You are on page 1of 32
‘Do ISEBE DA CEPAL A TEORIA DA DEPENDENCIA Luiz Carlos Bresser-Pereira ‘05 anos 50, os intelectuais do ISEB, refletindo o proces so de revolusao industrial e nacional que estava em curso des- de 1930, conceberam a interpretagao nacional-burguesa ou nacio- nal-desenvolvimentista do Brasil e da América Latina. Ao mesmo tempo, os intelectuais da CEPAL desenharam a critica da lei das vantagens comparativas, dando fandamentagao econdmica & poli- tica de industrializa¢ao com participacio ativa do Estado, além de haverem formulado a teoria estruturalista da inflacio'. Os dois gru- pos de produtores de idéias viviam em um contexto social e politico que, desde a Grande Depressio dos anos 30, descria do liberalismo, faziaa critica ideolégica do mesmo apontando-o como instrumen- to dos paises mais desenvolvidos, particularmente da Inglaterra e dos Estades Unidos, eapostava em um protagonismo mais acentu- ado do Estado nacional na busca do desenvolvimento economico. Dessa forma, atribufam o subdesenvolvimento da regiao nao ape- nas a0 atraso decorrente da colonizacao mercantil da América Lati- na, mas também aos interesses do centro imperial em manter os pafses em desenvolvimento produzindo bens primérios, entendi- am queo desenvolvimento deveria ser fruto de uma estratégia naci- onal definida com a participagio das burguesias nacionais e dos técnicos do Estado. Suas teorias deram apoio tedrico para o grande process de desenvolvimento que caracterizou a América Latina entre 1930 e 1980. Nos anos 60 ¢ inicio dos 70, porém, uma série de golpes militares nos patses do Cone Sullevou os intelectuais latino- americanos de esquerda a afirmar a impossibilidade da existencia ‘os economists di CEPAL so com freqUéncia chamados deestru- turalstas Essencalmente, porém, foram desenvolvimentsts, como os do ISEB. 202 . Luiz Cantos Bressen-Peneina cde uma barguesia nacional, ea desenvolver uma teoria da depen- déncia associada, consistente com esse pressuposto, que enfraque- ceu o conceito de nagdo na América Latina. Para compreendermos os embates das idéias que iréo se tra- var na América Latina durante o século XX, no seio dos intelectu- ais de esquerda ou progressistas,¢ preciso considerar duas grandes ‘oposigbes ideol6gicas que marcaram 0 mundo desde o século XIX: de um lado, ordem versus justica social, e de outro, nagao versus ‘Cosmépolis. No caso da primeira oposicdo, a prioridade conser- vadora ou de direita seré a da ordem, do primado da lei, indepen- dentemente de ser justa ou injusta, enquanto os progressistas ou de esquerda estario dispostos a arriscar a ordem, primeiro histo- ricamente, em nome da liberdade (sio os liberais politicos e os democratas), ¢, mais tarde, em nome da justiga social (s80 0s soci- alistas ou de esquerda).No caso da segunda oposigao, os naciona- listas defenderao a idéia de nao como uma grandeassociagdode pessoas em torno de valores e destino comuns, ea correspondén- cia dessa nacao com o Estado paraa formacao do moderno Esta- ‘do-nagao—a condigao historica fundamental do desenvolvimento ‘econOmico. Jé 0s cosmopolitas negam a legitimidade da idéia de naio e de Estado-nagao, ou buscam reduzir sua importancia. Conforme veremos neste paper sobre histéria intelectual, 0 conflito entre as duas oposigdes ideol6gicas bisicas (ordem e jus- tica, nagdo e Cosmépolis) dominou os pensamentos brasileiro e Jatino-americano. Para quem esté preocupado essencialmente com ajustiga social, é dificil defender a idéia de desenvolvimento, por- {que este implica um acordo de classes que acaba, de alguma for- ‘ma, legitimando o capitalismo. Da mesma forma, para defender 0 desenvolvimento € dificil ser radicalmente socialista, porque no hf desenvolvimento sem uma estratégia nacional de desenvolvi- mento, ¢ uma estratégia desse tipo envolve sempre um certo acor- do de classes. Na América Latina, especialmente, onde a injustiga social ¢ tao profunda, esta dificuldade ¢ central. Neste trabalho, You examinar estas questdes. partir das idéias, nacionalistas e desenvolvimentistas que 0 1SEBe a CEPAL elabora- [Do IstB E DA CEPALA TEORIA DA DEPENDENCIA . 