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HA DEZ ANOS, OS MOMIRRATOS DEANTANIO TENTAM DESTRUIR A POESIA CONCRETA A REALIDADE DESTRUIRA OS FALSOS MAGICOB DILUIDORES AUGUSTO DE CAMPOS DECIO PIGNATARI HAROLDO DE CAMPOS TEORIA DA POESIA CONCRETA TEXTOS CRITICOS E MANIFESTOS 1950 - 1960 LIVRARIA DUAS CIDADES Dez. anos depois, aqui vai_a 2.* edigio da TEORIA DA POESIA CONCRETA. A demora se deveu, desta vez, nic tanto a0 desinteresse dos ‘editores como & inércia’ dos autores. Realmente, mais do que a teoria, nos interessava ver editada a poesia -— sempre menos editével —, @ poesia, que € afinal o que interessa. ‘A teoria nio passa de um tacape de emergtocia a que © poeta se ve obrigado a recorrer, ante a incompeténcia dos criticos, para abrir a cabesa do publico (a deles € invulnerével). Hoje, depois que 2 teoria da poesia coi creta foi diluida e caricaturada em teorréias mais ou menos patafisicas pela voz das subcorrentes para ou contraconcretbides, afanosamente colecionadas pelos histofie- dores/arquivistas literérios, ela nos parece um esforgo quase indtil, urgindo, antes, leitura dos poemas, embora a nitidez ¢ a coeréncia das idéias possam ter a virtude detergente de clarear 0 campo ¢ mostrar, Por comparaghio, 0 escuro ¢ © sujo das coi- sas_meramente fabricadas. Pelo sim ov pelo nfo, aqui vai ela, de novo pra vocés, € de novo t6 pra eles, chupins desmemo- riados. Na introdugSo & 1.* ediglo advertia-se que © volume compreendia textos de 1950 a 1960, incluindo apenas um trabalho escrito em 1960, mas 36 publicado em 1963. E acenava-se com uma segunda coletinea, abrangendo textos tebricos referentes a poesia concreta publicados a partir de 1961. Abdicamos do projeto, nfo por falta de textos, mas por falta’ de tempo. Alguns desses textos vieram a integrar livros indi- viduais, como A ARTE NO HORIZONTE DO PROVAVEL de Haroldo de Campos ¢ CONTRACOMUNICACAO de Décio Pignatari, onde se encontra 0 que poderia sef considerado 0 tltimo programa tedrico de um integrante do grupo: a Teoria da Guerrilha: Artistica. Que os leitores insa- tisfeitos se remetam a eles ¢ a ela. Mantivemos, pdis, 0 volume como estava, acrescentando-lhe apenas dois textos, iné- ditos em livro, que nos pareceram indispen- séveis para a compreensio dos caminhos assumidos posteriormente pelos poetas do grupo: o manifesto NOVA LINGUAGEM: NOVA POESIA, de Décio Pignatari ¢ Luis Angelo Pinto (1964), que originou a poesia semidtica ¢ os poemas sem palavras adotados, depois, cabulosamente, por de- fluxes coneretistas como a poesia proceso. a poesia sinalistica outras; e 0 editorial do n.° 5 —o thtimo — da revista INVEN- CAO (1967): mais um texto de Pignatarl, com alguns toques dos dois Campos — um quase testamento, ou textamento, No mais, o original permanece. Os apén- dices (Bibliografia do Grupo “Noigandres” ¢ Sinopse do Movimento de Poesia Concre- ta) ficam interrompidos em 1965. De entéo para cM muitos itens foram acrescentados 2 bibliografia ¢ varios acontecimentos so- brevieram, destacando-se 0 surto de expo- sigdes e antologias internacionais ocorrido ‘em meados dos anos 60, depois de publi- cada a Teoria. Mas nenhum dos trés auto- es revelou disposigio para coletar esses dados. Tarefa que 0s historiadores litera ios fargo certamente muito melhor, prin- cipalmente quando a poesia-bumerangue- concreta, depois de ter sido exportada, re- fizer o circuito e voltar a cair sobre as suas cabecas. Fernando Pessoa fantasiou um “movimen- to” que praticamente inexistiu e que cle izia ter_nascido da amizade entre ele € S&-Carveiro: 0 Sensacionismo. Acho que 36 pra