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1K sair de casa, naquela manhi, Leopoldo ia que jd ndo voltatia atras. O dia anterior tinha sido 0 do seu aniversirio — 0 seu oitavo aniversdtio — ¢ cinha sido um dia tristissimo. ‘Tinha pedido como prenda uma coisa que queria havia jf tanto tempo: umas sapatilhas, uma vez que, apesar de viver na cidade, gostav corer. Q € sentia-se feliz. Porém, tinha poucas ocasides para corer: de facto — exceptuando 0 horirio da gi- imenso de ndo corria sentia o ar bater-Ihe na cara histica na escola —, ni tinha mesmo rienhuma Ele gostaria de poder correr pelos campos ou pela beira-mar. Tantos dos scus colegas de escola, aos fins-de-semana, iam com os pais para 0 campo, mas ele no. Nem o pai nem a mac gostavam de sair da cidade. A mie tinha pavor de ratos ¢ ara- thas, © 0 pai era muito preguigoso: assim, todos os seus tempos livres eram passados em casa, aler A Pela consisténcia ¢ pelo peso, apercebera-se ime- diatamente de que nao era de esperar nada de bom do embrulho que a mae Ihe fizera escorregar para as maos. Desembrulhara-o lentamente, com circunspec- gio, como se Ié dentro estivesse uma bomba prestes a explodir. Quando, em ver das sapatilha: the apareceram dois livros de capa luzidia, nao aguentou mais ¢ desatou a chorar, tal a raiva que sentia, No rosto dos pais desilusio. stampara-se uma grande — Meu anjo — dizia a mie —, nao & preciso chorares agora, choras depois de os teres lido. — Olhal JA viste que lindas ilustragoes colori das? — dizia o pai, prazenteiro. Leopoldo tinha-os atirado ao chao com raiva e, barendo com a porta, tinha-se ido refugiar no quarto. Desde que nascera que, pelo seu aniversirio, no tinha recebido senao livros. Primeito, livros fofos de pano, depois, livros com grandes dese- nhos ¢ poucas palaveas, depois, ainda livros, mas com muitas palaveas ¢ poucos desenhos. Da sua cama, ao erguer o olhar, no conseguia ver sendo estantes e estantes cheias de livros e, de todos esses livros, nao havia sequer um que ele tivesse dese- jado. Pouco depois, naquela mesma tarde, quando a mie com vor. persuasi . por denis da port convidar para a Apaguem-nas voces! — e depois, p ega debaixo do ur ouvir mais nada, enfiara a FEstava triste ¢ furioso, Pareciathe impossivel que 0s seus pais, apds oito anos de com conseguissem perceber que 0s livros nao lhe interes savam para nad! Que os pais gostassem, tudo bem, mas nao era por isso que ele haveria de gostar. Bastava-lhe olhar para aquela superficie branca cheia de gatafunhos pretos, para que a cabeca The come- asse a andar & roda como se fosse um carrossel No ano anterior, a mie, preocupada com os seus péssimos resultados escolares, tinha-o inclusivamente levado a um psicdlogo, © psicélogo tinha-the feito imensas perguntas,tinha-o feito brincar com uns cubinhos de plistco ¢ depois, no fim, tinha — Papitofobia, mais um caso de papirofobi — Papirofobia?! — tinha repetido a mada, ¢ ai o psicélogo tinha-the explicado que se lar tratava de um problema recentissimo e em ripida expansio: os primeiros casos tinham sido regista- dos nos Estados Unidos dez anos antes e, de la, como uma epidemia invisive, tinha invadido todo © mundo civilizado. — A culpa, minha senhora — enquanto os acompanhava até a porta —, é da », dos jogos de video. Tire-thos, obrigue-o a ler, a usar a cabega e em poucos meses hé-de notar incriveis melhoras. sera ele, televis: Ao ouvir tais palavras, Leopoldo bem gostaria