203 ‘ram nos anos 50, e vou contrapo-Ias as idéias da teoria da depen- déncia, principalmente em sua versio da dependéncia associada’. [Na primeira segio, vou descrever os trés grupos de intelectuais que nos interessam neste trabalho: 05 do ISEB, os da CEPAL ¢ os da escola de sociologia de Sao Paulo, que serviu de base paraa teoria da dependéncia associada. Na segunda, vou examinar a idéia do nacio- nal-desenvolvimentismo e, mais especificamente, 0 conceito de de- senvolvimento do ISEB e da CEPA. como, de um lado, revolucio capitalista e revolugio nacional, e, de outro, como superacao da dualidade, Na terceira ena quarta se¢des, discutirei 0 conceito de nacionalismo ea questio da burguesia nacional, ¢ farei uma refe- réncia aos fatos hist6ricos novos que tornaram parcialmente supe- radaa visio isebiana ecepalina.Na quinta, voltar-me-ei paraa teoria da dependéncia, e examinarei suas tres versoes: a teoria da superexploragao capitalista, a da dependéncia associada e a nacio- nal-dependente, com a qual me associo, porque €, no fundo, acon- tinuacdo ea critica interna a teoria nacional-desenvolvimentista. Instituigdes de intelectuais publicos Instituto Superior de Estudos Brasileiros foi um grupo de intelectuais de vrias origens eespecialidades que,duranteos anos 50, no Riode Janeiro, desenvolveu uma visio coerentee abrangente do Brasil e de seu processo de industrializagao e desenvolvimento. ‘AComissio Econémica para « América Latina das Nagdes Unidas ird se tornar,a partir de 1949, origem do pensamento econdmi- co estruturalistalatino-americano. Nao fago aqui uma resenha do pensamento da CEPAL ou do ISEB, mas dou-Ihes uma interpreta- ‘sd0 pessoal, particularmente co ISEB. As perspectivas abrangentes das duas instituigdes so contemporaneas, conhecendo seu auge F Bete trabalho estd baseado em “O conceito de desenvelvimento do ISEB ‘ediseutido”(Bresser-Percia, 2004) Além de diversas modificagdes e cores, foi acrescentada aqui a anilise da teoia da dependéncia. 204 . Luz Cantos Bressen-Peneira nos anos 50, e so coerentes entre si. Na década seguinte, porém, depois da crise dos anos 60, dos golpes militares eda retomada do desenvolvimento a partir do final dessa década, a visio nacional- desenvolvimentista da CEPAL, e principalmente do ISEB, seré crtiticada de forma cerrada pelos sociélogos brasileiros que se rei- nem na Universidade de Sao Paulo, originalmente sob a lideranga de Florestan Fernandes. £ a escola de sociologia de Sao Paulo que esté surgindo. Tanto 0 ISEB como a CEPAL ea escola de sociolo- gia de So Paulo foram instituigbes de intelectuais piiblicos, em- bora a iiltima pretendesse ser antes uma instituigo puramente académica, mas, entre elas, era o ISEB a que mais se enquadrava nessa categoria’. ‘Os principais intelectuais do ISEB foram os fil6sofos Al- varo Vieira Pinto, Roland Corbisier ¢ Michel Debrun, 0 socié- Jogo Alberto Guerreiro Ramos, 0s economistas Ignacio Rangel, Romulo de Almeida e Ewaldo Correia Lima, o historiador Nel- son Werneck Sodré, e 0s cientistas politicos Helio Jaguaribe e ‘Candido Mendes de Almeida. Suas id¢ias, de cardter antes politi- co do que econdmico’, completavam-se, no plano econdmico, como pensamento estruturalista da CEPAL. As idéias desse or ganismo das Nagdes Unidas tiveram uma repercusso muito maior do que as do ISEB e foram alvo de uma critica muito mais