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SOPRO Um jagung¢o de posse da eletricidade “La Historia es mera exterioridad de la ficcion’, Tal sen- tenca, verdadeiro ‘objecto gritante” que encontramos em Critica Acéfala recapitula - no duplo sentido de cumpri- mento ¢ abalicgo 0 percurso critico de seu autor, Rati Antelo. A frase, integrante do ensaio voltado as transfor- magdes do capitalismo (a passagem da concorréncia ao monopdlio, da empresa ao cassino, do emprego ao jogo, em suma, da industria ao espetaculo) através da analise de A cartomante, de Machado de Assis, e duas de suas “tradugdes’, a de Jorge Luis Borges para a Revista Mu- ticolor de los Sabados, e a de Clarice Lispector n'A hora da estrela, sentencia nao 0 fim da hist6ria, mas 0 seu carater aleatorio, Nao ha mais Destino. Ou melhor, ele nao pode ser previsto pelo gesto de leitura (das cartas, mas também dos indicadores econémicos). Nao foi a toa, portanto, que, ao tentar definir o dinheiro, 0 jovem Marx tenha feito uso de uma formulagdo que parece conceituar a ficgo, ou a linguagem: “O dinheiro - en- quanto exterior, néo oriundo do homem enquanto homem, nem da sociedade humana enquanto socie- dade — faz da representacao efetividade e da efetividade uma pura representagao, transforma igualmente as for- as essenciais humanes efetivas e naturais em puras representages abstratas e, por isso, em imperfeigtes, angustiantes fantasias, assim como, por outro lado, transforma as efetivas imperfeigdes e fantasias, as suas forgas essenciais realmente impotentes que so existem na imaginago do individuo, em forces essenciais efeti- vas e efetiva capacidade”, O dinheiro, enquanto lingua- gem objetificada, apresenta-se como pura exterioridade. E no mesmo sentido que podemos ler os espélios do célebre debate no cenério juridico do século XIX, entre Ihering e Savigny sobre @ natureza do instituto juridico da posse. Se houve um vitorioso neste jogo agonistico, ja que a maioria das legislagdes adotou a concepgdo do primeiro, tudo se complica quando atentamos ao objeto Desterro, janeiro de 2009 - n.1 RESENHAS, VERBELES, DEBAGE, READY-MADES + \www.culturaebarbarie.org/sopro RESENIA Critica Acéfala Raul Antelo Buenos Aires, Editora Grumo (Cole Neteales), 2008 em disputa: o lugar onde um fato vira dirito (ou seja, onde uma coisa se torna um objeto, onde a ficgao toca a hist6ria). Ihering definia a posse justamente como a “ex- terioridade, a visibilidade da propriedade”, mas a proi- bicdo juridica de arglir questoes de propriedade em agdes possessdrias, bem como a hercillea, incessante, mas infrutifera, tentativa dos juristas de isolarem as pseudo-posses (ficta possessio, posse indireta, etc.), revela que é possivel que a exlerioridade ndo seja uma exteriorizacao, que 0 fora independa do dentro, que haja um apossamento que nao seja posse, a nuda detentio, assim como ha vida nua sem forma de vida, como ha dinheiro sem valor, como ha histéria sem ficgdo. E este Ocampo que Lacan chamou de Real. Neste sentido, a critica n&o pode declarar faléncia, como quer certa ma- triz de pensamento brasi-frankfurt-kantiana; ela &, desde sempre, infalivel (ainda que perca a cabeca), pois néo visa julgar a adequacdo de comportamentos a normas de valor, mas desativar estas normas que vigem sem valorar, como pura forga. Isto no significa que a critica passe a girar em falso, que ela se converta, para usar as palavras de Araripe Jr. na sua invectiva contra o herme- tismo de seguidores de Mallarmé (e, avant la lettre, con- tra certo pensamento ingénuo-desconstrucionista), em “niilismo literario” (cujas conseqléncias maximas seriam a “verbolisia’ e 0 “estilismo agudo’ - “um estilo que persegue um assunto”), a idéia que teria tomado conta, por exemplo, de Raul Pompeia — de “que toda a tradugéo do pensamento humano era uma queda satanica, um suplicio de Prometeu, e que, neste caso, mais valia im- pecir que esse poema se cristalizasse no bico da pena do compositor’. Se ha historia sem ficgao, se ha litera- tura sem sociedade, a critica nao s6 nao pode se limitar @ relacionar as duas esferas, como nao pode cair no perigo oposto, ainda que conjugado ao primeiro, o de SOPRO separd-las, o de valorizar (e praticar) 0 mero delirio. A tarefa continua sendo aquela apontada por Guy Debord No RelatOrio que apresentou quando