sse feito, teria sido completamente imitil porque, cntretanto, ja se encontravam no patamar ¢ 0 psicélogo tinha desaparecido atris da porta. dle protestar mas, mesmo que 0 ti — Mas eu pouca televisio vejo — dissera-Ihes Leopoldo ao entrar para o carro. — Ouviste 0 psicdlogo, no ouviste? — respon- dleraa mae, — Ve-se que até esse pouco te faz: mal. — E nunca tive um tinico jogo de video! A mae encolhera os ombros: — Eu sei lao que tu fazes na escola! Se calhar, em ver de estudares, passas ho is ¢ horas agarrado aos jogos dos teus colegas. A partir desse dia, para tratar a papirofobia, os pais comaram medidas drsticas. A televisio fora embrulhada num saco preta do lixo ¢ selada com uma corrente € trés cadeados. ‘Todas as manhas, antes de ir para a escola, a mae polvilhava-the as pontas dos dedos com carvio, para ver se ele brincava com jogos de video. Depois, enquanto , dobrado sob 0 peso Leopoldo descia as escada da mochila, gritava atras dele — Ai de ti, se voltas com as mios limpas! Se as medidas tivessem ficado por ai, Leopoldo, de uma maneira ou de outra, teria conseguido sobreviver. No fundo, a tclevisio no the di grande co Quotidianum» estabelecido pelo pai A verdadcira tragédia era 0 «Tantum — Eu, comat lade — eracthe o pai, mal fora revelado o funesto diagnéstico —, tinha li lo, pelo menos, o equivalente a metade do meu peso. E agora que tenho trinta anos, posso dizer com orgulho que os volumes que li, pesam, pelo menos, dez ve mais que cu. Li centenas de livros, centenas de metros eiibicos de papel impresso. Se ndo consegues ler porque esti doente, quer dizer que € preciso que ce trate E como € que se trata um doente? Tomando remédios com regulati Lancia, ¢ é ‘0 que também tu irds Fazer. Partindo deste principio, determinara que Leopoldo deveria comegar o dia com cem gramas de leitura, cem gramas na primeira semana, duzentos na segunda, trezentos na terceira e por ai adiante. Se as etapas fossem sendo respeitadas, antes do Verio teria che gado, com certeza, a0 quilo quotidiano, e entao cstaria curado. No dia seguinte, para assegurar o perfeito fun- Gionamento do Tantum Quotidianum, pusera a velha balanga de cozinha ao pé da porta da rua. Antes de sait, Leopoldo deveria colocar num dos pratos, tudo 0 que tinha lido, Nada de peso, nada de jogos. Desde o inicio do Tantum Quotidianum, Leo- poldo comegara a softer de terrores nocturnos. ithava que andava de bicicleta como o fazem os campedes numa prova por etapas: pedala ; pedalava, para baixo ¢ para cima nas subidas, sem- itos. Depois, de repente, quando era quase certo que teria vencido, divisava perante si uma figura gigantesca — pare- cia um papio mas, em vez de ter aqueles pélos todos 0s longos caninos, era todo feito de livros; caminhava de forma desconchavada, agitando no ar as mios feitas de livros policiais ¢ colecgdes baratas: em vex de pernas, tinha pilhas e pilhas de pre em frente nos caminhos dir enciclopédias, avangava a cada passo na sua direc- Gao de forma cada vez mais ameagadora. Leopoldo cartegava nos travées, mas no havia eles responderem, fincava entéo os pés no chao, mas era demasiado tarde: © papao jé estava ao pé dele, em cima dele, desabando sobre ele... preci- janeira de samente um minuto antes de ser esmagado pela Enciclopédia Britanica em peso, Leopoldo abria os olhos a gritar e acordava lavado em suores De manha, depois de ter tido aqueles sonhos, Leopoldo senti Na escola, adormecia com