suave do que aquela que enfrentou o grupo de intelectu- ais brasileiros. A CEPAL contard com dois gigantes do pensa- mento econdmico do século XX: seu segundo diretor-executivo principal dirigente ser4 Raul Prebisch, logo a ele se associan- do Celso Furtado. Outros economistas significativos da CEPAL foram An{bal Pinto, Oswaldo Sunkel e Maria da Conceigio ‘Tavares’. Esses autores partem de um pressuposto semelhante Snow wandoaexpresto"intelectsis pabico? nos trmovadotados por Ruwell Jacob, 1987 ‘Embora contassem com um notével economist, lgndcio Rangel 0 trabalhode Prebisch (1949) corresponce Aintrodagio a0 Estudio Econémico «deAmérica Latina, de 1949, Como artigo fi publieado originalmenteno Brasil, em portuguts, na Revista Braileia de Economia, or inci de Celso Furtado. Do WEB E DA CEPALA TEORIA DA DEFENDENCIA . 205 20 do ISEB: 0 desenvolvimento devia ser 0 produto de uma es- tratégia nacional de industrializacao. Para legitim4-lo, porém, seria necessério fazer a critica da lei das vantagens comperati- vas, demonstrando que, 20 contrério do que pressupunha essa lei ow a teoria econdmica ortodoxa, sua aplicagio ndo permitia que os ganhos de produtividades que ocorriam com a industri- alizagdo nos pafses centrais se transformassem em baixa dos recos, beneficiando os paises em desenvolvimento. Nos pafses industriais, 0 valor adicionado j4 6 maior porque a indtistria ‘exige um trabalho mais qualificado do que o da producto agri- cola e mineradora. Somava-te« isto 0 fato de que, a0 contririo do que previa « teoria do comércio internacional, os aumentos, de salérios nos paises centrais nao resultavam apenas em baixa de pregos, mas em aumento de salérios proporcionais os au- mentos de produtividade, devido 2 boa organizagao dos traba- Ihadores, enquanto 0 mesmo nao acontecia nos paises em desenvolvimento com os ganhos de produtividade. Dat resulta- vaa tese de que havia uma tendéncia secular & deterioragao dos termos de intercambio. Os dois grupos filiavam-se a “teoria do imperialismo” ~ ou seja, & teoria que explica o subdesenvolvi ‘mento principalmente como resultado da a¢ao imperialista das grandes poténcias, que busca manter os paises da periferia ex- portadores de produtos agricolas e matérias-primas. O ISEB dominou 2 cena intelectual brasileira nos anos 50. Com uma defasagem de cerca de der anos, formou-se, dentro do Departamento de Ciéncias Sociais da USP, a escola de sociologia de S40 Paulo, sob alideranga inicial de Florestan Fernandes ¢, de- pois, também de Fernando Henrique Cardoso. Essa escola, que ogo adotaré uma postura de critica académica ¢ politica ao ISEB, teve um papel muito diferente na interpretagdo dos desenvolvi- mentos brasileiro ¢ latino-americano. Embora os socidiogos que seretinemem torno do Departamento de Ciencias Socials da USP nao adotem originalmente uma posicao socialista, mostrando-se mais preocupados emestudar a teoria sociolégica internacional, e em transpor para o Brasil métodos de pesquisa cientificos na érea 206 . Luvz. Cantos Bressen-Pexeina das ciéncias sociais, partir do inicio dos anos 60, com a radicalizagao politica que ocorre na América Latina, serao porta- dores de pensamento essencialmente de esquerda e, até 0 fim dos anos 70, crescentemente marxista, Sua preocupagio principal seré coma marginalidade social, a distribuicdo de renda e a anélise dos géneros e das classes socizis. Ao contratio do que ocorre com 0 ISEB, a questao nacional nao é central para escola de sociologia de Sio Paulo, Enquantoa interpretacao do ISEB, como adaCEPAL, corresponde A interpretagio nacional-burguesa do Brasil, e saa visio do desenvolvimento est intrinsecamente ligada A idéia da revolugio nacional, a escola de Sio Paulo estard muito mais ligada a uma