da fundagao da In- temacional Situacionista de Cosio dArroscia, em 1957: “E preciso (...) racionalizar mais o mundo, primeira condicéo para tomna-lo apaixonado”. E neste contexto que se deve compreender a erudigo e 0 cuidado filologico, sempre apontados como marcantes nas and- lises de Antelo, e que continuam presentes neste novo livro, publicado pela colegao Materiales da Editora Gru- mo, @ que reUne parte da sua vastissima produgao mais tecente. Nao se trata de esforco historicista, nem seu oposto - 0 diferimento infinito. Antes, o resultado parece ser 0 saber daquele ‘jagunco civilsado", descrito por ‘Aratipe Jr. em carta a Euclides da Cunha, que, “de posse da eletricidade, tera sobre 0 extrangeiro a vantagem de conhecer n&o s6 os caminhos secretos da vida interior, mas tambem de saber que sao de pedra os monstros, que fazem esgares das torres da velha cathedral e nao obstante assustam os desprecavidos que ali penetram’. Trata-se, nas palavras do proprio Antelo, de ‘ruptura imanente’. Se, de faio, como argumenta Deleuze, 0 con- ceito € 0 momento poético do pensamento e, como quer’ Agamben, os dispositivos sao formas de capturar a vida, maquinas de producdo de subjetividade, a nogdo poé- tica de “ruptura imanente” visa, no corpo-a-corpo com a historia e a fico, liberar a poténcia Comum a ambas - e isto quer dizer: desativar a relagao que separa, articu- lando interioridade e exterioridade. Nao é por acaso que esta nogao tenha sido apresentada por Antelo no con- texto de uma dupla refutacao, que é também uma dupla aceitagao: tanto da tatica “desconstrucionista’, quanto da ‘marxista’ (e 0 carater aleatorio desta oposicao é muito bem tragada em um dos ensaios que compdem Critica Acéfala, com a altemancia de posigSes entre os dois lados da polémica), tanto do “entretugar” quanto das ‘idéias fora do lugar” (e, de fato, a ‘ruptura imam- ente” é, ao lado destes dois conceitos, provavelmente o mais criativo ¢ elucidativo no cenario da critica brasileira das Ultimas décadas), tanto da antropofagia quanto da antropoemia, os dois ‘tipos ideais’ entrevistos por Lévi- Strauss em Tristes Trdpicos. Pois ja nao se trata de optar por um ou outro, ja que o pluralismo gueto-globali- zante articula ambas estas ‘politicas canibais’, cristali- zando 0 que poderiamos chamar de abertura limitada ao Outro. Como definiu Debord, “O espetaculo reine o separado, mas 0 reUne como separado”, Por sua vez, a “tuptura (antropofagica) imanente (antropoemética)’ propée devorar aquilo que se costuma vomitar e vornitar © que se deveria devorar: se 0 limiar antropofagico “as- sinala o pentiltimo, algo que estando prestes a se encer- far, toma-se a abrir incessantemente” eo limite antro- poemético “imagina encontrar um termo de fixacgao e controle do diferendo’, 0 horizonte de universalidade proposto se constrdi pela desconstrugdo e apropriagao ‘desse limite institucional para torna-lo um limiar perspectivo a partir do qual se realiza a critica retrospec- tiva de toda situacao liminar’. Observe-se a aiencao dedicada 20 duplo movimento da hist6ria: abertura ao futuro na conversdo do limite em limiar, e rememoragao do passado, pela critica da decisao atualizadora de uma dentre muitas possibilidades histOricas, Para usar outra expresso de Clarice Lispector, “saudade do futuro”. O universal, o limite, deste modo, nao é uma consciéncia telampejante das diferengas, o fim ou o Marco Zero da historia, mas 0 que possibilita toda historia, uma abertura néo-originéria, ainda que ontoldgica: “Uma tal alianca indissoldvel entre apropriagdo € expulsdo designa, sem divida, a diferenga ontologica como luta permanente, porém, ultrapassa esse circulo postulando que o ele- mento do mesmo, que é assim evocado como solo co- mum de todas as coisas diferentes ou inauténticas, nelas compreendidas as que se opdem entre si, nunca é uma dimensao originaria, situada fora do ente, mas um trago que Ihe € apenso.” Ou seja, a historia - a Historia universal da infémia - n&o pode ser prevista porque ela 6 exterioridade de uma exterioridade (a ficgao). A leitura nao prevé porque nao ha o que ser previsto. Ou melhor, porque a linguagem néo serve para prever. A historia s6 se repete como farsa; a literatura, como parddia. Em am- bos, nos encontramos diante de um novo gesto humano, de um novo gesto de