ter com quem conversar, Téo fan- tasioso que um de seus poucos supostos integrantes, além do préprio Pessoa, era Alvaro de Campos. Outros, muito menores do que ele, fantasiaram “movimentos” pen- sando entrar para a histéria (a0 menos, a da literatura). Muitos gostariam que a poe- sia concreta nfo tivesse pasado de fantasia. A esta altura, acho que até nés mesmos. Porque ela existiu demais ¢ a sua realidade se tornou, afinal, tio ubfqua e palpavel que quase chegou a nos engolir individualmente sob um rétulo anonimizador: os “‘con- cretistas”, Por outro lado, a geléia geral fez de tudo Para esmagar esse osso — a poesia con- creta — sem consegui-lo. Finalmente, al- guns dos seus fabricantes apontaram o de- dinho (a dnica coisa que eles t8m de duro) contra _nés ¢ nos acusaram de terrorismo cultural, Os “concretistas” — esses abomi- paveis homens das neves que espalharam Pegadas monstruosas por toda a parte — seriam culpados do crime de terem garro- teado a cultura brasileira, sufocado a poesia € impedido o seu florescimento. Como diz ‘© Décio, é estranho: trés poetas do bairro das Perdizes, aos quais se juntaram uns poucos companheiros, sem outra forga que a da sua vontade, € sem outro apoio a nio ser o individual para a divulgacdo de seus poemas — até este ano sempre’ publicados em edigdes nio comerciais — conseguiram aterrorizar a poesia brasileira. Ou esta era muito fraca, ou as idéias deles eram muito fortes. O que vocés acham? AUGUSTO DE CAMPOS DECIO PIGNATARI HAROLDO DE CAMPOS TEORIA DA POESIA CONCRETA TEXTOS CRITICOS E MANIFESTOS 1950-1960 fl [Al LIVRARIA DUAS CIDADES 1975 Capa — 1965 Criacdo: Décio Pignatasi Antefinal: Roberto Esteves Lopes INTRODUGAO A 2." EDIGKO POESIA-BUMERANGUE-CONCRETA Dez anos depois, aqui vai a 2,° edigéo da TEORIA DA POESIA CONCRETA. A demora se deveu, desta vez, néo tanto ao desinte. resse dos editores como d inércia dos autores. Realmente, mais do que a teoria, nos interessava ver editada a poesia — sempre menos editdvel —, a poesia, que é afinal o que interessa. A teoria ndo passa de um tacape de emergéncia a que 0 poeta se vé obri- gado @ recorrer, ante a incompeténcia dos criticos, para abrir a cabeca do piblico (a deles é invulnerdvel). Hoje, depois que a teoria da poesia concreta foi diluida e carica- turada em teorréias mais ou menos patafisicas pela voz das sub- correntes para ou contraconcretdides, afanosamente colecionadas pelos historiadores/arquivistas literdrios, ela nos parece um es- forgo quase initil, urgindo, antes, a leitura dos poemas, embora @ nitidez € a coeréncia das idéias possam ter a virtude detergente de clarear 0 campo e mostrar, por comparagio, 0 escuro e 0 sisjo das coisas meramente jabricadas. Pelo sim ow pelo néo, aqui vai ela, de novo pra vocés, e de novo t6 pra eles, chupins desmemo- tiados, Na introdugdo é 1. edigéo advertia-se que o volume compreendia textos de 1950 @ 1960, incluinde apenas um trabalho escrito em 1960, mas sé publicado em 1963. E acenava-se com uma segunda coleténea, abrangendo textos tedricos referentes a poesia concreta publicados @ partir de 1961. Abdicamos do projeto, néo por falta de textos, mas por falta de tempo. Alguns desses textos vieram a integrar livros individuais, como A ARTE NO HORIZONTE DO PROVAVEL de Haroldo de Campos e CONTRACOMUNICACAO de Décio Pignatari, onde se encontra o que poderia ser considerado o tiltimo programa tedrico de um integrante do grupo: a Teoria da Guerritha Artis. tica, Que os leitores insatisfeitos se remetam a eles ¢ a ela. Mantivemos, pois, o volume como estava, acrescentando-lhe apenas dois textos, inéditos em livro, que nos pareceram indispensdveis para a compreenséo dos caminhos assumidos posteriormente pelos poetas do grupo: o manifesto NOVA LINGUAGEM: NOVA POESIA, de Décio Pignatari e Luis Angelo Pinto (1964), que originou @ poesia semidtica e os poemas sem palavras adotados, depois, cabulosamente, por defluxos concretistas como a poesia processo, a poesia sinalistica e outras; € 0 editorial do n.