem definida? Porque foram, nos scus melhores dias, os grandes homens como os heroes de Carthago, ou como os imperadores da Mongo- ? E asua religiio, como o culto africano dos deu- ses da Orgin? Porque nio podera, finalmente, uma raga que tanto sentia agora o seu genio, construir uma historia, ¢ instituigtes ¢ religiio proprias d'esse genio, como na Irlanda, na Escocia ou na Bretanha? Porque a definieto da nacionalidade niio obedecen ais prescripgdes da natureza ; porque a nagio portu- eza foi, como tal, 0 fructo de actos da vontade ae certos homens; porque 4 gente lusitana se ag- gregaram, pelo norte, os gallegos onde corria muito sanguo suevo, pelo sul os turdetanos onde corria muito sangue berbere, e a populagio formou-se da eombinagio dos tres grupos; porque, finalmente, nem 0 dabitat dos celtas de Lusitania correspondia a uma unidade geographica, adequada a manter independente «a vida da raca, nem as fronteiras, delimitadas pela politica, a uma expressiio territo- rial que nos pozesse ao abrigo das influencias inces- santes, imperiosas, multiformes, do estrangeiro. 4 .86 um principio subjectivo, qual ¢ a Vontade, TV. de rogas Aumanas, 1 pp, RXVUCEERY, IV.— 0 SRBASTIANISMO Eat podia dar cohesio a csse amilgama deo clementos, a esse conjuncto sem unidade natural; e a nagito ortugueza vive, emquanto vive o patriotismo. Kress querer que é uma ambigio pessoal apenas nos reis da primeira dynastia, é um sentimento col- lectivo na segunda; e o desenvolvimento das idéas faz com que os monarchas se sintam os represen- tantes, 0s orgiios e symbolos, de um acto que nilo obedece «is leis da natureza phisica, mas proyém das ordens da natureza moral, Portugal foi uma nagio como a Judéa, e um imperio, como Roma, E assim eomo, no intimo fundo das manifestagies romanas, apparece a raiz do latino: assim tambem apparece entre nds o lusitano, ou celta. Mas, da mesma firma que o acto da consciencia alargou, para fora da eres natural da racn, a esphera politiea e social de Roma, assim tambem succedeu a Portugal. A nagio nao foi um producto simples das qualidades naturaes, a sua historia nio ¢ ape- nas um desenvolvimento organico ou impessoal: & uma, suceessito de actos voluntarios, de planos de estadistas. Por isso, em Roma e em Portugal, Narel ce Ca- mies, dois yerdadeiros épicos, inspirados pelas idéas, e nio apenas arrastados pelo temperamento collectivo, siio a mais cabal expressiio do genio das duas nagies. Quem for observar intimamente a phisionomia da Eneida ou dos Lusiadas yerd que, para além das ianifestagdes conscientes do pensamento moral, ap- parecem comtudo as confissdes espontancas do genio natural. O mysticismo rural de Virgilio traduz a alma do Lacio; o ingenuo amor da natureza, as invenciveis attracgtes do mar, traduzem, em Camies, a alma Insitana. Tem a critica notado a affinidade litteraria do poema de Camdes ¢ do de Virgilio : registremos VOL Ul 6 82 L. V==A CATASTROPHE nés uma differenga. Os Lusiadas cantam wm pas- sado, © sio um epitaphio. A Hneida era uma apo- theose, cantando os aurea sweula, a edade presenta, de Augusto Cesar, filho dos deuses. . . : A alma lusitana, ingenua na sua candidez,— tombado agora por terra o edificio im I, des: conjunttade & condenmado o systema de idéas trioticas que desde o x1V seculo tinha dado vida & nagiio, —rebentava em solugos, buscando no seia da natureza, onde se acolhia, uma salyagiio que niio podia esperar mais das idéas, dos systemas, dos heroes nein dos reis em quem tinha confiade por dois seculos. A obra