linguagem. E cada novo gesto re- presenta um recomego, um nascimento, como diria Hannah Arendt - @ uma chance de felicidade, isto &, “aquilo que livra o homem afortunado do imbraglio dos Destinos e da rede de seu proprio destino” (Walter Ben- jamin). Por isso, a0 tentar definir a ficgao, Juan José Seer insistia que ela nao era “una reivindicacion de lo falso’, que nao era “una claudicacion ante tal o cual ética de la verdad, sino la busqueda de una un poco menos rudimentaria’. Assim, diante ‘de la posicion singular de su autor entre los imperativos de un saber objetivo y las turbulencias de la subjetividad, podemos definir de un modo global la ficcién como una antropologia especula- tiva’. Dito de outro modo: a fico investiga 0 gesto ético da linguagem, presente em cada ato de fala (e isto quer dizer: em cada instante histérico), pois, como argumenta Agamben em seu mais recente livro, “O elemento deci- sivo que confere a linguagem humana as suas virtudes peculiares ndo esta no instrumento em si, mas na posigao em que este deixa 0 falante, no seu predispor dentro de si uma forma vacante que 0 locutor deve a cada vez assumir para falar. Isto é: na relacao ética que se estabelece entre o falante e sua lingua. O homem é aquele vivente que, para falar, deve dizer eu’, deve, isto 6, ‘apanhar a palavra’, assumi-la e fazé-la propria’. Vivemos em um momento hist6rico em que 0 capitalismo video-financeiro objetificou a linguagem em espetaculo. Agora, n&o $6 0 dinheiro replica a estrutura da lingua- gem - a linguagem também se torou dinheiro. O dis- positive que permite ambas estas operagies, que pos- sbilta a relagdo-separagao entre intemo e extemo, entre ficcdo e historia, é a meta-nogao de objeto.Em sua contribuigao, nao-publicada, para a Enciclopédia Sovié- tica, Arte absoluta e politica absoluta, Cari Einstein sus- tentava que “No objeto acumula-se a tradigao; nele a imediaticidade é adiada, deslocada. (...) O homem esta farto de objetos que o descrevem; ele experimenta uma Utopia do objeto que, sem respeito aos homens, Ihes impdem o trabalho objetificado”. Por isso, “A tarefa da Revolugao” seria a “desrealizacdo, destruigao do objeto para a salvagao dos homens.” O pathos da Critica Acé- fala de Rail Antelo se mostra quando descarregada toda a eletricidade acumulada para des-realizar o objeto auténomo: aquele habitus proprio da humanidade (0 apossamento da linguagem e da historia), onde, como lemos na Epistola do Vivente filho do Vigiante de Avi- cena, “Todos estéo no deserto e ndo necessitam de abrigo’, Alexandre Nodari RESENHAS, VERBEGES, DEBALE, READY-MADES VERGECE EXTERIORIDADES PURAS A formagao de uma exterioridade nao ¢ a simples pas- sagem da imanéncia a transcendéncia. Exterior & 0 plano que se expde em sua imanéncia puramente ir- redutivel e monadoldgica. A transcendéncia n&o passa de um efeito aparente, uma dobra, que transborda de um continuum que a tudo perpassa. Nao ha e nem pode haver - e isso foi formulado de forma pungente em Es- pinosa e Deleuze - uma imanéncia pensada como plano imanente a algo (a vida, 20 Sujeito, a consciéncia, etc.). “E quando a imanéncia & imanénola apenas a si que se pode falar de um plano de imanéncia. Assim como © plano transcendental nao se define pela consciéncia, co plano de imanéncia no se define por um Sujeto nem por um Objeto capaz de o conter.” Bento Prado Jr., na conferéncia em que analisa 0 conceito de plano de imanéncia a partir do opuisculo O que é a Filosofia de Deleuze/Guattari, propositadamente intitulada ‘Plano de Imanéncia e Vida", assevera que se o plano de imanén- cia, como instancia que precede a propria relago entire sujeitos e objetos (sendo simultaneamente contem- Poraneo e quase coextensivo a formagao de conceitos na instauragao filosdfica) fosse imanente 2 vida, ele perderia imediatamente sua aseitas (na expressdo es- colastica “um ser que contém em si proprio a razéo de seu ser), transformando-se em mera abaleitas (0 ser que depende de outra instancia - ou outro ser - para sua existéncia). Contudo, ‘o imanente que nao é imanente a nada especifico ¢ ele mesmo uma vida, Uma vida é a imanéncia da imanéncia, uma imanéncia absoluta: ela é poténcia e beatitude completas.” Este empirismo radical, indeterminado e indeterminavel de uma vida (0 artigo indefinido evidencia-se no qualificativo