° 5 — o ultimo — da revista INVENCAO (1967): mais um texto de Pignatari, com alguns toques dos dois Campos — um quase testa- mento, ou textamento, 5 No mais, 0 original permanece. Os apéndices (Bibliografia do Grupo “Noigandres” e Sinopse do Movimento de Poesia Con- creta) ficam interrompidas em 1965. De entéo para cé muitos itens foram acrescentados a bibliografia e varios acontecimentos sobrevieram, destacando-se 0 surto de exposigdes e antologias in- ternacionais ocorrido em meados dos anos 60, depois de publicada a Teoria. Mas nenhum dos trés autores revelou disposiggo para coletar esses dados. Tarefa que os historiadores literdrios fardo certamente muito melhor, principalmente quando a poesia-bume- rangue-concreta, depois de ter sido exportada, refizer 0 circuito ¢ voltar a cair sobre as suas cabegas. Fernando Pessoa fantasiou um “movimento” que praticamente inexistiu € que ele dizia ter nascido da amizade entre ele ¢ Sé- Carneiro: 0 Sensacionalismo. Acko que sé pra ter com quem conversa. Téo fantasioso que um de seus poucos supostos inte- grantes, além do proprio Pessoa, era Alvaro de Campos. Outros, muito menores do que ele, fantasiaram “movimentos” pensando entrar para a historia (ao menos, a da literatura). Muitos gosta- riam que a poesia concreta ndo tivesse passado de fantasia. A esta altura, acho que até nds mesmos. Porque ela existiu demais ¢ a sug realidade se tornou, afinal, téo ubiqua e palpével que quase chegou @ nos engolir individualmente sob um rétulo anonimi- zador: os “concretistas”. Por outro lado, a geléia geral fez de tudo para esmagar esse osso — a poesia concreta — sem consegui-lo. Finalmente, alguns dos seus jabricantes aponteram o dedinho (a tinica coisa que eles tem de duro) contra nés e nos acusaram de terrorismo cultural. Os “concretistas” — esses abomindveis homens das neves que espa- Iharam pegadas monstruosas por toda a parte — seriam culpados do crime de terem garroteado a cultura brasileira, sufocado a poesia e impedido o seu florescimento. Como diz o Décio, é es- tranko: trés poetas do bairro das Perdizes, aos quais se juntaram uns poucos companheiros, sem outra forga que a da sua vontade, € sem outro apoio a néo ser o individual para « divulgagao de seus poemas — até este ano sempre publicados em edigées néo comerciais — conseguiram aterrorizar a poesia brasileira. Ou esta era muito fraca, ou as idéias deles eram muito fortes. O que vocés acham? Augusto de Campos abril 1975 INTRODUGAO A 1* EDIGAO O movimento de poesia concreta alterou profundamente o contexto da Poesia brasileira. Pés idéias e autores em circulagéo. Procedeu a revisées do nosso passado literdrio. Colocou problemas ¢ propés opgées. No plano nacional, retomou o didlogo com 22, interompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral. Surgiu com um projeto geral de nova informagao estética, inscrito em cheio no horizonte de nossa civilizagao técnica, situado em nosso tempo, humana e vivencialmente presente. Ofereceu, pela primeira vez, uma totalizagao critica da experiéncia poética estante, armando-se de uma visada e de um propésito coletivos. Enfrentou a questéo participante, mostrando que alistamento néo