temeraria dos homens cata por terra; eo povo, abandonado ¢ perdido, abra- Gava-se i natureza, fazendo do lendario D. Sebas- tilo um genio, um egpirito, —e da sua historia um mytho. O sebastianismo era pois uma explosio simples da desesperanga, uma manifestagio do genio natu- ral intimo da raga, ¢ uma abdieagio da historia, Poxtugal renegava, por um mytho, a realidade; morria para a historia, desfeito n’um sonho; envol- via-se, para entrar ‘no sepulehro, na mortalha de uma csperanga messianica. Por aqui se péde avaliay a loucura dos que es- peravam derrubar, com o sebastianismo, o rei de Castel . D. Joio de Castro, o apostolo da religito, amontoava textos sobre textos, invoeava as sibyllas € 08 Santos-padres, os Evangelhos ¢ o Apocalypse, para demonstrar que D. Sebastiio viria salvar Por- tugal; ¢ nenhum dos apostolos via que o messia- nismo sebastianista se tornmdira um milagre, ¢ uma esperanga funebre. Como 8. Paulo, o8 apostolos sd deviam aconselhar a morte, porque sd essa cra a ambigiio do pove ! LIVRO SEXTO A decomposi¢io (1580-640 5 pomuvi0 mesPaNioL 3— 1777 pYNastiA DE BRAGANGA) Somos entrados na santinonia, ou por me- Ubor dizer, na bestnria, Tonko canando a V. m., quisora passar voande por agul, man hel Telly que hilo posi, A materia 6 dis mala Traportnates, DB. Fasxcisco Maxvec, Caria de Gula We Carcston, A oducagao dos jesuitas Desde que o destino conecdera sis duas nagies du Hespanha o dominio sobre os novos mundos por ellas deseobertos, as eértes de Madrid e de Lisbon primayam sobre todas na Europa; ¢ a Peninsula, onde Santo Tgnacio vira a luz, 2 Hespanha cujo mysticismo formdra 0 corpo da doutrina da Compa- nhia, ‘ eva por mais de um motivo o fico de attrac- gio da forga reformadora da nova milicia ecclesias- ¢ Vs sti. da ete, therieas Lvew av, S41. Sk L. VL—A DECOMPOSICAO. Reagindo contra a explosiio violenta do heroismo dos homens da Renaseenga, 0 jesuitismo prégava a doutrina da submissiio ¢ proclamaya a Obediencia systematiea. Santo Ignacio recommendava aos sous iscipulos portuguezes que fizessem inteira resigna- gio das suns vontades, que offerecessem candida- mente ao Creador, em seus ministros, a liberdade: um dom iprceidencialt Mas esta abdicacio formal da yontade, assim prégada, niio cra simplesmente uma regra de conscieneia religiosa: 0 jesuitismo soubera conciliar a transeendencia com a realidade, e dar ao mysticismo um caracter pratico. Era uma ordem da ioral positiva, e o primeiro principio da educagiio: o saerificio da vontade 6 uma abdicagio real, nas mios dos confessores e ministros de Deus, padres da Companhia. Niio basta, porém, sacrificar a vontade, porque o homem moral vive tambem da intelligencia; e ninguem soube ler as intimidades psychologicas do genero humano como Santo Ignacio e os seus com- panheiros. Além da vontade, escrevia o fundador, & necessario offerecer o entendimenta, tendo nio s6 9 mesmo querer, mas tambem o mesmo pensar do superior. Esse segundo, ¢ mais intimo e dificil sa- crifigio, acabava de reduzir a passividade ideal o diseipulo. Entretanto a passividade nio era uma abjecgiio, porque na pessoa do ministro ou superior estava o verbo do Jesu-Christo, nas suas palayras © nas suas ordens, a intengiio divina: «Nilo consi- dereis o superior, qualquer que elle eeja, como ho- mem sujeito a erros; antes olhac para aquelle a quem no homem obedeceis, para Christo : buseac em vés as raztes que possam defender os seus manda- dos.» O ministro ou superior nilo 6, de certo, impecca- vel, pois que é homem ; mas