que invalida toda e qualquer qualificagao) é a forma de uma exterioridade indomita que avassala proteses de exterioridade funda- das em nao-lugares misticos, fantasméticos ou mantidos base de armas. E 0 que sempre esta la e se mantera mesmo quando os Ultimos ventos da catastrofe sopra- rem, ponto de velocidade e passividade infinitas... Um menino brincando com algumas pedras. Jonnefer Barbosa VERGECE COROINHAS Na celebracao eucaristica - as missas dos catolicos ro- manos — existe uma figura interessante, cujas fungdes operatirias sao ligadas @ organizagao e a preparacao dos instrumentos prdprios & realizacao do rito: 0 acdlito (que, quando ainda infantil, recebe 0 popular nome co- roinha). Este jovem, muitas das vezes incomodado com ‘@ paramenta ministerial cujo uso Ihe 6 for¢osamente im- posto, deve preparar o altar alguns instantes antes da realizagdo da missa (organizando o calice, as galhetas, as patenas, 0 ambéo, 0 manustérgio, o sanguinho, a naveta e 0 turibulo nos dias de festas, enfim, todos os apetrechos necessarios para grande sacrificio que ali se realizara). Como bom auxiliar, 0 acdlito deve realizar todas as suas tarefas inadvertidamente, Ele, juntamente ‘com os ministros - aqueles senhores de respeito, ho- mens da sociedade local que representam algum papel de importancia (em geral so farmacéutioos, médicos, advogados, empresarios, enfim, todos operadores de fung6es sociais constantes) -, deve fazer com que nada fique fora do lugar na ordem dos eventos da celebra: G0. Além destes atos pré-missa, também ao acélito é necesséria a participagao no proprio ato ritual. Assim, ele deve saber entoar todos os cantos, deve saber todas as respostas lttrgicas prescritas, bem como deve saber se movimentar impercepiivelmente no espaco do aliar, de modo a servir 0 sacerdote com perfeicao - colocando a0 alcance deste todos os paramentos necessdarios para a realizacao do ato sacrificial-eucaristico. Sua par- ticipagao, portanto, se da principalmente durante o ato eucaristico, que compée a parte final da missa: tocam a sineta no momento da consagracao, incensam o sa- cerdote, preparam as galhetas, lavam as méos dos sa- cerdotes e ministros e seguram a patena no momento da distrbuigao das héstias consagradas aos fiéis. De todos os atos praticados pelos acdlites - confesso que ja 0 fui certa vez -, talvez seja este Ultimo o que mais me chamava a atengo. A simplicidade do ato (acom- panhar o ministro de eucaristia durante a distribuigéo des héstias consagrades, atuando como salva-guarda do corpo de cristo - isto ¢, com patena em maos, nao pode deixar que nenhuma hostia caia no chao) corre- sponde uma responsabilidade imensa: ele, o simples assistente, deve evitar que até mesmo as mintiscu- las particulas da héstia consagrada venham a cair no chao, 0 que faria com que deus pudesse ser vitima de um pano de chao, por exemplo - tendo como triste fim uma estacao de tratamento de esgoto de uma cidade interiorana qualquer. Ele, 0 simples assistente, que deve passar sem ser notado durante todo o ritual da missa, 6 0 portador da salvacao do proprio deus. Ele, 0 simples assistente, a presenca irremediavelmente ir- redutivel do infante no mais alto sacrificio que a nossa cultura ocidental jamais ostentou, @, juntamente com sua patena, 0 verdadeiro redentor do deus-trino. Ele, 0 simples assistente, a desajeitada crianca dentro dos sérios paramentos eclesiasticos, ja sempre relegado as penumbras da missa (“movimente-se com destreza de modo a cumprir estritamente tuas fungdes!!”talvez seja a frase mais recorrente de um sacerdote), & 0 ja sempre esquecido diante da magnitude do ato sacrificial. Ele, o simples assistente, que acompanha todo o ritual (como uma voz recdndita no algoz, uma brisa que Ihe sussurra 0 que fazer com a vitima) para dele ser esquecido, ainda que, muitas vezes, tenha, com sua patena, resgatado 0 deus das sevicias do escovao da faxineira e, quica, das ‘fétidas galerias de esgoto. Vinicius Honesko READY-MADE “a fundacéo de uma obra nao é a produrao infinita do objeto: 6 a formulacao de uma possibilidade de vida” (Hélio Oiticica) \woww.cuturaebarberie.or/sopro sopro@culturaebarbane.org ¢ € uma pubicagdo quinzenal, : de distrbuigto gratuita Editores: Alexandre Nodari e Flavia Cera

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