significa alienagao dos problemas da criagéo, que conteiido ideolégico revoluciondrio 36 redunda em poesia vélida quando é veiculado sob forma tam- bém revolucionéria. Pensou o nacional néo em termos exéticos, mas em dimenséo critica. No plano internacional, exportou idéias ¢ formas. E 0 primeiro movimento literdrio brasileiro a nascer na dianteira da experién- cia artistica mundial, sem defasagem de uma ou mais décadas. Sen consumo se deu de mancira a mais surpreendente. Na lin- guagem ¢ na visualidade cotidianas, a poesia concrete comparece. Esté no texto de propaganda, na paginagio e na titulagem do jornal, na diagramagéo do livro, no “slogan” de televisdo, na letra de “bossa nova”. E consumida inadvertidamente mesmo por aqueles que se recusam a reconhecé-la como poesia (rétulo que, alids, n@o se empenha em disputar, tais os equivocos que o impregnam, preferindo antes um compromisso de fundo com @ medula da linguagem), A iniciativa de reunir em volume os textos e manifestos que prepararam ¢ fomentaram a poesia concreta se explica pelo res- peito fundamental ao documento. Um movimento que tem vita- lidade para criar e reproduzir, para gerar variantes, para influir, quando nao em solugées diretamente identificdveis, sob a forma de amplos condicionamentos, corre sempre o risco da difragéo, da refragao, da diluigéo. & preciso facilitar a sua compreensio e @ sua discusséo nos seus termos originais, sem a mediagéo das divulgacées esqueméticas ¢ das interpretagdes duvidosas. Pu- blicados 0s textos, aqui recolhidos, na imprensa didria e em re- vistas diversas, em pouco tempo se tornariam fatalmente inaces- siveis, pelo proprio cardter contingente ¢ heterogénco das folhas em que foram estampados. Como aconteceu com 22, cuja histéria estética ainda néo foi suficientemente contada, e, em grande me- dida, tem que ser rastreada ¢ restabelecida « partir dos elementos dispersos em jornais periédicos da époce, com as dificuldades imagindveis. Este volume é uma selegdo do material publicado entre 1950 ¢ 1960, pois a poesia concreta — movimento em 7 Processo e em progresso — ndo pode dar, a esta altura, sendo um balango parcial de suas atividades.* A incitléncia de certos temas comuns em alguns trabalhos dos trés autores, — quase sempre, porém, tratados ou aprofundados de pontos-de-vista di- ferentes —, mostra como o projeto da poesia concreta foi-se construindo paulatinamente, através de um verdadeiro “plano de- cenal”, na teoria e na pratica. Nessa corrida de revezamento — pluripercurso de idéias em agdo e evolugéo — os tépicos funda- mentais passam de um a outro autor, perseguindo-se a unidade na variedade, Coeréncia estatistica, solidariedade estocdstica, que se alimentam, inclusive, da divergéncia. Os textos aqui compilados formam o pano de fundo da poesia brasileira de hoje, no apenas na sua faixa programaticamente de vanguarda, mas naquilo que ela tem de mais essencialmente criativo. Mesmo aqueles que se tém insurgido contra as teses da poesia concreta, outra coisa nao fazem sendo mover-se na Grea balizada pelos promotores do movimento: usam-thes as téc- nicas, parafraseiam-thes a terminologia, invocam-thes 0 elenco de autores, repetem-lhes os achados criticos, dissimulando-se fregiten- temente por trds de um precério expediente de redenominacéo, como se a mera troca de rétulos fosse suficiente para cortar o corddo umbilical dos fatos e das idéias. Pode-se dizer que as questées fundamentais que o movimento de poesia concrete agitou em matéria de teoria do poema e de cria- ao constituem o nicleo dos debates da poesia e da poética