facilidade ou entéo punha-se a chorar. Alguns dias antes do seu ani- cansado. yersitio, a mae, vendo-o piorar cada ver mais, perguntara ao marido se nao seria caso de inter- romper 0 tratamento. — Querida, isto € um tratam tico; € natural que no inicio os sintomas tendam nto homeopé- a piorar — respondera entio o pai Naquela mesma tarde, tinham saido para the comprar a prenda ¢, em ver de terem ido a uma loja de artigos desportivos, foram a uma livraria De todas estas coisas se lembrou Leopoldo en- quanto est va com a cabeca debaixo do travesseiro 6 no dia do seu aniversério, E enquanto se lembrava delas, dav: se conta de como uma pancla de pres dianum ¢ explodi 9: mais uma semana de Tantum Quoti- a. Precisava de tomar uma decisio, fazer qualquer coisa, mas qué? logo de seguida porque o recheio estava incandes- Quando a mae 6 chamou para o jantar, jé tinha on as idcias claras. Iria perguntar aos pais por que & —O que é que estés para ai a dizer? — pergun- que ler cra assim téo importante. Pensando e tou a mie, sentando-se A mesa repensando nos tiltimos meses, de facto, dera-se — Por que ¢ que é preciso ler? — insistiu Leo- conta de que nio tinha havido uma tinica vez em poldo, que Ihe tivessem explicado por que € que era pre~ — Porque — respondeu 0 pai, bufando — ny enquanto a mie lhe fazia escorre- quem Ié conhece as coisas. E quem as conhece, gar para o prato uns pasteizinhos meio queima- domina-as. dos, Leapoldo tomou félego ¢ entao, de uma s6 — Porque ler é importante — prosseguiu a vez, disse: mie, — Mas por que € que é preciso ler? Leopoldo tocou com o garfo num pastel. Aquela pergunta seguiu-se um instante de silén- — 0 Papa também é importante ¢ nem toda a cio. © pai dew uma dentada num pastel e cuspiu-o gente é Papa. — Ler... bem... — observou a mae. — Se nao se lé a cabeca comega a gitar em roda livre ¢ isso niio é ada bom. — Ler torna-nos diferentes — acrescentou o pai que, no entrecanco, If tinha conseguido engolir sem livros nao se pode ser feliz. opoldo escurou tudo sem responder ¢ sem por um pascel — L objecgdes. Depois, quando acabou de comer, levan- tou-se, disse obrigado ¢ voltou para o seu quarto. Apagou a luz e fingiu que dormia, De todas as tes postas que os pais Ihe tinham dado, nao havia uma tinica que Ihe parecesse credivel ¢ verdadeira. Uma vez, tinha ido jantar a casa do seu colega de carteira, Os pais dele tinham uma pastelaria ¢ em toda a casa — fora a lista telefénica — Leo- poldo nao vira um tinico pedago de papel. Tinha comido coisas deliciosas ¢ tinha-se diyertido como jamais se divertira na sua propri imbora casa. nunca tivesse lido um livro, a familia do seu colega inha-lhe parecido uma familia feliz. E entio? Se os livros nao serviam para tornar as pessoas feli- zes, para que que haviam de servir? De madrugada, Leopoldo encheu a mochila da escola com uma camisola ¢ um pijama ¢ nos bol- 19 sos laterais pos uns bolinhos. Tinha decidido fugir de casa e no havia nada, absolutamente nada, que 0 pudesse fazer mudar de ideias, Tal como todas as manhas, cumprimentou a mac & porta de casa, disse-lhe mais um adeus ja do patio enquanto ela o olhava da janela ¢ depois, com 0 p que fazia todos os dias para ir para a escola. Mas em vez de voltar & dircita no cruzamento, conti- nuou sempre em frente até que, de repente, 0 mais normal possivel, seguiu pelo caminho encontrou um autocarro parado com as portas abertas. Sem olhar & sua volta, saltou li para dentro €, escondido entre as pernas das pessoas grandes, afastou-se de casa, da escola, daquele mundo onde tanto tinha softido. Na verdade, Leopoldo, como todas as «1 angas que fogem de casa, nao tinha a minima idcia de para onde ir. Assim, fez todo 0 perctrso do auto- carro, € quando este parou no fim da linha, des- cet juntamente com os diltimos passageitos. Olhou em seu redor. Tinha chegado a uma grande praca desconhecida, De um lado havia tum enorme atmazém ¢, do outro, a entrada de um parque. Leopoldo enfiou-se logo no grande arma- zém e, pelas escadas rolantes, chegou i secgio de artigos desportivos. Ai, sobre uma prateleira cin- tilante, estavam expostas sapatithas de todas as for- mas ¢ cores. Com o coragio a bater-Ihe forcemente no peito, parou para as ver, Como as desejaval Daria qualquer coisa para ter um par assim nos seus pés, No exacto momento em que esticava a mao para o par que the parecia mais bonito, ouviu uma vor atris de si — Desejas alguma coisa, pequenote? Leopoldo voltou-se: com ar de abelhuda. — Onde esté a wa ma imediatamente. Leopoldo senti — Esté na outra secgaio — respondeu mentindo a uma empregada de loja 2 — perguntou-lhe ela ‘¢ corar, qualquer outra coisa, desceu a correr as escadas € abandonou o grande armazém a toda a velocidade O parque é muito melhor, pensou, li hé tantas fard caso de mim. E dirigiu- adas para a entrada. Durante criangas ¢ ninguém -se com grandes pa algum tempo, andou a vaguear pelas pequenas estradinhas do parque. Quando chegou 4 zona de parque infantil, parou para brincar. Andou de escorrega, para cima e para baixo, de baloigo, para a frente ¢ para tris. Brincava mas nada. Havia como uma pequena nuvem negra dentro de si, ¢ essa nuvem fazia sombra sobre tudo © resto. Se calhar & culpa da fome, pensou a um certo ponto ¢, deixando © baloigo, foi & procur de um lugar af holinho. Percorreu duas vezes 0 parque, para a frente e para trés, sem encontrar um tinico banco Jo se divertia rado onde pudesse comer o seu c, antes que a empregada Ihe pudesse perguntar livre. Por fim, viu um, onde estava sencado ape- nas um senhor de muita idade, de bengala Sculos escuros. Deve ser um cego, pensou Leo- poldo e, sem perder mais tempo, sentou-se a0 pé del abriu a mochila e tirou de Id o bolo, Ao ouvir o barulho do papel, 0 velho estreme- ceu, Ievantou 2 cabega ¢ perguntou: — Quem é tu? Leopoldo ficou com o bolo supenso no ar. Fujo ‘ou nao fujo?, pensou, mas depois respondeu: — Fu chamo-me Leopoldo! uma crianga? — Sim— respondeu Leopoldo coma boca cheia. —E por é que € que nao estis na escola? Leopoldo sentiu o nariz crescer como 0 do Pindquio. —A professora hoje estava doente — disse, sem grande convicgio. © O velho ficou uns instantes em silencio. — Sabes — disse depois —, quando encontro tuma crianga de manhd, penso sempre que fugiu de casa. s O que vale & que & cego, pensou entio Leo- poldo, porque sentia as faces ficarem cor de prir- pura, — E sabes porque é que penso assim? — reto- mou 0 velho. — Porque eu, com a tua idade, fugi de casa. — A sérioz! — exclamou Leopoldo, ficando quase sufocado com 0 bolo. — Pois é. Era muito infeliz em casa, e por isso fui-me embora. — E para onde... bem... onde € que dormia? — perguntou Leopoldo, muito interessado nos pormenores priticos. — Nao vais acreditar, mas apesar de ser baixote, embarquei num velciro. — Como grumete? — Sim, como grumete. Dito isto, 0 velho comegou a contar a sua vida. Tinha dado a volta 