das trés versoes da teoria da dependéncia: a versao da de- pendéncia associada‘. Enquanto os intelectuais do ISEB véem no pacto populista de Getdlio Vargas um modelo para a revolugio capitalista e nacional de patses periféricos, e véem 0 populismo politico como uma primeira expressio do povo e, portanto, da democracia,a escola de sociologia de Sio Paulo daré ao populismo de Vargas uma conotagdo negative. Enquanto 0 grupo do ISEB, ‘embora dotado deampla formagao tedrica, estivesseantes situado no aparelho do Estado do que na universidade, e ndo se mostrasse preocupado com a pesquisa empirica, sendo antes um grupo de intelectuais piblicos universalistas, os soci6logos de Séo Pauloeram ‘um produto por exceléncia da universidade, e reivindicavam para Em um trabalho anterior (Bresser-Pereira, 1982), dstingu‘a interpretagio funci- ‘onal capitalista da teora da ‘nova dependency que nomearia tanto a interpreta- ‘lo de Fernando Henrique Caréoso como a minha, na medida em que ambas ‘mostravam os que 2s empresas maltinacionais podiam contribuir para aindustti- aliagao, mas causavam distorg0es no plano da dstribuigao de renda da politica ‘autoritéria, Hoje, mais consciente da negaclo por Cardeso da possiblidede de ‘uma burguesia nacional ~ coisa com a qual nuncs concorde -, parece-me mais adequado distinguie a minha posigio ds dee. Na verdade, a posigto de Cardoso cera mesma da interpretacio funcional capitalist ligada 3 escola de sociologia de ‘io Paulo, enquanto a minha manteve sus vinculaglo com a visio original do ISEB e da CEPAL, como se poderi ver nestetrabalho. [Do ISEB EDA CEPALA TEORIA DA DEPENDENCIA . 207 0 si o cardter puramente académico ou cientifico’. Enquanto, de acordo com Norma Cortes (2003, pp. 27-31), 0 ISEB era um gru- po nacionalistae historicista, que tinha uma visdo duualista da his- t6ria, que pressupunha a possibilidade das aliangas de classe, e estava preocupado com o desenvolvimento nacional obstado pelo imperialismo; 2 escola paulista adotou uma perspectiva cosmo- polita, antidualista, enfatizou 0 conflito das classes — ou seja, a dicotomia esquerda-direita, rejeitando a possibilidade de acordos nacionais e néo se interessando em criticar as relagbes imperiais cexistentes entre os paises desenvolvidos e os ndo-desenvolvidos. Esta anilise suméria nao significa, porém, que a escola de sociolo- gia de Sao Paulo tenha se constituide em um grupo compacto. Pelo contrdrio, houve muito pensamento independents, ¢ confli- 10s te6ricos de todo 0 tipo. O alvo inicial da critica da sociologia paulista foi Gilberto Freyre’. O segundo avo serd 0 ISEB e comeca- 4 com um famoso debate entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. O primeiro trabalho amplo do grupo paulista, que esboga ‘uma visto do Brasil e compete diretamente com as idéias do grupo do Rio de Janeiro, seréo livro de Fernando Henrique Cardoso (1964) sobre os empresirios e o desenvolvimento econdmico?, 7A preocupagi das peequisas emplricasiniias serfcom a discriminate raci- al inaugurada comos trabalhos pioneires de Fernand Henrique Cardoso (1962) cede Florestan Fernandes (1945) * er, sobre esa critica, além da ampla producto paulist, o ensaio de Joaquim Falcdo, “A Lata pelo Tione: Gilberto Freyre versusa USP" (2001). * Fernando Henrique Cardoso faa critic inicil das idias do ISEB (1964, pp. 81- 82), Esta critica € radicalizada mais tarde por dois representantes da escola de S80 Paulo,Czio Navarro de Toledo, ISEB: fbricade idelogias (1977), Maria Syiviade Carvalho Franco,“O Tempo das lusdes” (1978), enquanto Francisco de Oiveira, “Economia Brasilia: Critica Rezdo Dualista(1972),crticava prineipalmente 0 cestruturlismo de Celso Furtado, Alia Alves Abrea (1978) precisou de muita in

You might also like