atuais. Nelas se abeberaram os epigonos, conkecidos ou vindicos, para suas reflexes reflexas e seus manifestos diddticos, caracterizados pela sorrateira omissao das fontes, Mas, 0 que é de outra parte compensador, sobre elas se detiveram também os mais respon- sdveis e conscientes dentre os poetas de nossas vérias geracées para delas extrairem, na lealdade do didlogo, estimulos, sugestées, instigagdes. Muitas das reivindicagées sintdticas e semdnticas do movimento entraram jd, pragmaticamente, para o comércio ativo e vivo do que se poderia chamar uma linguagem comum. Pas suram a circular independentemente de seus langadores, anonimi- zadas no patriménio geral, coletivizadas pelo uso. O que é a maior demonstragéo da eficdcia dialética do movimento como produtor de idéias. Qs autores agradecem a Francisco Ashcar a colaboragéo que thes deu na organizagéo do presente volume. * Apenas um trabalho escrito em_ 1960, porém publicado em 1963, foi inclufdo no volume, Trata-se de “Contexto de uma vanguarda”, que se destinava a ptefaciar uma antologia, afinal no publicada em formato de livro. Oportunamente, edicdes INVENGAO lancario. uma segunda coletinea, com: Breendendo textos terics referéntes a porte conctts, pubicados a patt 1961. 8 DEPOIMENTO (*) 19 Se Dicio Pignatari Todo poema auténtico é uma aventura —— uma aventurg_plani- ficada, Um poema nao quer dizer isto nem aquilo, mas diz-se iB proprio, é idéntico a si mesmo e A dissemelhanga do autor, no sentido do mito conhecido dos mortais que foram amados por deusas imortais por isso sacrificados. Em cada poema ingressa- se e &se expulso do paraiso. Um poema é feito de palavras ¢ siléncios. Um poema é dificil. Addo. Sisifo. Orfeu. ‘A que poctas, no mundo, foi concedido o espantoso privilégio de identificar 0 mito com a realidade — como esté acontecendo agora com os poetas do Estado de Israel que, necessitado de uma lingua secular e cotidiana para preservar do prosaismo a velhis- sima lingua do Tora, incumbiu, ou melhor, acatou e organizou verdadeiros dicionarios de neologismos criados pelos seus poetas — agora transformados (em mito e realidade) em adamitas- menestréis? . A contengio de Eliot, 0 aparente desbordamento de Pound nos “Cantos”, as aventuras sildbicas de Marianne Moore, o suave la- birinto lingitistico de Fernando Pessoa (etc.), mais a misica, a pintura, o cinema, poem em xeque a forma mais ou menos aceita. Agora, o poeta é um turista exilado, que atirou ao mar o seu Baedeker. Algo assim como “Salve-se Quem Puder”. Como sempre foi. (*) Trecho do depoimento prestado por Décio Pignatari na seccio “Auto- res ¢ Livros”. dirigida por José Tavares de Miranda, dentro da série de entrevistas “Tendéncias da Nova Poesia Brasileita” (Suplemento do Jornal de Sao Paulo, 2-4-1950). SOBRE POESIA ORAL E POESIA ESCRITA * Décio Pignatari George Thomson, in Marxism and Poetry, diznos do carater fundamentalmente oral da poesia em seus inicios, e em grupos sociais pouco complexos, onde a poesia faz parte do “acervo comum de referéncias” ¢ experiéncias, e onde a propria lingue- gem cotidiana é de cunho marcadamente poético. O mais bem dotado dentre eles é como que cleito o poeta-declamador oficial, © qual, diante do grupo, recebia a “inspiragdo” e declamava o poema, sendo perfeitamente compreendido pot todos, em todas fas suas entonagdes e intengdes. Quando surge a pocsia escrita, as malhas sociais j4 comegaram # emaranhar-se, ¢ 0 pocta vé reduzindo-se seu auditério, até que suas excogitagdes poéticas se transformem no monélogo dos dias atuais. Tem relagdo a isso a expresséo de Carlos