20 mundo umas boas dezoito veres. Dando voltas ¢ voltas & Terra, tinham-lhe acontecido coisas absolutamente extraordincirias Cagara baleias ferocfssimas de cores inacredi combatera contra os piratas da Malisia e do ma da China, escapara deles agarrando-se a um iweis, 26 ttoneo, sobre esse tronco andara a deriva e che- gata a uma itha com um vulcio, uma ilhazinha perdida no meio do oceano Indico. Ali conhecera selvagens que eram tio pequenos que cabiam na palma da sua mao, estes tinham-no eleito seu rei, mas também de li tinha fugido. No dorso de um golfino, chegara a uma ouera ilha Nessa ilha vivia uma princesalindissima e le apaixonara-s diatamente por ela, © ime- sé no dia anterior Tenia eesen oo meee té-lo-ia transformado descobrira que Se ae em porco. Entio, atirara-se ao mar ¢ nadara ¢ nad chegar a um transatlintico que fazia rota para oci- dente. Dali fora at tado num belissimo cavalo, arravessara a Ri se se tivesse & Crimeia ¢, da Crimeia, mon- casado, a Sibéria inteiras. Nessa mesma manhi, der: terrivel acontecimento qne o deixara cego. — Aconteceu na Mongélia — disse com um profundo suspiro. — Tomando-me por um espido, uma tribo de rebeldes tirou-me a vista com uma espada incandescente. — Que coisa assustadora — murmurou Leo- poldo. — Pois é, é realmente assustador — disse 0 velho. — Mas sabes, por mais que te possa pare- cer estranho, nao lamento nada do que fiz. Se vol- tasse a nascer, faria exactamente as mesmas coisas, do principio ao fim Seguiu-se um longo siléncio. Os sinos de uma igreja bateram uma hora. O velho levantou-se — Ven comigo — disse —, vamos comer qual- quer coisa, Foram a uma charcutaria ¢ comeram seis cro- quetes de arroz cada um. Enquanto engolia 0 sexto croquete, 0 velho disse: — Sabes, Leopoldo, hi pouco disse-te uma mentira... — Qual foi? — Que no lamento nada do que fiz. Na ver- dade, tenho pena de uma coisa, sabes o que @ E nao ter acabado um livro. — Um livro! — exclamou Leopoldo como se 0 velho tivesse dito uma barbaridade. Como é podia ter pena de nao ter acabado um —Chama-se O Vagabundo das Estrelas — con- tinuou 0 velho, — Jé estava quase no fim quando os mongéis me cegaram. — Como é que era a historia? — perguntou Leopoldo, por pura gentile: O velho comegou a contar, Era a histéria de um homem mantido prisionciro injustamente ¢ por muito tempo. Acorrentado e no escuro, comegara a viajar com 0 pensamento. Como se tivesse & sta disposigao a maquina do tempo, conseguira viver vidas de pessoas de épocas longinquas. Vencida a inicial reserva, Leopoldo seguia avidamente 0 desenrolar da histéria, Era uma historia fascinante, cheia de magia. E depois, precisamente, nao consegui ler 0 10 — disse 0 velho, desconsolado. Leopoldo esmagou sobre a férmica um gro de arroz que caira do croquete — Tenho uma ideia! — exclamou de repente, em vor alta. —O que @ res — Vamos a uma livraria e acabamos de o let! O velho levantou-se ¢ pagou a conta — Uma éptima ideia, realmente — dis ia de brago dado com Leopoldo. A livraria nao ficava longe. Perguncaram logo a um empregado onde se encontravam os livros de aventura ¢, uma vez chegados a frente da estante, Leopoldo encontrou-o quase imediatemente Foram para um cantinho longe dos olhares indis- cretos © procuraram a pagina cm que a historia tinha sido interrompida, — Esté aqui! — exclamou Leopoldo, pasando 0s gordos titulos dos capitulos e, depois de ter aberto bem o livro, tossiu para clarificar a vor. , en