no mundo, imperfeita ee L—=A EDUCAGKO DOS JESUITAS 85 imagem da socicdade celestial, governam as idéas, como o sol ainda nos alumia, quando o nio vemos. As fraquozas ¢ imperfeigdes do espirito humano sitio ¢omo O§ nevociros que nos encobrem o féco de uma luz, ou como a ineapacidade da palayra para tradu- zir toda a profundidade e delicadeza do pensamento. Essa luz intima, esse primciro principio abseondito 6 a Obediencia; porque o Universo’ éa grande mo- narchia de Jesus, imperador absoluto das vontades ¢ dos pensamentos. Obedeeer, pois, ¢ acertar sem- pre; ainda quando, por motivo da fragilidade hu- mana, a ordem possa ser errada, A authoridade & em si mesma impeceavel, embora as suas manifes- tagtes se nos affigurem alguma ves erroncas, Tal era o primeiro principio da reforma jesuita ; © entre og diyersos monumentos da capacidade do espirito humano que a Renascenca nos legou, ne- nhum excede a este em grandex porque nenhum ousou afacar de frente, com maior coragem nem mais intima forga, os problemas da religiio e da moral. Funda a liberdade na abdicagiio, construir a or- dem moral com a ruina d: vontade, era eontradizer por tal modo o racionalismo a o mysticismo, con- fundir o ideal «6 real, o divino ¢ o humano, por forma que o mundo, submettido 4 educagio jesui- ta, dominado pela profundidade do pensamento, eorria o perigo de acabar afogado por um paradoxo de genio. O mundo reagin; mas nés, portuguezes, filhos d'cssa Hespanha em enjo seio o monstro se geriira, acabimos effectivamente, triturados pelas yoltas frias e potentes d'cssa serpe de nova especie,—afo- gados, extenuados, eadavericos, ja sem alma, nem pensamento, nem vontade. Uma revolugiio tio intima o eonstitucional, que se propunha a modificar a natureza humana, para 86 a Vi— A DECOMPOSIGAO. depois alterar a ordem do munilo, exigia, desde logo, que a Companhia fosse, antes de tudo, ins- tructora e educadora. A prégagiio co exemplo que tinham bastado no x11 seeulo is ordens mendican- tes, nilo bastavam agora; porque, entio, os apos- tolos propunham-se a converter os homens, munda- nos, # absorpeio em Deus; ¢ agora, os novissimos. missionarios qneriam formar a ovo wma diversa os- pecie humana, e transfigurar o mundo sem o ani- quilar, O jesuitismo niio condemnava o mundo nem 0 homem, como outr’ora os mystics tinham feito. Queria 4 natareza e ao homem, queria 4 actividade e no saber; mas todas essas cousns cram para elle aspectos apenas de realidades intimas, e instrumen- tos cégos de uma obra mysteriosa o santa. O. im- perio de Christo na terra, 0 messianiamo que até ao anno mil fora uma esperanga realista, que depois se transfigurdra n'uma abjecco mystica, n'uma con- demnagio formal do mundo, da natureza e do ho- mem, resuscitaya agora sob uma férma nova. A Obediencia piedosa, a abdicagiio, consesuiriam o que, nem a thaumaturgia, nem o mysticismo, ti- nham realisado: fundir numa essencia uniea Deus e o Homem, o eéu ¢ a terra, o absoluto e 0 con- tingente: resolver cssa eterna o insoluyel questio que, desde Alexandria, vinha enlouqueeendo as ca- begas ¢ ameagando a solidez ¢ o futuro do christia- nismo. © milagre que a Huropa por seis seeulos espe- rara, contavam os jesuitas realisal-o, educando o homem, trausformando 6 mundo: transfigurando ambos, de renlidades positivas ¢ de seres vivos ¢ autdnomos, n’aquelles aspectos que a razio trans- cendente descobre na realidade. O homem ficaria sendo, nilo propriamente um automato, mas um ca-

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