Drummond de Andra- de, fazendo blague, ante certa picardia dos mogos, das “poesias jamais declamaveis”. Sinto-me aventurado a acreditar que o poeta fez do papel o seu piblico, moldando-o & semelhanga de seu canto, ¢ langando mo de todos os recursos grificos e tipogrificos, desde a pontuagéo até o caligrama, para tentar a transposigio do poema oral para © escrito, em todos os seus matizes. Um retrospecto diré melhor: este poema de Ledo Ivo: Na ‘noite higiénica © vento balanca grandes flores: calcio. onde uma longa cadeia de nn © vogais surdas imita o lento caule ao vento, repentinamente sustado por dois pontos: cileio — * Trecho extraldo do artigo “A Critica ¢ 0 Despautétio ou a Mosca “Azul” (Suplemento do Jornal de So Paulo, 10-9-1950). As considera- Bes aqui reproduzidas vinham a propésito do poema “O Jogral ¢ » Pros- tituta Negra” (1949), de Décio. Pignari, onde — segundo o mesmo artigo — “as palavras fluem, fundem-se ¢ se desmembram para acom- panhar as contorc6es do jogral". Nesse poema esbocavam-se jd — temi- tic, e estruturalmente —- algumas das preocupacSes que conduziriam & formulagéo da poesia concreta, in a flor que se abre. Se bem que o poema ficasse bastante preju- icado sem a imaginagio sonora, o desenho tipogrifico ¢ per- ceptivel. Este outro exemplo, de Hélderlin, em tradugio de Manuel Ban- deira, é decisivo: Nel Mezzo del Cammin Peras amarelas E rosas silvestres Da paisagem sobre a goa. © cisnes graciosos, Bébedos de beijos, Enfiando a cabeca Na gua santa e sdbria! Ai de mim, aonde, se & inverno agora, achar as Flores? e aonde © calor do sol E a sombra da terra? Qs muros avultam Mudos ¢ frios; ao vento Tatalam bandeiras, Observa Otto Maria Carpeaux (Origens ¢ Fins): “Kase poema resume a vida de Holderlin e sua arte também; o eaplendor cutonal dos ritmos da primeira estrofe, e na segunda os mo. nossilabos étonos, perdidos no fim dos versos como o frio inver. nal, igeda a bandeira da morte”. Finalmente, este, de Marianne Moore, (...), “The Fish”, as trés iltimas estrofes somente: Al external marks of abuse are present on this defiant edifice — all the physical features of ac- cident — lack of cornice, dynamite grooves, burns and hatchet strokes, these things stand out on it; the chasm side is dead. Repeated evidence has proved that it can live on what cannot revive its youth. The sea grows old in it. (**) Ai vemos as estrofes fluindo uma para dentro da outra, e¢ a tipografia compondo o desenho caprichoso dos meandros que © peixe deixa na agua. Na segunda estrofe citada, a palavra “accident” sofreu um trauma, para acentuar o “crash”. © Apresentamos, anexa, a traducéo integral do poema “The Fish” publicada, posteriormente, por Augusto de Campos (pagina “Invengio”, Correia Paslistano, 5-6-60). 13 14 © PEIXE Nad. ando em negro jade, Conchas azul-marinhas, uma 36 sobre montes de p6, a abrir ¢ fechar como que. brado leque. ‘Mariscos incrustados na crista da onda, agora a vista, pois as setas submersas do sol, vidrilhos, sol- tam reflexos, répidas reus por entre as gretas — acendendo a urquesa do mar crepuscular de corpos, A Agua estende um braco de ago na aresta de aco do penhasco, e entéo estrelas, ros- ados grios de arroz, medusas, caranguejos — lirios verdes —. algas a escorrer, des- lizem uns sobre os outros. Os sinais todas do abuso estio presentes 00 vazio deste edificio-desafio, todos os tacos fisicos do ac idente — lascas, ‘marcas de fogo ou dinamits, cortes de machado, tudo res. iste nele, que como morto jaz. Pertinaz evidencia comprova que ele vive do gue nfo the revive a juventud:. O mar envelhece