quanto _ \ nist Seguiu-se um instante de siléncio. Leopoldo olhava para as paginas ¢ sentia as ligrimas virem-lhe aos olhos. Por mais que, daquela vez, tivesse von- tade de ler, estava-the a acontecer uma coisa que Ihe acontecia cada ver que abria um liv: negras se estavam a transformar num aglomerado de formigas bébedas que, sem nenhuma regra ou. ordem, saltavam de um lado para o outro da folha, codas as letras — E entio? — perguntou o velho, jé impaciente. — Um momento — disse Leopoldo com a voz turva pelo choro. — A pigina é uma grande con- fus — Nao sabes ler? — perguntou o velho, des- confiado. — Claro que sei, j4 estou na terceita classe — respondeu Leopoldo. Naquele momento passou a seu lado uma em- pregada da livraria. Vendo Leopoldo a afastar & aproximar o livro dos olhos, disse ao velho: — O seu netinho deve ter-se esquecido dos — Por que € que nao me disse perguntou 0 velho. — Mas eu no uso éculos! — respondeu Leo- poldo. — Se s6 consegues ver gatafiunhos & tua frente, quer dizer que devias usar. Dito isto, 0 velho dirigiu-se a caixa e pagou livro. Logo que sairam da loja, disse: — Uma vez que foste tio simpético a0 fazeres- -me companhia durante tanto tempo, vou acom- panhar-te a casa. Leopoldo, a esse ponto, goscaria de lhe ter dito que fugira de casa, mas no teve coragem , a entrou no autocarro e fez, ao contrario, o percurso que fizera sozinho naquela manha. re isso a m, indo bateram & porta, 0 coragéo de Leo- poldo batia fortemente. A mie, ao vé-lo, deu um grito de alegria ¢ esma- gou-o com um abraco mais préprio de uma serpente. Depois, desculpando-se pelas ligrimas, fez entrar 0 velho para a sala e ofereceu-the um café com aguar- dente. Ai, o velho contou a histéria toda do dia até ao momento em que Leopoldo tinha tentado ler. — O vosso filho € miope — disse, bebendo 0 uiltimo gole de café. — Miope ou astigmatico ou coisa que 0 valha. Resumindo, para ler, precisa de usar éculos. a Saitam de casa todos juntos. Primeiro acompa- nharam 0 velho a casa, depois foram ao oftalmo- logista. Passados dois dias, Leopoldo tinha sobre o nariz duas lentes tio espessas como fandos de garrafa Passou a noite inteira a ler O Vagubundo das Estre- Jas e, na tarde seguinte, foi ter com 0 velho a0 par- que para The contar o fim da histéria. Depois daquele livro, muitos outros leu. Quando passou de ano, recebeu umas sapatilhas ¢, pelo menos uma vex por semana, ia a0 parque correr. Quando estava cansado, sentava-se a0 pé do velho ¢ os dois falavam sobre livros. Precisa- mente numa dessas tardes, quando ja eta um pouco maior, disse ao seu velho amigo que tinha descoberto que a histéria que este Ihe concara acerca da sua vida, se parecia com a de Ulisses ¢ do capitao Achab, com a de Miguel Strogoff ¢ com a de Guliver, parecia-se com a vida dos tigres da Malisia ¢ com tantas outras histérias que lera nos livros. O velho desatou a rit. — E verdade, eu menti-te, no era um mari- nheiro mas um guarda-nocturno. Para combater 0 tédio e para me aguentar em pé, lia sem parat. © mar, nao o vi sendo em postais, e agora, jamais © poderci ver; porém, quando estou aqui sentado no banco — sozinho e na escuridao — a minha frente vejo todos os mares do mundo. Vejo-os , distingo as brisas leves sinto-thes o odor a sa das que anunciam a tempestade, como se na ver- dade tivesse dado, no cesto da gévea de um veleiro, dezoito vezes a volta ao mundo. 38

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