nele. POETAMENOS augusto de campos ou aspirando a esperanga de uma KLANGFARBENMELODIE (melodiadetimbres) com palavras como em Webern: uma_melodia continua deslocads. de um instrumento_para outro, mudando constantemente sua_cor: instrumentos: frase/palavra/silaba/letra(s), cujos timbres se definam p/ um tema gréfico-fonético ou “ideogramico”. .. a necessidade da representagdo griifica em cores (q ainda assim apenas aproximadamente representam, podendo diminuir em funcionalidade em ctos casos complexos de superposigio ¢ interpenetracio temitica), excluida a representagéo monocolor q esté para o poema como uma fotografia para a realidade cromatica. mas luminogos, ou filmletras, quem os tivera! reverberagdo: leitura oral — vozes reais agindo em (apro- ximadamente) timbre para o poema como os instrumentos na Klangfarbenmelodie de Webern. (Publicado ofiginalmente como introdugio i série potiamenos (janciro/ julho 1953). em moigandres, a. 2, Sio Paulo, fevereiro de 1955.) 15 * Reproduzimos, a seguir, um poema de Augusto de Campos, da série poetamenos (texto previsto para 2 vozes-cores, masculina e feminina). eis os amantes sem parentes senado os corpos irmaum gemeoutrem cimaeu baixela ecoracambos duplamplinfantuno(s)empre semen(t)jemventre estésse aqueléle inhumenoutro PONTOS—PERIFERIA—POESIA CONCRETA Augusto de Campos “Sem presumir do futuro o que sairé daqui, nada ou quase uma arte”, dizia Mallarmé no prefécio a primeira versio de Un Coup de Dés (Revista Cosmopolis — 1897), entreabrindo as portas de uma nova realidade potti Qs varios pugil/ismos do comego do século — nao obstante sua utilidade © necessidade — tiveram o infortinio de obscure- ‘poema planta”, desse “grande poema ico e cosmogénico”, que vale por si s6.todo o vozerio das vanguardas de alguns anos depois, Un Coup de Dés fez de Mallarmé o inventor de um processo de composigéo poética cuja significagdo se nos afigura com- paravel ao valor da “série”, introduzida por Schoenberg, puri- ficada por Webern, e, através da filtragdo deste, legada aos jovens misicos eletrénicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. A esse processo definiriamos, de inicio, com a palavra estrutura, tendo em vista uma entidade onde o todo é mais que a soma das partes ou algo qualitativa- mente diverso de cada componente. Eisenstein, na fundamen- taco de sua teoria da montagem, Pierre Boulez e Michel Fano, com relagéo ao principio serial, testemunharam — como artis- tas — 0 interesse da aplicagio dos conceitos gestaltianos ao campo das artes, E é em estritos termos de Gestalt que enten- demos o titulo de um dos livros de poesia de E. E. Cumming: Js 5. Para a poesia, e em especial para a poesia de estrutura de Mallarmé ou Cummings, dois mais dois pode ser rigoro- samente igual a cinco. (Como afirma Hugh Kenner, em The Poetry of Ezra Pound, “q fragmentagdo da idéia estética em imagens alotrépicas, tal como teorizada pela primeira vez por Mallarmé, foi uma des- coberta cuja importancia para o artista corresponde A da fissdo nuclear para o fisico”. Mallarmé descobria e estava consciente do alcance de sua descoberta, e é por isso que scu pequeno prefacio tem quase tanta relevincia como o préprio poema. 7 “Subdivisdes prismaticas da Idéia”, eis como conceituava ele, com fina perspicicia, 0 seu original método compositivo. Corolario primeiro do proceso mallarmeano é.a exigéncia de uma tipografia funcional, que espelhe com real eficécia as metamorfoses, 08 fluxos ¢ refluxos do pensamento. O que em Un Coup de Dés se consubstancia nos seguintes efeitos, que preferimos expor através das palavras do poeta: a) emprego de tipos diversos: “‘A diferenga dos caracteres impressio entre o motivo preponderante, um secun- dario e outros adjacentes, dita sua importancia a emis- sao oral...”; b) posig&io das linhas tipograficas: “... ¢ a situagdo, ao meio, no alto, em baixo da pagina, indicaré que sobe ou desce a entonagio”; c) espago grafico: .“Os “brancos”, com efeito, assumem importancia, agridem a primeira vista; a versificagio o - exigiu como siléncio em torno, ordinariamente, no ponto em que um trecho, lirico ou de poucos pés, ocupa, no meio, cerca de um tergo da pagina: eu nao trans- grido essa medida, apenas a disperso. O papel intervem cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou reaparece, aceitando a sucessdo de outras”, etc.; d) uso especial da folha, que passa a compor-se propria- mente de duas paginas desdobradas, onde as palavras formam um todo e ao mesmo tempo se separam em dois grupos, a direita e a esquerda da prega central, “como componentes de um mesmo ideograma”, segundo observa Robert Greer Cohn1, ou, noutros termos, como se a prega central fosse uma espécie de ponto de apoio para o equilibrio de dois ramos de palavras-pesos. Trata-se, pois, de uma utilizagio dindmica dos recursos -tipe— ‘gréfiecs, j4 impotentes em seu_ai de a pata serviF ‘propria pontuagio sé torna aqui espaco grafico se substantiva e passa a fazer funcionar com maior plasticidade as pausas e intervalos da diccdo! 1 LiOeuvre de Mallarmé — Un Coup de Dés — Robert Greer Cohn — Librairie Les Lettres — Paris — 1951. 18 L Sob um certo angulo a experiéncia tem raizes na misica. Par- tem ainda uma vez de Mallarmé os primeiros lampejos eacla- recedores: “Acrescentar que dese emprego a nu do pensamento com retiradas, prolongamentos, fugas, ou seu proprio desenho resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura”; ¢ “Sua reuniéo” (a do versolivre e do poema em prosa) “se efetua sob uma influéncia, eu o sei, estranha, 2 da Masica ouvida em concerto; sendo reconheciveis nesta diversos neiog>,que me ma pareceram pertencer as Letras, retomo-os. Genero, que fica sendo como a Sinfonia”, etc. De modo geral as ligdes estruturais que Mallarmé foi encontrar na misica se reduzem & nogdo”de tema, implicando também a idéia de desenvolvimento horizontal e contraponto. Assim, Un: Coup de Dés compdese de temas ou, para usarmos da expressao do poeta, de motivo preponderante, secundarios e adjacentes, indicados graficamente pelo tamanho maior ou me- nor das letras e ainda distinguidos um do outro pela diversi- ficagio dos caracteres. Objetivament motivo preponderante: UN COUP DE DES/JAMAIS/ N’ABOLIRA/LE HASARD. L* motivo secundirio: Si/c'était/le nombre/ce serait — que tem como adjacente os temas comme si/comme si, pot sua ver ramificados; outros motivos secundarios: quand bien méme lancé dans des circonstances eternelles/ du fond d’un naufrage/ soit/ le maitre/ existat-il/ commengat-il et cessat-il/ se chiffrat-il illuminat-il/ rien/ n’aura eu liew/ que le lieu/ excepté/ peut-étre/ une constellation; motivos adjacentes: os assinalados pelas letras menores. Em sintese, a raiz estrutural do poema seria, portanto: A = motive preponderante motivo secundério motivo adjacente > Mas acontece que os motivos se interprenetram. Como assinala Greer Cohn: “Frases caracteres menores sfio agrupadas em torno da grande, formando galhos, ramos, sobre seu tronco, € todas essas ramificagées se perseguem paralelamente ou se en- trecruzam, oferecendo um equivalente literdrio do contraponto musical”, 19

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